quinta-feira, 5 de março de 2009

Saladino o herói muçulmano

No século XII, o curdo saiu do anonimato ao reconquistar os territórios sagrados tomados pelos cristãos durante as cruzadas. Em uma carreira meteórica, ele se tornou sultão de um império que se estendeu da Síria ao Egito, passando pela disputada Jerusalém

POR OLDAIR DE OLIVEIRA


"Glória a Deus que gratificou o Islã com esta vitória e que reconduziu esta cidade ao bom caminho após um século de perdição! Honra a este exército que Ele escolheu para consumar a conquista! E saudação a ti, Saladino Yussef, filho de Ayyub, que restituiu a esta nação sua dignidade injuriada!". Foi com essas palavras, na sexta-feira de 9 de outubro de 1187, uma semana depois da reconquista de Jerusalém, que o cádi de Damasco, Mohiedin Ibn al-Zaki, abriu o seu sermão na mesquita de Al-Aqsa, dentro da Cidade Santa. Seu discurso era um agradecimento a Salah al-Din Yusuf bin Aiub, conhecido no Ocidente como Saladino, responsável por tomar a cidade dos cruzados. Finalmente, depois de quase 90 anos de dominação ocidental e longos e sangrentos combates, os muçulmanos voltavam a ocupar um dos lugares mais sagrados do Islã, de onde o profeta Mohammad (Maomé) teria ascendido ao céu, cinco séculos antes.

Feitos como esse fizeram de Saladino um verdadeiro herói do mundo islâmico. O Ocidente o conheceu, em parte, recentemente, por intermédio do filme Cruzada (2005), de Ridley Scott. No entanto, a figura do sultão e estrategista curdo, nascido no ano de 1138 em Tikrit (atual Iraque), é muito mais ampla que uma aparição coadjuvante em um longa-metragem hollywoodiano. Até hoje ele é lembrado como um dos principais chefes militares muçulmanos, um símbolo da luta e da resistência contra a ocupação ocidental. Muitos são seus atributos, como bem descrevem vários historiadores árabes e europeus. Foi retratado como um bravo guerreiro no campo de batalha, um negociador astuto no campo da diplomacia, uma pessoa generosa com os vencidos e também um homem de muita sorte, atributo que o acompanharia por toda a sua vida, cercada de mitos e lendas.



O NASCIMENTO DE UM HERÓI

Foi em meio a intrigas, traições, avanços e batidas em retiradas que surge a figura de Saladino. Ele era filho de Ayyub (Jô, em português), daí o nome da dinastia aiúbida, da qual seria o fundador. Convidado por seu tio Chirkuh a conquistar terras egípcias e chegar ao Cairo (sede do califado xiita e da dinastia fatímida), ele entrou, aos 25 anos, como mais um anônimo e saiu, seis anos depois, como vizir do reino mais rico do mundo árabe. Saladino e seu tio serviram a Nuradin, filho de Zinke (comandante turco que reconquistou Edessa dos francos, no ano de 1144) e senhor da Síria, um dos mais fortes reinos do mundo muçulmano daquele momento.

Para Nuradin, a presença européia na região era considerada uma invasão e o xiismo, uma heresia. Por isso, ele conclamou um jihad contra os francos e os inimigos do sunismo, no caso, os xiitas fatímidas do Egito. Vale ressaltar que o termo jihad refere-se a um substantivo masculino e é erroneamente empregado no Ocidente como guerra santa. De forma simplificada, a palavra significa uma reação a uma ação, uma luta ou combate contra o mal, uma invasão, uma ofensa, a mentira, as injustiças, a opressão, um crime ou uma violência

Durante sua educação
em Damasco, Saladino
mostrou-se mais
interessado em teologia
do que nas práticas
militares. Imagem de
manuscrito do século XV

Foi com este pensamento que Saladino e Chirkuh partiram rumo ao Egito, onde o poder se alternava de mãos em mãos devido a disputas internas. O lugar era também objeto de extrema cobiça dos franj. Essa terminologia era usada, inicialmente, apenas para denominar os francos, mas acabou se tornando usual para se referir a todo indivíduo do Ocidente.

