quinta-feira, 30 de abril de 2009

A alegria do povo


Esnobadas pelos críticos, que as viam como produtos de má qualidade, as chanchadas conquistaram o coração do brasileiro excluído, que encontrava no cinema seu universo cultural
Flávia Cesarino Costa

Nenhum outro gênero cinematográfico foi tão popular no Brasil quanto a chanchada. Este gênero de comédia, tipicamente nacional, misturava música e Carnaval, entremeando números cantados e bailados num enredo feito de peripécias, sem grande sentido. Na sua melhor fase, abordava a vida de quem morava na periferia do sistema econômico. A trajetória dos artistas, na vida real, era freqüentemente parecida com a dos personagens que encarnavam: marginais, artistas de circo, gente de origem rural ou humilde que consegue a ascensão social pelo talento ou por um golpe de sorte. Tem origem exatamente nessa formação popular a atuação criativa e até carismática de muitos atores, que sabiam tirar partido do humor circense e da improvisação que eram a sua marca.

Na década de 1950, período do apogeu das chanchadas, o Brasil começava a se industrializar. O desenvolvimentismo aparecia como a grande proposta para tirar o país do atraso, registrando-se uma intensa migração de pessoas do campo em direção às cidades grandes, como São Paulo e Rio de Janeiro, em busca de trabalho. O que tornava as chanchadas bem aceitas pelo público era justamente aquilo que irritava a crítica, incluindo-se aí a “alienação” das histórias e personagens. O termo chanchada, por si só, tem origem pejorativa. O crítico Sérgio Augusto explica que a palavra vem da Espanha, onde significava “porcaria, peça teatral sem valor, destinada a apenas produzir gargalhadas”, já que chancho quer dizer porco em castelhano. Já outro importante pesquisador do tema, João Luiz Vieira, afirma que o termo deriva da palavra italiana cianciata: “um discurso sem sentido, uma espécie de arremedo vulgar, argumento falso”.

Ao contrário da pressão de certos críticos por enredos politicamente “engajados”, as chanchadas celebram apenas a malandragem e o “se virar para viver”. Os enredos tratam em geral de personagens recém-chegados de um ambiente rural – portadores de valores tradicionais ligados à honra pessoal, à família, à vizinhança – ou que têm subempregos urbanos – camelôs, manicures, porteiros, desocupados, biscateiros, doceiras, todos aspirantes a uma ascensão social que os inclua no verdadeiro sistema industrial moderno. Dentro disso, o tema recorrente é a realização desse objetivo através de um “lance de sorte”: uma herança, um achado, um objeto valioso, um segredo, um prêmio que aparece no caminho do protagonista por obra do acaso.


A história das chanchadas divide-se em duas fases. A primeira cobre a década de 1930 e vai até meados dos anos 1940. É então dominada pelas produções da Cinédia e da Sonofilmes, que tinham uma série de números musicais entremeados por roteiros de estrutura elementar, com esquetes de teatro de revista. Em geral a história se passava nos bastidores de um teatro ou rádio, o que justificava os números musicais. Era como se o espectador estivesse ouvindo rádio, mas sentado na platéia de um cinema. A música apresentada tinha estreita ligação com serestas, sambas e marchinhas de Carnaval. A segunda fase da chanchada, que vai do início dos anos 1940 até 1962, é dominada pelo estilo das produções da Atlântida. As narrativas tornam-se mais complexas, obrigando os números musicais a se enquadrarem num enredo em que entram mocinhos, heróis e vilões.

O filme Coisas nossas (1931), dirigido por Wallace Downey, trazia a estrutura dos filmes musicais norte-americanos. Os maiores sucessos dessa fase foram Alô, alô, Brasil (1935) e Alô, alô, Carnaval (1936), ambos produzidos associadamente pela Cinédia e por Downey. Consolidaram a presença do rádio no cinema brasileiro não apenas pela referência explícita do “alô” nos seus títulos, mas principalmente pelo elenco, formado pelas estrelas da época. O primeiro, Alô, alô, Brasil, trazia Francisco Alves, Mário Reis, Carmen Miranda, o Bando da Lua e Aurora Miranda, cantando a depois famosa marchinha Cidade maravilhosa, além de gozadíssimas piadas dos comediantes Mesquitinha e Barbosa Jr. O filme também consolidava o chamado “filme carnavalesco”, que entrava em cartaz pouco antes do Carnaval, trazendo os lançamentos musicais, e ficava em cartaz até quando houvesse público.

É a Atlântida que vai dominar a segunda fase das chanchadas. Seu primeiro filme, Moleque Tião (1943), dirigido por José Carlos Burle e estrelado por Grande Otelo, inaugura uma linha de filmes com preocupações sociais que não eram lançados no Carnaval e obtinham – coisa rara – algum elogio da crítica. Mas os verdadeiros sucessos da companhia serão as comédias carnavalescas. Em 1946 a Atlântica lança Segura esta mulher, que ultrapassa todos os recordes de bilheteria. Mas o sucesso do público crescia na direção contrária da aprovação dos críticos, que atacavam a pressa com que se faziam esses filmes, o mau gosto, a improvisação, as letras grosseiras e maliciosas das músicas, as atuações vulgares, as paródias fáceis e os cenários ruins, tudo o que, afinal, o público parecia aprovar com paixão.


