domingo, 8 de março de 2009

Êta, mulher de fibra!

Rachel de Queiroz causou surpresa ao iniciar uma obra engajada numa época em que as mulheres ainda nem podiam votar
Eduardo de Assis Duarte

Rachel de Queiroz nasceu em 1910, no mesmo ano em que nasceram Patrícia Galvão, a Pagu da Antropofagia, o jornal anarco-comunista O Homem do Povo e o romance proletário Parque industrial. A autora de O quinze, mesmo tendo uma obra de densidade artística muitas vezes superior, aproxima-se de sua companheira de partido e de geração pelo exemplo da trajetória de vida, pelo ardor de uma militância fundada no mais generoso ideal de seu tempo e pela construção de uma obra posta a serviço do ser humano no sentido mais profundo da expressão. Como Pagu, Rachel de Queiroz (1910-2003) seguiu a trilha daquelas mulheres que se colocaram na vanguarda de sua época e ousaram penetrar nos espaços mais entranhadamente masculinos: o mundo das letras, a redação do jornal, a célula partidária. Num tempo em que a grande maioria da população feminina estava relegada ao lar ou, quando muito, à literatura dos colégios de freiras; tempo em que os livros “que tinham idéias” eram considerados impróprios para os olhos das donzelas, Rachel não só marcou sua presença nos territórios masculinos, mas neles deixou a força de uma experiência que, sem dúvida, abriu caminho para as que vieram depois.

A autora estreou em livro no ano de 1930. Seu romance O quinze coincide com o fim da República Velha e com uma época de intensa agitação política e cultural, não só no Brasil, mas em todos os países onde as forças conservadoras conseguiram resistir às tentativas de mudança na correlação de forças no campo político. O espanto causado por sua publicação abalou a literatura brasileira da época, chegando a levantar dúvidas sobre a identidade da autora. O escritor Graciliano Ramos testemunhou que O quinze fez mais estragos nos espíritos que o romance de José Américo de Almeida (A bagaceira, que também tem a seca no Nordeste como temática) “por ser livro de mulher” e “de mulher nova”. Graciliano achava que o nome da autora devia ser “pseudônimo de sujeito barbado”, pois parecia pilhéria “uma garota assim fazer romance!”

O quinze atesta, não só pelo texto de assinatura feminina que extrapola as limitações impostas à escrita das mulheres, mas, sobretudo, pela ousadia do romance politicamente engajado, o tamanho do abalo provocado pela chegada da escritora às letras nacionais. Também merece ser destacada a vinculação da autora com o Partido Comunista, em pleno governo Vargas, enquanto o PCB estava dominado pela chamada “corrente obreirista” – obreirismo era a prática política adotada pelo Partido Comunista segundo a qual só eram considerados legítimos representantes do Partido aqueles de origem proletária ou camponesa, soldados e marinheiros. Foi ela quem levou ninguém menos que Jorge Amado para o seio da Juventude Comunista e abriu dissidência no Partido em função da tentativa de censura a João Miguel, indo mais tarde juntar-se aos trotskistas que faziam oposição tanto à direita instalada no poder quanto à esquerda que julgava ter o monopólio da oposição.

O quinze e os demais escritos publicados nos anos 1930 dialogam e polemizam com toda a produção cultural de seu tempo. A intensificação da luta de classes e a polarização ideológica entre defensores da burguesia e do proletariado acentuaram o vazio e mesmo a falsidade da literatura politicamente “neutra”. Em texto dessa época, o filósofo alemão Walter Benjamin reflete sobre o dilema então vivido pelo escritor: “a serviço de quem ele quer colocar a sua atividade”. Benjamin defendia que o necessário comprometimento de classe do escritor comprometia também sua própria autonomia como criador.


Entre fazer uma obra submetida aos padrões da literatura burguesa, voltada para o mero entretenimento, ou partir para a construção de um romance social fundado na denúncia dos diversos modos de opressão, a escritora fica com a segunda via. O quinze (1930), João Miguel (1932), Caminho de pedras (1937), As três Marias (1939) e outros tantos traduzem uma opção pela literatura como gesto explicitamente político.

O que é inovador diante da ficção do período, e mesmo em relação aos escritos de Jorge Amado, Graciliano Ramos, Dyonélio Machado ou Amando Fontes, é o ponto de vista da mulher. Tal perspectiva imprime aos textos de Rachel a marca de um duplo processo de liberação, pois neles ganham voz tanto a classe quanto o gênero oprimido. No rol dos dramas camponeses ou lumpemproletários, vemos desfilar igualmente as vidas das flageladas, das viúvas, das que perderam seus filhos. E vemos também a trajetória das encarceradas, ou das “militrizes”, que pagam suas penas na prisão social.

Já na narrativa de O quinze pode-se perceber esse duplo enfoque. Ao mesmo tempo em que traça o perfil dos homens do campo submetidos a uma exploração próxima do feudalismo, agravada, no caso, pela catástrofe da seca, a autora volta seu olhar para os primeiros esboços de emancipação feminina que então se manifestavam. Em lugar do casamento nos padrões do patriarcalismo brasileiro da época, a personagem Conceição opta por uma vida “isolada”, marcada pelas leituras socialistas e feministas (embora este termo não apareça no livro); uma vida em que a mulher “pensa por si” e se desenvolve não apenas intelectualmente, mas por meio de um trabalho de promoção social e humana.

