por Pietra Diwan
ARQUIVO MAX-PLANCK-GESELLSCHAFT, BERLIM
Durante a década de 30, uma série de exames antropométricos foram realizados na Alemanha nazista para catalogar características físicas da população. O célebre eugenista Otmar von Verschuer em ação
Inglaterra, século XIX. As transformações desencadeadas pela segunda fase da Revolução Industrial alteram profundamente a vida social. O medo burguês da multidão nascente, aliado ao triunfo do discurso científico, encontra na biologia um meio de pôr ordem no aparente caos social: reurbanização, disciplina e políticas de higiene pública deveriam ser aplicadas com a finalidade de prevenir a degradação física dos trabalhadores para evitar prejuízos na economia.
Em meio ao clima de crença inabalável na ciência, o naturalista inglês Charles Darwin publica em 1859 o livro fundador do evolucionismo: A origem das espécies. As descobertas de Darwin mostravam que no mundo animal, na permanente luta pela vida, só os mais bem adaptados sobrevivem e os mais bem “equipados” biologicamente têm maiores chances de se perpetuar na natureza. As teses de Darwin logo são transportadas para outros campos do conhecimento em uma tentativa de explicar o comportamento humano em sociedade. Surge assim o darwinismo social, que apresenta os burgueses como os mais capazes, os mais fortes, os mais inteligentes e os mais ricos.
O cenário estava armado para que o primo de Darwin, o pesquisador britânico Francis Galton, se apropriasse das descobertas do naturalista para desenvolver uma nova ciência. Seu objetivo: o aperfeiçoamento da espécie humana por meio de casamentos entre os “bem dotados biologicamente” e o desenvolvimento de programas educacionais para a reprodução consciente de casais saudáveis. Seu nome: eugenia.
Os métodos propostos pelos entusiastas da nova ciência, porém, não se resumiam à criação de um “haras humano”, povoando o planeta de gente sã, como propunham os defensores da “eugenia positiva”. No outro extremo, a “eugenia negativa” postulou que a inferioridade é hereditária e a única maneira de “livrar” a espécie da degeneração seria utilizar métodos como a esterilização, a segregação, a concessão de licenças para a realização de casamentos e a adoção de leis de imigração restritiva.
AKG IMAGES/LATINSTOCK
Inicialmente com pouca repercussão na Inglaterra, a doutrina começou a ganhar espaço nos meios intelectuais e acadêmicos mundiais a partir do início do século XX. Foi nos Estados Unidos e na Alemanha que as palestras e conferências de divulgação realizadas por Galton tiveram maior repercussão e os princípios da nova ciência começaram a ser colocados em prática. Hoje, quando pensamos em eugenia, é inevitável a associação imediata à Alemanha nazista, mas foram os Estados Unidos que implementaram o mais bem-sucedido e organizado plano de eugenização social da história, que segue ativo até os nossos dias.
Entre o ano de 1905 e a década de 20, instituições eugênicas proliferaram por todo o território americano. A principal delas, o Eugenics Record Office (ERO), foi dirigida pelo geneticista Charles Davenport, o maior representante da eugenia americana. A primeira lei de esterilização americana foi aprovada em 1907, no estado de Indiana, e estima-se que mais de 50 mil pessoas tenham sido esterilizadas entre 1907 e 1949 em todo o país, considerando que a última lei do gênero foi revogada somente na década de 70.
Os estudos médicos apresentados pelo Comitê de Imigração contribuíram para a aprovação do Johnson-Reed Immigration Restriction Act of 1924, lei que restringiu a imigração e acabou com a política open-door (portas abertas) nos Estados Unidos para impedir o “suicídio da raça”. Um gigantesco aparato institucional financiado por grandes corporações industriais divulgou a eugenia aos quatro cantos do mundo. Com o dinheiro do petróleo, a Fundação Rockefeller financiou e apoiou a prática na França, na Suécia e na Alemanha. Apesar de o prestígio da teoria ter entrado em declínio depois dos excessos do nazismo, as instituições eugênicas sobreviveram, ainda que com outros nomes, e muitas delas funcionam até hoje.
A radicalidade alemã
Ao contrário dos Estados Unidos, a eugenia na Alemanha teve vida mais curta, ainda que mais intensa. Apesar de normalmente associada à ascensão de Hitler ao poder em 1933, não é verdadeiro dizer que na Alemanha a doutrina esteve exclusivamente associada à ideologia nazista. Acredita-se que, mesmo sem o Führer, as leis de esterilização teriam sido implantadas no país. Aliás, a lei de 1933 que legalizou a prática foi inspirada na legislação da Califórnia, o estado que mais esterilizou nos Estados Unidos.
