quarta-feira, 22 de junho de 2022

Indígenas em contexto urbano


Exposição em escolas abre a possibilidade para que alunos revelem ancestralidade sem receio de discriminação e com sentimento positivo de identificação





O ensino da temática indígena nas escolas é uma questão delicada, mesmo em locais onde estas populações parecem estar bem distantes. Minhas reflexões sobre o assunto se iniciaram em 2005, quando lecionava em São João de Meriti, cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro. Eu tinha um aluno que era apelidado de “Japa” por seus colegas devido aos seus olhos puxados. Ele, na verdade, tinha origem indígena, mas preferia manter esta identidade escondida. Anos mais tarde, cursando o mestrado profissional em ensino de história, decidi desenvolver um material didático que atendesse a lei 11.645/08, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura indígena em todas as escolas do ensino básico. Foi assim que tive a oportunidade de entender que a história do menino dos olhos puxados (ou amendoados) não era tão incomum quanto parecia, mesmo em grandes centros urbanos como o Rio de Janeiro e municípios vizinhos.

A presença de indígenas em cidades ainda gera muito estranhamento, tendo em vista a constante reprodução de estereótipos na mídia, na literatura e até mesmo nas escolas. A esta população atrelam exclusivamente um determinado modo de viver, como o de habitar nas florestas. Estereótipos e preconceitos associados aos povos indígenas partem de concepções evolucionistas e eurocêntricas, que interpretam as sociedades a partir de uma escala hierárquica onde os povos originários estariam nos primeiros estágios evolutivos. A ideia de aculturação, que entende que um povo supostamente inferior é assimilado por outro supostamente superior, também reforça a dificuldade de compreensão de indígenas vivendo nas cidades, convivendo junto do restante da sociedade brasileira sem abandonar suas identidades étnicas.


Presença nas cidades

Cabe destacar que a presença de indígenas em cidades é anterior à chegada de Colombo e Cabral nas Américas. Lembremos que fica no Peru o sítio arqueológico de Caral Supe, a cidade mais antiga já conhecida do continente, contemporânea das civilizações do Egito Antigo e da Mesopotâmia. No Brasil, indígenas sempre estiveram nas cidades desde a criação dos primeiros assentamentos urbanos. No Rio de Janeiro, foram fundamentais na defesa da cidade, além de serem mão de obra na realização de obras públicas, entre elas o Aqueduto da Carioca, atualmente um dos mais conhecidos cartões postais da cidade, os Arcos da Lapa.

Do início da colonização portuguesa aos dias de hoje, diversas fontes comprovam que indígenas nunca deixaram de estar presentes nos centros urbanos. De acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, o Brasil possui 817.963 indígenas autodeclarados, dos quais 315.180 residem nas cidades. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, 12.037 pessoas se autodeclararam indígenas. Na escola onde trabalhava durante o mestrado, na cidade de Duque de Caxias, a questão indígena se mostrou presente não só no nome do bairro onde está localizada, Parque Capivari, que na língua tupi significa rio das capivaras. Em uma pesquisa que realizei entre os alunos do segundo segmento do ensino fundamental, 51% se declararam descendentes indígenas, sendo que vários afirmaram que eram filhos, netos ou bisnetos de indígenas.


Conexão com a realidade

A partir desta realidade invisível das escolas públicas da região metropolitana do Rio de Janeiro, entendi a necessidade de não só ensinar sobre a diversidade e a legitimidade das diferenças, como de combater preconceitos e estereótipos no que se refere ao ensino das populações indígenas. Também era importante estar atenta à possibilidade da existência de alunos indígenas ou descendentes nas salas de aula, e ajudá-los no reforço e recriação de suas identidades étnicas, a fim de fortalecê-los e auxiliá-los no enfrentamento das diversas violências sofridas por indígenas no Brasil, seja nas cidades ou nas aldeias.

Pensando nisso, criei uma exposição itinerante composta de cinco banners, que versam sobre indígenas nas cidades. Inspirada em um seminário chamado ‘Somos indígenas, mas não somos invisíveis’, organizado pelo Instituto dos Saberes dos Povos Originários Aldeia Jacutinga, uma instituição indígena de Duque de Caxias que tem entre suas missões promover a cultura indígena na cidade, a exposição tem como objetivo dar visibilidade as populações indígenas na cidade e combater preconceitos.




Os indígenas são retratados na exposição em vários momentos e situações. Na alusão ao passado, temos a reprodução das pranchas, de autoria do pintor francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), que mostram as caboclas lavadeiras no bairro do Catete e o índio guarani que servia de soldado de infantaria no Rio de Janeiro. No presente, aparecem em instituições indígenas que atuam na região metropolitana do Rio de Janeiro, como a Aldeia Maracanã, a Aldeia Jacutinga e o grupo Sementes da Terra, por exemplo. Também são retratados momentos em que estão “invisíveis” nas cidades – trabalhando como professores, pedreiros, ou simplesmente passeando – e outros em que estão expondo ou recriando suas identidades, promovendo encontros, palestras, cantando, dançando ou fazendo suas pinturas corporais.

Os resultados desta exposição nas escolas por onde passou sempre foram positivos, possibilitando um diálogo produtivo entre os alunos sobre a proximidade das populações indígenas. Muitos estudantes se mostraram surpresos com imagens de indígenas no cotidiano da cidade e passaram a entender que para ser indígena não precisa morar em aldeia, estar pintado e usar adereços de pena. Outros comentaram que conheciam indígenas e relataram as diferenças e semelhanças que viam entre indígenas e não indígenas. Por fim, a exposição abriu a possibilidade para que alguns alunos falassem sem medo de discriminação sobre sua ancestralidade, possibilitando reforçar um sentimento de identificação positiva nestes jovens, e assim contribuir para combater o etnocídio das populações indígenas que chegam às cidades.



Thais Elisa Silveira
ProfHistória/Uerj
Orientadora: Márcia de Almeida Gonçalves
*Este artigo é resultante de tese premiada no Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória)
Revista Ciência Hoje

O mito da fênix e a combustão espontânea



Apesar de parecer mágica, a capacidade de se incendiar dessa ave mitológica conhecida por renascer das próprias cinzas é um fenômeno que pode acontecer em certas situações no mundo real





A fênix é uma ave mitológica, dotada de diversos poderes e cercada por muitos mistérios e histórias. Muito presente em nossa cultura atual, a fênix é conhecida por meio das histórias de ficção (livros, filmes, games e séries). Mas não pense que esse pássaro é uma criação moderna.


A garça de Heron, maior espécie de garça que já passou pela Terra, serviu de inspiração para o surgimento de Benu, um ser mitológico do Egito Antigo CRÉDITO: WIKIPEDIA


Há cerca de 5 mil anos, a região que hoje é conhecida como Emirados Árabes Unidos abrigava a maior espécie de garça que já passou pela Terra: a garça de Heron (também chamada pelo nome científico de Ardea bennuides). Acredita-se que essa garça serviu de inspiração para o surgimento de Benu, um ser mitológico do Egito Antigo associado à alma do deus do Sol, Rá. Essa ave sagrada também era vista como símbolo do renascimento (o que também a ligava ao deus Osíris), pois se acreditava que, a cada 500 anos, ela era capaz de se consumir em chamas e renascer das próprias cinzas.

Posteriormente, já na Grécia Antiga, surgiram histórias de um pássaro com propriedades muito semelhantes a Benu e que, na mitologia grega, recebeu o nome de fênix. Embora haja contestações



sobre a real origem desse ser mitológico, foram muitas as civilizações que cultuaram animais análogos a essa ave – ou outros pássaros com habilidades mágicas –, como os chineses, árabes, persas, entre outros povos.

Por meio das histórias orais e escritas, o mito da fênix foi se propagando ao longo dos séculos. E podemos dizer que, dentre todas as histórias de pássaros mágicos, essa foi o que mais criou raízes no imaginário popular ocidental.