O CHAMADO DO PAPA

No final do século XI, Urbano II convocou os cristãos a libertarem a Terra Santa dos infiéis muçulmanos. Assim começaram as cruzadas, que conquistaram a região graças às intrigas e divisões internas das nações do Oriente Médio

As invasões dos reinos muçulmanos do Oriente foram colocadas em prática a partir do ano de 1096. Era uma resposta ao apelo do papa Urbano II, que, no final do ano anterior, durante o Concílio de Clermont- Ferrand, na França, conclamou os cristãos a tomarem parte em uma guerra a serviço de Deus, com o objetivo de livrar a Terra Santa do domínio dos "infiéis". O argumento era ajudar os peregrinos cristãos que tinham dificuldade de acesso aos lugares sagrados e reconquistar Jerusalém, que desde o ano 638 estava sob domínio islâmico. Para aqueles que aceitassem o árduo desafio, ficava a promessa de indulgência plena (perdão dos pecados) e a promessa de salvação para aqueles que morressem em combate.


As palavras do pontífice satisfaziam a vontade de segmentos importantes da sociedade européia da época. Era uma chance, por exemplo, para que nobres sem-terra e sem direito à herança conseguissem acesso à propriedade e a almejadas riquezas. Para a igreja, era uma oportunidade de frear a expansão árabe, cuja religião já marcava forte presença no Norte da África, na Ásia Central e até mesmo na Europa, na Península Ibérica. Para o europeu comum, para quem a palavra da igreja era o eco da própria vontade divina, a simples promessa de salvação valeria qualquer sacrifício.

Naquele instante, o mundo árabe vivia uma supremacia frente à Europa. Suas cidades eram pólos de comércio e conhecimento, se destacando em áreas como matemática, astronomia e medicina. O Cairo, no Egito, era a jóia desse universo. Estima-se que, no limiar do século XI, era a maior aglomeração populacional do mundo, abrigando mais gente que Paris, Veneza e Florença juntas, que eram as maiores metrópoles européias da época. No entanto, ainda que poderoso, esse universo estaria fadado a ruir em um primeiro momento, devido a intrigas e divisões internas de seus governantes.

A corte bizantina, por conta da proximidade, conhecia um pouco melhor aquele universo. Diferentemente dos cristãos do Ocidente, que por ignorância ainda guardavam a imagem do muçulmano de séculos passados, os bizantinos sabiam que aquele vasto território islamizado que tinham na sua retaguarda oriental não se tratava de algo homogêneo. Eles sabiam que o mundo islâmico estava dividido entre ortodoxos sunitas, cujo califa (líder nas questões civis e religiosas) ficava em Bagdá, e xiitas, com califado no Egito.

Bagdá, e xiitas, com califado no Egito. Além disso, tratava-se de dois impérios, sendo um controlado pela dinastia fatímida (xiita), que governava o Egito e a Palestina, e outro pelos seljúcidas, seguidores do sunismo, que dominavam Síria, Arábia, Jézira (Mesopotâmia), Pérsia e que continuava a avançar pela Ásia Menor. No entanto, apesar desse formato de império, eram reinos que gozavam de relativa independência, cujo elo principal não era o grupo étnico e sim a vertente religiosa. Foi a ausência de um poder centralizado forte e a falta de um objetivo comum que permitiram a queda desses territórios diante dos cruzados, até que esses atingissem seu fim: Jerusalém.

Quando, por exemplo, os primeiros europeus bateram às portas do rei Kilij Arslan, que governava o sultanato seldjúcida de Rum (atual Turquia), cuja capital era Nicéia, ele não tinha com quem contar. Depois de uma vitória fácil contra uma turba de maltrapilhos camponeses comandados por um tal de Pedro, o Eremita, e um nobre sem-terra, Gautier Sans-Avoir (sem vintém), o jovem monarca, então com 17 anos, menosprezou a massa de guerreiros louros que continuava a chegar, concentrando-se na vizinha Bizâncio. Sua preocupação maior era o conterrâneo Danishmend Ghazi, com quem estava em constante conflito. Quando ambos perceberam o tamanho do problema e resolveram se juntar, já era tarde demais.

