sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Revolta da Vacina

A revolta da vacina já indicava há 100 anos que a crítica miséria brasileira reside tanto na falta de saneamento quanto na de Educação

No início do século 20, durante a chamada república oligárquica brasileira (1894-1930), uma parcela significativa da sociedade do País – ou ao menos de sua elite – ansiava levar ao mundo a imagem de um país tipicamente “ocidentalizado”: moderno, branco, liberal e avançado, com todos os benefícios que a suposta civilidade poderia conceder. Esse sonho tropical esbarrava, porém, em uma dura realidade, visível para olhos atentos e palpável para a maioria dos cidadãos brasileiros: o cotidiano dos ex-escravos e imigrantes pobres. À margem da pretensa civilização, essa camada da população era submetida a condições de trabalho subumanas, tanto no campo quanto nas cidades, mergulhada no analfabetismo e morrendo por causa de doenças como febre amarela, peste bubônica, varíola e outras epidemias. Foi nesse contexto que surgiu o sanitarista Oswaldo Cruz (veja o artigo “Desinfetando o Brasil”, à pág. 40) e no qual ocorreu o que talvez tenha sido o maior conflito urbano da república brasileira: a revolta da vacina.

Esse cenário desolador se estabelecia principalmente em cidades portuárias, como o Rio de Janeiro, onde se acumulava o excesso de lixo nas ruas e, conseqüentemente, proliferavam ratos e mosquitos transmissores de doenças. Logo em seu discurso de posse como presidente da república para o mandato de 1902 a 1906, Rodrigues Alves (veja o quadro “Café com poder”) afirmara que seu programa de Governo daria prioridade ao saneamento da cidade do Rio de Janeiro. Era o início de um processo político que, aliado a diversos outros fatores, culminou na revolta em quehouve dezenas de mortos, centenas de feridos e em que se prenderam e deportaram outras tantas pessoas.

Debaixo do tapete
No final do século 19, o Rio de Janeiro era uma cidade marcada por profundas transformações. Além de ter sido cenário de episódios marcantes como a abolição da escravidão (1888) e a proclamação da República (1889), a capital vivia um significativo processo de industrialização – tendo em mente os padrões brasileiros na época. Recebia um número cada vez maior de imigrantes europeus em busca de trabalho, assistia à construção de uma complexa rede de ferrovias, além de entrar em contato, mesmo com certo atraso em relação à Europa, com as mais recentes invenções e descobertas científicas e tecnológicas da época, como a eletricidade, o telégrafo e o cinema, entre outras (veja o quadro “Liberalismo e burguesia”).
Urbanisticamente, porém, a cidade ainda conservava um aspecto colonial que não condizia com os ideais de modernidade da nascente elite urbana. Para modificar esse quadro foi iniciado um processo de reurbanização que ficou famoso com a alcunha de “bota-abaixo”. A iniciativa concentrou grande parte do esforço do Governo federal naépoca. Mas, de maneira marcante, consagrou um nome que entrou para a história do Rio de Janeiro: o prefeito Pereira Passos (1836-1913).

Nascido no interior fluminense, o engenheiro havia sido prefeito do Rio de Janeiro entre 1902 e 1906, tendo se especializado na École des Ponts et Chaussées de Paris. Passos tinha grande apreço pelos conceitos urbanísticos com os quais entrara em contato na Europa.

Tomando como modelo os famosos boulevards franceses, o prefeito arregimentou arquitetos e urbanistas no esforço não apenas de levantar construções novas na capital, mas também de demolir antigas construções que não estivessem de acordo com o projeto de país conforme o ideal positivista que inspirou nosso movimento republicano (veja o quadro “Mar positivista”).
Na prática, esse projeto consistia basicamente na construção da avenida Central. A via, além de representar a imagem que a cidade do Rio de Janeiro queria vender ao mundo, consistia também em umaárea onde a população – ou ao menos a parcela privilegiada – poderia usufruir o que havia de mais moderno em termos de consumo e entretenimento na época, além de servir como ligação entre o porto e a avenida Beira-Mar. Para concretizar o projeto, Passos ordenou a demolição dos cortiços e casebres dos bairros cariocas centrais, possibilitando não apenas a construção da nova avenida, mas também o alargamento de antigas ruas e avenidas, a ampliação da rede de saneamento e aremodelação do porto.
Assim, milhares de pessoas foram desalojadas de suas casas, geralmente sublocadas sem nenhuma formalidade documental – ou seja, não havia garantia alguma de posse –, sendo obrigadas a procurar moradia em bairros distantes do centro ou em barracos construídos nas encostas dos morros. Isso acentuou ainda mais o processo de favelização que o Rio de Janeiro vinha sofrendo desde a volta dos soldados que haviam combatido na guerra de Canudos (1893-1897).

