domingo, 19 de abril de 2009

Ladrões de crianças


Os primeiros estudos sobre a tradição cigana na cultura brasileira não escaparam dos estereótipos que perseguem o grupo
Cristina Betioli Ribeiro

Muito antes de o médico baiano Alexandre José de Mello Moraes Filho (1843-1919) publicar o Cancioneiro dos Ciganos (1885) e Os Ciganos no Brasil (1886), outras obras de gênero diverso, que figuraram entre os primeiros romances modernos produzidos no Brasil, já cediam espaço às controversas descrições dos chamados calons.

Em As tardes de um pintor (1847), narrativa ficcional do romancista carioca Teixeira e Souza (1812-1861), no capítulo sobre “O campo dos ciganos”, os preâmbulos para a apresentação do personagem Justo – um cigano de fato justiceiro – fazem alusão a uma raça de “antípodas da civilidade e bons costumes”. Nas páginas folhetinescas de Memórias de um sargento de milícias (1852), Manuel Antônio de Almeida (1831-1861) submete seus dois protagonistas, Leonardo Pataca e o filho homônimo, a paixões e aventuras adversas com ciganos, pintados como lascivos, velhacos e “acostumados à vida vagabunda”.

Era de se esperar que em obras de outra natureza, voltadas para as preocupações com as origens de nossas manifestações folclóricas, o tom fosse diferente. No entanto, resistem sensíveis semelhanças. Numa época em que médicos e juristas também se ocupavam de literatura e de estudos culturais, Mello Moraes Filho integra um significativo movimento ideológico que propõe investigações expressamente “científicas” sobre a cultura popular brasileira, em oposição à estética romântica. Este movimento ganha corpo principalmente a partir dos anos 70 do século XIX, sob influência do positivismo. Naquele momento, o folclore é substancialmente tomado como novo mote nacionalista. A maioria dos intelectuais envolvidos nesta corrente reformadora provém ou é simpatizante da Escola de Recife, definição para o grupo de ideólogos formado na antiga Faculdade de Direito pernambucana.

O mestiço, celebrado por Sílvio Romero (1851-1914) como o máximo representante da brasilidade desde “A Poesia Popular do Brasil” (Revista Brasileira, 1879), torna-se alvo dos estudos etnográficos, orientados por pesquisas que buscam nas contribuições portuguesa, indígena e africana os componentes dos costumes, dos usos, das superstições e dos cancioneiros populares.


É com esse espírito que Mello Moraes Filho escreve sobre os ciganos, mas sem se desvencilhar completamente dos juízos de valor sinalizados naquela prosa de ficção de meados do século XIX. No Cancioneiro dos Ciganos, fruto do trabalho direto de coleta de canções nas regiões cariocas habitadas por calons à época (Cidade Nova e Valongo), o discurso é o de resgate de uma poesia que poderia ter origem em costumes da Antiguidade. Para o folclorista, em consonância com seus pares Sílvio Romero, Franklin Távora (1842-1888), João Barboza Rodrigues (1842-1909), Alfredo do Vale Cabral (1851-1894) e muitos outros, o valor do cancioneiro, produzido por “hordas sem culto, sem asilo e sem lar”, seria, portanto, mais arqueológico do que literário. Cultura e arte ciganas são “fossilizadas” neste movimento de apreensão e de descrição etnográficas, única via pela qual Mello Moraes consegue apreciá-las. Embora reconheça um “misticismo admirável” nos versos reunidos, sua essencial identidade popular e seu relevo para a reconstituição do passado, o autor destaca neles um “canto de dor” dos banidos ou subjugados, também caro aos negros e índios, igualmente considerados inferiores em relação à raça branca do português desbravador. Nas “Elegíacas”, reunidas na segunda parte do Cancioneiro dos Ciganos, são reproduzidas as agruras cantadas por um povo oprimido havia séculos. Registrado em redondilhas maiores, métrica típica da poesia oral, o poema expõe as lamentações de um injustiçado: “Para contar os meus males/ Meu natural me contém;/ As sepulturas têm flores,/ A minha vida não tem./ (...) Quando o réu é infeliz/ Mesmo com razão tem crime;/ Sua defesa não vale,/ Sua inocência o oprime./ Se houver um ente que sofra/ Ainda mais do que eu,/ Digam ser meu mal mentira/ E zombem do pranto meu./ Sofro às vezes tantas dores/ Que adormeço soluçando,/ A mim mesmo sou contrário/ O meu pranto motivando.”

A suposta capacidade dos ciganos de manterem suas tradições invioladas no contato com outras culturas poderia ser questionada simplesmente pelas características abrasileiradas desta poesia, apesar da possibilidade de adulterações do registro escrito. Ainda assim, o coletor sustenta a hipótese de uma imunidade cultural e a julga simultaneamente positiva e negativa. Positiva por preservar usos preciosos para o conhecimento arqueológico, mas negativa por levar os ciganos, por resignação, a recair nos vícios e a se manterem “bárbaros” em relação aos povos “civilizados”.

Estas concepções desprestigiam organizações socioculturais distintas dos valores e práticas dos centros urbanos, e estão ligadas às datadas idéias positivistas de progresso e evolução, além de também servirem de base para os julgamentos presentes em Os Ciganos no Brasil.