O mesmo aconteceu com a bela cidade de Antioquia, que desde 635 estava sob poder árabe. Foi ali que, de acordo com a Bíblia, Paulo pregou pela primeira vez em uma sinagoga e que os seguidores de Jesus foram chamados, também pela primeira vez, de cristãos. A cidade era a maior da Síria (hoje rebatizada de Antaquia e pertencente à Turquia) e era controlada pelo velho Yaghi-Siyan, leal aos sultões seldjúcidas. Quando os soldados de Antioquia avistaram a nuvem de poeira deixada pelos cruzados era dia 21 de outubro de 1097. Só cairia depois de 200 dias de cerco.

Mais uma vez, o monarca muçulmano recorreu à ajuda dos seus iguais. Pediu insistentemente apoio aos senhores de Alepo e Damasco, sem sucesso. Esses eram irmãos, mas estavam mais preocupados em resolver querelas entre eles do que fazer uma coalizão contra forasteiros que já estavam a poucos dias de distância. Siyan também recorreu ao poderoso emir Karbuka, que governava a rica Mossul, distante duas semanas de caminhada. Mas Karbuka preferiu socorrer primeiro a Edessa, que já tinha caído em poder dos invasores. Depois de três semanas de cerco infrutífero, percebeu o erro e se voltou para Antioquia, que a essa altura já ardia em chamas. Ainda assim, os dois exércitos se enfrentaram em junho de 1098, com uma humilhante derrota para as forças do emir. Com a queda de Antioquia e a aniquilação do exército de Mossul, estavam eliminados os obstáculos interpostos entre os europeus e Jerusalém, que cairia em julho de 1099, com direito a massacre de muçulmanos, judeus e até mesmo cristãos orientais.
Após anos de batalha e três campanhas, as forças sírias saíram vencedoras. Chirkuh era a pessoa mais apropriada para governar as novas possessões de Nuradin, mas morreu vítima de um suposto mal-estar. Para ocupar a posição de vizir (governador) da extensão egípcia do império sírio, foi escolhido, intencionalmente, aquele que parecia o menos capaz para a empreitada: Saladino. "Era o mais jovem e parecia ser o mais inexperiente e o mais fraco dos emires do exército". Essa era a opinião dos conselheiros, de acordo com os relatos do historiador árabe Ibn al-Athir. Mas o curdo se mostrou justamente o contrário. E, em pouco tempo, consolidou sua autoridade.

Castelo de Saladinsburg, na Síria, nomeado em homenagem ao líder curdo

O sucesso de Saladino no Egito era fonte de preocupação para Nuradin. O clima de tensão cresceu entre pupilo e mestre, a ponto de o segundo recusar, por diversos momentos, um encontro direto com o senhor da Síria. Em Damasco, o filho de Ayyub foi acusado de insubmissão e traição. Não é para menos. Por anos, recusou-se a colocar fim ao califado xiita, que havia dois séculos reinava ali. No lugar disso, preferiu "apenas" eliminar funcionários fatímidas que não lhe foram confiáveis. Quanto ao califa Al-Adid, preferiu não tocar nele temendo uma reação da população local, o que colocaria em risco sua posição.

O vizir Saladino preferiu esperar. Além de desenvolver uma sincera amizade com Al-Adid, que tinha apenas 18 anos, sabe que, apesar de sua jovialidade, é uma pessoa frágil e doente. Portanto, para que mexer em um vespeiro se supunha que a natureza lhe faria o trabalho que deveria ser dele? De fato, o califa morreu dois anos depois da entrada do curdo no Cairo, pondo fim à dinastia fatímida.


Ilustração do francês François Guizot (1787- 1874), datada de 1883, mostra os cristãos da recém-conquistada Jerusalém desfilando para Saladino

Nesse meio tempo, teve de ter habilidade e diplomacia para não entrar em um confronto direto com o seu mestre de Damasco. Em pelo menos um momento, Nuradin se dispôs a invadir o Egito. Saladino tinha homens dispostos e força suficiente para suplantar tal investida. A decisão que tomaria poderia justificar a pecha de ambicioso, já há muito empregada pelos funcionários de Damasco, ou servo fiel e leal, como seu pai fora a vida inteira. Foi justamente Ayyub quem alertou o filho de que o tempo estava ao seu favor, sendo equivocado medir forças com quem devia submissão.

