terça-feira, 16 de dezembro de 2008

1968

nº 388 jul/ago 2008
Insatisfação com fôlego de gato

Quarenta anos depois, o combate dos anos 60 está longe de ter terminado

CECÍLIA PRADA

Arte PB


A expressão é de Zuenir Ventura, que acaba de reeditar seu livro 1968 – O Ano Que Não Terminou (lançado em 1988), acrescentando um segundo volume com entrevistas de pessoas que desvendam sua maneira de ver o período histórico: 1968 – O Que Fizemos de Nós. No quadragésimo aniversário desse ano memorável – que cristalizou a sinergia de um poder jovem para a chegada da revolução –, uma grande onda nostálgica agita intelectuais e militantes políticos de outrora, com multiplicação de depoimentos, lembranças e interpretações. Pois, como dizia Walter Benjamin, "um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois".

Mas em tudo o que se ouve ou se publica sobre os "meia-oito" há muito mais do que simples rememoração – há a constatação de que o combate iniciado então em vários fronts culturais e políticos está longe de terminado. Está vivo e atuante, renovado, transfigurado e ampliado – basta ver a indignação expressa por algumas personalidades conservadoras, como o presidente francês Nicolas Sarkozy, consciente de que "o espírito de 68 precisa ser eliminado". Uma revolução em termos mais amplos e puros do que a simples tomada do poder por uma esquerda autoritária foi iniciada na década de 1960, e ainda hoje se mantém em plena fermentação sob as camadas de acomodação consumista, sob o horror da violência institucional, sob os escombros de uma sociedade cotidianamente ameaçada pela ambição, pela corrupção generalizada, pela impunidade: nossa vivência.

As várias faces de 68

Na realidade não houve "um 1968" como movimento organizado que fosse se espalhando pelos vários países do Ocidente, mas manifestações de revolta com características diferenciadas nos vários países. Foi um ano de descontentamento generalizado, diríamos até de "reclamações gerais", mas muito mais do que isso: a aceleração histórica reconhecida no período anterior – o do pós 2ª Guerra Mundial – e a convicção de que o advento da Era Atômica, em 1945, marcara irreversivelmente a história da humanidade forneceram o fermento para as várias formas de contestação dos valores e dos privilégios herdados do século 19. Na Europa, especialmente na França, o questionamento assumia os aspectos da "contracultura" e desafiava o saber catedrático e enfatiotado. Sob a liderança do desaforado Daniel Cohn-Bendit, o Dany le Rouge, para surpresa dos pais e furor de Charles de Gaulle os meninos financiados pelas famílias estáveis saíam para armar barricadas e atirar paralelepípedos nos gendarmes. Embebidos de seus mestres de pensamento revolucionário antigos ou contemporâneos, de Marx e Trótski a Mao, Marcuse, Gramsci, Guevara e Debray, reviviam velhos slogans de 1789, "se queres ser feliz, enforca teu proprietário" – havia mesmo os radicalizantes, "enforca teu proprietário na tripa do último cura" –, embora no seu mundo não existissem mais esses mesquinhos exploradores do século 18, substituídos por outras engrenagens mais poderosas de trituração social. O "maio de 68" começou na França como movimento de liberação sexual e de costumes, depois conseguiu cooptar – não sem dificuldades – a desconfiada classe operária, sedenta de colocar em pauta suas reivindicações por maiores salários e melhores condições de trabalho.

O mesmo aconteceu em outros países europeus, como no Reino Unido, onde em março de 1968 havia 3 milhões de trabalhadores em greve. Na Itália, no dia 1º de março 3 mil estudantes tomaram a sede do jornal Corriere della Sera, em Milão – um emblema do conservadorismo. Pelo fim do ano, havia também na Itália 1 milhão de operários em greve. Segundo o historiador britânico Eric Hobsbawn, curiosamente era a prosperidade material do pós-guerra que estimulava tanto os estudantes como as classes trabalhadoras a "pedir mais" de uma sociedade que imaginavam mais justa, mais disposta a mudanças. Enquanto isso, nos países do leste europeu de regime comunista, a rebelião englobava um programa de reformas políticas. Em Varsóvia, os protestos realizados em março foram prontamente dominados e só tiveram como resultado o fechamento da universidade. Na então Tchecoslováquia, porém, a "Primavera de Praga", projeto de "dar uma face humana ao comunismo" eliminando seu autoritarismo, desenvolvido pelo presidente Alexander Dubcek, sofreu violenta repressão, com invasão do país pelo exército soviético, e passou à história como o registro heróico de um povo lutando por sua liberdade.

