Era aproximadamente 1 hora da madrugada do dia 17 de novembro de 1889 quando o tenente-coronel Mallet chegou ao Paço da Cidade, no centro do Rio de Janeiro, para conduzir os membros da família real ao navio que os levaria para fora do Brasil. Todos dormiam e o primeiro a ser acordado e informado sobre as novas ordens do governo republicano foi o conde D'Eu, marido da ex-princesa imperial d. Isabel.
Ciente de que não poderiam mais embarcar às 14 horas daquele dia, como ficara acertado na véspera, o conde se pôs então a acordar todos os que pernoitavam ali, avisando-os da necessidade de colocarem-se prontos para sair o quanto antes. Pedro de Alcântara, ex-imperador d. Pedro II, foi acordado pelo seu médico particular e apareceu, na sala principal do Paço para a entrevista com o enviado do novo governo, às 2 horas da madrugada. Vestindo sua tradicional sobrecasaca preta e já com a cartola na mão, o ex-chefe de Estado questionou a ordem para o embarque na madrugada: "Que é isto? Então vou embarcar a esta hora da noite?" Diante da resposta de que o governo assim o ordenava para evitar qualquer tumulto contra ou em favor do velho regime, d. Pedro quis ainda saber de qual governo viera a ordem e após ouvir que era do governo republicano tendo à frente Deodoro da Fonseca, arrematou: "Então estão todos malucos!"
Embora em tom calmo, segundo todas as testemunhas que registraram aquele diálogo, o ex-imperador fez então eco aos prantos de sua filha Isabel, que se dirigia em voz alta a Mallet: "Como é isso, eles estão doidos?" Malucos ou não, o fato é que os líderes da recém-nascida República tiveram suas ordens cumpridas e, pouco mais de uma hora após aquele episódio, toda a família real estava embarcada.
Iriam buscar um entendimento: a consumação dos fatos
A reação de d. Pedro e de d. Isabel, não acreditando muito na necessidade de saírem do país às "escondidas", "como negros fugidos", não deixou de evidenciar o quanto o então ocupante do trono brasileiro e sua herdeira presuntiva "subestimaram" a envergadura dos acontecimentos deflagrados pelos batalhões militares sediados na Corte, a partir da noite de 14 de novembro. Subestimaram a sublevação, contudo, não porque desconhecessem as dificuldades políticas do então governo liberal presidido pelo visconde de Ouro Preto e as insatisfações crescentes e cada vez mais agudas nos corpos militares contra os seguidos ministérios desde 1883; assim como o esfacelamento completo das fileiras do partido conservador desde que a maioria de seus membros, circunstancialmente formada, apoiou decisivamente a abolição imediata do trabalho escravo sem indenização aos proprietários, em maio de 1888.
MADRUGADA TUMULTUADA
Os monarcas mal compreenderam o que se passava, porque pareciam certos de que um novo gabinete poderia ser organizado, sustentando-se sobre facções diferentes de cada um dos dois principais partidos monárquicos - afinal, praticamente todas as crises políticas anteriores do longo reinado de Pedro II foram assim resolvidas, independentes das proporções que tiveram. O próprio Marechal Deodoro da Fonseca, na manhã do dia 15, ao se encontrar com o ministério ainda chefiado por Ouro Preto, teria dito que procuraria se entender com o imperador para que outro governo, mais" respeitoso com os militares", fosse organizado.
Pensamento idêntico, aliás, ao que tinha o imperador quando partiu, às pressas, de Petrópolis para a Corte na mesma hora em que o líder da "revolta" fazia aquela declaração: Pedro II imaginava se entender, por força de sua atribuição constitucional de nomear e demitir os ministros de Estado, com o principal líder oposicionista sobre os nomes que deveria "escolher" para compor um novo gabinete. Era o tipo de negociação para a qual Pedro II se considerava mais do que apto, após ter participado de 35 trocas ministeriais desde que fora considerado maior de idade em 1840. A diferença então estava no fato do "algoz" do ministério que caía ser um militar, sem mandato de deputado ou de senador, ainda que ligado a lideranças conservadoras e liberais.
Assim, até perto do meio-dia da data que ficaria consagrada como a da Proclamação da República no Brasil, podemos dizer que havia plena concordância entre o imperador e aquele que, menos de 24 horas depois, seria aclamado como chefe do governo provisório e primeiro presidente do novo regime: a movimentação das tropas e a deposição do gabinete ministerial não representavam o fim da Monarquia, mas apenas uma troca no comando político-administrativo do país, feita apenas com um pouco mais de estardalhaço que as anteriores.