IDEAL HOMES: SUBURBIA IN FOCUS
A insalubridade da vida dos trabalhadores de Londres no século XIX inspirou Francis Galton a desenvolver uma teoria de aperfeiçoamento racial
É verdade, no entanto, que sob o nacional-socialismo a prática assumiu sua faceta mais radical. Centenas de milhares de pessoas foram esterilizadas compulsoriamente e mais de 6 milhões perderam a vida em nome da higiene da raça. Estima-se que mais de 1.700 tribunais, entre 1934 e 1945, aprovaram cerca de 400 mil esterilizações em território nazista.
Outra prática utilizada por Hitler foi a eutanásia, que foi regulamentada ainda antes do início da Segunda Guerra Mundial. Entre 1939 e o fim da guerra, 250 mil casos de eutanásia foram documentados, entre alemães com problemas mentais e deficiências físicas. Com a organização de um sistema de campos de concentração no início da década de 40, judeus, ciganos, homossexuais e oponentes do regime foram assassinados nas câmaras de gás, por meio de injeções letais ou abandonados à morte por desnutrição.
Os números e os nomes das pessoas que sofreram com a eutanásia selvagem são difíceis de precisar. Existem poucos arquivos sobre essa prática. O Tribunal de Nurembergue estimou a morte de cerca de 270 mil alemães, dentre os quais 70 mil idosos e 200 mil doentes. Além da solução final, que executou mais de 6 milhões de judeus a partir de 31 de julho de 1941, o nazismo esterilizou e matou, sob o argumento da raça e por meio da eugenia, centenas de milhares de pessoas “indesejáveis”. Com o fim da Segunda Guerra Mundial a eugenia foi “enterrada viva” na Alemanha a partir de 1948.
Não foi, porém, apenas o nazismo germânico que adotou a higiene da raça como política de Estado. A “ciência” também encontrou um campo fértil nos países escandinavos. Na Dinamarca, Suécia, Noruega e Finlândia a eugenia pode ter sido mais branda, mas certamente não foi menos efetiva. Implantada como política pública pelo modelo local do sistema de bem-estar social, a versão escandinava foi cientificamente controlada pelo Estado com a finalidade de eliminar os caracteres indesejáveis da sociedade. Entre as décadas de 30 e 60 estima-se que a Suécia tenha esterilizado cerca de 39 mil pessoas; a Noruega, 7 mil; a Finlândia, 17 mil e a Dinamarca, 11 mil.
INSTITUTO GALTON, LONDRES
Francis Galton (à dir.), o criador da eugenia, aos 87 anos
A eugenia tampouco ficou restrita às nações que seriam o berço da “raça branca”. Na Ásia, China e Japão desenvolveram exemplos práticos – e recentes – de tentativas de aperfeiçoamento racial. Durante o período Meiji (1868-1912), o Japão implantou técnicas de melhoramento da raça através de um programa para a produção de futuros samurais. Mais tarde, em 1948, a Eugenic Protection Law (Lei de Proteção Eugênica), formulada sob inspiração da lei de esterilização alemã de 1933, foi instaurada no Japão sob ocupação americana no pós-guerra a fim de prevenir a reprodução dos “indesejados”, incluindo pessoas com doenças infecciosas.
A China, por outro lado, tem fama de praticar a eugenia atualmente. Uma lei de 1995, que atinge 70% da população chinesa, prevê exames pré-nupciais para o controle de doenças genéticas, infecciosas ou mentais. Quando os médicos consideram inapropriada a procriação do casal ou é detectada alguma doença pré-natal no feto, são receitados o aborto e a esterilização voluntária. No entanto, a eugenia na China não é uma novidade. Desde os tempos imperiais há uma preocupação com a descendência da raça chinesa. Para essa cultura milenar, os ancestrais são sempre os responsáveis pelas gerações futuras, e conceber uma criança com qualquer tipo de deficiência significa uma falha moral de seus pais, o que é inconcebível nesse modelo de sociedade.