Nos Estados Unidos, desde o início da década de 1960 os movimentos civis de minorias – negros e mulheres – haviam eclodido, em uma onda progressista favorecida pela eleição do presidente John Kennedy. Após seu assassinato, em 1963, a violência se manifestou nos quebra-quebras de cidades por multidões negras que obedeciam a brados de guerra de seus líderes, como o burn, baby, burn. Em 1966, houve tumultos em 43 cidades, e nos primeiros nove meses de 67, em mais 164. O mais violento deles, em Detroit, deixou um saldo de 43 mortos, 7 mil presos, 1,3 mil construções destruídas e 277 lojas saqueadas – conforme dados revelados no livro The Unraveling of America, de Allen J. Matusow.

Contrabalançando o ódio racial do Black Power, o pastor negro Martin Luther King desenvolveu uma linha pacifista que visava à integração racial, com a obtenção racional dos direitos civis. Seu assassinato, em 4 de abril de 1968, só veio incrementar os conflitos e criar situações limítrofes em todo o país. Em junho de 1968 o irmão de John Kennedy, Robert , candidato à presidência pelo Partido Democrata, foi eliminado a tiros em Los Angeles, após vencer a eleição primária na Califórnia.

O movimento hippie americano que caracterizou a década se autodefinia em seus primórdios com a proclamação do poeta Gary Snyder, em San Francisco: "Nós somos os primatas de uma cultura desconhecida", e para muitos foi subestimado e englobado em um de seus slogans, sex, drugs and rock and roll. Apresentava, porém, uma plêiade de novos escritores e artistas, como Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs, que com seu não-conformismo e usando um estilo solto e espontâneo ajudaram a mudar o cenário cultural do país. No campo teatral, uma grande modificação de padrões se impôs durante a década de 1960, a partir de dois pólos: Nova York e San Francisco, espalhando-se depois para os países europeus e para a América Latina. O movimento hippie acabou por englobar a luta pelos direitos civis, a contestação das minorias, a liberação sexual – estimulada principalmente pela difusão da pílula anticoncepcional – e a euforia das drogas, da maconha ao LSD, de uso propalado pelo pesquisador Timothy Leary, tido pelo presidente Richard Nixon como "o homem mais perigoso do mundo".

Por volta de 1968 o movimento já ultrapassara o lirismo bem-comportado do make love, not war e endossara o grande brado pacifista que tentava pôr fim à Guerra do Vietnã, reunindo multidões cada vez maiores em "marchas pela paz" nas principais cidades americanas. Se esse objetivo não foi alcançado – a guerra só terminaria sete anos mais tarde –, as grandes passeatas tiveram pelo menos o efeito de fazer o presidente Lyndon Johnson desistir de se candidatar à reeleição.

Na América Latina, as manifestações estudantis ou populares foram exclusivamente votadas à luta contra os governos autoritários e militares. No México, confrontos nas ruas e na universidade deixaram 38 mortos. Mais tarde, um ato público na histórica Praça das Três Culturas (Tlatelolco) acabou em massacre, pois o governo, que se organizava para receber em outubro daquele ano os Jogos Olímpicos (exatamente como acontece atualmente na China) ordenou que se disparasse contra os manifestantes, matando de 200 a 300 pessoas. No Uruguai, vários enfrentamentos terminaram na decretação do estado de sítio. Na Argentina, na Colômbia e na Venezuela, o panorama era o mesmo.

Entre nós

No Brasil, se 1968 passou à história como o ano de um grande enfrentamento por parte de estudantes, intelectuais e classes trabalhadoras com as forças repressivas da ditadura militar instaurada em 1964, temos de lembrar que esse ano representou apenas a explosão de uma situação de radicalização política de ambos os lados, construída em toda a década de 1960. Elio Gaspari, em A Ditadura Envergonhada, caracteriza a década de 1960 no Brasil como "duas rodas (a da autoridade e a dos ‘aquarianos’ revolucionários) que giraram em sentido contrário, moendo uma geração e 20 anos da vida nacional", e faz o inventário de todos os atos terroristas de esquerda e de direita que vieram se alternando, disputando uma triste primazia histórica – se os militares inauguraram o ciclo quando atacaram a tiros o congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) que se realizava em julho de 1962 no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, em julho de 1966, a esquerda marxista-católica da Ação Popular (AP) já estava suficientemente fortalecida para marcar triste presença no atentado do Aeroporto de Guararapes, no Recife, com civis mortos e feridos.