Até hoje, Saladino é considerado um dos principais chefes muçulmanos, símbolo de luta e resistência

Em vez da espada, o então vizir do Egito preferiu empunhar uma pena e escrever para Damasco. Na carta, ressaltou que o Egito pertencia a Nuradin e que bastaria que o seu senhor lhe enviasse um camelo ou um cavalo para que ele, Saladino, fosse até a Síria como homem humilde e submisso. A medida foi suficiente para aplacar a desconfiança de Nuradin, mas despertou em Saladino a desconfiança de que uma investida viria de fato a acontecer. Antecipando-se a esse momento, pediu para que seu irmão, Turanshah, conquistasse o Iêmen, ordem que foi cumprida. Doravante, esse país, localizado na extremidade da Península da Arábia, seria um porto seguro caso ele e sua família precisassem de abrigo. Jamais precisaram.

A "sorte" que levou Saladino ao posto de vizir do Egito, com direito ao título de al-malik al-nasser (o rei vitorioso), foi a mesma que o conduziu, mais tarde, ao posto do seu mestre intelectual. Com a morte de Nuradin, em 1174, o curdo se tornou sultão de um reino que já se estendia do Egito até a região central da atual Turquia. E, sem se fazer de rogado, levantou a mesma bandeira defendida por seu antigo senhor: unificação do mundo árabe, mobilização dos muçulmanos para a reconquista das terras ocupadas, sobretudo Jerusalém.

Aparentemente, tudo conspirou a favor de Saladino. Depois de Chirkuh e Nuradin, foi a vez de Amaury, rei de Jerusalém, morrer e passar o trono para Balduíno IV, um jovem de 13 anos que morreu de lepra aos 24 e passou o comando a Guy de Lusignan. O único soberano capaz de rivalizar com as forças de Saladino, por possuir um poderoso exército, era Manuel de Constantinopla. Mas os homens de Manuel acabaram sendo esmagados pelos soldados de Kilij Arslan II, neto de Nuradin, e o rei bizantino morreu pouco tempo depois, fato que deixou a região fragilizada e incapaz de se reorganizar. Com todas essas brechas do destino, Saladino só teria de esperar a hora ideal para tomar Jerusalém dos franj.

Imagem no alto, mostra os cristãos durante a Primeira Cruzada. Pintura acima representa a Batalha de Hattin. A vitória de Saladino significou o ponto de virada para os muçulmanos na reconquista dos reinos tomados pelos católicos
O 4 DE JULHO MUÇULMANO

O momento certo para Saladino surgiu em 4 de julho de 1187, após a conquista da Mesopotâmia. Estrategicamente, o exército de Saladino ficou à espera dos soldados franj, posicionado em um ponto elevado da região, tendo às suas costas o lago de Tiberíades. Para não morrer de sede, os soldados de Jerusalém teriam de lutar, e muito, para vazar aquele bloqueio. Esse era o cenário da Batalha de Hattin, nome herdado da pequena vila localizada ali próximo. Naquele dia, totalmente sedentos, cansados e desnorteados, os 12 mil soldados do rei Guy de Lusignan foram cercados e esmagados.

Como prêmio, Saladino se apoderou de uma cruz trazida como amuleto pelos franj, que acreditavam ser a mesma na qual Cristo teria sido crucificado. A partir dessa vitória, o caminho foi aberto para Jerusalém. Mas nada foi tão fácil quanto parecia, e a entrada na cidade só se deu mais de dois meses depois. Antes de bater às portas da Cidade Santa, o sultão foi tomando todas as posições dos cruzados, como Tiberíades, a cidade de Acre, Galiléia, Samaria, Naplusa, Haifa, Nazaré, Jafa, Saida (depois de 77 anos de ocupação), Beirute, Jibail, Ascalon, Gaza e, fi- nalmente, Jerusalém, que na época era liderada por Balian d'Ibelin.

