por Pierre Joannon
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Michael Collins discursa como presidente do governo provisório do Estado Livre da Irlanda em 1921
Em 1916, uma insurreição na cidade de Dublin dá início do processo de independência da Irlanda. No dia 24 de abril, poetas, pequenos burgueses e sindicalistas ligados à Irmandade Republicana Irlandesa (IRB, na sigla em inglês) ocupam os principais prédios da capital e proclamam a República da Irlanda. A Páscoa Sangrenta de Dublin se estende por uma semana e mobiliza 20 mil soldados britânicos para enfrentar 1.558 rebeldes.
Nas ruínas da sede do correio, quartel-general dos rebeldes, um jovem de 26 anos dispara suas últimas balas contra as forças britânicas. Ele se chama Michael Collins, e seu nome ecoaria no país nos anos seguintes.
Nascido em Woodfield, vilarejo no condado de West Cork, em 16 de outubro de 1890, Collins cresce no campo, ouvindo velhas histórias sobre revoltas contra o domínio inglês. Aos 15 anos, deixa a Irlanda para estudar e trabalhar em Londres. Em 1909, entra para o IRB, a antiga sociedade secreta feniana (ver glossário) que sonhava em expulsar os ingleses. Na Primeira Guerra Mundial, enquanto milhares de irlandeses se alistam no exército britânico, volta para a Irlanda para se alistar em outro exército, bem mais modesto.
Depois da derrota do levante de 1916, vem a repressão. Os chefes rebeldes são executados, e os nacionalistas, mandados para a prisão. Michael Collins vai para Frongoch, campo de prisioneiros nos confins do País de Gales, e aproveita o retiro forçado para recrutar aqueles que se tornariam seus companheiros de armas. Em Frongoch, ganha o apelido de Big Fellow (grande camarada, em inglês), revelador de seu caráter impetuoso e autoritário.
BIBLIOTECA DO CONGRESSO, WASHINGTON
Liberado em dezembro de 1916 pela anistia, Collins encontra uma Irlanda em ebulição. O governo inglês vive no país em tensão constante e reforça a perseguição a nacionalistas. Os moderados perdem espaço, e o Sinn Fein (ver glossário) adere às teses separatistas.
Éamon de Valera, líder que sobreviveu à insurreição da Páscoa, se torna presidente do partido renovado, e Collins passa a integrar sua direção. Nas eleições de 1918 para o parlamento britânico, o Sinn Fein leva 73 das 105 cadeiras reservadas aos irlandeses. É a ruptura. Reunidos em 21 de janeiro de 1919 na prefeitura de Dublin, os deputados anunciam a fundação de um parlamento próprio, o Dail Eireann , e proclamam a independência da Irlanda.
Michael Collins acumula os postos-chave do poder militar e civil da recém-fundada república irlandesa. Membro da executiva do Sinn Fein e deputado do Dail, ele se torna ministro do Interior e das Finanças do governo rebelde, além de chefe da IRB e diretor e chefe dos serviços de Inteligência da organização militar nacional: o Irish Republican Army (Exército Republicano Irlandês – IRA, na sigla em inglês).
Incansável, Big Fellow parece estar em todos os lugares. Conhece as virtudes e os defeitos do IRA. Coordena tudo por meio das centenas de notas que redige e envia aos combatentes.
REPRODUÇÃO
O prédio central dos correios de Dublin, quartel-general dos rebeldes durante a Páscoa Sangrenta, bombardeado pelo exército britânico em 1916
O avanço dos rebeldes continua. A administração local passa para o controle do Dail republicano. As cortes de arbitragem do Sinn Fein substituem os tribunais ingleses. O dinheiro flui nos caixas do ministério das Finanças rebelde.
O primeiro-ministro Lloyd George e as autoridades britânicas em Dublin, porém, resistem ao desmoronamento do sistema de governo inglês. O Dail Eireann é declarado ilegal, e seus membros são perseguidos. Na primavera de 1920, o exército começa a atuar junto com a polícia. As forças de repressão inglesas são reforçadas também pelos Black and Tans, antigos soldados da reserva organizados em milícias, com seus próprios chefes, que passam a atuar à margem da disciplina ofi cial. É o reino do terror branco, dos mercenários e das polícias paralelas.
Essa ofensiva leva Collins a aperfeiçoar sua estratégia. A antiga organização do IRA, em companhias e brigadas de camponeses, é substituída por unidades móveis de voluntários. São as “colunas volantes”, que fazem uma emboscada um dia em um lugar e, no dia seguinte, em outro a 50 km de distância. Collins monta ainda o seu Squad, unidade composta por 12 homens impiedosos, responsáveis por execuções sumárias, chamados, por sinistro eufemismo, de “12 apóstolos”.
UM HOMEM NAS SOMBRAS Em Dublin e com a cabeça a prêmio, Collins anda sem disfarce e desarmado e se refugia em lojas, hotéis e apartamentos de amigos. Tem centenas de informantes: empregados de alfândega, carteiros, garçons de barcos, guardas de cadeias, detetives, funcionários do correio. Conhece os movimentos de tropas, o conteúdo do correio oficial e até as decisões secretas da administração britânica. Informado por uma população cúmplice e protegido pelos “12 apóstolos”, Collins escapa de todos os perigos.