O ano de 1968 foi, para nós, de batalhas, sangue, guerra declarada – em março a Ação Libertadora Nacional (ALN) de Carlos Marighella explodiu uma bomba no Consulado dos EUA em São Paulo, fazendo um ferido grave, e no Rio registrou-se "o episódio do Calabouço": um rapaz de 16 anos, Edson Luís, que almoçava no restaurante universitário assim denominado, foi morto pela polícia, transformando-se no estopim de uma grande batalha de rua entre policiais e estudantes, que teve como resultado quatro mortos – três estudantes e um PM. Em junho, dois ataques contra o governo militar foram realizados em São Paulo, comandados por ex-integrantes das Forças Armadas que haviam passado por treinamento intensivo em Havana: o primeiro , na noite do dia 24, contra o hospital militar do Cambuci, não deixou vítimas. Ao acordar, o comandante do II Exército, general Manoel Carvalho Lisboa, desafiou os revoltosos: "Atacaram um hospital, agora que venham atacar o meu quartel" – que ficava em ponto superprotegido, no Ibirapuera. Dois dias mais tarde, na madrugada de 26, novo ataque terrorista, desta vez contra o próprio quartel-general do Ibirapuera, causando a morte de um soldado de 18 anos que estava de sentinela e ferimentos em seis outros militares. No mesmo dia, horas mais tarde, realizava-se no Rio de Janeiro a pacífica e bem-organizada Passeata dos Cem Mil , que reuniu intelectuais, estudantes e trabalhadores em demonstração contra o governo militar. Durante o ano de 1968 registraram-se no Rio 20 atentados terroristas de direita, com a participação de militares, e foi desencadeada uma grande ação repressiva a espetáculos teatrais, atores, escritores e artistas em geral, em todo o país.

Em 2 de outubro, a Batalha da Rua Maria Antônia opôs estudantes do Mackenzie, membros do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), aos da Universidade de São Paulo (USP). Durou o dia inteiro, resultou no incêndio da histórica Faculdade de Filosofia da USP e na morte de um secundarista. Foi simultânea a atentados cometidos pelo líder comunista Carlos Marighella. No dia 12 de outubro a polícia prenderia 920 jovens reunidos no 30º congresso da UNE em Ibiúna (SP), desmontando a organização estudantil – segundo depoimento de um ex-militante, feito oito anos mais tarde (in Elio Gaspari, obra citada), o evento teria sido denunciado pelos próprios comandantes terroristas, "para que todos fossem presos" e não tivessem outra opção senão a clandestinidade e a luta armada. Zuenir Ventura, ouvindo ex-participantes, confirma que "Ibiúna teria funcionado um pouco como um laboratório da guerrilha, como provavelmente desejava Carlos Marighella". Nos anos seguintes, na guerrilha do Araguaia, morreram 156 jovens, universitários e secundaristas, 19 dos quais saídos do congresso de Ibiúna.

Na sinistra sexta-feira 13 de dezembro de 1968 foi decretado o ato institucional número 5, que fez definitivamente ficar para trás um mundo onde ainda eram possíveis passeatas, irreverências, tropicalismos, festivais, cabelos compridos e sexo livre, substituindo-o por uma sombria realidade de torturas, prisões arbitrárias, execuções, exílio e desaparecimentos.