A fênix na cultura pop

Muitas crianças e jovens tiveram um importante contato com a fênix por meio do universo de Harry Potter. A franquia de enorme sucesso, tanto no cinema quanto na literatura, nos apresenta a personagem Fawkes, uma fênix de enorme inteligência e lealdade que acompanhava o diretor da escola de magia de Hogwarts, Alvo Dumbledore.




Nos filmes do universo de Harry Potter, a fênix Fawkes acompanhava o diretor da escola de magia de Hogwarts, Alvo Dumbledore CRÉDITO: DIVULGAÇÃO



O primeiro contato que o jovem Harry Potter teve com Fawkes foi justamente no dia de sua queima. Em Harry Potter e a Câmara Secreta, o bruxo visita o escritório de Dumbledore e, em dado momento, quando ele se aproxima da ave (visivelmente velha e cansada), ela simplesmente se acende em chamas e é completamente consumida pelo fogo. O diretor acalma Harry, explicando que Fawkes é uma fênix e que já estava na hora de ela se incendiar para nascer novamente. A cena termina com uma bebê Fawkes nascendo das próprias cinzas.

Depois desse dia, a fênix participou de muitos momentos importantes da saga. Foi ela quem levou a espada da Grifinória para ajudar Harry na luta contra o monstro basilisco na Câmara Secreta e, depois, derramou suas lágrimas sobre o jovem bruxo para curá-lo de ferimentos graves e ainda o carregou, junto com seus amigos, de volta para o castelo, demonstrando seus poderes de cura e de enorme força. Fawkes também auxiliou Dumbledore quando o diretor fugia dos funcionários do Ministério da Magia em Harry Potter e a Ordem da Fênix, dentre outras aparições.

O filme mais recente da franquia, Animais fantásticos: os segredos de Dumbledore, que tem como foco o passado do diretor da escola, traz em seus cartazes de divulgação uma fênix em chamas. Seria essa fênix a própria Fawkes ou trata-se de outra fênix? Só mesmo assistindo ao filme para descobrir!


A ciência da combustão espontânea

O processo de queima – ou combustão – nada mais é do que uma reação química decorrente do encontro de três elementos: um combustível (qualquer material oxidável, ou seja, capaz de reagir com o oxigênio e pegar fogo); um comburente (geralmente, o oxigênio); e uma fonte de ignição (por exemplo, uma faísca, que fornece a energia necessária para a reação ocorrer). Se algum desses três elementos não está presente, a queima não ocorre.

A combustão é uma reação fundamental para a manutenção da vida humana no planeta e teve seu marco histórico de origem datado por pesquisas arqueológicas em cerca de 7 mil anos antes de Cristo, quando os povos antigos começaram a produzir fogo, possibilitando diversos avanços tecnológicos.

Você já acendeu uma fogueira ou viu alguém fazendo isso? Para esse processo, podemos usar um pedaço de madeira, que funcionará como combustível (ou seja, irá queimar). Para facilitar a queima, podemos jogar sobre a madeira um líquido inflamável (como o álcool). O oxigênio irá participar dessa reação química fazendo o papel de comburente. E você ainda precisa de uma fonte de energia, como a chama de um fósforo ou a faísca de um isqueiro. Se a madeira queimar por completo (ou seja, o combustível se esgotar), a combustão se interrompe. Se você cobrir essa fogueira, impedindo a entrada de mais oxigênio, a fogueira se apaga por falta de comburente.



A partir dessas informações, vamos pensar na combustão da fênix. O combustível dessa reação é a própria fênix (tanto que quando ela se torna somente cinzas, a chama acaba). O comburente dessa reação é o próprio oxigênio. Mas e a fonte de energia externa, a ignição? Como é possível um objeto pegar fogo sem receber nenhuma energia?

Apesar de parecer realmente mágica, a combustão espontânea é um fenômeno real. O fato de não haver uma fonte externa visível de energia não significa que ela não exista. A temperatura de um corpo está diretamente associada à energia que esse corpo tem. Isso significa que um corpo quente (em alta temperatura) é um corpo com mais energia do que um corpo mais frio. Portanto, embora não seja algo muito comum, alguns materiais podem pegar fogo espontaneamente apenas com o seu próprio calor.

Existe uma propriedade denominada ‘ponto de ignição’, que é a temperatura mínima para a ocorrência de uma combustão espontânea, sem a presença de uma fonte externa de ignição (como uma faísca).

Para que a combustão aconteça, é indispensável a presença de três elementos: o combustível (material que pega fogo), o comburente (geralmente o oxigênio) e o calor que inicia a reação



O ponto de ignição do álcool, por exemplo, é 363 ºC. Isso significa que, se por alguma razão, o álcool for aquecido até essa temperatura, ele pegará fogo, mesmo sem uma faísca para acendê-lo.

Já o fósforo branco (usado para fabricação de fogos de artifício e bombas de fumaça) possui ponto de ignição de apenas 34 ºC, uma temperatura extremamente baixa. Por ser capaz de se inflamar espontaneamente, mesmo em temperatura ambiente, esse sólido costuma ser armazenado em querosene, pois essa substância não possui oxigênio em sua composição, impedindo que o fósforo entre em combustão.

Materiais como carvão, feno, algodão, filmes antigos, estrume de vaca e até grãos de pistache possuem pontos de ignição baixos o suficiente para sofrerem esse tipo de combustão. Um exemplo de combustão espontânea ocorre em alguns biomas, como o pantanal e o cerrado. Em períodos de seca, incêndios pontuais podem acontecer.

O que podemos concluir é que, se a fênix não for composta por feno ou outro material de baixo ponto de ignição, dificilmente ela seria capaz de entrar em combustão espontânea. Mas podemos levantar uma hipótese final.

Diferentemente dos répteis, anfíbios e peixes, as aves e os mamíferos são endotérmicos (também chamados de ‘animais de sangue quente’), ou seja, são capazes de controlar a própria temperatura corporal e manter o corpo aquecido mesmo em ambientes mais frios. Talvez a fênix seja capaz de aquecer o próprio corpo a uma temperatura tão grande que a leve à combustão. Por se tratar de um pássaro mitológico, infelizmente não podemos encontrar um desses no mundo real e estudá-lo. Portanto, só nos resta fazer especulações e nos maravilharmos com suas belas aparições nos cinemas.


Frans Wagner
Graduando em química e mediador do Centro de Ciências,
Universidade Federal de Juiz de Fora

Ingrid Gerdi Oppe
Mestranda em educação em química,
Universidade Federal de Juiz de Fora

Lucas Mascarenhas de Miranda
Físico e divulgador de ciência no canal Ciência Nerd
Universidade Federal de Juiz de Fora
Revista Ciência Hoje

terça-feira, 14 de junho de 2022

CONFERÊNCIA DE BERLIM E O MITO DA PARTILHA DA ÁFRICA


A Conferência de Berlim é um evento histórico muito mencionado em estudos sobre o imperialismo do século 19. Em sua grande maioria, esses trabalhos apresentam o encontro como o momento no qual as nações da Europa se reuniram para, em 1885, partilhar entre si o continente africano. Mas documentos da época indicam que a divisão da África não estava em pauta. Assim, é preciso identificar quais foram as deliberações dessa reunião e por que ela ficou conhecida como a partilha da África.




A conquista do continente africano por países da Europa durante o imperialismo foi um processo que durou décadas e no qual regiões africanas foram progressivamente colocadas sob o controle direto ou indireto de alguma nação europeia. Mas pode-se dizer que a maior parte dessa divisão da África ocorreu entre a segunda metade do século 19 e o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914 – com especial aceleração a partir da década de 1880.

Nesse período, foi realizada, entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro do ano seguinte, a Conferência de Berlim. Esse evento diplomático, que envolveu nações da Europa, além de representantes dos EUA e do Império Otomano, está inserido em um contexto de intensificação das disputas imperialistas por regiões estratégicas do continente africano.

A ‘corrida para a África’ – especialmente, a partir das duas últimas décadas do século 19 – foi marcada por interesse crescente pelo rio Congo, e determinados acontecimentos impulsionaram as disputas por essa região.

