Casos escandalosos julgados no Maranhão revelam a vida amorosa e familiar dos padres que desrespeitavam o celibato
Pollyanna Gouveira Mendonça
O padre Miguel de Morais e Ignácia Maria moravam sob o mesmo teto, com seus cinco filhos e grande número de agregados, até ele ser transferido para a Vila dos Vinhais, a uma légua e meia de São Luís. De lá, “mandava frangos e galinhas, lenha e índios” para a família, mas Ignácia, que não conseguia ficar longe de seu amante, passava a “fazer-se de doente dizendo que era melancolia”, e só ficava curada depois que o padre Miguel lhe fazia “afagos amatórios” à vista de todos. Denunciados pelos vizinhos por estável concubinato nos idos de 1762, eles ocupam páginas e páginas de um dos muitos processos do Tribunal Episcopal do bispado do Maranhão no século XVIII. São ricos volumes de uma documentação que detalha o cotidiano de famílias formadas por membros do clero que não respeitavam o celibato.
A discussão sobre a castidade dos padres já era antiga quando, em 1215, no Concílio de Latrão, a Igreja estabeleceu a abstinência dos prazeres carnais como divisor de águas entre clérigos e leigos. Mas o marco na tentativa de moralizar os costumes e aumentar a vigilância sobre a população foi o Concílio de Trento (1545-1563), ao reafirmar sacramentos e dogmas que estavam em debate pelo menos desde os séculos XII e XIII. Por esses preceitos, os sacerdotes, como ministros de Deus, deveriam manter-se retos de costumes para servir de exemplo aos fregueses e auxiliar na política disciplinadora da Igreja.
Mas, ao impedir a manutenção de relações afetivas e sexuais, o celibato clerical também facilitava o convívio com as mulheres. Como representante do Senhor na terra e o mais próximo do discurso celeste que aquelas pessoas conheciam, um padre era, ao menos no início, insuspeito. Na prática, vivendo em meio às próprias moralidades da Colônia, espalhando-se entre os homens comuns e mesmo camuflando-se sob as suas batinas, muitos clérigos não só compartilharam como praticaram costumes difundidos socialmente, como o concubinato – embora a Igreja só reconhecesse como legítima a família constituída pelo sacramento do matrimônio e considerasse ilegais todas as demais uniões.
Escandalizando a população do Maranhão, esses padres adotavam uma vida de casados. Tal como os leigos, providenciavam o sustento da casa, da mulher e de seus filhos, com alimentação, vestuário e escravos, enquanto as concubinas, inclusive as que permaneceram em companhia da mãe ou de parentes, cuidavam da casa e dos filhos. Além disso, a falta de privacidade dos lares, comum na sociedade colonial, permitia que os vizinhos assistissem regularmente às trocas de afeto e dedicação conjugal. Mesmo assim, com todo o tumulto que provocavam, essas relações permaneciam estáveis anos depois da primeira denúncia, como mostra o considerável número de reincidentes.
O padre Manoel Dornelles e Thereza da Cruz tiveram sua relação amorosa denunciada na cidade de São Luís em 1744. No ano anterior, haviam sido presos juntos, “fora de horas”: soldados da ronda encontraram o reverendo “em ceroulas e mangas de camisa” na casa de Thereza. Mesmo depois do flagrante, o casal teria continuado a mancebia, apesar de o Juízo Eclesiástico ter proibido o vigário de freqüentar a Rua do Egito, onde a amásia morava com sua mãe. Nos autos consta que o padre a assistia “com todo o necessário de comer e de beber”, além de vesti-la de sedas, “com toda a pompa”. Descrito como muito ciumento, a ponto de colocar “vigias para ver quem entra em casa de Thereza”, o padre Manoel não respeitara as ordens e teria até comprado uma morada de casas para Thereza no bairro de Santo Antônio, “para ficar desembaraçado e livre para poder ir à sua casa como dantes”.
Angélica Lopes e o padre Onofre Pimenta, acusados por viverem de “portas adentro” como “se fossem marido e mulher”, eram investigados desde 1753 pelo Juízo Eclesiástico. De acordo com o depoimento do tio de Angélica, viviam juntos “sem vergonha de Deus nem do mundo”, e em 1756 já estariam com duas filhas. Mesmo número que a viúva Maria Pereira teria tido com o padre Manoel Corrêa, denunciado no ano de 1740 em São Luís. O “casal” também dividia o mesmo teto, segundo as testemunhas, sob pretexto de parentesco espiritual por serem compadres.