Quadragésimo aniversário

A geração 68 ainda está presente em todos os setores da vida pública brasileira. Mas certamente a visão que aqueles jovens tinham do mundo – bem como a nossa deles – não pode mais ser unívoca e ingênua. Porque 1968 talvez tenha sido realmente o último ano em que foi possível ser ingênuo. Ou sonhar ilimitadamente com uma utopia que vestia formas bem definidas e tão rígidas como a ditadura que pretendia derrubar. A professora e crítica literária Heloísa Buarque de Hollanda diz, em depoimento a Zuenir: "68 deu para a gente uma vontade quase obsessiva de que as coisas acontecessem e, sobretudo, mudassem". Mas acha que "essa atitude prepotente e intolerante dos anos 1960 e da geração 68, dona da verdade, felizmente acabou", e afirma a vitalidade atual de um novo tipo de cultura que reapresenta a velha energia, mas reciclada – a "cultura da periferia", dos "excluídos da globalização".

Caetano Veloso, autor e intérprete de canções que incomodaram muito os militares, como Soy Loco por ti, América, de Gilberto Gil e Capinan, feita em homenagem a Guevara, não hesita em dizer: "Não tenho de Guevara a imagem heróica que tinha na época [...] Mas, sob a ditadura militar brasileira, homenageá-lo num hino protobolivariano era desafiar a opressão estabelecida". Confessa que não pensa mais que "tudo é política" e diz que faz um esforço "para descontaminar meus gestos íntimos da natureza de mensagem ideológica".

Vai por aí a maioria dos depoimentos que nos vêm sendo dados em livros, jornais, na TV e até em filmes. Como em Hércules 56 , de Sílvio Da-Rin, que tira seu título do avião da Força Aérea Brasileira (FAB) que conduziu ao exílio no México os implicados no seqüestro, em 1969, do embaixador americano no Rio de Janeiro, Charles Elbrick. Os nove guerrilheiros vivos ainda estão admirados de sua audácia – não sem razão. Franklin Martins, ex-militante e hoje titular da Secretaria de Comunicação Social do governo Lula, põe o dedo em uma ferida, a questão da validade da "luta armada" organizada no país após 1968, e confessa: "Acho que, do ponto de vista político, naquelas condições ela não contribuiu para fortalecer a resistência contra a ditadura. Foi um erro que cometi, estando do lado certo". Mas acha que seria pior ter ficado indiferente e omisso.

Em entrevista incluída no livro Histórias do Poder (vol. I), organizado por Alberto Dines, Florestan Fernandes Jr. e Nelma Salomão, o coronel Jarbas Passarinho, que foi várias vezes ministro dos governos ditatoriais, enfatiza que na realidade depois do golpe os militares "só queriam promover uma intervenção rápida e incisiva no país". Na sua opinião, a provocação da esquerda, a organização da subversão e a guerrilha do Araguaia foram causas atuantes da prorrogação do estado de exceção. Ou, antes, o pretexto. O que também José Serra, saído da Ação Popular marxista-católica, confirma, falando da radicalização da classe média e do establishment militar, assombrados pela "idéia de que havia um perigo subversivo que crescia em progressão geométrica, em vez de crescer em progressão aritmética, que é o que acontecia de fato – muito mais lentamente do que se poderia supor".

Há um sentimento generalizado de que os jovens das duas gerações pós-68 deixaram de se preocupar com política, enrolaram suas bandeiras, murchos, e se tornaram conformistas, medíocres – nada heróicos. Em vez de querer modificar o mundo, os yuppies e subseqüentes estão mais interessados em adquirir status, corpo sarado, camisas de grife, motos endiabradas, e em endeusar o prazer, os esportes radicais, as drogas.

"O sonho acabou", disse John Lennon, ou melhor, cantou, em 1972. Mas isso não é bem verdade. Se essa superficialidade toda houvesse tomado realmente conta da cena, por certo monsieur Sarkozy e outros tantos não estariam de cenho franzido caçando o "espírito de 68" que ainda lhes tira o sono. Fato é que, por detrás de todo o delírio fosforescente do mundo midiático, persistem os "idealistas" de sempre, os "engajados", os "sonhadores" – os que morrem defendendo uma floresta, ou que passam uma vida em pesquisas, em estudos, em obras sociais, cada vez mais desligados de arregimentações espúrias e partidos. A grande agitação que tomou conta do mundo após a 2ª Guerra, o anseio de liberdade dos povos – a revolution of rising expectations inaugurada em outro ano fundamental na história da humanidade, o de 1945 –, a consciência dos problemas ecológicos que o mundo enfrenta, a luta das minorias pelos seus direitos, tudo isso prossegue, sob novas formas.
Revista Problemas Brasileiros

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