quinta-feira, 23 de abril de 2009

Da polícia do rei à polícia do cidadão


Concebida a partir de um modelo autoritário, desde os tempos de D. João VI a polícia desperta medo e desconfiança na população
Ana Paula Miranda e Lana Lage

Não era, com certeza, uma tarefa simples. Acomodar na cidade do Rio de Janeiro o príncipe regente e seu séqüito significava encontrar, num curto espaço de tempo, locais suficientes para hospedar de 12 a 15 mil pessoas. Mas o primeiro intendente de polícia Paulo Fernandes Viana a desempenhou com habilidade, em virtude dos amplos poderes que lhe eram atribuídos. Coube a ele garantir o cumprimento da lei das aposentadorias, que obrigava aquele que tivesse sua casa marcada com as letras PR, isto é “Príncipe Regente” (ou, como interpretava o povo, “Ponha-se na Rua” ou ainda “Prédio Roubado”) a entregar o imóvel para a acomodação dos recém-chegados.

A Intendência Geral de Polícia fora criada pelo Alvará de 10 de maio de 1808, dois meses depois de a Corte portuguesa aportar no Rio de Janeiro. Mantendo a mesma jurisdição que esse órgão tinha em Portugal, a atuação da polícia compreendia, além da manutenção da ordem pública, o cuidado com o espaço urbano, incluindo a responsabilidade de prover a limpeza, a salubridade, a iluminação, o arruamento da cidade, o abastecimento de água. A Intendência tinha também autoridade judicial sobre delitos que ameaçavam a ordem urbana, julgando e punindo os desordeiros, desocupados, escravos fugidos, capoeiras, ciganos, aventureiros.

Responsável pelo cargo até 1821, Paulo Fernandes Viana, entre outras providências, organizou a Guarda Real de Polícia da Corte, integrada pelo famoso major Miguel Nunes Vidigal (1745-1843), que foi imortalizado em Memórias de um Sargento de Milícias. O aviso de “Lá vem o Vidigal!” provocava fugas e tumultos. A chibata, arma usada por seus guardas, é que dava início à ação policial. Assim escreve Manuel Antônio de Almeida (1831-1861) no seu romance: “O Major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo o que dizia respeito a esse ramo de administração, era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não havia testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava; fazia o que queria e ninguém lhe tomava as contas. Exercia, enfim, uma espécie de inquisição policial”.

A ação violenta e arbitrária da polícia nessa época já era criticada por contemporâneos, como o jornalista Hipólito José da Costa (1774-1823), que escrevia, de Londres, o Correio Braziliense. Incomodado particularmente com a inclusão da censura à imprensa nas atribuições da Intendência, Hipólito criticava os excessos cometidos no Brasil, confrontando-os com as leis inglesas.


E, de fato, a criação da Polícia Metropolitana de Londres pelo ministro do Interior, Sir Robert Peel (1788-1850), em 1829, marcaria o surgimento de um outro modelo de polícia, cuja missão básica era prevenir o crime e a desordem, como alternativa à repressão pela força militar e à severidade da punição legal. Essa nova visão levaria à construção de um outro conceito de segurança, entendida como um bem público e universal, que deveria ser garantido pelo Estado sob a forma de um serviço oferecido à sociedade, sem distinção de classe social e sem interferência da política local.


No Brasil, o surgimento das instituições policiais teve como característica principal a ação repressiva voltada para a manutenção da ordem pública diante da crescente diversidade social e étnica do século XIX. O poder discricionário da polícia se tornou liberdade de ação frente aos preceitos legais e normativos, e o arbítrio foi considerado o principal instrumento de controle e manutenção da segurança do Estado, gerando uma tradição de desrespeito aos direitos individuais. O excesso de poder revelou-se uma característica quase “natural” do exercício da autoridade policial, funcionando como um mecanismo de aplicação extralegal da justiça.


Esse padrão prevaleceu por toda a época imperial e resistiu às mudanças republicanas, que não conseguiram garantir os direitos civis para toda a população. Não houve interação entre polícia e sociedade, uma vez que as práticas policiais continuaram arbitrárias. A chibata dos tempos do Vidigal foi substituída pelo conhecido “pé na porta”, que ainda hoje dá início à ação policial junto às populações pobres.


Durante o regime militar, após o golpe de 1964, a segurança pública passou a ser tratada como prioridade a partir da Doutrina de Segurança Nacional, resultando no aprofundamento do modelo autoritário da instituição policial, voltada para o total controle da informação na luta contra o inimigo interno — as organizações políticas de esquerda. A tortura, prática rotineira nas delegacias em todo o país, tornou-se visível para a sociedade nacional ao atingir outros grupos sociais, em especial os de classe média, o que favoreceu o fortalecimento de campanhas contra o regime.


Os anos 1980 se caracterizaram pela rejeição da concepção militarizada da ação policial, identificada como “herança da ditadura”. Setores de esquerda, com diversas orientações partidárias, demandavam a remodelação e a modernização das instituições policiais, com a adoção de linhas de ação que respeitassem os direitos dos cidadãos.


A Constituição de 1988 representou uma mudança na concepção da segurança pública. Além de “dever do Estado”, como afirmava o art. 144, ela passou a ser também responsabilidade de todos, o que significava, formalmente, o reconhecimento de um Estado democrático, no qual a concepção de ordem está diretamente relacionada às atitudes e valores do cidadão, quer isoladamente, quer em coletividade.


O processo de redemocratização do Brasil trouxe uma expectativa de expansão de direitos individuais, políticos e sociais mediante a concretização do estado de direito. No entanto, tem-se observado a permanência do exercício arbitrário e ilegal do poder, que tem resultado em uma série de violações, entre as quais se destaca a violência da polícia, que significa o abuso da força nas suas intervenções, particularmente da força letal, bem como o uso da tortura para obter confissões nas investigações e para garantir o controle dos presos. Todas as evidências indicam que essa brutalidade é exercida fundamentalmente contra alguns dos grupos mais vulneráveis da sociedade: moradores de favelas ou bairros pobres, e negros.


A violência policial representa uma das graves manifestações de violação de direitos humanos no Brasil. Se, por um lado, a instituição tem a atribuição do uso da força física, isto deve se dar a partir de limites claros, fundamentados nas leis. Mas as práticas cotidianas das polícias revelam que não há efetivamente clareza acerca dos limites do trabalho policial.


A conseqüência desse quadro é uma forte deslegitimação das instituições policiais, que são percebidas com desconfiança e descrença pela população, o que não significa a negação do papel da instituição. Grande parte da sociedade civil tem reivindicado que as organizações policiais atuem no sentido de manter e preservar a ordem pública, mas espera que a atuação cotidiana delas aconteça sem a violação de garantias individuais e coletivas. O desafio que se coloca é como utilizar a força baseando-se na legalidade e na legitimidade.


No entanto, há uma parcela da sociedade civil que deseja uma polícia mais repressiva e violenta para os criminosos, a partir de uma concepção de direitos que se aplica apenas aos que são considerados cidadãos de bem. Ao negar-se a universalização de direitos e apoiar as estratégias de “guerra contra o crime”, defende-se a permanência de práticas autoritárias, que historicamente têm se mostrado ineficazes, porque não dão conta de dois aspectos fundamentais: a manutenção da ordem pública não se dá com o extermínio da diferença e a democracia não se consolida pelo uso da violência.


Ana Paula Miranda é professora da Universidade Candido Mendes (Ucam) e diretora-presidente do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP).

Lana Lage é professora titular da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf) e coordenadora de projetos do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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