sábado, 11 de abril de 2009

Gustavo Kuerten e a Primeira Guerra Mundial


O que o tricampeão de Roland Garros tem a ver com o conflito? As curiosidades você só encontra nas páginas dos jornais da época
Sidney Garambone

O sobrenome alemão de Gustavo Kuerten não é prova de que o avô do maior tenista brasileiro tenha pegado em baionetas durante alguma das guerras mundiais. Mas o sucesso de suas raquetadas no mais badalado torneio de tênis do mundo guarda curiosa e longínqua relação com a participação do Brasil na Primeira Guerra.

Todas as vezes em que brilhou nas quadras parisienses, Guga iluminou o nome de Roland Garros nas manchetes dos jornais. Roland Garros para lá, Roland Garros para cá, e em três oportunidades o troféu acabou nas mãos do brasileiro. Só que a primeira vez que Roland Garros teve seus minutos de fama na capa de um jornal brasileiro nada teve a ver com uma bolinha amarela quicando numa superfície de saibro: no dia 20 de abril de 1915, o jornal Correio da Manhã publicou com alarde que o famoso aviador francês Roland Garros caíra prisioneiro dos alemães.

Esta é apenas uma das muitas curiosidades escondidas nas páginas dos jornais brasileiros que circularam no turbulento período de 1914 a 1918. Mergulhando em microfilmes de difícil leitura guardados na Biblioteca Nacional, navegando por parágrafos de letras pequenas e marchando por páginas amarelas e rasgadas, é possível ter a percepção de como a cobertura da imprensa na Primeira foi totalmente diferente do enfoque dado à Segunda Guerra Mundial.

Os inúmeros aficionados pelas histórias dos grandes conflitos bélicos que a humanidade empreendeu ficariam com água na boca só de bater os olhos nesse rico arquivo. No noticiário da época encontramos informações sobre quantas balas foram disparadas na direção do arquiduque Francisco Ferdinando, príncipe herdeiro do Império Austro-Húngaro, no atentado ocorrido em Sarajevo e que precipitou o início da guerra. Um leitor mais detalhista se regozijaria com informações precisas sobre a marca e o calibre da pistola utilizada no ataque.

Nos quesitos informações militares, descrições do conflito e análises estratégicas, os jornais antigos não deixavam a desejar. Por que canhões ingleses disparavam cinco granadas por dia em vez de 50, que era a sua capacidade máxima? Por que o afundamento do navio Lusitania foi muito mais importante do que o naufrágio do Titanic? As respostas estão todas lá, à espera dos leitores curiosos.

Não havia Internet. Nem televisão. Nem rádio. E ninguém sentia falta. Havia silêncio, charretes, prosa na esquina, bondes e traje obrigatório. Na década de 1910, o brasileiro da nascente classe média urbana vestia gravata, terno engomado, chapéu, e saía às ruas atrás das novidades. O cidadão das grandes cidades não tinha mais medo da febre amarela, erradicada pelo sanitarista Oswaldo Cruz, mas se preocupava com a gripe espanhola, epidemia que em 1918 seria capaz de matar oito mil paulistas em apenas quatro dias – e no mundo matou mais gente do que a própria Grande Guerra: 20 milhões de pessoas!

Não éramos muitos, se comparados com a população atual. Vinte e seis milhões de brasileiros assistindo à crise do café e ao surgimento da industrialização. A minoria que sabia ler acompanhava as notícias, frescas ou não, pelos jornais. Quem não sabia, pedia explicações ao vizinho de bonde. A imprensa escrita era a única voz que ecoava a opinião das ruas, ao mesmo tempo em que ajudava a formar esta mesma opinião. Jornalistas e homens de letras tentavam se inserir nesta elite intelectual em formação no início do século.

E de repente, no meio deste panorama interno em ebulição, a guerra! Nas notícias imediatamente anteriores ao início do conflito, fica claro que a imprensa não percebia que uma carnificina em escala industrial estava prestes a começar. O dia 29 de junho de 1914 é emblemático para a análise da cobertura jornalística brasileira da Primeira Guerra Mundial. Na véspera, o arquiduque Francisco Ferdinando (a quem os jornais da época, por uma questão de tradução, preferiam se referir como Francisco Fernando) e sua esposa, Sophia Hohenberg, haviam sido assassinados por um nacionalista sérvio em Sarajevo.

O episódio ficaria conhecido como o autêntico estopim da Grande Guerra. Mas os jornais não podiam prever seus terríveis desdobramentos: o crime foi noticiado como um gesto inconseqüente, sem maiores motivações político-partidárias. O Jornal do Commercio reservou sua reportagem principal para o caso, sob o título: “Attentado Anarchista”. O texto, detalhista, mais parecia o de uma reportagem policial dos dias de hoje:

No momento, porém, em que o cortejo dobrava as esquinas das ruas Rodolpho e Francisco José, um mancebo que se destacou bruscamente do público apontou uma pistola Browning e desfechou-a quatro vezes contra a carruagem de suas altezas. O arquiduque, que a princípio tinha sido atingido no rosto, ficou mortalmente ferido no lado direito do ventre, ao mesmo tempo em que a arquiduquesa, com a carótida cortada por outra bala, lhe caía sobre os joelhos.