De modo geral, até a década de 1880, apenas as regiões da costa do continente africano haviam sido ocupadas pelos europeus (figura 1). Um dos fatores que explicam a ausência europeia no interior da África é o desconhecimento ocidental em relação às condições físicas e humanas das regiões além do litoral.

De modo geral, até a década de 1880, apenas as regiões da costa do continente africano haviam sido ocupadas pelos europeus



Figura 1. Mapa da África de 1886 – ano seguinte ao encerramento da Conferência de Berlim –, com a delimitação da bacia do Congo e das possessões europeias – a maioria delas no litoral africano
CRÉDITO: WWW.RAREMAPS.COM/ GALLERY/DETAIL/53964/FREE-CONGO-STATE-NOUVELLE-CARTE-DE-LAFRIQUE CONTENANT-TO-DOSSERAY



Mesmo Portugal, que, pelo menos, desde o século 15 manteve contato com populações africanas ao sul do deserto do Saara, esteve, por séculos, praticamente restrito às regiões costeiras, com localidades pontuais no interior em que tinha um pequeno aparato administrativo. Apesar de tênue e frágil, essa presença na África antes do século 19 foi usada como argumento pelos portugueses para reivindicar importantes regiões em disputa durante o imperialismo.

Algumas das principais vias de acesso ao interior do continente africano eram seus rios, e, nesse sentido, as redes fluviais eram objeto de especial interesse por parte das nações europeias na corrida imperialista. Partindo desse princípio, eventos ocorridos a partir das últimas décadas do século 19 são considerados, por muitos historiadores, fundamentais para explicar a rivalidade da qual foi alvo a região central da África – mais especificamente, a região da bacia do rio Congo.

Em primeiro lugar, em 1880, Pierre Savorgnan de Brazza (1852-1905), explorador de origem italiana vinculado à Marinha francesa, assinou, com o rei Makoko (1820-1892), chefe dos batekês, acordo no qual o soberano africano concordava em ceder seu território à França. A assinatura desse tipo de tratado entre europeus e africanos não era novidade, mas, à diferença daqueles firmados anteriormente, esse foi ratificado pelo governo da França, em 22 de novembro de 1882, o que pôs em alerta as demais nações da Europa em relação à importância dada a ele pelo estado francês.

Bem antes da assinatura desse tratado – desde, pelo menos, a Conferência Geográfica de Bruxelas, em 1876 –, o rei Leopoldo II (1835-1909), da Bélgica, já demonstrava interesse em obter uma colônia em território africano. Agindo em seu nome, o famoso explorador britânico Henry Morton Stanley (1841-1904) assinou centenas de tratados com chefes africanos. Uma consequência da assinatura desses acordos foi o fato de que “em 1883, Leopoldo havia claramente passado à frente da França na corrida pelo Congo”, nas palavras do historiador holandês Henk Wesseling (1937-2018), autor do livro Dividir para dominar: a partilha da África 1880-1914.

Em 1884, Portugal obteve dos britânicos o reconhecimento de sua soberania sobre todo o estuário do Congo, no que ficou conhecido como tratado anglo-português. Alvo de críticas e protestos, esse acordo não chegou a ser ratificado pelo parlamento britânico, mas sinalizou quais eram reivindicações lusas em relação ao que os portugueses consideravam seus direitos históricos à embocadura do Congo e chamou a atenção para os acordos bilaterais que estavam sendo feitos entre as nações europeias.

Diante desse panorama de crescentes iniciativas na região central da África, o chanceler alemão Otto von Bismarck (1815-1898) – que, inicialmente, hesitou em inserir a Alemanha no grupo de países que disputavam territórios coloniais – decidiu, em conjunto com o governo francês, organizar uma conferência em Berlim para tratar de assuntos relevantes naquele momento – em especial, para definir as formas de regulação das navegações fluviais.


As resoluções da conferência

Alemanha e França, de forma conjunta, decidiram previamente quais seriam os três pontos que iriam nortear os debates em Berlim: a liberdade de comércio na bacia e no estuário do rio Congo; a liberdade de navegação nos rios Congo e Níger; e as formalidades que deveriam ser cumpridas para que novas ocupações na costa da África fossem consideradas efetivas.

Pela ata geral da Conferência de Berlim, redigida ao final do encontro, ficou estabelecido que as embarcações com fins comerciais, sem distinção de nacionalidade, teriam livre acesso ao território compreendido pela bacia do Congo e seus afluentes. Essa determinação teve por objetivo impedir a criação de monopólios ao longo de um dos principais rios da África e garantir que as mercadorias que circulassem pela região estivessem isentas de taxas de entrada.

A ata também consagrou o princípio de liberdade de navegação no rio Congo e Níger. Dessa forma, a circulação de navios comerciais ou de transporte de passageiros permaneceria inteiramente livre. Mas, apesar de estabelecer para os dois rios as mesmas regras de liberdade, havia uma diferença fundamental entre eles. Para o Congo, seria instituída uma comissão internacional encarregada de assegurar o cumprimento das determinações da ata. Para o Níger, onde o Reino Unido já tinha domínio de regiões antes da conferência, não haveria um órgão internacional responsável por garantir a execução das decisões do encontro.

Os representantes europeus reunidos em Berlim também definiram as regras de legitimação para as futuras anexações nas costas do continente africano. A partir daquele momento, para que novas possessões ou protetorados fossem considerados efetivos, seria necessário o envio de notificação aos demais países signatários da ata, para viabilizar possíveis reivindicações.

Os representantes europeus reunidos em Berlim também definiram as regras de legitimação para as futuras anexações nas costas do continente africano



Ponto que vale ser destacado sobre as futuras anexações é a delimitação espacial feita pelos representantes europeus. O artigo da ata referente a elas trata apenas das regiões costeiras do continente africano. Isso indica que as deliberações sobre futuras ocupações não teriam validade para todo o continente, deixando de fora as regiões do interior. Esse fato não só refuta as interpretações que atribuem à Conferência de Berlim o papel de partilhar o continente africano, mas também põe em perspectiva as análises segundo as quais esse encontro teria criado as bases para sua futura divisão, pois os critérios de tomada de posse definidos em Berlim não valeriam para todo o continente.

O tráfico de escravos – outro tema debatido pelos delegados presentes em Berlim – aparece de forma superficial no documento final do encontro, no qual apenas um parágrafo é dedicado à questão. Segundo o artigo 9 da ata geral, as nações que exerciam ou passassem a exercer soberania ou influência nos territórios que compreendiam a bacia convencional do rio Congo deveriam proibir que essas regiões fossem usadas como mercado ou via de trânsito para o tráfico de escravos.

O tráfico de escravos – outro tema debatido pelos delegados presentes em Berlim – aparece de forma superficial no documento final do encontro, no qual apenas um parágrafo é dedicado à questão


Elemento que chama a atenção naquele artigo é a restrição do alcance de sua aplicação. A proibição do tráfico – pelo menos, a partir das determinações da ata da conferência – não seria extensiva a todo território africano, mas ficava limitada ao entorno do rio Congo. Nesse sentido, o pouco espaço reservado a esse tema está em desacordo com o lugar que a questão humanitária ocupava na retórica imperialista, sendo esta uma das principais justificativas para as incursões coloniais.


A origem do mito

Diante da discrepância entre a forma como a Conferência de Berlim é apresentada em materiais didáticos – e, até mesmo, em bibliografia especializada sobre o imperialismo – e o que de fato ficou estabelecido a partir do encontro, cabe questionar qual teria sido a origem do mito da partilha de Berlim. Nesse sentido, no livro A partilha da África Negra, o historiador francês Henri Brunschwig (1904-1989) apresenta hipóteses para o surgimento das interpretações equivocadas sobre a conferência.