Com esse espírito, Pedro II chegou ao Paço da Cidade, sem notar nenhuma anormalidade pelas ruas. Logo depois, juntaram-se a ele e a vários políticos, que ali já se reuniam, a princesa Isabel e seu marido - vindos de sua casa, onde se dedicavam à organização de uma recepção que ofereceriam naquela noite. Não demorou muito também para que o deposto visconde de Ouro Preto chegasse e tivesse início a audiência sobre a formação do ministério que substituiria ao seu.
Sem nenhuma comunicação ao imperador da parte de Deodoro da Fonseca, o ministro demissionário sugeriu que a tarefa poderia ser bem desempenhada pelo senador gaúcho Gaspar Silveira Martins - a quem muitos caracterizavam, devido a várias declarações públicas que fizera anteriormente, como um "monarquista por fora, mas republicano por dentro". Havia, entretanto, uma dificuldade significativa para as circunstâncias: aquele senador se encontrava fora da capital, aonde só chegaria em no mínimo dois ou três dias. E a necessidade de negociação com os militares e com as várias lideranças políticas para a formação do novo governo era mais que urgente, sob pena de os acontecimentos tomarem um rumo irreversível, segundo o que já prognosticavam vários dos políticos em suas conversas com monarca.
"Já agora era tarde": o fato consumado
Já passava das 23 horas e 30 minutos quando, após muita insistência, sobretudo da parte da princesa Isabel, d. Pedro II abriu a sessão do Conselho de Estado, destinada a sugerir as melhores medidas a ser adotadas para que a obscura situação política se resolvesse. Formado pelos mais expressivos políticos nacionais aquele conselho desempenhava o papel de um colégio de líderes, onde se encontravam representadas as diferentes correntes dos dois partidos monárquicos.
Os pronunciamentos feitos naquela reunião, que terminou já na madrugada do dia 16 de novembro, evidenciaram, mais do que qualquer um dos episódios das 48 horas anteriores, as dificuldades incontornáveis a que havia chegado o modelo político-administrativo implantado pela Constituição de 25 de março de 1824. Embora os conselheiros tenham recomendado por unanimidade a formação imediata de um novo governo, descartando na prática a escolha de Silveira Martins para a tarefa; todos, exceto o visconde de Paranaguá, deixaram muito claro que qualquer composição ministerial de coalizão era impraticável. Nas entrelinhas de tensas e truncadas falas, ficou evidente que se a solução para a governabilidade estava na união de parcelas significativas dos dois partidos em torno de um gabinete, a crise teria seu desfecho em um quadro institucional que já não seria o da Monarquia Constitucional.
De maneira isolada, contudo, nenhum daqueles líderes ali presentes tinha força política para assumir as rédeas da administração diante da nova Câmara de Deputados, que deveria se reunir a partir do dia seguinte. Tanto que o novo nome escolhido por Pedro II para a missão, já tida pelos mais argutos por "impossível", foi o do senador José Antonio Saraiva, que naquela altura dormia em sua casa.
Deodoro da Fonseca, por seu lado, tinha se recolhido à cama desde que dera por consumada a derrubada de Ouro Preto. Doente e considerado até três dias antes um moribundo pelos seus mais próximos amigos e colaboradores, o velho Marechal foi convencido em curtas palestras mantidas com militares e republicanos 'históricos', durante toda a tarde do dia 15, de que a "República era fato consumado". Ao se recolher na noite daquele dia, o primeiro presidente da República já havia abandonado seu intento, tantas vezes declarado, de se manter fiel à Monarquia até que o esquife de Pedro II fosse baixado à sepultura.
Com tais circunstâncias estabelecidas, passava das 3 horas da madrugada quando Saraiva recebeu a resposta de Deodoro para o seu pedido de audiência com vistas à organização do novo gabinete. Mandou dizer o militar ao senador que, naquela altura, "já era tarde, por ser a República um fato absolutamente decidido". O então quase presidente do conselho de ministros e único nome disponível para tentar pôr fim àquela situação de "vazio político-administrativo" não se demonstrou muito surpreso e retornou para a sua cama, após declarar que, se era a República um fato consumado, só lhe restava servi-la. A Pedro II e a sua família, ainda que com surpresa pela rapidez com que as coisas se desenrolaram, só restou o exí1io após o embarque na madrugada escura e chuvosa do dia 17 de novembro.
