segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Documento - pintor Paolo Veronese diante do Tribunal da Santa Inquisição

Leia a íntegra do interrogatório do pintor Paolo Veronese diante do Tribunal da Santa Inquisição

Banquete na casa de Levi, óleo sobre tela, Paolo Caliari Veronese, 1573, Galleria Accademia, Veneza


Veneza, Sábado, 18 de julho de 1573
O senhor Paolo Caliari Veronese, morador da paróquia de São Samuel, foi convocado ao Santo Ofício, diante do Tribunal Sagrado, e foi perguntado o seu nome. Ele respondeu como escrito.

Foi perguntada sua profissão.
Veronese: Eu faço pinturas.

Tribunal: Você sabe a razão da sua convocação
Veronese: Não, meus senhores.

Tribunal: Você pode imaginar?
Veronese: Sim, claro que sim.

Tribunal: Diga-nos porque você acha que foi chamado.
Veronese: Pela razão que foi contada para mim pelo reverendo, cujo nome eu não sei, que me disse ter estado aqui, e que os ilustríssimos senhores tinham encarregado-o de fazer me substituir a figura do cachorro pela de Maria Madalena. E eu respondi a ele que faria espontaneamente isso, ou qualquer outra coisa para melhorar a pintura, mas que eu não achava que a figura de Madalena ficaria bem ali, por várias razões que eu posso argumentar em qualquer oportunidade.

Tribunal: A que pintura se refere?
Veronese: A da última ceia que Jesus Cristo fez com seus apóstolos na casa de Simão.

Tribunal: E onde está essa pintura?
Veronese: No refeitório do convento de São Paulo e São João Batista

Tribunal: Nessa ceia você pintou outros comensais?
Veronese: Sim, meus senhores

Tribunal: Diga quantos e o que cada um está fazendo
Veronese: Primeiro, tem o senhor da casa, Simão. Depois, abaixo dessa figura, eu pintei um mordomo, que veio ver como as coisas estavam se desenrolando na mesa. Há vários outros, que, desde que coloquei o quadro, não me lembro.

Tribunal: Você pintou outras ceias além dessa?
Veronese: Sim, meus senhores

Tribunal: Quantas, e aonde?
Veronese: Eu fiz uma em Verona para o Reverendo de São Nazaro, que está no seu refeitório.

Ele disse: Eu fiz uma no refeitório dos sacerdotes em São Jorge, aqui em Veneza.

A ele foi dito: Isso não é uma ceia. Você está sendo perguntado sobre a Santa Ceia.
Veronese: Eu fiz uma no refeitório dos Servos de Maria em Veneza, outra no refeitório da São Sebastião, também aqui. E eu fiz uma em Pádua para os Pais de Madalena. Não me lembro de ter feito outras.

Tribunal: Nessa ceia que você pintou em São João Batista e São Paulo, qual o significado da figura do homem com o nariz sangrando?
Veronese: Eu o fiz como um servo, cujo nariz, por conta de algum acidente, estaria sangrando.

Tribunal: Qual o sentido desses homens armados, vestido a moda alemã, cada um com uma alabarda (uma lança germânica)?
Veronese: Aqui eu precisaria dizer algumas palavras.

Tribunal: Diga
Veronese: Nós, pintores temos a mesma liberdade dos poetas e dos loucos. E eu pintei esses dois alabardeiros, um bebendo e outro comendo perto da escada, que estão ali para talvez executarem alguma ordem, porque parecia me apropriado que o mestre da casa, que era rico e poderoso, de acordo com o que eu soube, tivesse tais servos.

Tribunal: Esse sujeito com um papagaio no seu punho, qual é o propósito dele na tela?
Veronese: Ornamento, como é comum se fazer.

Tribunal: Quem está sentado ao lado do Nosso Senhor na mesa?
Veronese: Os doze apóstolos

Tribunal: O que São Pedro está fazendo, quem é o primeiro?
Veronese: Ele está cortando o carneiro, para passar ao outro no fim da mesa.

Tribunal: O que o outro está fazendo?
Veronese: Ele segura um prato para receber o que São Pedro está lhe dando.

Tribunal: Diga-me o que o seguinte está fazendo?
Veronese: Ele tem um palito, com o qual está limpando seus dentes.

Tribunal: Quem você realmente acha que estava presente na Santa Ceia?
Veronese: Eu acho que Cristo e seus apóstolos estavam presentes, mas se em uma pintura eu tenho espaços vazios, eu os adorno com figuras da minha imaginação.

Tribunal: Alguém encomendou que pintasse alemães, comediantes e tais coisas no quadro?
Veronese: Não, meu senhor. Mas eu fui encarregado de adornar a pintura como achasse melhor, e para mim ela é grande e tem espaço para muitas figuras.

Ele foi questionado pelos ornamentos que ele, o pintor, tem o hábito de introduzir em seus murais e pinturas, seja na maneira de fazê-las apropriadas ao assunto das figuras principais, ou se ele as pinta pelo seu próprio prazer, sem discrição ou critério.
Veronese: Eu faço minhas pinturas considerando o que é adequado, e como minha mente as compreende.

Ele foi perguntado se achava apropriado que na Santa Ceia de Nosso Senhor houvesse bêbados, alemães, anões e semelhantes obscenidades.
Veronese: Não, meus senhores.

Tribunal: Você não sabe que na Alemanha e em outros lugares infestados de heresia, há o costume de usar pinturas estranhas e obscenas para zombar, abusar e ridicularizar a Santa Igreja Católica, com o objetivo de ensinar falsas doutrinas aos analfabetos e ignorantes?
Veronese: Sim, meus senhores. Isto é malvado. Mas eu devo repetir o que disse antes, que eu sou obrigado a seguir o que meus predecessores fizeram.

Tribunal: O que seus predecessores fizeram? Eles algumas vez fizeram algo assim?
Veronese: Michelangelo, em Roma, na Capela Pontifícia. Ele pintou Nosso Senhor Jesus Cristo, sua Santa mãe, São João, São Pedro, a corte do Paraíso, todos nus, da Virgem Maria para abaixo, com pouca reverência.

Tribunal: Você sabe que ele estava pintando o Juízo Final, no qual vestimentas ou tais coisas não devem existir, não há necessidade de se pintar roupas, e nesses quadros não há nada que não seja espiritual, como cachorros, armas, ou tais bazófias? E você acha, citando esse ou qualquer outro exemplo, que agiu corretamente fazendo esta pintura assim? E você pretende se defender dizendo que esta pintura é correta e apropriada?
Veronese: Meus ilustres senhores, não. Eu não pretendo me defender, mas eu pensei que estava agindo corretamente. E eu não considerei muitas coisas, pensando que eu não estava fazendo nada irregular, ainda mais que os comediantes estão fora do recinto onde está Nosso Senhor.

Depois disso, os senhores decidiram que o acima citado Sr. Paolo deveria ser requisitado e obrigado a corrigir e emendar a pintura em questão, arcando pelos custos disso, em três meses, a contar do dia da sentença, sob as penas que o Sagrado Tribunal pode impor.
Revista Historia Viva

2 comentários:

  1. Excelente artigo!
    Peço licensa para copiá-lo!!
    E evidentemente divulgá-lo.
    Parabéns pelo espaço!!!
    Nota 10!
    Abraços

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