Em 2 de outubro de 1187 (ou 27 rajab do ano 583 da hégira), Saladino assinou um acordo de salvo-conduto a todos os moradores da Cidade Santa, e Balian entregou a jóia da coroa ao filho de Ayyub. Finalmente, os muçulmanos puderam orar nos lugares sagrados da cidade como senhores e não mais como incômodos inquilinos. Naquele mesmo dia, uma cruz instalada na cúpula do Rochedo foi retirada, e a bela mesquita de Al-Aqsa, que havia sido transformada em igreja, voltou a ser lugar de culto muçulmano. Seria ali, depois de aspergida com águas de rosa, que o cádi de Damasco, Mohiedin Ibn al-Zaki, saudaria Saladino pela mais nobre de suas conquistas. "Allahou akbar" (Deus é grande) era a frase mais ouvida na Cidade Santa, nos dias que sucederam à sua retomada.


UMA VIDA EM MEIO SÉCULO

A conquista de Jerusalém pelos muçulmanos foi um duro golpe para a moral cristã. Não é à toa que pouco mais de um ano depois, o papa Gregório VIII convocou a Terceira Cruzada para a reconquista da Terra Santa. Foi a maior força cruzada já reunida desde 1095, mas não conseguiu o seu fim, apesar de algumas reconquistas.

Ciente de que em uma guerra nem sempre os acordos são respeitados e que entre os perdedores havia o medo iminente de um massacre, coube mais uma vez a Saladino dar mostras de sua sensatez, permitindo a peregrinação aos fiéis nãomuçulmanos, aumentando a guarda dos lugares de culto dos cristãos, como a Igreja do Santo Sepulcro, e dando ordens rigorosas a seus homens para que não perseguissem quaisquer cristãos.

Pintura do séc. XVII mostra a Batalha de Montgisard (1117), em que o exército de Saladino foi destruído pelos homens de Balduíno IV e Raynald de Chatillon

Saladino manteve-se soberano de Jerusalém e, já na sua velhice, seguiu para Damasco, sua cidade preferida, onde morreu em 4 de março de 1193, aos 55 anos. Para os padrões da Idade Média, em que devido a guerras, doenças e fome e a expectativa de vida girava em torno de 30 anos, pode-se dizer que, conforme o termo bíblico, foi farto em dias.

Para quem não queria a glória militar e por longos anos tinha se dedicado ao estudo da teologia islâmica, Saladino chegou ao fim da vida como modelo do salvador muçulmano. É certo que, como homem e elemento do seu tempo, estava sujeito a derrotas e atos que podem parecer exagerados para os dias de hoje.

A CRUZADA DOS REIS
Depois de perder a Cidade Santa para Saladino, a realeza européia uniu forças para tentar reaver o poder sobre os territórios islâmicos

A tomada de Jerusalém por Saladino significou um duro golpe para o Ocidente cristão. Mas os europeus não se contentaram em perder a sua jóia do Oriente sem antes tentar retomá-la usando todas as forças possíveis e lançaram a terceira cruzada. Dessa vez, o movimento envolveu os monarcas dos principais reinos da Europa: Frederico I, o Barba-Rossa, imperador do Sacro Império Romano Germânico; Filipe II, da França; e Ricardo I, o Coração de Leão, da Inglaterra. O objetivo era reconquistar os territórios perdidos, a Cidade Santa e a cruz perdida na Batalha de Hattin, que os europeus acreditavam ser aquela na qual Cristo fora crucificado.

Mais uma vez, além da capacidade de comando, Saladino demonstrou que era um homem de sorte. Como explicar, por exemplo, o afogamento de Barba-Roxa em um riacho onde, segundo o cronista Ibn al-Athir, "a água bate apenas nos quadris"? A provável parada cardíaca do monarca, em 10 de junho de 1190, interrompeu também o avanço de um exército de mais de 200 mil homens, que se dispersou.