Célio Ricardo Tassinafo é Mestre e Doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
Ciente de que não poderiam mais embarcar às 14 horas daquele dia, como ficara acertado na véspera, o conde se pôs então a acordar todos os que pernoitavam ali, avisando-os da necessidade de colocarem-se prontos para sair o quanto antes. Pedro de Alcântara, ex-imperador d. Pedro II, foi acordado pelo seu médico particular e apareceu, na sala principal do Paço para a entrevista com o enviado do novo governo, às 2 horas da madrugada. Vestindo sua tradicional sobrecasaca preta e já com a cartola na mão, o ex-chefe de Estado questionou a ordem para o embarque na madrugada: "Que é isto? Então vou embarcar a esta hora da noite?" Diante da resposta de que o governo assim o ordenava para evitar qualquer tumulto contra ou em favor do velho regime, d. Pedro quis ainda saber de qual governo viera a ordem e após ouvir que era do governo republicano tendo à frente Deodoro da Fonseca, arrematou: "Então estão todos malucos!"
Embora em tom calmo, segundo todas as testemunhas que registraram aquele diálogo, o ex-imperador fez então eco aos prantos de sua filha Isabel, que se dirigia em voz alta a Mallet: "Como é isso, eles estão doidos?" Malucos ou não, o fato é que os líderes da recém-nascida República tiveram suas ordens cumpridas e, pouco mais de uma hora após aquele episódio, toda a família real estava embarcada.
Iriam buscar um entendimento: a consumação dos fatos
A reação de d. Pedro e de d. Isabel, não acreditando muito na necessidade de saírem do país às "escondidas", "como negros fugidos", não deixou de evidenciar o quanto o então ocupante do trono brasileiro e sua herdeira presuntiva "subestimaram" a envergadura dos acontecimentos deflagrados pelos batalhões militares sediados na Corte, a partir da noite de 14 de novembro. Subestimaram a sublevação, contudo, não porque desconhecessem as dificuldades políticas do então governo liberal presidido pelo visconde de Ouro Preto e as insatisfações crescentes e cada vez mais agudas nos corpos militares contra os seguidos ministérios desde 1883; assim como o esfacelamento completo das fileiras do partido conservador desde que a maioria de seus membros, circunstancialmente formada, apoiou decisivamente a abolição imediata do trabalho escravo sem indenização aos proprietários, em maio de 1888.
MADRUGADA TUMULTUADA
Os monarcas mal compreenderam o que se passava, porque pareciam certos de que um novo gabinete poderia ser organizado, sustentando-se sobre facções diferentes de cada um dos dois principais partidos monárquicos - afinal, praticamente todas as crises políticas anteriores do longo reinado de Pedro II foram assim resolvidas, independentes das proporções que tiveram. O próprio Marechal Deodoro da Fonseca, na manhã do dia 15, ao se encontrar com o ministério ainda chefiado por Ouro Preto, teria dito que procuraria se entender com o imperador para que outro governo, mais" respeitoso com os militares", fosse organizado.
Pensamento idêntico, aliás, ao que tinha o imperador quando partiu, às pressas, de Petrópolis para a Corte na mesma hora em que o líder da "revolta" fazia aquela declaração: Pedro II imaginava se entender, por força de sua atribuição constitucional de nomear e demitir os ministros de Estado, com o principal líder oposicionista sobre os nomes que deveria "escolher" para compor um novo gabinete. Era o tipo de negociação para a qual Pedro II se considerava mais do que apto, após ter participado de 35 trocas ministeriais desde que fora considerado maior de idade em 1840. A diferença então estava no fato do "algoz" do ministério que caía ser um militar, sem mandato de deputado ou de senador, ainda que ligado a lideranças conservadoras e liberais.
Assim, até perto do meio-dia da data que ficaria consagrada como a da Proclamação da República no Brasil, podemos dizer que havia plena concordância entre o imperador e aquele que, menos de 24 horas depois, seria aclamado como chefe do governo provisório e primeiro presidente do novo regime: a movimentação das tropas e a deposição do gabinete ministerial não representavam o fim da Monarquia, mas apenas uma troca no comando político-administrativo do país, feita apenas com um pouco mais de estardalhaço que as anteriores.
Com esse espírito, Pedro II chegou ao Paço da Cidade, sem notar nenhuma anormalidade pelas ruas. Logo depois, juntaram-se a ele e a vários políticos, que ali já se reuniam, a princesa Isabel e seu marido - vindos de sua casa, onde se dedicavam à organização de uma recepção que ofereceriam naquela noite. Não demorou muito também para que o deposto visconde de Ouro Preto chegasse e tivesse início a audiência sobre a formação do ministério que substituiria ao seu.
