terça-feira, 24 de março de 2009

A verdadeira face de Sêneca

Mestre da arte da retórica, o filósofo viveu no centro do poder durante os principados de Calígula, Cláudio e Nero. Uma figura ambígua, que pregava um código de conduta bem diferente da sua prática
por Violaine Vanoyeke
Lucius Annaeus Seneca, mármore, autor desconhecido, cópia do original do século I, Staatliche Museu, Berlim

O verdadeiro busto de Sêneca, descoberto em escavações arqueológicas com o nome do filósofo entalhado no mármore

Nascido em Córdoba entre os anos 4 e 1 a.C., Lucius Annaeus Sêneca era a própria imagem de sua época. Segundo filho de Sêneca, o Orador, e por isso também conhecido como Sêneca, o Jovem, mudou-se cedo para Roma. Tinha um vivo interesse pela filosofia dos mestres, como o estóico Átalo, ou o pitagórico Sótio. Para eles, a moral tinha prioridade absoluta. Sêneca conseguiu se destacar em uma sociedade cuja elite valorizava um mesmo ideal: ser orador. Em torno da eloqüência organizavam-se reuniões de salão e leituras públicas. Sêneca fez parte da Corte romana, e se comprazia em uma vida requintada que não combinava com seus ensinamentos. Não se deixar corromper, não ser tentado pelo luxo e pela luxúria, levar uma vida simples e honesta: essa era a sua filosofia. Mas não sua vida. Foi mais retórico que estóico, mais trapaceiro que honesto e mais ligado ao artifício que à verdade.

Não foi sempre assim. Sêneca parece ter levado uma vida recatada durante a juventude. Em sua carreira de servidor do Império, o cursus honorum, galga algumas posições na magistratura, além de revelar-se brilhante advogado.

Calígula, cultor ele próprio da eloqüência, tinha restrições às qualidades de Sêneca. Desprezava seu estilo estudado e elaborado, acusava seus livros, os mais populares da época, de “inconsistentes” e de serem “puras tiradas teatrais”. Às vezes, preparava respostas aos discursos do orador. Só poupou Sêneca da morte por estar convencido de que ele não chegaria à velhice devido à sua saúde frágil.

Durante o principado de Cláudio e Messalina, Sêneca participava de bom grado das recepções dadas pela imperatriz. Depois, Messalina deixou de convidá-lo, alegando que ele se permitia fazer observações pouco respeitosas. Com sua eloqüência, Sêneca fascinava demais os jovens para não ser considerado perigoso. Sêneca revelou ao imperador a conduta libertina de sua esposa. Messalina se defendeu, lembrando a avareza de Sêneca e suas relações com suas serviçais do palácio, e a audácia com que ele tinha ousado insultar Calígula. Por fim, acusou-o de semear a discórdia entre ela e o imperador.


Morte de Sêneca, óleo sobre tela, Peter Paul Rubens, 1612, Museu do Prado, Madri

O sacrifício do filósofo inspirou artistas e pensadores durante anos. Mas a vida de Sêneca era bem diferente de sua obra

Os temores de Messalina aumentaram quando suas primas Júlia e Agripina foram trazidas por Cláudio de volta do exílio a que Calígula as condenara. Sêneca se tornou amante de Júlia – que era casada – e se pôs a aconselhar Agripina, seduzida por sua capacidade de encantar a multidão. A lei condenava ao exílio todos os homens culpados de adultério. Assim, Messalina informou Cláudio do romance com Júlia. Sêneca foi mandado para a Córsega e Júlia, para a ilha de Pandateria.