A essa altura, desde agosto do ano anterior, Saladino já se encontrava na cidade fortificada de Acre, que estava sob cerco. A liderança dos seus adversários é, inclusive, de Guy de Lusignan, ex-rei de Jerusalém, outrora prisioneiro do sultão, e que havia sido solto pouco tempo antes com a promessa de não voltar a lutar contra os muçulmanos. O filho de Ayyub sabia que não podia confiar na palavra de nenhum franco. Não foram poucas as vezes que eles haviam traído palavras e acordos.

No entanto, o que seria uma grande investida para pôr fim à presença islâmica na região serviu para consolidar em definitivo a vitória de Saladino. Graças, em parte, à rivalidade que, dessa vez, azedava a relação entre os europeus, levando, inclusive ao assassinato do marquês Conrado de Monferrat a mando de Ricardo I. Outro fator importante foi a necessidade que esses monarcas tinham de voltar para suas terras.

Saladino soube muito bem jogar com isso. Ainda que tenha deixado Acre cair nas mãos dos cruzados, depois de um cerco que durou dois anos, sabia que os líderes europeus não ficariam na região por muito tempo. O primeiro a voltar foi Filipe II, em agosto de 1191. Ricardo ainda permaneceu por mais tempo, na expectativa de entrar vitorioso em Jerusalém, mas não conseguiu. Foi vencido pelo cansaço e assinou, em setembro do ano seguinte, um desvantajoso acordo de paz com validade de cinco anos. Em 1192, deixou a Terra Santa sem realizar o sonho de conhecer o Santo Sepulcro.

Miniatura medieval mostra o rei-cruzado Frederico Barbarossa (1122 - 1190), que morreu afogado antes de chegar à Palestina

Dos insucessos militares, o mais doído foi a Batalha de Montgisard, quando, em 25 de novembro de 1187, seu exército foi tomado de surpresa pelo de Balduíno IV, de Jerusalém, e poucos sobreviveram. Há números que apontam que Saladino contava com 27 mil homens e que apenas 10% deles conseguiram sair vivos do combate.


Acima, pintura medieval mostra Ricardo Coração de Leão enfrentando Saladino. Acima, gravura do séc. XIX representa Ricardo partindo para sua cruzada. O rei inglês venceu Saladino e conseguiu um acordo para o livre movimento de peregrinos a em Jerusalém

Com a morte de Saladino, seus domínios fragmentaram-se em governos mais fracos

O sultão de modos afáveis, pequeno e de aparência frágil, apesar de sua reconhecida generosidade, em pelo menos dois momentos negou a misericórdia aos seus vencidos. Um deles foi em 1179, na tomada do castelo de Bait al- Ahazon. Ali teria ordenado a execução de 700 prisioneiros. Cerca de oito anos depois, pós-Batalha de Hattin, foi ele próprio o algoz de Renaud de Chatillon, a quem jurara matar com as próprias mãos. Nesse mesmo dia, os cavaleiros templários e hospitalários, inimigos mortais de Saladino, foram vítimas da mesma sorte. É um claro exemplo que a misericórdia do filho da Ayyub tinha limite e que não poderia faltar com a sua palavra ou demonstrar fraqueza diante dos seus comandados.

Com a morte de Saladino, seus domínios, que iam da Síria ao Egito, fragmentam-se em governos enfraquecidos, controlados por membros de sua família, os aiúbidas. Saladino deixou 18 filhos, sendo apenas um deles mulher, e dois irmãos. O reino do Egito foi o mais bem-sucedido, tendo um período de crescimento econômico e prosperidade graças à presença de mercadores italianos, franceses e catalães, que operaram com os portos sob controle aiúbida. Além disso, o Egito se tornou um centro de erudição e literatura árabe, e dividiu com a Síria a primazia cultural naquela região, conservando-a até o período moderno.

REFERÊNCIAS LINDSAY, James E. Daily life in the medieval islamic world. Londres: Greenwood Press, 2005. MAALOUF, Amin. As cruzadas vistas pelos árabes. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989. NICHOLSON, Helen. The crusades. Londres: Greenwood Press, 2004.

Revista Leituras da Historia

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