Afora a coabitação, alguns religiosos tentaram utilizar outras táticas para que suas transgressões passassem mais despercebidas. A separação das moradias foi uma delas. Mas o sentimento e as obrigações familiares não se dissolveram, como observou Luciano Figueiredo em seu estudo sobre Minas Gerais. No Maranhão, o caso de concubinato vivido pela escrava Anna Maria com o reverendo Manoel Jozé Costa tornou-se assunto comentado por toda a vizinhança de São Luís em meados de 1763. Anna saía todas as noites da casa do seu senhor para encontrar-se com o amante-padre que, segundo testemunhas, invadia os quintais alheios à procura da amásia, sendo sempre alvo de comentários jocosos dos vizinhos: “Lá vai o Padre”... Até que um dia, quando um deles chamou sua atenção, o padre “teria metido uma espingarda à cara” da testemunha. Essa atitude de indisciplina os paroquianos não acataram.
O excesso de zelo, a presença de filhos, a coabitação, os presentes e carinhos trocados surgem na documentação do bispado do Maranhão como os principais motivos para as delações. A população fazia certa distinção entre a vida amorosa e familiar dos sacerdotes e as suas obrigações eclesiásticas, pelo menos para os padres que viviam “como se casados fossem”. Oscilando entre momentos de tolerância e intolerância, a comunidade observava um “limite do permitido”, um ponto até o qual convivia com tais uniões ilegítimas, uma vez que a visibilidade desses relacionamentos não implicava ausência de preconceitos.
Como no caso de adultério vivido por Anna Lucinda, esposa de Ricardo Barbosa, com o padre Manoel Rodrigues, na Vila de Alcântara, a quatro léguas de São Luís, em 1791. Em três longos processos, as testemunhas, ao relatarem as diversas brigas do casal, todas elas em razão de o marido cobrar fidelidade da esposa, disseram saber, “por ver e presenciar”, o “horrendo amancebamento”. Os vizinhos conheciam detalhes da relação e sempre presenciavam Anna Lucinda “cortando as unhas e cabelos das narinas” do padre Manoel. Segundo um depoimento, Ricardo Barbosa teria flagrado Anna com o clérigo e se escondido “detrás de uns cofos de algodão”, de onde ouvira o padre Manoel dizer a Anna “que ela era a culpada do marido dela os ir apanhando”. Nos autos, o marido traído chega a afirmar que “não era dos primeiros, e nem seria dos derradeiros”, mas que estaria disposto a perdoar. Mas Anna, irredutível, tentou o divórcio, implementou algumas fugas, e cinco anos após a primeira acusação estaria vivendo, segundo consta, sob o mesmo teto com o padre Manoel.
De todo modo, as muitas denúncias não surgiam apenas pela incorporação na comunidade dos discursos de pecado e de busca pela retidão dos costumes. A Igreja também incentivava a delação, facilitando que uns e outros trouxessem à tona as faltas alheias: precisava contar com a colaboração de uma parcela da população para cuidar de um território tão amplo como o do bispado do Maranhão no século XVIII, que abrangia os atuais estados do Maranhão e do Piauí.
E o julgamento desses casos, num tribunal composto também de religiosos, demonstra o grande conflito que então permeava o clero: se por um lado, ao punir seus iguais, destacava as mazelas que corroíam o corpo eclesiástico, por outro, fechando os olhos para as faltas, contribuía para a continuidade de erros e vícios. Essa contradição que assolava a instituição eclesiástica manifestava-se ora com braço forte, mandando prender e degredar seus iguais, ora aliviando o peso da Justiça, apenas recriminando e ordenando o pagamento de multas.
Eram homens de carne e osso, com desejos e vontades próprias, vivendo em uma sociedade pluriétnica, escravista, num bispado amplo marcado por 63 longos anos de vacância no século XVIII. Apesar das imposições, alguns clérigos resistiram e formaram famílias estáveis. Famílias de padres, mas que faziam parte do complexo mundo da Colônia e que se constituíam em meio à vigilância do poder eclesiástico e à dificuldade de consolidação de um discurso celibatário. Considerados transgressores, esses sacerdotes vivenciaram sua existência familiar de variadas formas e com diferentes táticas. E assim criavam seus filhos e continuavam com suas amásias até a denúncia seguinte.
POLLYANNA GOUVEIA MENDONÇA É DOUTORANDA EM HISTÓRIA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE E AUTORA DA DISSERTAÇÃO SACRÍLEGAS FAMÍLIAS: CONJUGALIDADES CLERICAIS NO BISPADO DO MARANHÃO NO SÉCULO XVIII, (UFF 2007).