Nesta segunda obra sobre a raça que teria migrado da Índia para se estabelecer no Egito e sucessivamente em outras nações européias, sobretudo na Espanha, Mello Moraes oferece detalhadas descrições sobre fisiologia, costumes, crenças e festas próprios dos ciganos. Examina a propensão da raça à surdez; destaca a tendência à linguagem cifrada e às alcunhas; comenta a beleza irresistível das calins, formosas, mas de “mau exemplo no lar doméstico”; ressalta o apreço pelas celebrações de casamento e morte; lista e transcreve as mais usuais superstições. Nos chamados bródios, salienta o imprescindível toque da viola e as danças sensuais. Tudo com a tonalidade pitoresca do binóculo de folclorista.

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No tocante à religiosidade, o autor detecta apenas os credos supersticiosos. Fator principal do hipotético atraso mental e da “infância das sociedades”, o fetichismo é considerado, segundo as prescrições da filosofia positiva, uma etapa retardatária do estado teológico humano. Sob pontos de vista semelhantes, o médico maranhense Nina Rodrigues (1862-1906) realiza um exame cultural da mesma natureza sobre os africanos em O animismo fetichista dos negros baianos (1896). O interessante para a discussão de Mello Moraes é exatamente o ponto em que ele flagra a contribuição do “povo misterioso e errante” na “herança psíquica do brasileiro”. Mais do que isso, é quando reconhece no cigano a fonte principal de crendices populares e “a solda da mestiçagem” no Brasil.

A influência na cultura brasileira atribuída aos calons por Mello Moraes é contestada por Sílvio Romero, que recusa a afirmação de que os ciganos teriam participado como “solda” na composição do mestiço e questiona o escorregadio propósito da investigação de fontes há muito permeadas por outras culturas. Se os ciganos retratados por Mello Moraes eram os deportados de Portugal para o Brasil desde o início do século XVIII, como garantir que seus costumes e cancioneiros fossem genuínos? Em que medida não se teriam mesclado aos portugueses e brasileiros?

É certo que, no momento histórico de comemoração da independência política do Brasil e de elaboração das primeiras definições para o povo e o “nacional”, muitos preconceitos foram semeados. Dos índios, por exemplo, o brasileiro herdou o adjetivo “preguiçoso”, relido por Mário de Andrade em Macunaíma (1928), reiterado nos caboclos caipiras dos contos populares, como Jeca-Tatu e Pedro Malasartes, e estendido ao conhecido atributo do “jeitinho”.

Dos ciganos, permaneceu mais a idéia de imisturáveis, “supersticiosos, desclassificados e desconfiados” do que de participantes da formação do brasileiro. Também vítimas do estigma de ladrões, qualidade associável às antigas práticas asiáticas de “pilhagem”, os ciganos foram alvo de perseguições policiais e rejeitados pelo projeto civilizador do Brasil oitocentista. O mito de que os ciganos roubavam crianças, já inscrito nas Novelas exemplares (1613), de Miguel de Cervantes (1547-1616), desde o século XVII, foi reforçado ao longo do tempo pela ótica depreciativa sobre seus hábitos e modo de vida. Casos nunca comprovados de raptos de crianças por ciganos, possivelmente ligados ao acolhimento voluntário de filhos ilegítimos ou enjeitados atraídos pelo convívio mambembe, consolidaram a imagem de que os ciganos eram perigosos (assassinos e canibais), exemplo de barbárie, e, portanto, uma “casta” a ser afastada da sociedade que se queria fundar no Brasil. Contrários aos modelos de conduta cívica e virtuosa, estritamente recomendados aos leitores de romances do século XIX, os ciganos eram maus exemplos, mas exóticos e fascinantes. Os “ladrões de crianças” eram personagens interessantes para a literatura, porém maus cidadãos. Na condição de marginalizados, muitos ciganos de fato se rendiam à exclusão e correspondiam à imagem preconcebida de marginais, tornando-se alvo de ocorrências policiais e notícias jornalísticas, que sedimentavam opiniões negativas e generalizadas sobre o seu povo.

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Neste contexto político e ideológico é que começaram as pesquisas e os registros sobre a cultura cigana no Brasil. As descrições sobre seus costumes e manifestações artísticas, envoltas em preconceitos, mistificações e banimento social, vinham impregnadas da expectativa de “branqueamento” da população e da exaltação científica do progresso das civilizações.

Mesmo depois de muito tempo, as convicções culturais plantadas no passado permaneceram influentes sobre os estudos de folclore. As diversificadas formas de expressão popular, intrincadas, ininterruptas e constantemente mutáveis, continuam sendo associadas à extinção ou à corrida contra o tempo. Muito do que permanece das iniciativas válidas, mas problemáticas, de “salvação” do seu manancial, resulta, em parte, na perpetuação de caricaturas sociais ou de falsos estereótipos.


Cristina Betioli Ribeiro é doutoranda na Unicamp e autora da dissertação de mestrado “O Norte – um lugar para a nacionalidade” (Campinas, IEL-Unicamp, 2003), sobre os primeiros folcloristas brasileiros.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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