A primeira constatação feita pelo autor se refere ao caráter tardio dessa atribuição de significado. Isso porque, até por volta da Primeira Guerra Mundial, os historiadores não colocavam a Conferência de Berlim em posição de destaque entre os acontecimentos mais significativos do imperialismo. Mesmo participantes do encontro diplomático, como o britânico Edward Malet (1837-1908), manifestaram descrença quanto à possibilidade de a ata alterar a situação preexistente em relação ao continente africano.

A partir do início do século passado, começaram a surgir, na França, trabalhos sobre o período imperialista segundo os quais a Conferência de Berlim teria consagrado a doutrina do hinterland. Com base nessa doutrina, a posse de um território no litoral dava direito às regiões do interior a determinada nação, a qual poderia recuar suas fronteiras de forma indefinida, até se deparar com uma possessão, zona de influência ou um estado vizinho.

A partir do início do século passado, começaram a surgir, na França, trabalhos sobre o período imperialista segundo os quais a Conferência de Berlim teria consagrado a doutrina do hinterland


Se aplicada ao continente africano, a doutrina do hinterland garantiria, a nações europeias, direito de propriedade sobre regiões do interior do continente, com base na posse de regiões do litoral – este último já praticamente ocupado por europeus, quando a conferência foi realizada. Portanto, na prática, essa doutrina poderia significar a divisão da África. Contudo, não há qualquer referência a esse princípio na ata geral de Berlim, o que torna equivocado dizer que a ocupação do litoral definiu a partilha do interior do continente.

Outro elemento que contribuiu para a consolidação da imagem da conferência foram as representações imagéticas produzidas ao longo do evento. Em 1884, o jornal francês L’Illustration publicou ilustração em que os representantes europeus estavam dispostos ao longo de uma mesa com um mapa da África ao fundo (figura 2). Esse tipo de imagem favorece a leitura de que todo o continente africano estava em debate na conferência e não apenas a região do Congo.

Outro elemento que contribuiu para a consolidação da imagem da conferência foram as representações imagéticas produzidas ao longo do evento



Figura 2. Ilustração da Conferência de Berlim publicada em 1884 pelo jornal francês L’Illustration, com o título A questão do Congo
CRÉDITO:MARY EVANS / IMAGEPLUS



Em janeiro do ano seguinte, o mesmo periódico veiculou caricatura de Bismarck repartindo a África, como se esta fosse um bolo (figura 3), o que reforça a ideia de uma divisão sendo feita no encontro. Essa caricatura pode sugerir que, já em 1885, a conferência era lida como um tipo de partilha, ainda que, para confirmar essa hipótese, seja preciso estudo mais aprofundado das circunstâncias de sua elaboração.



Figura 3. Caricatura do jornal L’Illustration, de janeiro de 1885, com o chanceler alemão Bismarck ‘repartindo o bolo africano’ e com os dizeres ‘a cada um sua parte, se formos bem sábios’
CRÉDITO:MARY EVANS / IMAGEPLUS



Mesmo que seja possível sugerir caminhos que levaram à construção do mito da Conferência de Berlim, é difícil definir qual tenha sido o elemento determinante para que o evento ficasse conhecido como a partilha da África entre os países europeus. De qualquer forma, essa interpretação continua sendo erroneamente reproduzida em materiais sobre o imperialismo do século 19.

Considerando a importância atribuída à conferência a posteriori, é possível que grande parte do interesse que ela tenha suscitado esteja justamente relacionada à alteração de sentido pelo qual o evento passou ao longo do tempo.

Aline Barbosa Pereira Mariano
Programa de Pós-graduação em História,
Universidade Federal Fluminense
Revista Ciência Hoje

segunda-feira, 13 de junho de 2022

O MITO DO FEMININO: DA SANTIDADE À ILUSÃO DEMONÍACA



O parlamento regional da Catalunha aprovou, em janeiro de 2022, uma resolução para “limpar o nome” de mais de 700 mulheres torturadas e executadas por bruxaria, entre os séculos 15 e 18, na região. Decisões similares foram tomadas em países como Escócia, Noruega e Suíça. Grupos por trás desse movimento afirmam que as dezenas de milhares de mulheres condenadas à morte por bruxaria em toda a Europa foram vítimas de perseguição misógina, num fenômeno que não pode ser dissociado da divisão binária dos gêneros, que determina papéis sociais de acordo com o sexo biológico dos indivíduos.


CRÉDITO: INTERVENÇÃO DE CLAUDIA FLEURY SOBRE ILUSTRAÇÃO DE LE LIVRE DE LA CITÉ DES DAMES




Séculos separam a caça às bruxas, na Idade Moderna, das críticas contemporâneas à divisão binária dos gêneros, que afirma que sexo biológico é o que define os papéis sociais de cada indivíduo. O massacre daquelas milhares de mulheres, entre os séculos 15 e 18, no entanto, está profundamente relacionado às questões hoje defendidas por feministas e por outras minorias sexuais a respeito de gênero.

Para entender essa conexão, é preciso fazer um percurso a até 400, 500 anos atrás, mas começando pelos debates atuais.

Uma das maiores conquistas dos movimentos feministas e LGBTQIA+ é entender que os gêneros se constituem em processos sociais e culturais, e não podem ser reduzidos a homem e mulher heterossexuais e cisgênero. Essa percepção contemporânea das relações de gênero, reconhecida em diversas políticas públicas, se consolidou também no campo acadêmico a partir das décadas de 1970 e 1980, com a contribuição da escritora francesa Monique Wittig (1935-2003), da historiadora Joan Scott e da filósofa Judith Butler, estas últimas estadunidenses, entre outras estudiosas.


Questão de gênero

A tradicional divisão binária dos sexos legitimou historicamente a separação dos papéis sociais desempenhados por homens e mulheres. No século 19, no âmbito dos saberes médicos e jurídicos, consolidou-se uma visão a respeito das mulheres que as confinava ao lar, aos cuidados com os filhos e com a própria aparência. Essa representação, no entanto, se ajustava apenas ao ambiente feminino burguês ou de elite. As mulheres das classes menos privilegiadas continuavam a trabalhar fora como meio de subsistência, equilibrando essas atividades precariamente com a criação dos próprios filhos.


A tradicional divisão binária dos sexos legitimou historicamente a separação dos papéis sociais desempenhados por homens e mulheres



Ainda que seja alvo de críticas, a representação da mulher que se consolidou no século 19 continua ecoando até dias recentes. Um exemplo é a reportagem publicada na revista Veja em 18 de abril de 2016, que teve forte repercussão. Com o título de “Marcela Temer: bela, recatada e do ‘lar’”, uma jornalista traçou um perfil da ex-primeira dama muito próximo à perspectiva de 200 anos atrás. É significativo refletir como esse estereótipo sobre a mulher é apresentado como um complemento em relação à imagem do homem público por excelência, o presidente da República. Para finalizar a comparação entre imagens ainda atuais do masculino e do feminino, não deixa de ser expressivo que alguns dicionários registrem a definição de “mulher pública” como prostituta.

Essa reportagem pode ser classificada como um “mito” a respeito do feminino. Conforme uma visão feminista clássica, mas ainda válida em muitos aspectos, a filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) caracterizou a produção de mitos sobre o feminino como uma constante, em diversos tipos de sociedade. De modo muito geral, a representação da mulher foi associada à reprodução, à fertilidade e, a partir daí, à maternidade e aos cuidados domésticos.


A representação da mulher foi associada à reprodução, à fertilidade e, a partir daí, à maternidade e aos cuidados domésticos



Na análise de Beauvoir, a imagem da mulher seria imanente, ligada à terra e à vida e ao efêmero. Em contraste, as imagens do masculino foram associadas à transcendência, ao que é eterno ou imutável. Daí a ligação da figura masculina às representações de Deus na cultura judaico-cristã ou aos feitos heroicos dos personagens bíblicos. Na linha dessa análise, o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) indicou que a representação do masculino se aproxima com frequência de um ideal de nobreza. Pode-se entender melhor o que quer dizer Bourdieu quando se compara, por exemplo, o prestígio que cerca a profissão do chef de cozinha ao trabalho invisível e pouco valorizado desempenhado pelas donas de casa na preparação de alimentos.