O filósofo permaneceu no exílio por oito anos. Enviou várias cartas aduladoras a Messalina, tentando fazê-la mudar de idéia. Pensando em suicídio, com a saúde abalada, ninguém acreditava que voltasse a Roma. Todavia, mesmo que por vezes sua conduta fosse condenável, os romanos ainda o respeitavam, pois tomava posições firmes diante dos problemas de sua época, não hesitando, por exemplo, em condenar os combates de gladiadores. Depois da morte de Messalina, Agripina, a Jovem (homônima de sua mãe), manobrou para se casar com seu tio Cláudio, o que se efetivou no ano 49, e desde o início de seu reinado impôs seus caprichos. Conseguiu que Sêneca fosse trazido de volta do exílio e que se tornasse pretor (ver glossário). Confiou a Sêneca a educação de seu jovem filho, Domício, o futuro Nero. Mas Agripina se deu rapidamente conta do gosto pelo poder de Sêneca e de sua habilidade de manobra. Sêneca, por sua vez, logo percebeu a crueldade de Agripina e decidiu se opor a ela, aliando-se a Sextus Afranius Burrus. Os dois homens orientavam o jovem Nero: Burrus, por seus talentos militares, e Sêneca, por seus ensinamentos de sabedoria. Aos 12 anos, Nero viu em Sêneca um substituto do pai, Domitius Athenobarbus, que tinha morrido dez anos antes.

Com a morte de Cláudio, coube a Sêneca a honra de redigir o elogio fúnebre proferido por Nero. A fim de exibir sua sabedoria e de fazer seu talento brilhar, Sêneca tinha o costume de redigir para Nero discursos cheios de clemência, favorecendo acusados pertencentes aos altos estratos sociais. Sêneca conseguiu pouco a pouco desviar para si mesmo toda a afeição que Nero sentia pela mãe.

Quando Agripina tentou se reaproximar do filho para retomar sua influência sobre ele, Sêneca se apressou a enviar uma ex-escrava, Claudia Acte, para seduzir o imperador. Na verdade, estava preocupado com o futuro de sua carreira, caso Agripina conseguisse retomar as rédeas do Estado. Em 58, o advogado Suillius acusou Sêneca de ser hostil aos amigos do antigo imperador, Cláudio. Acrescentou ainda que, acostumado à vida de estudos, Sêneca tinha inveja dos que dedicavam uma eloqüência “sadia” à defesa dos cidadãos.


A morte de Sêneca, óleo sobre tela, Jacques Louis David, 1773, Museu Petit-Palais, Paris

Sêneca e Pompéia Paulina, sendo separados na hora do suicídio: o filósofo morreu sem saber que sua mulher, poupada por Nero, fora salva da morte. Pompéia jamais se casaria novamente e viveu uma vida de recolhimento após a morte do marido

Sêneca acumulava uma fortuna de 300 milhões de sestércios, que certamente não vinham de suas aulas de filosofia. Em Roma, caíam em sua rede os testamentos dos velhotes sem herdeiros. Pela usura, esgotou a Itália e as províncias. Como advogado não tinha direito de receber pagamentos pelo trabalho que fazia. Como resultado de ter enfrentado Sêneca, Suillius foi acusado de todos os crimes e mandado para as ilhas Baleares . Entretanto, se Suillius também era afeito à corrupção, seu mestre havia sido o próprio Sêneca.

Quando Nero organizou o assassinato da mãe, o filósofo limitou-se a lhe perguntar se deveria encarregar os soldados do assassinato, sem proferir uma única palavra para salvar Agripina.

SUICÍDIO Para não perder o posto, Sêneca prestou-se a todas as concessões. Quando seu príncipe decidiu se misturar aos histriões (ver glossário), ele providenciou uma cena teatral. Quando quis conduzir uma biga de corrida, mandou delimitar na colina do Vaticano uma área onde pudesse guiar seus cavalos.

A morte de Burrus em 62 afetou seu poder. Muitos foram os que tentaram afastar Nero do filósofo, denunciando as imensas riquezas que ele havia acumulado durante os anos em que vivera na Corte. Sêneca queria ultrapassar o imperador, pelos atrativos de seu jardim e pela magnificência de suas casas de campo. Seu orgulho o levou a acreditar que era o melhor orador do mundo. Quanto às diversões do príncipe, depois de tê-las facilitado, as lamentava. Sentindo-se ameaçado, se afastou da Corte.