Nem mesmo a América Latina, região mestiça por excelência, escapou da eugenia. Muito pelo contrário. Por aqui, o desejo de transformação racial esteve diretamente ligado à formação das identidades nacionais e a uma vontade de desfazer a opinião negativa dos europeus sobre a realidade racial de diversos países. Para os antigos colonizadores, a Argentina significava o “melhor do pior da Europa”; o México, com sua maioria racial de índios e mestizos, afastava-se da norma branca européia; e, finalmente, o Brasil, com seu clima tropical, estimulava a miscigenação e, portanto, sua deterioração racial. Dessa forma, a América Latina abraçou a nova teoria científica de melhoramento racial para resolver o problema da miscigenação, até então muito malvisto pelos europeus.
DIVULGAÇÃO
Homem assina autorização para sua própria esterilização na Suécia
Ligações com o fascismo
O mais importante representante da eugenia na Argentina foi o médico Victor Delfino, que fundou a Sociedad Argentina de Eugenesia em 1918. A conjuntura em que a prática floresceu na Argentina é caracterizada por uma crise econômica e uma reorientação política radical rumo à extrema direita que tornou o país altamente xenófobo. Do ponto de vista da composição racial, a Argentina era (e ainda é) um país branco; quase metade dos imigrantes que entraram no país, entre 1890 e 1930, era de origem italiana; somente 2% da população do país era negra e os indígenas eram marginalizados. Efetivamente, a Argentina foi o único país da América Latina a realizar o branqueamento racial. A eugenia platina teve uma conexão forte com o fascismo italiano. Nossos vizinhos transpuseram as idéias de Mussolini para a sua realidade e passaram a defender uma argentinidad como parte da herança latina e mediterrânea.
O México praticou um tipo de eugenia diametralmente oposto ao da Argentina. Foi o único país a ter uma legislação regulamentando a esterilização, medida rejeitada pelo restante da América Latina, adotada como parte do programa de saúde pública implantado pelo governo que assumiu o poder após o fim da Revolução Mexicana em 1917. Quanto à composição racial mexicana, sua população era principalmente índia e mestiça, sem traços marcantes de imigração. Em 1911, a população estava dividida da seguinte forma: 35% de indígenas; 50% de mestiços; 15% de criollos (brancos hispânicos). A década de 30 no México é marcada pela intensificação do pensamento nacionalista que afirma o discurso da raça na tentativa de exaltar o mestiço e eliminar da nacionalidade mexicana, pelo processo de eugenia negativa, a raça negra. O caminho encontrado foi a imigração restritiva. Para os eugenistas, essas raças se reproduziam mais que os índios e os mestiços.
ACADEMIA PAULISTA DE PSICOLOGIA
O médico paulista Renato Kehl, o grande divulgador da eugenia no Brasil
A eugenia brasileira, por sua vez, surgiu em resposta às teorias degeneracionistas européias do século XIX que criticavam a miscigenação dos trópicos. Apesar do paradoxo racial, implantar a eugenia no Brasil era visto por cientistas e intelectuais do período como um caminho para elevar um país povoado por uma legião de jecas. Antes de 1917, houve algumas iniciativas esparsas que mencionavam a eugenia como um caminho possível, mas foi com o médico paulista Renato Kehl que a teoria adquiriu adeptos e defensores.
O arauto brasileiro
O entusiasmo generalizado causado por uma conferência realizada por Kehl na Associação Cristã de Moços de São Paulo impulsionou a fundação da Sociedade Eugênica de São Paulo (Sesp), em 1918. A primeira associação do tipo na América Latina contou com cerca de 140 associados. Entre eles estavam o fundador da Faculdade de Medicina de São Paulo, Arnaldo Vieira de Carvalho, o sanitarista Arthur Neiva, o psiquiatra Franco da Rocha e o educador Fernando de Azevedo.
Em 1920, Kehl muda-se para o Rio de Janeiro e ao lado de outros médicos psiquiatras participa da fundação da Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), instituição cujo intuito era combater os “fatores comprometedores da higiene da raça e a vitalidade da Nação”. Miguel Couto, presidente da Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro, Carlos Chagas, diretor do Instituto Oswaldo Cruz, e Edgar Roquette-Pinto, diretor do Museu Nacional, estavam entre os mais de 120 associados da LBHM.