Virgem Maria e o ideal inalcançável

Essas considerações iniciais são importantes para pensar a representação dos gêneros no início do Período Moderno, entre os séculos 15 e 18. No que diz respeito às imagens produzidas sobre a mulher, não se pode esquecer a influência dos modelos cristãos. A Virgem Maria representava o ideal feminino inalcançável, que reunia, na mesma pessoa, a pureza da carne e a maternidade. Como tal, projetou-se como modelo para a mulher casada.

No fim da Idade Média e princípios do Período Moderno, as representações da Sagrada Família (Maria, José e do Menino Jesus) tornaram-se muito comuns entre os cristãos. Paralelamente, a Virgem Maria tornou-se também um paradigma de comportamento para as mulheres dedicadas à vida religiosa nos conventos. Após o Concílio de Trento (1545-1563), a Reforma Católica difundiu esses padrões junto aos fiéis, por meio de uma farta literatura devocional e da iconografia. Nas regiões protestantes, porém, a rejeição ao culto da Virgem e dos santos e o fechamento dos conventos reduziu a importância desse modelo de devoção.


O arrependimento de Madalena

Outro paradigma religioso difundido para as mulheres no Período Moderno encontra-se na imagem de Maria Madalena. Segundo a tradição cristã, após ter vivido em pecado, Madalena converteu-se, tornando-se seguidora de Jesus Cristo. O gesto de conversão dela foi proposto como caminho ideal a ser seguido pelas mulheres que haviam cometido algum tipo de pecado carnal. Prostitutas e mulheres que haviam perdido a castidade, arrependidas de suas culpas, escolhiam passar o restante dos seus dias em penitência ou no estado de matrimônio, se encontrassem algum cônjuge disposto a aceitá-las.

Dependendo das circunstâncias individuais, o modo de vida penitente poderia ser praticado em conventos ou em recolhimentos. Estes últimos constituíam estabelecimentos de reclusão feminina que funcionavam de modo mais flexível que os conventos. Nos recolhimentos, as mulheres podiam permanecer provisoriamente enclausuradas, mas as virgens consagradas a Cristo, seguidoras da vida monástica, faziam votos perpétuos de reclusão.

Segundo a literatura religiosa católica difundida no Período Moderno, o cotidiano no convento e a vida de penitente deviam ser conduzidos com práticas de mortificação corporal. Os fiéis deveriam se privar dos prazeres do corpo, praticando jejuns, observando o máximo possível o silêncio, praticando a caridade com pobres e enfermos, exercendo atividades degradantes, entre outros gestos considerados devotos.

Difundido desde os primeiros séculos do cristianismo, o ideal de renúncia sexual e de rejeição do corpo continuou a ser valorizado pela Igreja católica no Período Moderno. Sobre isso, é importante mencionar que a Igreja considerava o estado de freira como o mais perfeito para as mulheres, vindo em segundo lugar o matrimônio, em que a prática do sexo era apenas legitimada para a finalidade da concepção. Nas regiões protestantes, em contraste, o casamento se tornou praticamente a única via legítima para as mulheres. O ideal de rejeição do corpo não foi tão influente, e o próprio Martinho Lutero (1483-1546), expoente da Reforma Protestante, considerava que, no casamento, deveria haver espaço para os cônjuges buscarem algum prazer físico.


A Igreja considerava o estado de freira como o mais perfeito para as mulheres, vindo em segundo lugar o matrimônio, em que a prática do sexo era apenas legitimada para a finalidade da concepção



Além do ideal de rejeição do corpo surgido no início do cristianismo, representações de outro tipo foram associadas às mulheres no Período Moderno. Proveniente de um universo cultural ainda mais antigo, o do judaísmo, havia a tradição de que a mulher era particularmente inclinada à prática do pecado. Esse “mito” da feminilidade pode ser explicado a partir do relato bíblico da criação. Segundo o livro do Gênesis, Eva foi amaldiçoada por ter desobedecido à vontade divina, perdendo o estado de pureza em que se encontrava no Jardim do Éden.


A serviço de Deus ou do demônio?

Essa crença misógina se projetou com muita força sobre as representações da mulher em princípios do Período Moderno. No Malleus Maleficarum (O Martelo das feiticeiras), obra elaborada por Heinrich Kramer (c. 1430-1505) e James Sprenger (c. 1435-1495) em 1484, e destinada ao combate da bruxaria, a mulher é identificada com nitidez como símbolo do mal. De acordo com os inquisidores dominicanos, o delito da bruxaria se caracterizava pela realização de um pacto explícito com o demônio.

Durante o grande processo de caça às bruxas que teve seu apogeu entre os séculos 16 e 17 nas regiões do centro e do norte da Europa, as mulheres foram a maioria esmagadora das acusadas e das vítimas. Em Portugal, onde as punições ao delito da bruxaria não foram tão severas, a grande maioria dos réus era também constituída por mulheres.

As acusações de falsa santidade, lançadas pelo Santo Ofício da Inquisição contra diversas mulheres, também são reveladoras da difusão de esquemas misóginos de pensamento entre representantes do clero. Nos séculos 16 e 17, algumas experiências religiosas que apareciam com frequência entre devotas do sexo feminino – como êxtases, visões, revelações, profecias e curas milagrosas – tornaram-se objeto de grande suspeita por parte da Igreja. Segundo os agentes do Santo Ofício, muitas mulheres que alegavam manifestar as supostas graças divinas estavam, na realidade, sendo iludidas pelo demônio.


Segundo os agentes do Santo Ofício, muitas mulheres que alegavam manifestar as supostas graças divinas estavam, na realidade, sendo iludidas pelo demônio



Para justificar esse tipo de pensamento, os agentes recorriam às imagens bíblicas da maldição lançada sobre Eva, tentando mostrar que, desde o início dos tempos, a fraqueza e a inconstância caracterizavam o comportamento das mulheres. De modo significativo, as mulheres acusadas de falsa santidade eram, em sua maioria, devotas leigas que não estavam casadas nem viviam fechadas em conventos. Chamadas de beatas, estavam distantes dos estados considerados legítimos para as mulheres. Não tinham maridos nem muros que as pudessem controlar. Recebiam a supervisão de confessores ou diretores de consciência, sacerdotes que tinham por função avaliar se as experiências religiosas manifestadas pelas ditas mulheres eram de origem divina ou demoníaca.


Proibidas de pregar

Na esfera religiosa, os mitos bíblicos femininos tiveram outras repercussões no Período Moderno. Os escritos de São Paulo proibiam as mulheres de ensinar ou de fazer exposições públicas a respeito da doutrina. Em vez disso, o apóstolo recomendava que permanecessem em silêncio nos templos, e recebessem dos seus maridos instrução no recinto doméstico.

Nos séculos 16 e 17, algumas mulheres superaram essas proibições misóginas. Conforme mostraram as pesquisas da professora da Universidade de Virginia Alison Weber, mulheres como Santa Teresa de Ávila desenvolveram uma “retórica da feminilidade”. Ou seja, assumindo em seus escritos vários estereótipos de fraqueza e de incapacidade femininas – o que as tornava menos suspeitas aos olhos da Igreja – procuraram exercer um protagonismo no campo religioso, superando as expectativas tradicionais associadas ao seu sexo.


Medicina e gênero no Período Moderno

Para concluir essa breve reflexão sobre as representações femininas no Período Moderno, é importante trazer para a discussão algumas ideias do saber médico da época. A respeito da anatomia feminina, predominavam ainda ideias provenientes da Antiguidade, elaboradas por autores romanos como Galeno (c. 129-c. 217) e Plínio, o Velho (23-79). Segundo tais concepções, os fluidos ou humores pertencentes ao corpo feminino se caracterizavam pela frieza e inatividade. Em contraste, o corpo masculino revelava sempre um maior calor e atividade. Essas ideias serviam para explicar certas características presentes nos aparelhos de reprodução de homens e de mulheres. Assim, o maior calor existente no corpo masculino projetaria, para o lado externo, o pênis e os testículos, enquanto que a localização interna dos órgãos femininos de reprodução era explicada pela ausência de calor.