Ao lado dessa mulher educada e educadora surgem as mulheres do povo, com a característica de lutar e reagir à coisificação. A ficção de Rachel é pródiga no relato dos dramas miúdos do cotidiano, que ganham em seu texto uma comovedora altitude. Abandonada com um filho pequeno, “se arrastando”, e outro “ainda na barriga”, a Maria Elói de João Miguel não hesita em passar a navalha na amante de seu homem, mesmo que tenha de ir para a cadeia e levar consigo os filhos. Em cenas breves e incisivas, o texto inscreve as vicissitudes da condição feminina no horizonte das classes populares. Nem por isso cai na pieguice ou no ceticismo. Maria Elói dispensa a compaixão do leitor e expõe, orgulhosa, o caráter da mulher do povo, como sua colega Filó, também presa porque “navalhou um desgraçado” na bebedeira. Embora correndo o risco do abandono e da solidão, a personagem se orgulha de ser sempre o sujeito de seu destino.


Esta elevação da mulher é revolucionária para a literatura da época, ainda vizinha da tradição das sinhazinhas românticas ou das adúlteras culpadas do romance naturalista. A Santa de João Miguel recusa a fidelidade ao companheiro encarcerado e não reprime a libido pouco afeita à moral cristã. Nem por isso é condenada pelo texto, seja na voz que narra, seja na da própria vítima do adultério.

O crítico Mário de Andrade disse certa vez que, na ficção de Rachel de Queiroz, as mulheres são sempre fortes, mas, em compensação, os homens quase sempre fraquejam. Impossível concordar de todo com a afirmativa quando nos deparamos com a solidão de João Miguel, que nunca é resignada, ou com as proezas de Lampião, bandido e herói do sertanejo sem esperanças. E mesmo que fosse inteiramente correta a inversão de papéis aventada pelo crítico, qual o problema? Nada mais coerente com o público leitor – predominantemente feminino – do que a literatura de Rachel andar na contracorrente do velho endeusamento da masculinidade, celebrada desde que o homem aprendeu a narrar.

As mulheres de Rachel são fortes, sim, como é forte o seu estilo simples e direto, calcado na oralidade nordestina, e como são fortes seus diálogos, às vezes duros e ríspidos, como o mundo retratado. São mulheres fortes mesmo quando choram, adoecem ou morrem de parto... Movidas muitas delas pela fome ou pelo ódio, convivem, no entanto, com as beatas e as donas-de-casa submissas e tementes a Deus. Estas últimas servem de necessário contraponto às primeiras, dando a elas o destaque planejado pela autora. E aí, as razões ligadas à construção literária convivem com o empenho em abalar a ordem falocêntrica, agravada entre nós pelos ecos ideológicos oriundos da casa-grande e das muitas senzalas.

Já em Caminho de pedras, vemos o romance se desenvolver entre os percalços da revolução e a luta feminina contra os preconceitos e amarras das convenções ditadas pela classe dominante. O drama de Noemi e dos seus companheiros de militância passa distante do triunfalismo messiânico com que o obreirismo e mais tarde o stalinismo pretenderam recobrir o romance proletário, comprometendo muitas vezes não apenas sua realização como literatura, mas até mesmo sua eficácia como argumentação. Noemi faz da luta pelo socialismo uma busca da liberdade que se estende também ao plano da realização pessoal e amorosa. O caminho de pedras do ativismo é a ponte para a afirmação da mulher no universo patriarcal e provinciano.


A obra de Rachel de Queiroz revela a primeira grande escritora da literatura brasileira. Pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que antes dela nenhuma outra mulher conseguiu manter cativo, durante décadas, um público sempre atento e renovado, seja para seus romances ou peças teatrais, seja para sua extensa produção no campo da crônica jornalística. Em 1977, torna-se a primeira mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras. Nos anos 1990, perto de comemorar setenta anos de presença na cena literária brasileira, a autora recebeu, entre outros, o Prêmio Camões, oferecido pelo governo de Portugal, e lançou com sucesso o romance Memorial de Maria Moura, logo depois adaptado para a TV. Publicou ainda o livro de memórias Tantos anos, escrito em parceria com a irmã. A obra e a vida de Rachel de Queiroz figuram como uma espécie de marco do processo de emancipação social da mulher brasileira no século XX.

Como se pode constatar pela leitura dos romances de Rachel de Queiroz, o verdadeiro salto que neles se verifica frente aos escritos dos anos 1930 está exatamente na inserção da perspectiva feminina na literatura que se insurge contra uma ordem social injusta. Os dramas narrados pela escritora brasileira nos colocam diante de uma grave indagação: haverá condições de se erguer uma sociedade livre, equilibrada e harmônica sem superar a discriminação e as práticas que relegam a mulher à condição de segundo sexo? Embora a autora não tenha nunca se assumido como feminista, seus romances estão a nos dizer que a verdadeira liberdade só existirá quando homens e mulheres trilharem, fraternos, o caminho da igualdade de direitos e deveres.


Eduardo de Assis Duarte é professor de Literatura da Faculdade de Letras da UFMG e autor de Literatura, política, identidades, Belo Horizonte: FALE-UFMG, 2005.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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