Afronta à liberdade
Essa população pobre e deslocada – formada basicamente por trabalhadores mal remunerados, analfabetos e excluídos da participação política – torna-se também o alvo principal de um outro aspecto das reformas pela qual o Rio de Janeiro vinha passando: a política sanitarista, empreendida pelo bemintencionado Oswaldo Cruz, médico sanitarista nomeado diretor de Saúde Pública do Rio de Janeiro em 1º de março de 1903. Mas a já mencionada falta de atenção do Governo com essas pessoas e a ausência de uma campanha maciça de esclarecimento à população sobre os verdadeiros interesses das autoridades fizeram com que a reação a essa política fosse explosiva.

Osvaldo Cruz iniciou sua campanha oferecendo uma pequena quantia em dinheiro para quem trouxesse ratos mortos aos escritórios da Saúde Pública, uma forma de combater a peste bubônica. Também espalhou pela cidade os chamados “matamosquitos”, homens que chegavam a invadir residências com o propósito de erradicar o mosquito transmissor da febre amarela – o que não agradava à população. Mas a polêmica se instaurou, de fato, quando o sanitarista convenceu o presidente Rodrigues Alves a decretar a lei da vacinação obrigatória contra a varíola, em 31 de outubro de 1904.

Diversos setores da sociedade discordavam da obrigatoriedade da vacinação por motivos variados. Alguns julgavam imoral aplicar injeções em mulheres, muitos não entendiam de que forma se combatia uma doença mediante a aplicação do próprio vírus.

Ainda havia quem dissesse ser uma afronta à liberdade individual a idéia de vacina obrigatória. Houve também aqueles que, em meio ao descontentamento popular, aproveitaram para cogitar a derrubada do presidente Rodrigues Alves do poder. Eram, na maioria, militares e políticos de oposição.
Mas a verdade é que os fatores que causaram a revolta iam muito além da campanha sanitarista. Influíram na revolta a pobreza e o desemprego inerentes à sociedade na época, além de medidas polêmicas como o “bota-abaixo” e os interesses de alguns setores da sociedade brasileira que se opunham ao Governo federal.

Barricadas pela cidade
Iniciada no largo de São Francisco, em 10 de novembro de 1904, a revolta se espalhou para a praça Tiradentes e a praça da República. Enfrentando a cavalaria, militares, estudantes e, principalmente, operários, queimavam bondes, levantavam barricadas, apedrejavam e saqueavam casas comerciais, espancavam agentes de Saúde, policiais, autoridades e funcionários públicos. Invadiam quartéis e, sob os gritos de “Morra a polícia!” e “Abaixo a vacina!”, trocavam tiros pelas ruas da cidade.
Ao longe, era possível observar as espirais de fumaça que se levantavam em diversos pontos, onde se erguiam barricadas. A zona portuária da cidade também foi palco de conflitos. Toda a insatisfação que a população do Rio de Janeiro não podia extravasar pela participação política parecia eclodir de uma vez só em uma violenta manifestação. As autoridades locais requisitaram ajuda da Marinha e do Exército, além da própria polícia – autorizada a agir com violência – e do corpo de bombeiros.
Além disso, o Rio de Janeiro testemunhou, na escuridão da noite de 14 de novembro – a iluminação pública, composta de lampiões de gás, havia sido destruída –, a sublevação de mais de 200 cadetes da Escola Militar da Praia Vermelha. Marchando em direção ao palácio do Catete, por pouco eles não derrubaram o presidente. Chegaram a entrar em choque com oficiais e soldados leais ao Governo. No dia seguinte, aniversário da República, o Governo federal decretou estado de sítio, recebendo ajuda de tropas de outros Estados enquanto a revolta se alastrava cada vez mais pela cidade.

Quando, graças às forças de repressão, o Governo conseguiu conter a revolta, o saldo era dramático. Além da destruição de grande parte das ruas, praças e bairros em que ocorreram conflitos, quase mil manifestantes foram encarcerados no presídio da ilha das Cobras, e cerca de 500 foram deportados para o Acre. Centenas ficaram feridos e havia dezenas de mortos, entre manifestantes, policiais, bombeiros, agentes de Saúde e soldados.