De acordo com a surpreendente pesquisa desenvolvida pelo historiador estadunidense Thomas Laqueur, alguns letrados do Período Moderno acreditavam que a ação do calor ou da atividade física no corpo feminino poderia levá-lo a adquirir características do corpo masculino, lançando, para o lado de fora, os órgãos sexuais internos! Portanto, para o autor, o sexo definido no momento de nascimento não era considerado, no Período Moderno, uma base inteiramente segura para a definição dos papéis de gênero.

O percurso realizado no Período Moderno traz de volta questões apresentadas pelas feministas e por outras minorias sexuais a respeito dos papéis de gênero. A relativização do elemento biológico, a reafirmação do caráter social e cultural da constituição dos gêneros, e o reconhecimento da pluralidade destes constituem elementos que pautam, na contemporaneidade, a ação política dos agentes sociais e os debates acadêmicos.


William de Souza Martins
Instituto de História
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Revista Ciência Hoje

segunda-feira, 30 de maio de 2022

A Educação Infantil na Idade Média



A Educação Infantil na Idade Média [1]

Ricardo da Costa
Prof. Adjunto de Hist. Medieval da UFES
Universidade Federal do Espírito Santo.
Home-page: www.ricardocosta.com


No Brasil, a Idade Média ainda é citada por muitos néscios como um tempo de ignorância e barbárie, um tempo vazio, um tempo em que a Igreja escondeu os conhecimentos que naufragaram com o fim do Império Romano para dominar o “povo”. Nesse movimento consciente e ideológico em direção às trevas, o clero teve como aliado principal a nobreza feudal. Juntos, nobreza e clero governaram com coturnos sinistros e malévolos todo o ocidente medieval, que permaneceu assim envolto em uma escuridão de mil anos, soterrado, amedrontado e preso a terra num trabalho servil humilhante [2] .

Quem ainda acredita piamente nesse amontoado de tolices ficará agradavelmente surpreso, espero, com o tema desse trabalho, que não poderia ser mais propício. Minhas perguntas básicas serão: existiu educação na Idade Média? E ciência? E as crianças? É incrível, mas há quase quarenta anos atrás o próprio Jacques Le Goff perguntou: “teria havido crianças no Ocidente Medieval?” [3] Seguindo a trilha deixada por Philippe Ariès [4] , ele buscou a criança na arte e não a encontrou. É verdade. Apressadamente concluiu então que a criança foi um produto da cidade e da burguesia [5] e, portanto, o mundo rural não a conheceu. Pior: a conheceu sim, mas a desprezou, marginalizando-a [6] .

Deixo claro então que minha perspectiva será bastante diferente. Responderei sim a todas àquelas perguntas, opondo-me a Jacques Le Goff e a Philippe Ariès [7] . Para provar isso, dividi minha narrativa em duas partes: primeiro, busquei a condição infantil registrada pela História na Alta Idade Média (séculos V-X) para, a seguir, tratar da estruturação das ciências que Ramon Llull (1232-1316) apresentou a seu filho Domingos quando, em um ato de puro amor paterno, escreveu um livro para ele, a Doutrina para crianças [8] .

*

Falei há pouco de amor paterno. O amor é uma forma muito profunda e especial de afeto, difícil de ser descrito, difícil de ser registrado a não ser nas emoções daqueles que o compartilham. Por isso, a História registra sempre o que se veste, onde se vive, o que se come, mas dificilmente narra como se ama, especialmente a intensidade e a forma do amor [9] . Os tipos de textos consultados pelos historiadores - as Crônicas, por exemplo - estão mais atentos aos acontecimentos importantes, aos personagens e à política. Assim, ofereceram pouco espaço para o mundo infantil, deixando muitas perguntas que não puderam ser respondidas satisfatoriamente. Por exemplo: como pais e filhos exprimiam seus carinhos, suas incompreensões? De que forma as crianças apreenderam o mundo existente? Como reagiram à escola e aos estudos?

De qualquer maneira, o fato é que, historicamente, o papel da criança sempre foi definido pelas expectativas dos adultos [10] , e esse anseio mudou bastante ao longo da história, embora a família elementar e o amor tenham existido em todas as épocas [11] . Vejamos então o caso medieval.

A primeira herança da Antigüidade não é nada boa: a vida da criança no mundo romano dependia totalmente do desejo do pai. O poder do pater familias era absoluto: um cidadão não tinha um filho, o tomava. Caso recusasse a criança - e o fato era bastante comum - ela era enjeitada. Essa prática era tão recorrente que o direito romano se preocupou com o destino delas [12] . E o que acontecia à maioria dos enjeitados? A morte [13] .

A segunda herança que a Idade Média herda da Antigüidade, a cultura bárbara, foi-nos passada especialmente por Tácito. Ele nos conta que a tradição germânica em relação às crianças era um pouco melhor que a romana. Os germanos não praticavam o infanticídio, as próprias mães amamentavam seus filhos e as crianças eram educadas sem distinção de posição social [14] . O povo germânico era composto por um conjunto de lares, com dois poderes distintos: o matriarcal, exercido no seio da família, e o patriarcal, predominante na política e na organização social [15] . No entanto, o destino das crianças naqueles clãs, como na cultura romana, também dependia da vontade paterna (direito de adoção, de renegação, de compra e venda). A criança aceita ficava aos cuidados dos parentes paternos (agnatos) e o destino dos bastardos, órfãos e abandonados era entregue aos parentes maternos, especialmente a tios e avós maternos [16] .

Dessas duas tradições culturais que se mesclaram e fizeram emergir a Idade Média, concluo que o status da criança naquelas sociedades antigas era praticamente nulo. Sua existência dependia do poder do pai: se fosse menina ou nascesse com algum problema físico, poderia ser rejeitada. Seu destino, caso sobrevivesse, era abastecer os prostíbulos de Roma e o sistema escravista [17] . Até o final da Antigüidade as crianças pobres eram abandonadas ou vendidas; as ricas enjeitadas - por causa de disputas de herança - eram entregues à própria sorte [18] .

Nesse contexto histórico-cultural é que se compreende a força e o impacto do cristianismo, que rompeu com essas duas tradições [19] . O Cristo disse:

Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus. Aquele, portanto, que se tornar pequenino como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus. (Mt 18, 1-4).

A tradição cristã abriu, portanto, uma nova perspectiva à criança, uma mudança revolucionária [20] . No entanto, foi um processo bastante lento, um processo civilizacional levado a cabo pela Igreja. Primeiro, por força das circunstâncias. Por exemplo, dos séculos V ao VIII, na Normandia, o índice de mortalidade infantil era muito elevado, 45%, e a expectativa de vida bem pequena, 30 anos [21] . À primeira vista, esses dados arqueológicos poderiam sugerir ao historiador um sentimento de descaso para com a criança: a regularidade da morte poderia criar nos espíritos de então uma apatia, um medo de se apegar a algo tão frágil que poderia morrer à primeira doença [22] .