Revista de História da Biblioteca Nacional
Pollyanna Gouveira Mendonça
O padre Miguel de Morais e Ignácia Maria moravam sob o mesmo teto, com seus cinco filhos e grande número de agregados, até ele ser transferido para a Vila dos Vinhais, a uma légua e meia de São Luís. De lá, “mandava frangos e galinhas, lenha e índios” para a família, mas Ignácia, que não conseguia ficar longe de seu amante, passava a “fazer-se de doente dizendo que era melancolia”, e só ficava curada depois que o padre Miguel lhe fazia “afagos amatórios” à vista de todos. Denunciados pelos vizinhos por estável concubinato nos idos de 1762, eles ocupam páginas e páginas de um dos muitos processos do Tribunal Episcopal do bispado do Maranhão no século XVIII. São ricos volumes de uma documentação que detalha o cotidiano de famílias formadas por membros do clero que não respeitavam o celibato.
A discussão sobre a castidade dos padres já era antiga quando, em 1215, no Concílio de Latrão, a Igreja estabeleceu a abstinência dos prazeres carnais como divisor de águas entre clérigos e leigos. Mas o marco na tentativa de moralizar os costumes e aumentar a vigilância sobre a população foi o Concílio de Trento (1545-1563), ao reafirmar sacramentos e dogmas que estavam em debate pelo menos desde os séculos XII e XIII. Por esses preceitos, os sacerdotes, como ministros de Deus, deveriam manter-se retos de costumes para servir de exemplo aos fregueses e auxiliar na política disciplinadora da Igreja.
Mas, ao impedir a manutenção de relações afetivas e sexuais, o celibato clerical também facilitava o convívio com as mulheres. Como representante do Senhor na terra e o mais próximo do discurso celeste que aquelas pessoas conheciam, um padre era, ao menos no início, insuspeito. Na prática, vivendo em meio às próprias moralidades da Colônia, espalhando-se entre os homens comuns e mesmo camuflando-se sob as suas batinas, muitos clérigos não só compartilharam como praticaram costumes difundidos socialmente, como o concubinato – embora a Igreja só reconhecesse como legítima a família constituída pelo sacramento do matrimônio e considerasse ilegais todas as demais uniões.
Escandalizando a população do Maranhão, esses padres adotavam uma vida de casados. Tal como os leigos, providenciavam o sustento da casa, da mulher e de seus filhos, com alimentação, vestuário e escravos, enquanto as concubinas, inclusive as que permaneceram em companhia da mãe ou de parentes, cuidavam da casa e dos filhos. Além disso, a falta de privacidade dos lares, comum na sociedade colonial, permitia que os vizinhos assistissem regularmente às trocas de afeto e dedicação conjugal. Mesmo assim, com todo o tumulto que provocavam, essas relações permaneciam estáveis anos depois da primeira denúncia, como mostra o considerável número de reincidentes.
O padre Manoel Dornelles e Thereza da Cruz tiveram sua relação amorosa denunciada na cidade de São Luís em 1744. No ano anterior, haviam sido presos juntos, “fora de horas”: soldados da ronda encontraram o reverendo “em ceroulas e mangas de camisa” na casa de Thereza. Mesmo depois do flagrante, o casal teria continuado a mancebia, apesar de o Juízo Eclesiástico ter proibido o vigário de freqüentar a Rua do Egito, onde a amásia morava com sua mãe. Nos autos consta que o padre a assistia “com todo o necessário de comer e de beber”, além de vesti-la de sedas, “com toda a pompa”. Descrito como muito ciumento, a ponto de colocar “vigias para ver quem entra em casa de Thereza”, o padre Manoel não respeitara as ordens e teria até comprado uma morada de casas para Thereza no bairro de Santo Antônio, “para ficar desembaraçado e livre para poder ir à sua casa como dantes”.
Angélica Lopes e o padre Onofre Pimenta, acusados por viverem de “portas adentro” como “se fossem marido e mulher”, eram investigados desde 1753 pelo Juízo Eclesiástico. De acordo com o depoimento do tio de Angélica, viviam juntos “sem vergonha de Deus nem do mundo”, e em 1756 já estariam com duas filhas. Mesmo número que a viúva Maria Pereira teria tido com o padre Manoel Corrêa, denunciado no ano de 1740 em São Luís. O “casal” também dividia o mesmo teto, segundo as testemunhas, sob pretexto de parentesco espiritual por serem compadres.
