domingo, 19 de abril de 2009

Manhosos, sapecas e matreiros


De Jeca Tatu a Mazzaropi, o Brasil caipira foi retratado de várias maneiras. Apesar dos preconceitos, a cultura do interior acabaria conquistando o seu espaço
William Reis Meirelles

Praga nacional, inadaptável à civilização, símbolo do atraso econômico, político e mental: assim era Jeca Tatu, um retrato do homem do interior. Personagem criado por Monteiro Lobato (1882-1948), Jeca representava os atributos negativos dos brasileiros. A imagem do caipira como o “piolho-da-terra”, elaborada pelo escritor paulista, aparece pela primeira vez em 1914, em cartas por ele enviadas ao jornal O Estado de S. Paulo. A figura do homem do campo atrasado faz parte do discurso que a elite liberal republicana – defensora de um Brasil composto de cidadãos brancos europeus – usa para deslegitimar determinados setores das classes populares.

No início do século XX, a pretensão de construir uma identidade nacional se chocava com a realidade de um país que parecia partido ao meio, dividido entre um Brasil urbano e outro rural. Neste mundo onde o urbano representava o progresso e o rural aquilo que devia ser superado, parecia impossível encontrar elementos capazes de construir um patrimônio comum de valores. Esta situação era agravada pela dificuldade de se reconhecer no trabalhador brasileiro, especialmente o do campo, atributos capazes de identificá-lo como figura positiva para a formação de um povo nobre. Dizia-se que este tipo de homem era incapaz de integrar-se aos padrões sociais de uma vida moderada, guiada pelo trabalho disciplinado.

A representação do caipira, cujos principais traços físicos já apareciam delineados em quadros de Almeida Júnior (1850-1899) – como o “Picador de Fumo” –, cresceu em importância a partir do momento em que Rui Barbosa (1849-1923) definiu Jeca Tatu como símbolo do descaso dos governos com o povo do campo. O próprio Monteiro Lobato tentaria mudar a imagem negativa do Jeca em Urupês (1914), afirmando que ele não era um homem miserável, e sim alguém que vivia em um estado de miséria. O autor atribuía a responsabilidade por esta situação à negligência das autoridades diante do atraso da população rural brasileira.

A partir de meados dos anos 1940, muitas manifestações culturais da sociedade urbana brasileira passam a contar com uma significativa presença e participação das classes populares, na maioria caipiras vindos do interior. Forjada pelas elites urbanas, a idealização da imagem da cidade que acolhe tudo e todos buscava impor aos novos segmentos da população um determinado tipo de cultura e de comportamento, ao passo que a cultura caipira dos recém-chegados era desqualificada e rotulada de atrasada.


Desde os anos 1940 e 1950, o avanço dos meios de comunicação de massa – revistas ilustradas, rádio, cinema e televisão – fez deles poderosos instrumentos de manipulação e padronização de hábitos e de estilos de vida. No campo da cultura, o cinema, como uma forma de divertimento popular, representava um veículo importante na elaboração e na contraposição de diferentes visões do mundo e da sociedade (ver Revista de História da Biblioteca Nacional no 8, p. 44). Mazzaropi (1912-1981), um ator popular conhecido por suas participações em espetáculos circenses e em programas radiofônicos, encarnou em seus filmes a figura do caipira desajeitado, não adaptado ao progresso da cidade grande. Esses filmes – um tipo de divertimento destinado a ocupar as horas ociosas das classes populares – foram duramente classificados pela crítica como produtos “subdesenvolvidos”, exaltações da “mediocridade”.

Mas em cada uma das obras de Mazzaropi pode-se ver uma clara manifestação de um tipo de cultura que escapava ao controle das elites dominantes. Nas palavras do articulista Alaor Santos Jr., os filmes expressavam uma realidade “sapeca e matreira”, retrato de um mundo à margem da ordem mundial, confinado na periferia dos grandes centros, em cidades pequenas e vilarejos interioranos – “lá onde o vento encosta o cisco, o judas perdeu as botas...”.

Mazzaropi mostra em seus filmes formas antigas de expressão do ser humano em suas horas de ócio. No tempo em que descansa, o caipira canta, dança, compõe, cria e recria com todo seu esplendor o mundo em que vive. A dança e a música são celebradas como uma linguagem para as quais não é necessário qualquer conhecimento, a não ser a criatividade de seus autores. O homem do campo se expressa por meio da dança nas festas – religiosas ou profanas – embalando catiras, fandangos e reisados.

Esse caipira, às vezes saudoso e choroso, pega a viola e canta a saudade da “cabocla Tereza” ou de alguém numa casinha pequenina que repousa sob a luz do luar e um vento “manhoso”. Outras vezes, improvisa uma embolada ou lança um desafio a outro violeiro.


Numa roda caipira não faltam os contadores de “causos” com seus vastos repertórios de imensa variedade: histórias imaginadas, verdadeiras ou inventadas – tanto faz. Outra cena típica da tradição caipira é aquela em que alguém chega e logo se põe a contar vantagem, dizendo coisas do tipo “eu sou melhor tropeiro do que ele”, “ele não toca nada” ou “a viola dele é desafinada”.

Nada melhor para retratar o que um caipira faz em seus abençoados momentos de ócio do que o depoimento de uma legítima representante da população que habita o ainda vastíssimo Brasil rural, retirado de um estudo sobre linguagem e cultura do interior goiano:

“Bom, aqui sempre nos dumingo, eu vô na casa de uma vizinha que tem aqui perto; lá, às veiz tá passano um filme assim q’eu interesso, eu vô assistí junto com as menina; e também uma veiz por ano nóis vai no..., vai toda minha família, e lá é onde nóis diverte mais. E às veiz tem uma festa na igreja, a gente vai, passa o dia todo na reunião da mocidade, batismo, alguma coisa assim”.

William Reis Meirelles é professor da Universidade Estadual de Londrina.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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