Sem nenhuma comunicação ao imperador da parte de Deodoro da Fonseca, o ministro demissionário sugeriu que a tarefa poderia ser bem desempenhada pelo senador gaúcho Gaspar Silveira Martins - a quem muitos caracterizavam, devido a várias declarações públicas que fizera anteriormente, como um "monarquista por fora, mas republicano por dentro". Havia, entretanto, uma dificuldade significativa para as circunstâncias: aquele senador se encontrava fora da capital, aonde só chegaria em no mínimo dois ou três dias. E a necessidade de negociação com os militares e com as várias lideranças políticas para a formação do novo governo era mais que urgente, sob pena de os acontecimentos tomarem um rumo irreversível, segundo o que já prognosticavam vários dos políticos em suas conversas com monarca.
"Já agora era tarde": o fato consumado
Já passava das 23 horas e 30 minutos quando, após muita insistência, sobretudo da parte da princesa Isabel, d. Pedro II abriu a sessão do Conselho de Estado, destinada a sugerir as melhores medidas a ser adotadas para que a obscura situação política se resolvesse. Formado pelos mais expressivos políticos nacionais aquele conselho desempenhava o papel de um colégio de líderes, onde se encontravam representadas as diferentes correntes dos dois partidos monárquicos.
Os pronunciamentos feitos naquela reunião, que terminou já na madrugada do dia 16 de novembro, evidenciaram, mais do que qualquer um dos episódios das 48 horas anteriores, as dificuldades incontornáveis a que havia chegado o modelo político-administrativo implantado pela Constituição de 25 de março de 1824. Embora os conselheiros tenham recomendado por unanimidade a formação imediata de um novo governo, descartando na prática a escolha de Silveira Martins para a tarefa; todos, exceto o visconde de Paranaguá, deixaram muito claro que qualquer composição ministerial de coalizão era impraticável. Nas entrelinhas de tensas e truncadas falas, ficou evidente que se a solução para a governabilidade estava na união de parcelas significativas dos dois partidos em torno de um gabinete, a crise teria seu desfecho em um quadro institucional que já não seria o da Monarquia Constitucional.
De maneira isolada, contudo, nenhum daqueles líderes ali presentes tinha força política para assumir as rédeas da administração diante da nova Câmara de Deputados, que deveria se reunir a partir do dia seguinte. Tanto que o novo nome escolhido por Pedro II para a missão, já tida pelos mais argutos por "impossível", foi o do senador José Antonio Saraiva, que naquela altura dormia em sua casa.
Deodoro da Fonseca, por seu lado, tinha se recolhido à cama desde que dera por consumada a derrubada de Ouro Preto. Doente e considerado até três dias antes um moribundo pelos seus mais próximos amigos e colaboradores, o velho Marechal foi convencido em curtas palestras mantidas com militares e republicanos 'históricos', durante toda a tarde do dia 15, de que a "República era fato consumado". Ao se recolher na noite daquele dia, o primeiro presidente da República já havia abandonado seu intento, tantas vezes declarado, de se manter fiel à Monarquia até que o esquife de Pedro II fosse baixado à sepultura.
Com tais circunstâncias estabelecidas, passava das 3 horas da madrugada quando Saraiva recebeu a resposta de Deodoro para o seu pedido de audiência com vistas à organização do novo gabinete. Mandou dizer o militar ao senador que, naquela altura, "já era tarde, por ser a República um fato absolutamente decidido". O então quase presidente do conselho de ministros e único nome disponível para tentar pôr fim àquela situação de "vazio político-administrativo" não se demonstrou muito surpreso e retornou para a sua cama, após declarar que, se era a República um fato consumado, só lhe restava servi-la. A Pedro II e a sua família, ainda que com surpresa pela rapidez com que as coisas se desenrolaram, só restou o exí1io após o embarque na madrugada escura e chuvosa do dia 17 de novembro.
Célio Ricardo Tassinafo é Mestre e Doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
texto da Revista Desvendando a História
interessante este texto sobre os
ResponderExcluiracontecimentos da queda da Monarquia e o nascimento da República no Brasil.
Parabéns
Alvaro Oliveira
Indico-lhe o blog Monarquia Já: http://imperiobrasileiro-rs.blogspot.com.
ResponderExcluirObrigado.