sexta-feira, 6 de março de 2009

Um puxão e a memória vem no anzol


A obra de Rubem Braga revela o encontro entre a memória da terra natal e o mundo que ele conheceu nas suas andanças como jornalista
Maria de Lourdes Patrini Charlon

O cronista Paulo Mendes Campos afirmou certa vez que “a crônica é o diário de uma sociedade, de um povo, de uma nação, de um mundo”. Seu colega, o capixaba Rubem Braga, parece ter levado a sério tal afirmação. Desde muito cedo Rubem Braga se dedicou a este gênero literário, com a particularidade de, a cada novo texto, promover um encaixe na malha narrativa de suas histórias. A história do dia trazia uma novidade que, num ato de cumplicidade, conversava com o fato do dia anterior, envolvendo seu leitor num diálogo permanente. Eram histórias em tom de conversa, às vezes de desabafo, de confidência, ou então gritando ao mundo, exibindo sem receio o seu inconformismo diante de um cotidiano conturbado e injusto.

Sua vida em Cachoeiro de Itapemirim, vida de menino do mato que já bem cedo soube relatar os fatos da infância nos escritos escolares, será preenchida pelas travessuras, pescarias e banhos de rio, e enfeitada pelas mangueiras daqueles quintais encantados. O jornal será o espaço eleito para exercer o seu oficio e o veículo através do qual suas crônicas chegarão todos os dias aos seus leitores.

Rubem Braga se apresentou ao mundo avisando que “de minha família, acho que saí ao tio segundo Quinca Cigano, nascido na lavoura, mas vivido pelos caminhos e que vivia a barganhar”. E como ele também dizia: “sempre andei no rumo de minhas ventas, e tantas vezes troquei o sossego de uma casa pelo assanhamento triste dos ventos da vagabundagem”. E foi assim, percorrendo o mundo, cigano solitário, jornalista, correspondente de guerra e que um dia seria embaixador do Brasil no Marrocos (1961), que Rubem Braga escreveu sua obra, sem jamais abandonar o amor e a atração que sentia pela sua terra, pelos “causos” e pelas personagens que a povoam. Fiel à sua escolha, ele nos apresenta esses dois mundos distantes, diferentes, mas complementares.

Tudo o que está hoje nos seus livros ocupou um dia o espaço do jornal. E cada um de seus textos traz, de forma mais ou menos contundente, o percurso viajeiro do cronista. Com a arte e o talento dos velhos contadores de histórias, Rubem Braga reconta o mundo sem esquecer de sua terra, “onde o rio se precipita naquele encachoeirado, ou cachoeiro, que deu nome à cidade”. Em suas crônicas, o contador/narrador parte constantemente em busca de novas experiências, mas retorna sem constrangimento, transformando esse ir e vir em narrativas surpreendentes, peças que vão construindo sua própria história e também a nossa história, confirmando a constatação definidora de Paulo Mendes Campos.

As viagens vão se sucedendo, e desde as primeiras Rubem Braga oferece ao leitor relatos nos quais ele “pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”. O leitor é transportado ora para terra distantes, ora para paragens familiares vivenciadas no dia-a-dia da vida de cada um. Como demonstrou Antonio Candido, a viagem aqui não tem a força das narrativas épicas e de exaltação. Ela é experiência intensamente vivida, criticamente analisada e compartilhada com o leitor.

As crônicas “O outro Brasil” e “Quinca Cigano”, escritas na década de 1950, são exemplos da força pendular do ir e vir existente na vida e na narrativa do cronista. Elas condensam a presença e a convivência harmoniosas do “aqui” e do “lá”, e, nelas, aquilo que representa sua terra natal e aquilo que representa outras terras está em jogo em tempos e espaços diferenciados, mas que se encontram na narrativa e por meio dela. Tempo e espaço funcionam como elementos determinantes, eleitos pelo cronista para encenar as histórias de vida dos homens, mas são também, e principalmente, elementos constitutivos da narrativa, responsáveis pelo traço identificador da obra de Rubem Braga.

Em “O outro Brasil”, o narrador inicia seu contar partindo do presente, trazendo para o “aqui” e “agora” o passado, registro de um desejo presente na memória: “Houve um tempo em que sonhei coisas (...) Eram coisas humildes e vagabundas”. Nesse cruzamento de tempos, um outro Brasil é apresentado pelo narrador, um Brasil objeto do seu desejo, que “tem safras e estações vazantes e piracemas (...) parece que até banho de cachoeira ainda, até namoro debaixo de pitangas como antigamente, muito antigamente”. O narrador parece querer aí evocar um outro Brasil, já vivido, mas jamais esquecido, e cuja lembrança estimula sonhos. O experimentado traz o desejo de viver no presente uma experiência exemplar, como “antigamente, muito antigamente”. Assim, ao tratar de um país, um outro se torna presente, movido pela força que o tempo, pendulando entre o presente e o passado, entre o que foi vivido e o que se está por viver, se impõe na narrativa cruzando contextos, vida e obra, Brasil e Brasis.