Os repórteres até tiveram o cuidado de ouvir representantes da diplomacia, mas parecia consenso que o assassinato não teria maiores conseqüências:

Aos jornalistas que ontem o procuraram, o doutor Cyro de Azevedo, antigo ministro do Brasil junto ao governo do império austro-húngaro, disse o seguinte: - Não creio que o lamentável atentado contra o arquiduque Fernando tenha raízes na política ou na opinião pública. A minha primeira impressão é que o brutal assassinato não passa de um desvairamento isolado, sem nenhuma razão de justiça que o atenue. (Correio da Manhã)

À medida que o conflito avançava, porém, os jornais brasileiros se viram obrigados a cobrir de forma mais cuidadosa e profunda os acontecimentos. E fizeram questão de adotar uma abordagem tão neutra quanto a postura do governo brasileiro, que se recusava a entrar na guerra. Ao contrário do patrulhamento ideológico que tomaria conta do país na Segunda Guerra Mundial, a imprensa passa os dois primeiros anos sem escolher um lado para apoiar.

Esse ponto de vista propiciava críticas e elogios para os dois lados do front: enquanto uma reportagem destacava a penúria do exército inglês, com sua recorrente prática de economizar granadas, outra elogiava o sucesso da invasão turca a terras egípcias – a Turquia era aliada das potências centrais Alemanha e Áustria-Hungria –, e dias depois, lamentava-se o afundamento, por submarinos alemães, do navio norte-americano Lusitania, que causou a morte de 1.400 passageiros, na maioria civis.

Neutralidade nas páginas, neutralidade nos gabinetes. Mas não por muito tempo. Crescia o clamor público para que o Brasil tomasse partido. As cartas dos leitores reverberavam discursos apaixonados como este, publicado em fevereiro de 1917 no Jornal do Commercio:

O Brasil precisa, sem demora, pois, agir de acordo com a maioria de seus filhos, que há muito pede e deseja que o Governo tome as medias de rigor e compatíveis, contra os bens dos súditos de um país, que nada respeita e que brevemente prejudicará e menosprezará, mais diretamente ainda, os bens e interesses dos brasileiros. É tempo de acabar-se com a neutralidade exemplar!

Dois meses depois, a entrada dos Estados Unidos na guerra reforçaria os argumentos antineutralidade. Foi a deixa para que os jornais passassem a pressionar abertamente o governo, inclusive por meio de fortes editoriais:

A guerra entrou em uma fase em que nenhuma nação pode mais ficar isolada. E nesses agrupamentos de potências, o nosso lugar está marcado pela ação fatal das circunstâncias, ao lado dos Estados Unidos. Nós não temos mesmo necessidade de procurar o rumo. O nosso destino está ligado ao da grande república do norte. (Correio da Manhã, 6 de fevereiro de 1917).

Seis meses e vinte dias depois de os Estados Unidos entrarem no conflito, e com o afundamento do quarto navio mercantil verde-amarelo, o Brasil torna-se o único país da América do Sul a declarar guerra formal aos alemães.

Os combates terminariam no ano seguinte, sem grande participação brasileira. Mas os jornais da época continuam a reservar surpresas para o pesquisador de hoje. Como uma notícia de 9 de novembro de 1917, no Jornal do Commercio, envolvendo Santos Dumont. Conhecido como um pacifista preocupado com o uso bélico de sua invenção, naqueles dias turbulentos ele se sentiu no dever de prestar seus serviços à nação em guerra:

O aviador brasileiro Sr. Santos Dumont foi ontem ao Palácio do Catete oferecer ao sr. Presidente da República, pondo à disposição do governo tudo quanto de seus conhecimentos profissionais e serviços possa ser preciso para a defesa do país.

O grande inventor brasileiro não tinha muito como ajudar, pois nossa aviação ainda engatinhava. Mas na França, outro aviador faria história ao vencer cinco confrontos aéreos antes de morrer em combate, em outubro de 1918. Ora, quem? Ele mesmo: o herói Roland Garros.

E sabem qual foi a primeira aeronave pilotada pelo jovem Roland quando aprendia a voar, em 1909? O Demoiselle, invenção de... Santos Dumont! O que terá pensado nosso cientista ao saber dos feitos e da morte do francês? Difícil imaginar. Mas quem sabe está em algum jornal perdido no tempo?

O negócio é dar asas à curiosidade...

Sidney Garambone é jornalista e autor do livro A Primeira Guerra Mundial e a Imprensa Brasileira (Mauad, 2003).

Saiba Mais - Bibliografia:

NATALI, João Batista. Jornalismo Internacional. Editora Contexto, 2004.
SILVA, Hélio. Entre Paz e Guerra. Editora Três, 1975.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Editora Mauad, 1998.

Saiba Mais - Site:

Site sobre memória da imprensa brasileira: http://www.redealcar.jornalismo.ufsc.br

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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