A guerra entre irlandeses e ingleses, porém, cava túmulos ao seu redor: o poeta nacionalista Terence McSwiney morre de fome na prisão, e voluntários do IRA, como Kevin Barry, Dick McKee e Peadar Clancy, são executados em meio a sessões de tortura. Collins procura atingir o inimigo britânico desorganizando os serviços de inteligência. Detetives da polícia política são abatidos, assim como seus informantes.
Collins vence. A opinião pública, inglesa e internacional, começa a ver com maus olhos a guerra se eternizar. O primeiro-ministro Lloyd Georg e faz, então, o parlamento britânico votar uma lei para permitir que seis condados da Irlanda, de maioria protestante e unionista (ver glossário), se separem do resto da ilha. Removido esse obstáculo, começa o vaivém de emissários. Em 10 de julho de 1921, uma trégua é assinada entre o IRA e as forças da ordem.
De Valera discute com Lloyd George e designa dois de seus homens para representá-lo em Londres: o fundador do Sinn Fein, Arthur Griffi th, e Michael Collins. Big Fellow inicialmente não gosta do papel que lhe é dado, mas em Londres muda de atitude. Quando a conferência anglo-irlandesa começa, em 11 de outubro de 1921, o homem de guerra se transforma em fino político. Ao fim da conferência, os irlandeses conquistam muito, mas não tudo. A Irlanda do Sul se torna um domínio (ver glossário) quase independente dentro do Império Britânico.
Collins subscreve o acordo. Avalia que aliados e população estão cansados de combates e que a Irlanda tem, agora, “a liberdade de conquistar sua liberdade”, ainda que isso não agrade aos radicais. De fato, assim que os artigos são conhecidos no Dail, Sinn Fein e IRA se dividem em facções rivais – os idealistas exigem “a república ou a morte”; os realistas, o alargamento progressivo da soberania. Em 7 de janeiro de 1922, o Dail Eirenn aprova o tratado por 64 votos contra 57.
Como presidente do governo provisório, Michael Collins recebe as chaves do Castelo de Dublin, antiga sede do poder britânico, das mãos do último vice-rei. Os republicanos contrários ao acordo, porém, apelam para o uso da força. É o início da Guerra Civil.
Os dissidentes montam barricadas no palácio da Justiça. Em 16 de junho, são eleitos ao Dail 58 deputados favoráveis ao tratado e 36 oponentes. O enfrentamento é inevitável, e em 28 de junho, o palácio da Justiça é destruído. Durante uma semana, Dublin é tomada por combates fratricidas. A facção contrária ao acordo com a Inglaterra é derrotada por Collins.
De Dublin, a guerra desloca-se para as províncias. O exército de Collins tem artilharia e o apoio da população. Em agosto de 1922, Collins visita sua terra natal, o condado de West Cork, região dominada pela facção do IRA contrária ao acordo. Pretendia propor a paz aos dissidentes, seus antigos companheiros. Os chefes rebeldes estavam reunidos no vilarejo de Beal na Blath , e é para lá que Collins se dirige.
No dia 22 de agosto de 1922, o comboio entra na pequena estrada que leva a esse vilarejo. Uma emboscada é montada para garantir a retirada dos chefes rebeldes, entre os quais se encontra De Valera. Collins dá a ordem de iniciar os combates no chão. Os rebeldes fogem e se escondem. Collins avança. Um disparo ecoa na estrada. Atingido por uma bala, o herói da Guerra de Independência cai morto sobre a relva.
O anúncio de sua morte deixa os irlandeses desolados. Eles se ajoelham nas ruas, nos cafés e nas igrejas. Os soldados choram com a notícia de que o chefe foi abatido por uma bala perdida, aos 32 anos. A homenagem mais emblemática, porém, vem das prisões e dos campos onde estavam os que o haviam combatido: a mesma dor era sentida pelos republicanos contrários ao acordo. Ao morrer, Michael Collins conseguiu unir por uma última vez esse povo ao qual ele havia dado um perigoso presente, a liberdade.
CRONOLOGIA
© FIA/RUE DES ARCHIVES
Collins, chefe do serviço de inteligência do IRA, em trajes militares
1890
Michael Collins nasce no vilarejo de Woodfield
1905
O jovem Collins muda-se para a Inglaterra
1909
Michael entra para a Irmandade Republicana Irlandesa
1916
Participa do levante republicano em Dublin durante a Páscoa Sangrenta
1919
Início da Guerra de Independência da Irlanda. Michael Collins se torna chefe do serviço de inteligência do IRA
1921
A Irlanda se torna um domínio semiindependente do Império Britânico
1922
Michael Collins é assassinado por republicanos irlandeses contrários ao acordo com o governo britânico
GLOSSÁRIO
FENIANISMO: movimento independentista irlandês surgido no século XIX
SINN FEIN: partido nacionalista irlandês criado em 1905 para lutar contra o domínio inglês
DOMÍNIO: Estado autônomo que se autogoverna dentro da Commonwealth britânica, com igualdade de status em relação ao Reino Unido
UNIONISTA: irlandeses que defendem a união de seu país com a Grã-Bretanha
Pierre Joannon é historiador especializado na história da Irlanda e ex-redator-chefe da revista Etudes Irlandaises (Estudos Irlandeses). É autor de Michael Collins: la naissance de l’IRA (Michael Collins: o nascimento do IRA - La Table Ronde, 1978), entre outros livros.
Revista Historia Viva
A traição. Isso acontece tantas vezes na história.
ResponderExcluirE homens como ele,
que lutaram tanto
terminam assim.