Paradoxalmente, ao invés disso, a documentação nos mostra que havia um grande apego dos pais aos filhos, apesar da mortalidade infantil. Em sua História dos Francos, Gregório de Tours nos conta o sentimento de tristeza e a lamentação de Fredegunda (concubina e depois esposa do rei dos francos Chilperico), quando da morte de crianças:

Essa epidemia que começou no mês de agosto atacou em primeiro lugar a todos os jovens adolescentes e provocou sua morte. Nós perdemos algumas criancinhas encantadoras e que nos eram queridas, a quem nós havíamos aquecido em nosso peito, carregado em nossos braços ou nutrido por nossa própria mão, lhes administrando os alimentos com um cuidado delicado [...] O rei Chilperico também esteve gravemente doente. Quando entrou em convalescença, seu filho mais novo, que não era ainda renascido pela água e pelo Espírito Santo, caiu enfermo. Assim que melhorou um pouco, seu irmão mais velho, Clodoberto, foi atingido pela mesma doença, e sua mãe Fredegunda, vendo-o em perigo de morte e se arrependendo tardiamente, disse ao rei: “A misericórdia divina nos suporta há muito tempo, nós que fazemos o mal, porque sempre ela nos tem advertido através das febres e outras doenças, mas sem que nos corrijamos. Nós perdemos agora os nossos filhos, eis que as lágrimas dos pobres, as lamentações das viúvas e os suspiros dos órfãos os matam e não nos resta esperança de deixar os bens para ninguém. Nós entesouramos sem ter para quem deixar. Os tesouros ficarão privados de possuidor e carregados de rapina e maldições! Nossas adegas não abundam em vinho? Nossos celeiros não estão repletos de trigo? Nossos tesouros não estão abarrotados de ouro e de prata, de pedras preciosas, de colares e outras jóias imperiais? Nós perdemos o que tínhamos de mais belo! Agora, por favor, venha! Queimemos todos os livros de imposições iníquas e que nosso fisco se contente com o que era suficiente ao pai e rei Clotário.” (Gregório de Tours, Historiae, V, 34) (os grifos são meus) [23]

Pois bem. Fredegunda, uma das mulheres mais cruéis da História, apesar de filha de seu tempo bárbaro, chora a morte de seus filhos e afirma que perdeu o que tinha de mais belo [24] . Mesmo nessa aristocracia merovíngia rude e cruel – no pior sentido da palavra [25] – há espaço para amor materno.

Por sua vez, fora do mundo secular, um espaço social lentamente impôs uma nova perspectiva à educação infantil: o monacato [26] . Os monges criaram verdadeiros “jardins de infância” nos mosteiros [27] , recebendo indistintamente todas as crianças entregues [28] , vestindo-as, alimentando-as e educando-as, num sistema integral de formação educacional [29] .

As comunidades monásticas célticas foram as que mais avançaram nesse novo modelo de educação, pois se opunham radicalmente às práticas pedagógicas vigentes das populações bárbaras, que defendiam o endurecimento do coração já na infância [30] . Pelo contrário, ao invés de brutalizar o coração das crianças para a guerra e a violência, os monges o abriam para o amor e a serenidade [31] .

As crianças eram educadas por todos do mosteiro até a idade de quinze anos. A Regra de São Bento prescreve diligência na disciplina: que as crianças não apanhem sem motivo, pois “não faças a outrem o que não queres que te façam.” [32] Toco aqui em um ponto importante e de grande discussão na História da Educação. O sistema medieval e monástico previa a aplicação de castigos. Na Bíblia há passagens sobre os castigos com vara que devem ser aplicados aos filhos [33] ; na Regra de São Bento há várias passagens (punição com jejuns e varas [34] , pancadas em crianças que não recitarem corretamente um salmo [35] ), e esse ponto foi muito destacado e criticado pela pedagogia moderna, que, no entanto, não levou em consideração as circunstâncias históricas da época [36] . Por exemplo, Manacorda interpreta os castigos do período antigo e medieval como puro sadismo pedagógico [37] , linha de interpretação que permaneceu ao lado da imagem do monge medieval como uma pessoa frustrada e desiludida amorosamente e que, por esse motivo, buscava a solidão do mosteiro [38] .

Naturalmente isso se deve a um anacronismo e preconceito que não condizem com a postura de um historiador sério. Basta buscar os textos de época que vemos a felicidade dos egressos dos mosteiros pelo fato de terem sido amparados, criados e educados. Darei apenas dois breves exemplos. Ao se recordar do mosteiro onde passou sua infância, São Cesário de Arles (c. 470-542) diz:

Essa ilha santa acolheu minha pequenez nos braços de seu afeto. Como uma mãe ilustre e sem igual e como uma ama-de-leite que dispensa a todos os bens, ela se esforçou para me educar e me alimentar. [39]

Por sua vez, Walafried Strabo (806-849), então jovem monge, nos conta em seu Diário de um Estudante:

Eu era totalmente ignorante e fiquei muito maravilhado quando vi os grandes edifícios do convento (...) fiquei muito contente pelo grande número de companheiros de vida e de jogo, que me acolheram amigavelmente. Depois de alguns dias, senti-me mais à vontade (...) quando o escolástico Grimaldo me confiou a um mestre, com o qual devia aprender a ler. Eu não estava sozinho com ele, mas havia muitos outros meninos da minha idade, de origem ilustre ou modesta, que, porém, estavam mais adiantados que eu. A bondosa ajuda do mestre e o orgulho, juntos, levaram-me a enfrentar com zelo as minhas tarefas, tanto que após algumas semanas conseguia ler bastante corretamente (...) Depois recebi um livrinho em alemão, que me custou muito sacrifício para ler mas, em troca, deu-me uma grande alegria... [40]

Esses são apenas dois de muitos exemplos que contam a felicidade e a alegria que os medievais sentiram com o fato de terem tido a sorte de serem acolhidos em um mosteiro. Assim, devemos sempre confrontar em retrospecto as regras com a vida cotidiana, o sistema institucional com o que as pessoas pensavam dele, para então construirmos um juízo de valor mais adequado e menos sujeito a anacronismos.

Para completar o entendimento do sentido civilizacional dos mosteiros medievais, basta confrontarmos sua vida cotidiana - de educação e disciplina voltada para uma formação ética e moral das crianças - com o mundo exterior. Por exemplo, no período carolíngio (séculos VIII a X), apesar do avanço da implantação da família conjugal simples (modelo cristão) com uma média de 2 filhos por casal e um período de aleitamento de dois anos, a prática do infanticídio continuava comum, a idade média dos casamentos era muito baixa (entre 14 e 15 anos de idade), a poligamia e a violência sexual eram recorrentes, pelo menos na aristocracia [41] e ainda havia a questão da escravidão de crianças [42] . Confronte você, caro leitor, essa realidade com a vida de uma criança em um mosteiro.

Por sua vez, os bispos carolíngios do século IX tentaram regulamentar o casamento cristão, redigindo uma série de tratados (espelhos) [43] . Neles, o casamento era valorizado, a mulher reconhecida como pessoa com pleno direito familiar e em pé de igualdade com o marido e a violência sexual denunciada como crime grave e do âmbito da justiça pública [44] . Para o nosso tema, o que interessa é que as crianças também foram objeto de reflexão nesses espelhos: a maternidade foi considerada um valor (charitas) e o casal tinha a obrigação de aceitar e reconhecer os filhos [45] .

Assim, a ação da ordem clerical foi dupla: de um lado, os bispos lutaram contra a prática do infanticídio, de outro, os monges revalorizaram a criança, que passou por um processo de educação direcionada, de cunho integral e totalmente igualitária – por exemplo, as escolas monacais carolíngias davam preferência a crianças filhas de escravos e servos ao invés de filhos de homens livres, a ponto de Carlos Magno ser obrigado a pedir que os monges recebessem também para educar crianças filhas de homens livres [46] . Estes séculos da Alta Idade Média foram cruciais para a implantação do modelo de casamento cristão conhecido por todo o mundo ocidental, para a valorização da mulher como parceira e igual do marido e para a idéia de criança como ser próprio e com necessidades pedagógicas específicas [47] . Por fim, a sociedade era pensada como o conjunto de pessoas casadas (ordo conjugatorum), e a criança tinha um papel fundamental nessa estrutura, pois era o fim último da união.