Dessa forma, o narrador/personagem habitante da cidade traz para a narrativa um outro espaço que vai se alinhavando na memória entre partidas e chegadas, um espaço celebrado para se reconhecer e viver “sem pressa e com respeito”, distante dali, mas tão próximo. Em “O outro Brasil”, o fio da narrativa vai se organizando em duas direções: o elo que cruza o agora e o antigamente, e a viagem sonhada que, de porto em porto, a cada chegada e cada partida, reconstrói no presente as experiências sonhadas e a história recontada.

Na obra do cronista Rubem Braga, a concepção do lugar do homem na natureza coloca esse homem vivendo através de totalidades integradas, ou seja, a terra mãe e outras terras, o campo e a cidade, a casa e a rua. São espaços que aparentemente se contrapõem, mas que nada mais são do que espaços integrados impossíveis de se separar. Em “O outro Brasil”, o espaço conhecido e familiar prolonga-se em outro espaço que é articulado com uma visão de mundo, numa tentativa de compreender este “outro” Brasil. O espaço da terra natal – Cachoeiro de Itapemirim – em oposição ao mundo, mas, igualmente, Cachoeiro em relação a outras terras do Brasil.

Já em “Quinca Cigano”, há não só o reconhecimento da terra, o espaço íntimo da terra natal, mas a presença de alguns elementos que ampliam e aprofundam a extensão desse espaço na narrativa. O rio aparece aí como uma figura central, funcionando como um divisor de águas do narrar e da origem do cidadão Rubem Braga. É a partir do rio que tudo se dá: a origem da cidade, a família do lado materno, que por três gerações habitou uma linda ilha, “onde o rio se precipita (...)”

“Quinca Cigano” é uma crônica que toca também no espaço da criação − criação como origem, fonte, terra mãe, matriz de vida, do espaço e do tempo das narrativas do cronista. Para ele, Cachoeiro é um espaço onde todas as potencialidades estão latentes, onde todos os sonhos são possíveis, inclusive os do personagem Quinca Cigano, o amante dos caminhos. Cachoeiro de Itapemirim é o referencial vivo e permanente da sua origem que o acompanhou durante toda a vida. Sem tempo nem hora marcados, daquela terra, vista por ele através do passado ou do presente, o autor extraiu o gosto mágico do inventado: “mergulho nesse mundo misterioso e doce e passeio nele como um pequeno rei arbitrário que desconhece o tempo”.

Se por um lado ele buscou nas longínquas terras por onde andou, sem receios e sem cuidados, o desconhecido, o inusitado, Cachoeiro parece lhe fornecer a essência da vida e a mola propulsora de sua criação como cronista. Em sua terra estão vivos os “causos”, como aquele do “Compadre pobre”, o do “Tio português” ou as “Lembranças do compadre Joaquim”, só para citar alguns entre tantos existentes em sua obra. Assim como as figuras ou tipos que, guardados na memória do cronista, se transformaram em crônicas, atravessando mares e montanhas e conhecendo outras terras: “Lembranças do Tenerã”, “Chico Sapo”, “O caboclo Bernardo”, entre outras.

O cronista procurava, sempre que possível, levar um amigo para conhecer sua terra natal. Na crônica “Cajueiro”, Rubem Braga apresenta com orgulho e emoção antiga o cajueiro do quintal de sua casa ao amigo: “(...) fiz questão de que Carybé subisse o morro para vê-lo de perto, como quem apresenta a um amigo de outras terras um parente muito querido”. Era também motivo de muita alegria quando descobria alguém de Cachoeiro em terras distantes. E era longe de Cachoeiro que recuperava em suas crônicas a memória de menino, a beleza do desconhecido, a descoberta em si mesmo de uma alma de viajante e a doce dor de sentir saudades.

O culto da terra pelo cronista vai além de um simples ritual de aparências: “O sentimento da cidade, a comunhão dos seus homens, nos ajuda”, diz Rubem Braga, “a desprezar tudo o que separa e divide os humanos; a cidade é o nosso exercício e a nossa compreensão do mundo”, ela abriga a casa da infância e dos entes queridos, reduto de antigas emoções, abrigo de ternuras jamais esquecidas.

Por outro lado, as “outras terras” contêm a busca interminável do cronista que assim exerce sua profissão, manifestando fascínio pelo mundo do jornal, que promove a descoberta e o cultivo de novos e grandes amigos, o envolvimento com as coisas variadas do mundo, aderindo às causas coletivas, lutando criticamente ao lado dos cidadãos mais humildes.

Dono de um corrupião, de um rouxinol e de um pequeno pomar, continuou escrevendo até o fim de seus dias, em dezembro de 1990. Como ele próprio dizia, “minhas histórias são baseadas sempre “nas coisas que acontecem comigo e em volta de mim. No que sai no jornal ou se diz no rádio e na TV. No sonho, na lembrança, em nada...”

MARIA DE LOURDES PATRINI CHARLON É PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DO RIO GRANDE DO NORTE E AUTORA DE A RENOVAÇÃO DO CONTO. EMERGÊNCIA DE UMA PRÁTICA. SÃO PAULO: CORTEZ EDITORA, 2005.

SAIBA MAIS:

Caderno de guerra de Carlos Scliar – texto de Rubem Braga, Editora Sabiá, 1969.

200 crônicas escolhidas. Record, 2006

Crônicas de Guerra na Itália. Editora Record, 1985.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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