CAFÉ COM PODER

Oligarquia, segundo Platão, é o sistema de governo no qual uma determinada elite econômica exerce o poder político exclusivamente segundo os próprios interesses, sem se pautar nos anseios da maioria.
No Brasil, durante a chamada república oligárquica (1894- 1930), a elite cafeicultora, principalmente a paulista, dominava o cenário político nacional, impondo seus candidatos mediante o clientelismo (troca de favores por votos) e o coronelismo (práticasviolentas para coagir o eleitorado).
Foi nessa conjuntura que Rodrigues Alves (1848-1919), cafeicultor paulista, foi eleito por duas vezes presidente da república. A primeira, entre 1902 e 1906, período no qual eclodiu a revolta da vacina. A segunda, em 1918. Ele morreria nesse mesmo ano, porém, antes de tomar posse, e o cargo foi ocupado por Delfim Moreira.
Dentre as atitudes da elite cafeicultora em defesa de seus próprios interesses destacaram-se práticas como a “socialização das perdas”, que desvalorizava a moeda nacional para manter o lucro dos fazendeiros na hora de converter suas libras, e o Convênio de Taubaté, em que se decidiu que o Governo federal compraria o excedente de café produzido para evitar que o excesso de oferta reduzisse o preço do produto no mercado internacional.

LIBERALISMO E BURGUESIA

Sem dúvida, o século 19 foi um dos mais marcantes da história da civilização. Logo no início, Napoleão Bonaparte desestruturava na Europa, com suas tropas, todo o modelo absolutista vigente e as idéias iluministas da revolução que acabaram levando-o ao poder. As colônias espanholas na América aproveitavam o momento em que as tropas francesas ocupavam a Espanha e, inspiradas no exemplo das 13 colônias inglesas da América do Norte que haviam formado os Estados Unidos da América, libertaram-se dos grilhões colonialistas. Mesmo após a derrota de Bonaparte, revoluções como as de 1830 mantinham acesas as chamas da transformação, apesar da reação de setores e governos conservadores que se alinhavam na chamada Santa Aliança.
Os ideais do nacionalismo e do liberalismo davam voz aos burgueses de diferentes regiões. O nascente socialismo completou o cenário em 1848, com a chamada Primavera dos Povos, inserindo definitivamente a classe operária na história e na vida política do continente.
No Brasil, desde 1808 o cenário político afastava cada vez mais o País da burguesia e da nobreza portuguesa, e tornava a elite latifundiária local o personagem determinante, principalmente após a revolução liberal do Porto, em 1821, que fez dom João VI regressar a Portugal e abriu caminho para a aliança entre essa elite e o herdeiro do trono, futuro dom Pedro I.
Na segunda metade do século, já com grande parte da Europa ocidental e da América organizadas segundo o modelo liberal-burguês, os avanços promovidos pela segunda revolução industrial maravilhavam os que a eles tinham acesso: eletricidade, motores a combustão, telefones, cinema, que caracterizavam a belle époque.
Não obstante, a disputa imperialista entre as potências industriais prenunciava que o caminho não seria tão suave quanto supunham alguns. Além da miséria vivida nos distritos operários dos países mais ricos do mundo e em suas colônias, já se desenhava o cenário geopolítico da Primeira Guerra Mundial.

MAR POSITIVISTA

A proclamação da República no Brasil contou não apenas com a participação dos grandes cafeicultores e de setores da elite urbana como também com a mobilização do Exército, o mais significativo e maior beneficiado entre os setores envolvidos no processo, pelo menos em seus primeiros anos.
O Clube Militar, de grande relevância nas primeiras décadas da República, e de onde se originou a atual Escola Superior de Guerra, fundamentava sua doutrina no pensamento de Auguste Comte (1798-1857). Segundo o filósofo francês, o avanço capitalista guiado pela técnica e pela Ciência seria capaz de construir a ordem e o progresso escritos na faixa central no orbe da bandeira republicana brasileira – inscrição baseada no lema positivista "O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim".
Para os positivistas, a exploração industrial em todas as suas formas é legítima, e a divisão de classes é indispensável. Comte dizia que "a felicidade real é compatível com todas e quaisquer condições, desde que sejam desempenhadas com honra e aceitas convenientemente".

Ficava claro para as autoridades que a vida moderna tão desejada pela “nova” elite brasileira implicava muito mais que a simples imposição de regulamentos e reformas por parte da parcela esclarecida da população para a classe formada pela massa trabalhadora. Seria necessário praticar também uma política de esclarecimento e inclusão dessa população na sociedade urbanizada e industrializada que o Brasil pretendia construir. E esse sonho, ao contrário do desejo da reurbanização e do saneamento da parte mais rica da cidade do Rio de Janeiro, parece ainda não ter se concretizado, mesmo mais de 100 anos depois da revolta da vacina.
Conrado Ferranti Bichara é professor de História e historiador formado pela Unesp.
Revista desvendando a historia

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