por Arlene E. Clemesha
Divulgação
O ROUBO DA HISTÓRIA, Jack Goody, Contexto, 368 págs.
O roubo da história tem como objetivo examinar o modo como a Europa “roubou a história do Oriente”. Não apenas suas criações artesanais e artísticas, instituições, invenções científicas e tecnológicas, enfim todas as grandes contribuições para a humanidade de regiões do chamado Oriente, mas sua própria história. Isto é, o lugar das sociedades não-européias na explicação do mundo contemporâneo.
A historiografia européia, ao criar periodizações, como aquela que divide a história em Antigüidade, Feudalismo, Renascença e Capitalismo, contribui consideravelmente para a exclusão dos povos do chamado Oriente. Cria, como defende o autor, a falsa idéia de um desenvolvimento exclusivamente europeu, desde a civilização grega e romana até o advento do capitalismo e a dominação européia do mundo a partir do século XIX, esquema este que relega a Ásia, África e América Latina à posição de exceção, estudadas à parte, quando muito.
Seria determinante, e lamentável, o abandono da visão (encontrada em Gordon Childe) que enfatiza a ampla unidade das civilizações da Idade do Bronze por toda a Europa e Ásia. É a idéia de um só mundo, formado por pólos civilizacionais paralelos, rompida pela idéia ocidental de uma Antigüidade puramente européia, baseada na noção equivocada da exclusividade de técnicas e instituições, desde a escrita até, por exemplo, a democracia (bastaria lembrar a democracia existente na colônia fenícia de Cartago, mencionada pelo autor).
A idéia de uma Idade Média de trevas, por sua vez, turva apenas a compreensão da história, pois o período representou, de fato, o auge da ciência, literatura (poesia), e filosofia islâmicas, bem como a Época de Ouro do judaísmo, quando filósofos judeus de Al Andalus, como Maimônides, escreveram suas principais obras (em árabe, que era a língua culta da época). A obra do grande filósofo islâmico Ibn Sina (Avicena) chegou à Europa antes daquela do grego antigo Aristóteles, tanto que quando São Tomás de Aquino começou a ler Aristóteles o fez pela lente da leitura prévia de Ibn Sina. O que demonstra que ao longo da “idade média” os árabes não apenas preservaram como desenvolveram o conhecimento herdado da Grécia. Para não nos estendermos no assunto, basta dizer que o chamado Renascimento seria melhor compreendido como uma continuidade do florescimento cultural do Islã clássico, ou, para tomar o exemplo de Goody, da própria China, tão avançada quanto, econômica, social e culturalmente.
Sófocles e seus pupilos, miniatura, autor desconhecido, século XIII, Topkapi Sarayi Müzesi, Istambul
Sófocles retratado em iluminura produzida na Síria: os clássicos gregos foram estudados e discutidos pelo mundo islâmico medieval
Quando se menciona Bolonha no século XII como sede da primeira universidade da história, se esquece o caso tanto da academia de Gundishapur, na Pérsia (atual Irã) no século VI, como a Bayt Al-Hikma, a Casa da Sabedoria. Localizada em Bagdá e fundada pelo califa abássida Al-Mamun, em 830/832 d.C., a Casa da Sabedoria reunia pesquisadores de várias origens, irradiando conhecimentos filosóficos e científicos em áreas como matemática, astronomia, medicina, química, zoologia e botânica. Al-Mamun enviava emissários para procurar e adquirir obras de “ciência antiga”, notadamente em Bizâncio, para serem traduzidas na Casa da Sabedoria, entre eles Platão, Aristóteles, Pitágoras, Hipócrates, Euclides e Galeno. Passado o período de traduções, Al-Kindi, Al Farabi, Al-Khwarizmi, Al-Gazalli foram alguns dos grandes nomes ligados às novas produções. Foi destruída em 1258 durante a invasão arrasadora dos mongóis. Há registros de que os livros foram atirados no leito do rio Tigre, manchando suas águas por meses.
Portanto, muito daquilo que vários historiadores apresentam como sendo fruto do avanço europeu, existiu como resultado do desenvolvimento autóctone de diferentes sociedades em todo o mundo. Tal seria o caso de valores que o discurso denominado culto associa automaticamente à Europa, como o humanismo e o individualismo, além da própria democracia, abordados pelo autor nos capítulos finais do seu livro.
Goody critica o estudo da sociogênese da civilização, realizado pelo sociólogo Norbert Elias, o qual teria ignorado toda a noção de comportamento “civilizado” (e urbanizado) marcante na China por muitos séculos, ao concentrar-se no pós-Renascença do “Ocidente”. Da mesma forma, denuncia, na obra do historiador Fernand Braudel, o contraste entre um Oriente estático um Ocidente dinâmico, características estas incorporadas a uma visão “civilizacional” sendo que deveriam, quando muito, pertencer ao campo do “conjuntural”. Finalmente, tendo analisado, de modo instigante, as contribuições bem como limitações de cientistas sociais que tentaram inserir o Oriente em suas obras e visões de mundo, o professor de antropologia social da Universidade de Cambridge propõe a substituição das periodizações existentes por uma “grade sociológica” que possa apreender comparativamente todas as variações existentes.
O livro de Jack Goody é, no mínimo, uma interessante contribuição à desconstrução do etnocentrismo enraizado e extremo da história européia, e à idéia fictícia de divisão e contraposição do mundo entre Ocidente e Oriente.
Arlene E. Clemesha é historiadora, professora de cultura árabe da USP (Departamento de Letras Orientais, FFLCH-USP), membro da diretoria do Instituto da Cultura Árabe, e do United Nations International Coordinating Network for Palestine. É autora de vários livros, entre os quais Marxismo e Judaísmo.
Revista Historia Viva
Vou procurar esse livro! Eu que sempre culpei a Europa por terem permitido que acontecesse "OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA", seu capitalismo e consequente febre consumista, abafando o mundo escondendo verdades... importunava os europeus, desconhecendo que também eles nos privaram do conhecimento das mais belas histórias da civilização.
ResponderExcluirMuito bom esse artigo!
Parabéns!
Abraços
Mirze