Mesmo assim, contra sua vontade, Sêneca se viu envolvido na Conspiração de Pisão, organizada por Caio Calpúrnio Pisão para assassinar Nero. Com o fracasso do complô, Nero ordenou a condenação de Sêneca à morte. Tiberius Plautius Silvanus Aelianus, que também havia feito parte da conspiração, mas tinha o pudor de não se mostrar em público, mandou um de seus centuriões avisar Sêneca da sentença fatal. Fiel no fim ao estoicismo que havia ensinado durante toda a vida, Sêneca ditou seu testamento e instou os amigos que choravam a se manterem fortes. Sua esposa, Pompéia Paulina, disse-lhe que estava disposta a morrer com ele. Temendo que ela fosse ultrajada depois de sua morte, Sêneca não se opôs. A mesma lâmina cortou as veias de seus braços e dos dela. Sêneca mandou que lhe abrissem também as veias das pernas e da parte posterior dos joelhos, porque seu sangue escorria demasiado lentamente.

Nero, que não tinha nada contra Paulina e temia ver sua impopularidade aumentar se a deixasse morrer, ordenou que ela fosse salva. Paulina se deixou seduzir pelos encantos da vida. Por que morrer, se Nero não tinha nada contra ela? Quanto a Sêneca, que não conseguia morrer, pediu a um amigo médico que lhe trouxesse o veneno que já tinha providenciado havia tempos. Ele o tomou, mas em vão, pois seus membros já estavam frios. Entrou então em uma banheira com água quente e molhou os escravos que o cercavam, dizendo que oferecia aquela libação a Júpiter Libertador. Não sabia que, instados por Nero, seus serviçais acorriam à volta de Paulina, reanimando-a, amarrando seus braços para estancar o sangue. Pelo contrário, tomado pela dor, Sêneca achava que Paulina suportava os piores tormentos. Sentiu-se tentado a correr ao seu quarto, para lhe pedir que não consumasse tal sacrifício. Mas se lembrou da firmeza dela, e ordenou que o levassem a uma estufa, onde o vapor o sufocasse.

Depois de morto, seu corpo foi incinerado sem qualquer pompa, como havia ordenado. Após levar uma vida luxuosa e dissimulada na Corte, durante 13 anos, e ser um cortesão disposto às piores concessões políticas; depois de se envolver em duvidosas transações financeiras; depois de praticar a usura sem qualquer escrúpulo e ser um oportunista até mesmo no ensino da moral estóica, Sêneca era dono de uma imensa fortuna, ao mesmo tempo em que pregava a filosofia da medida, da sabedoria e da moderação.

Sua vida, assim como sua arte, oscilou entre um desregramento que por vezes beirou a luxúria, e um ideal de firmeza exagerado. Sêneca só foi sincero em suas convicções no início da carreira e no fim da vida.

CRONOLOGIA


Pseudo-Sêneca, bronze, autor desconhecido, cópia romana do original grego, século I a.C, Museu Arqueológico Nacional, Nápoles

Busto com rosto compenetrado, que por séculos se acreditou ser do filósofo Sêneca

4-1 a.C.
Período estimado para o nascimento de Sêneca, em Córdoba

5
O jovem Sêneca reside em Roma

37
Entra em conflito com o imperador Calígula, que o poupa de uma sentença de morte

41
É enviado para o exílio pelo imperador Cláudio por influência de Messalina

49
Agripina, a nova esposa de Cláudio, convence-o a trazer Sêneca de volta para Roma

54-62
Período em que atua como conselheiro do imperador Nero, até a morte de Burrus

65
Sêneca, sentenciado à morte por Nero, se suicida

GLOSSÁRIO
PRETOR: espécie de juiz, responsável pela administração da justiça em uma região determinada do Império Romano.

HISTRIÕES: espécie de palhaço, um comediante que interpretava farsas no teatro romano

Violaine Vanoyeke é autora, entre outros, da biografia de Ramsés III (Ed. France-Empire), de Le secret du pharaon (Ed. de l’Archipel) e de um livro infantil : Quand les athlètes étaient des dieux ; les premiers Jeux olympiques (Ed. Fleurus).

Revista Historia Viva

Nenhum comentário:

Postar um comentário