Em 1947, Luís Severiano Ribeiro Jr., poderoso empresário de distribuição e exibição de filmes, tornou-se o maior acionista da Atlântida, iniciando a primeira e única experiência duradoura de produção de filmes para o mercado. A chanchada vai se voltando para a pequena crônica do cotidiano e folclore do Rio de Janeiro, com seus personagens de classe média, seus aluguéis atrasados, moradores de pensão, desocupados, vigaristas, otários, carreiristas, sonhadores, sogras e esposas rabugentas, custo de vida alto, problemas urbanos, mas tudo ainda entremeado a muitas cenas musicais. Destacam-se no período, como os mais criativos, os diretores José Carlos Burle, Carlos Manga e Watson Macedo. Este último deixou a Atlântida em 1952 para fundar sua própria companhia.

Foi Carnaval no fogo (1949, de Watson Macedo) que deu o modelo das chanchadas dos anos seguintes. Ele introduziu o triângulo galã-mocinha-vilão, auxiliados por eventuais personagens cômicos como o malandro, a mulher sexy e a dona de casa megera, numa estrutura que seria redundantemente reproduzida no esquema industrial de Ribeiro Jr. O filme formou o primeiro par romântico da Atlântida, Anselmo Duarte e Eliana Macedo, consagrou a dupla cômica Oscarito e Grande Otelo, e introduziu atores que seriam os eternos vilões das chanchadas, caso de José Lewgoy, criando as primeiras estrelas exclusivamente cinematográficas com as quais o público se identificava. Na revista mensal Cinelândia, era possível encontrar reportagens, entrevistas e curiosidades sobre esses carismáticos atores.

Na década de 1950, intensificam-se as paródias, que procuram imitar o original norte-americano de forma cômica. As paródias são geralmente grosseiras, com elementos de humor e ridículo, mas no caso do cinema brasileiro elas são também uma forma de autocrítica que reconhece haver uma relação de dominação do estrangeiro, contra a qual nos sentimos impotentes. Assim é o genial Carnaval Atlântida (de José Carlos Burle, 1952), cuja narrativa gira exatamente sobre a impossibilidade de copiarmos os padrões de qualidade do chamado “cinema de estúdio” realizado nos Estados Unidos.


O personagem central é um diretor de cinema que quer filmar um épico sobre Helena de Tróia, contratando para isso a assessoria de um douto professor encarnado por Oscarito. Diante das dificuldades materiais, o diretor é convencido de que o melhor é fazer um filme menos sério, já que o povo quer mesmo é se divertir. Ridiculariza-se a cultura de elite como afetada diante da naturalidade da cultura popular, pelo contraste entre os gestos artificiais dos atores do épico e a postura irreverente e malandra dos serventes do estúdio, que sambam com suas vassouras. Carnaval Atlântida foi considerado por alguns críticos um filme-manifesto, que defendia a paródia como a única resposta subdesenvolvida possível em prol de um cinema verdadeiramente brasileiro.

Nem Sansão nem Dalila (de Carlos Manga, 1954) é importante porque, apesar de ser uma paródia declarada de Sansão e Dalila (1949), filme americano dirigido por Cecil B. de Mille, é também uma alegoria política e didática sobre o Brasil. Dessa vez, Oscarito encarna o engraxate de barbearia Horácio, que vai parar em Gaza e consegue obter a peruca de Sansão. Devido à força que adquire com a peruca, é declarado governante e começa a tomar medidas populistas que desagradam comerciantes, líderes religiosos e líderes militares, que, roubando sua peruca, o removem do poder. Há referências ao presidente Vargas, à euforia consumista e aos problemas urbanos.

Aí já se delineia a estrutura clássica que separa o grupo dos incluídos na sorte – o protagonista e seus amigos e associados – do grupo dos excluídos – em que ficam os vilões que procuram roubar ou tirar vantagem de algum lance de sorte. Só que os incluídos são justamente os pilantras, malandros e aproveitadores “do bem”, que lutam pela sobrevivência não por serem maus, mas porque estão fora do projeto modernizador dos anos 1950. Encurralados nos labirintos da burocracia, saudosos de suas origens rurais, gregários por natureza, os personagens desses filmes têm dificuldades de assimilar os padrões individualistas da sociedade industrial.


Conforme afirmou muito bem o estudioso Miguel Chaia, a chanchada “trata dos simplórios que não entram no jogo desenvolvimentista”. Além de divertidos, esses filmes, se vistos com olhos críticos, servem hoje para entender melhor o Brasil do século XX.

Flávia Cesarino Costa é pesquisadora da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), realiza estágio de pós-doutorado no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e é autora de O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação (Azougue, 2005).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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