No início da década de 30, boa parte da LBHM passou a defender abertamente a radicalização das ações “antidegenerativas” como a esterilização, mas alguns membros da associação reagiram à proposta. Edgar Roquette-Pinto se colocou contra a segregação e a favor da miscigenação. Adepto da eugenia positiva, profilática e não radical, para ele a solução para o problema nacional era a higiene e não a raça. Insatisfeito com as divergências na LBHM, Renato Kehl organizou então a Comissão Central Brasileira de Eugenia (CCBE) sob inspiração da Comissão da Sociedade Alemã de Higiene Racial, com a qual se correspondia. Por meio da CCBE, Kehl se aproximou de Oliveira Vianna, então consultor jurídico do governo provisório de Getúlio Vargas, e integrou um grupo designado pelo recém-fundado Ministério do Trabalho para pensar os problemas da imigração no Brasil a partir de 1932.
Os resultados dos trabalhos da Comissão de Imigração liderada por Oliveira Vianna contribuíram para a formulação da Lei de Restrição à Imigração. Mais política do que racial, a medida barrou a entrada no Brasil de asiáticos e judeus denominados pelos eugenistas como não-assimiláveis. Essa postura negativa estava então alinhada com a ideologia nazi-fascista e com as políticas imigratórias dos Estados Unidos. Legalizada em 1934, foi retirada da Constituição após o golpe do Estado Novo, em 1937, embora o comprometimento com a eugenia ainda fosse uma política de Estado, que só recuaria após a adesão do Brasil ao bloco dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, em agosto de 1942.
Seja no Brasil de Vargas ou na Alemanha de Hitler, o fato é que durante as primeiras décadas do século XX a eugenia exerceu forte influência sobre governos e intelectuais dos quatro cantos do mundo. A prática assumiu uma multiplicidade de facetas que particulariza cada análise de acordo com a época e o país. Há algo, porém, comum aos diversos eugenistas: todos tinham em vista a substituição das leis de proteção social por outras que favorecessem a reprodução de bons elementos na sociedade, utilizando o rótulo de ciência para um projeto essencialmente político e ideológico.
PRECURSORES NA ANTIGÜIDADE
MUSEU DO VATICANO
Escultura representando um discóbolo (arremessador de disco), exemplo de padrão de beleza dos gregos antigos
Os ideais eugênicos modernos remontam à Antigüidade. Os padrões de beleza física da Grécia antiga, assim como os exemplos de força dos exércitos de Esparta e, séculos antes, as regras de higiene dos hebreus e sua profilaxia também inspiraram os teóricos eugenistas da segunda metade do século XIX e princípios do século XX. No século VIII a.C. a cidade-estado grega de Esparta já adotava medidas de purificação da raça. Todos os recém-nascidos eram examinados cuidadosamente por um conselho de anciãos e, se constatada anormalidade física, mental ou falta de robustez, ordenava-se que o bebê fosse lançado de cima do monte Taigeto. Para o povo judeu, o ritual de inserção no grupo representada pela circuncisão é tão importante quanto a descendência do sangue puro quando se afirma que só é judeu aquele que nasce de ventre judeu. Dessa forma, apesar de o judaísmo ser uma religião, muitas das relações de seus adeptos são pontuadas pela linhagem de sangue. (P. D.)
MONTEIRO LOBATO E O CHOQUE DAS RAÇAS
© ACERVO ICONOGRAPHIA
Monteiro Lobato: para o escritor, que defendia a eugenia, a humanidade precisava de poda, assim como a vinha
O choque das raças ou o presidente negro é o único romance escrito por Monteiro Lobato. Em 1926, o autor criou uma trama futurista num tempo regido pela eugenia, no qual é eleito o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, no ano de 2228. A partir desse enredo, Lobato faz a defesa dos ideais eugênicos. O entusiasmo com a doutrina aparece também em carta escrita a seu amigo, o médico Renato Kehl:
“Renato, tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo. (...) Precisamos lançar, vulgarizar estas idéias. A humanidade precisa de uma coisa só: póda. É como a vinha. Lobato.”
A ficção de Lobato contém em si a junção de todos os desejos e medos de uma sociedade eugenizada. Segundo o autor, o princípio da eficiência “resolverá todos os problemas materiais dos americanos, como o eugenismo resolverá todos os problemas morais”. Para Lobato, a eugenia e a eficiência seriam as chaves para solucionar os males da humanidade. (P. D.)
Pietra Diwan é mestre em história pela PUC-SP e autora do livro Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo (Contexto, 2007)
Revista Historia Viva
Quase que uma carneficina. Eutanasia, assassinatos... que horror! Manipulação da vida das pessoas, exclusão, seleção... ditadores!
ResponderExcluirO que eu realmente nao sabia era que Monteiro Lobato apoiava eugenia.