Afora a coabitação, alguns religiosos tentaram utilizar outras táticas para que suas transgressões passassem mais despercebidas. A separação das moradias foi uma delas. Mas o sentimento e as obrigações familiares não se dissolveram, como observou Luciano Figueiredo em seu estudo sobre Minas Gerais. No Maranhão, o caso de concubinato vivido pela escrava Anna Maria com o reverendo Manoel Jozé Costa tornou-se assunto comentado por toda a vizinhança de São Luís em meados de 1763. Anna saía todas as noites da casa do seu senhor para encontrar-se com o amante-padre que, segundo testemunhas, invadia os quintais alheios à procura da amásia, sendo sempre alvo de comentários jocosos dos vizinhos: “Lá vai o Padre”... Até que um dia, quando um deles chamou sua atenção, o padre “teria metido uma espingarda à cara” da testemunha. Essa atitude de indisciplina os paroquianos não acataram.
O excesso de zelo, a presença de filhos, a coabitação, os presentes e carinhos trocados surgem na documentação do bispado do Maranhão como os principais motivos para as delações. A população fazia certa distinção entre a vida amorosa e familiar dos sacerdotes e as suas obrigações eclesiásticas, pelo menos para os padres que viviam “como se casados fossem”. Oscilando entre momentos de tolerância e intolerância, a comunidade observava um “limite do permitido”, um ponto até o qual convivia com tais uniões ilegítimas, uma vez que a visibilidade desses relacionamentos não implicava ausência de preconceitos.
Como no caso de adultério vivido por Anna Lucinda, esposa de Ricardo Barbosa, com o padre Manoel Rodrigues, na Vila de Alcântara, a quatro léguas de São Luís, em 1791. Em três longos processos, as testemunhas, ao relatarem as diversas brigas do casal, todas elas em razão de o marido cobrar fidelidade da esposa, disseram saber, “por ver e presenciar”, o “horrendo amancebamento”. Os vizinhos conheciam detalhes da relação e sempre presenciavam Anna Lucinda “cortando as unhas e cabelos das narinas” do padre Manoel. Segundo um depoimento, Ricardo Barbosa teria flagrado Anna com o clérigo e se escondido “detrás de uns cofos de algodão”, de onde ouvira o padre Manoel dizer a Anna “que ela era a culpada do marido dela os ir apanhando”. Nos autos, o marido traído chega a afirmar que “não era dos primeiros, e nem seria dos derradeiros”, mas que estaria disposto a perdoar. Mas Anna, irredutível, tentou o divórcio, implementou algumas fugas, e cinco anos após a primeira acusação estaria vivendo, segundo consta, sob o mesmo teto com o padre Manoel.
De todo modo, as muitas denúncias não surgiam apenas pela incorporação na comunidade dos discursos de pecado e de busca pela retidão dos costumes. A Igreja também incentivava a delação, facilitando que uns e outros trouxessem à tona as faltas alheias: precisava contar com a colaboração de uma parcela da população para cuidar de um território tão amplo como o do bispado do Maranhão no século XVIII, que abrangia os atuais estados do Maranhão e do Piauí.
E o julgamento desses casos, num tribunal composto também de religiosos, demonstra o grande conflito que então permeava o clero: se por um lado, ao punir seus iguais, destacava as mazelas que corroíam o corpo eclesiástico, por outro, fechando os olhos para as faltas, contribuía para a continuidade de erros e vícios. Essa contradição que assolava a instituição eclesiástica manifestava-se ora com braço forte, mandando prender e degredar seus iguais, ora aliviando o peso da Justiça, apenas recriminando e ordenando o pagamento de multas.
Eram homens de carne e osso, com desejos e vontades próprias, vivendo em uma sociedade pluriétnica, escravista, num bispado amplo marcado por 63 longos anos de vacância no século XVIII. Apesar das imposições, alguns clérigos resistiram e formaram famílias estáveis. Famílias de padres, mas que faziam parte do complexo mundo da Colônia e que se constituíam em meio à vigilância do poder eclesiástico e à dificuldade de consolidação de um discurso celibatário. Considerados transgressores, esses sacerdotes vivenciaram sua existência familiar de variadas formas e com diferentes táticas. E assim criavam seus filhos e continuavam com suas amásias até a denúncia seguinte.
POLLYANNA GOUVEIA MENDONÇA É DOUTORANDA EM HISTÓRIA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE E AUTORA DA DISSERTAÇÃO SACRÍLEGAS FAMÍLIAS: CONJUGALIDADES CLERICAIS NO BISPADO DO MARANHÃO NO SÉCULO XVIII, (UFF 2007).
Revista de História da Biblioteca Nacional
Gostei também desse relato. Interessante como nos dias de hoje, ainda perdure essa idéia de que o sacerdote deve manter-se casto. Como se a própria igreja não propagasse também a lei da multiplicação. Esquisito isso, parecem que não são gente e não têm necessidades físicas. Taí, gostei novamente!
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