*

Mulher, criança, minorias revalorizadas na Idade Média em relação à Antigüidade. Para completar esse quadro compreensivo, quero responder à terceira pergunta feita no início: qual era o conceito de educação que alicerçava esse novo sistema pedagógico medieval? Essa é uma resposta relativamente mais simples. Para os homens da época, as palavras eram transparentes: havia um prazer muito grande em saborear o sentido etimológico delas. Os intelectuais de então diziam que o homem é um ser que esquece suas experiências. Ele consegue resgatá-las através da linguagem [48] . Assim, a expressão educação era entendida como estando associada à sua raiz etimológica latina: educe, “fazer sair”. Como o conhecimento já existia inato no indivíduo, restava responder à seguinte pergunta: de que modo o estudante era conduzido da ignorância ao saber? [49] Como o aluno aprendia? Essa era a questão básica dos educadores medievais. Preocupados com a forma da aquisição, os pedagogos de então tiveram uma importante consciência: cabia ao professor “acender uma centelha” no estudante e usar seu ofício para formar e não asfixiar o espírito de seus alunos [50] . Muito moderna a educação medieval! [51]

*



[1] Este artigo é dedicado ao meu amigo e colega de trabalho, Prof. Josemar Machado Oliveira (UFES), que certa vez presenteou-me com um belo livro (GIMPEL, Jean. A Revolução Industrial da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977) e aproveitou o ensejo para dizer-me que não existiu ciência na Idade Média!


[2] Um excelente livro que apresenta estes mitos e os destrói completamente é HEERS, Jacques. A Idade Média, uma impostura. Porto: Edições Asa, 1994.


[3] LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, vol. II, p. 44.


[4] ARIÈS, Philippe. L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime, Paris, 1960.


[5] LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval, op. cit., p. 45.


[6] LE GOFF, Jacques. “Os marginalizados no ocidente medieval”. In: O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, p. 169.


[7] Le Goff recupera o tema da criança como não-valor em sua biografia São Luís (Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 84), citando uma farta bibliografia como apoio à sua tese mas somente uma fonte: João de Salisbury (“Não há a necessidade de recomendar muito a criança aos pais, porque ninguém detesta sua carne” - Policraticus, ed. C. Webb, p. 289-290), justamente uma passagem de um texto medieval onde se afirma o amor dos pais em relação aos filhos como algo comum!


[8] Utilizarei minha tradução feita a partir da edição de Gret Schib. RAMON LLULL. Doctrina pueril. Barcelona: Editorial Barcino, 1957.


[9] MARQUES, A H. de Oliveira. A Sociedade Medieval Portuguesa - aspectos de vida quotidiana. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1987, p. 105.


[10] BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Editora Unesp, 2002, 71-72.


[11] Interessante afirmação do antropólogo Jack Goody. Citado em GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”. In: BURGUIÈRE, André, KLAPISCH-ZUBER, Christiane, SEGALEN, Martine e ZONABEND, Françoise (dir.). História da Família. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente. Lisboa: Terramar, 1997, p. 18.


[12] ROUSSELL, Aline. “A política dos corpos: entre procriação e continência em Roma”. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle (dir.): História das Mulheres no Ocidente. A Antigüidade. Porto: Edições Afrontamento / São Paulo: Ebradil, s/d, p. 363.


[13] VEYNE, Paul. “O Império Romano”. In: ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges (dir.). História da vida privada I. Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 23-24.


[14] “Limitar o número de filhos ou matar algum dos recém-nascidos é crime; assim seus bons costumes podem mais que as boas leis em outras nações. De qualquer modo, eles crescem desnudos e sem asseio até chegarem a ter esses membros e corpos que admiramos. Os filhos são nutridos com o leite de suas mães, nunca de criadas ou amas-de-leite. Não há distinção entre o senhor e o escravo em nenhuma delicadeza de criança. Passam a vida entre os mesmos rebanhos e na mesma terra até que a idade e o valor distingam os nobres.”― TÁCITO. “Germania”. In: Obras Completas. Madrid: M. Aguilar, Editor, 1946, p. 1026.


[15] GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”, op. cit., p. 24.


[16] GUICHARD, Pierre. “A Europa Bárbara”, op. cit., p. 28.


[17] DE CASSAGNE, Irene (PUC - Buenos Aires - Argentina). Valorización y educación del Niño en la Edad Media, p. 20 (artigo consultado em www.uca.edu.ar)


[18] ROUSSELL, Aline. “A política dos corpos: entre procriação e continência em Roma”, op. cit., p. 364.


[19] Um dos melhores ensaios a respeito é de JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 2001, especialmente as páginas 11-148.


[20] DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 20.


[21] ROUCHE, Michel. “Alta Idade Média ocidental”. In: ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges (dir.). História da vida privada I. Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 442-443.


[22] Essa idéia - da indiferença como conseqüência do mau hábito - está muito bem expressa no conceito de banalização do mal criado por Hannah Arendt em sua obra Origens do Totalitarismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1990).


[23] Tradução de Edmar Checon de Freitas (doutorando em História Medieval pela UFF) a partir da versão francesa de R. Latouche (GRÉGOIRE DE TOURS. Histoire des Francs. Paris: Les Belles-Lettres, 1999, p. 295-296).


[24] “Fredegunda foi concubina de Chilperico (neto de Clóvis). Ele casou-se com Galasvinta, filha do rei visigodo Atanagildo, e sua irmã, Brunilda, desposou Sigisberto, meio-irmão de Chilperico (Hist., IV, 27-28). Galasvinta acabou assassinada por ordem de Chilperico, ficando Fredegunda como sua primeira esposa (Hist., IV, 28); Gregório insinua uma influência de Fredegunda na morte da rival. Chilperico e Fredegunda figuram nas Historiae como um casal malévolo e sanguinário. A passagem sobre a morte de seus filhos tem de ser lida nesse contexto. Contudo, é importante destacar a forma escolhida pelo autor para sublinhar o castigo divino: a perda dos filhos e herdeiros. O tema da morte das crianças era caro a Gregório. Por sua vez, no capítulo V (22), é narrada a morte de Sansão, outro filho pequeno de Chilperico e Fredegunda. Nascido durante um cerco sofrido por Chilperico - em guerra com o irmão Sigisberto - ele foi rejeitado pela mãe (que temia sua morte). O pai salvou-o e Fredegunda acabou batizando a criança, que morreu antes dos 5 anos. Mais tarde nasceu um outro filho do casal, Teuderico, ocasião na qual o rei libertou prisioneiros e aliviou impostos (Hist., VI, 23, 27). Novamente a desinteria vitimou a criança, com cerca de 1 ano de vida (Hist., VI, 34). O único herdeiro de Chilperico, Clotário, nasceu já no fim de sua vida (Hist., VI, 41; ele foi assassinado em 584). Tornou-se ele rei sob o nome de Clotário II, tendo unificado o regnum Francorum. Chilperico teve outros filhos, de sua primeira mulher, Audovera. Teodeberto morreu no campo de batalha (Hist., IV, 50); Clóvis e Meroveu (Hist., V, 18) foram mortos a mando do pai, o primeiro sob a instigação de Fredegunda. Na ocasião, ela suspeitara de malefícios contra seus filhos, recentemente mortos, nos quais Clóvis estaria envolvido; ela também ordenou a tortura de algumas mulheres suspeitas (Hist., V, 39).” ― FREITAS, Edmar Checon de.


[25] LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, vol. I, p. 58-60.


[26] JOHNSON, Paul. História do Cristianismo, op. cit., especialmente as páginas 167-188.


[27] DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 21.


[28] “Sabe-se que as escolas dos mosteiros acolhiam tanto os nobres rebentos da aristocracia quanto os pobres filhos dos servos.” ― NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média. São Paulo: EDUSP, 1979, p. 113.


[29] Mesmo Manacorda, um crítico do período, afirma que “...devemos reconhecer que, na pedagogia cristã, ela (a maxima reverentia) é um elemento novo de consideração da idade infantil” ― MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez, 1989, p. 118.


[30] Por exemplo, em sua Guerra Gótica, o historiador bizantino Procópio de Cesaréia († 562) nos conta que “...nem Teodorico permitira aos godos enviar os filhos à escola de letras humanas, antes dizia a todos que, uma vez dominados pelo medo do chicote, nunca teriam ousado enfrentar com coragem o perigo da espada e da lança (...) Portanto, querida soberana - diziam a ela - manda para aquele lugar esses pedagogos e põe tu mesma ao lado de Atalarico alguns coetâneos: estes, crescendo junto com ele, o impelirão para a coragem e a valentia segundo o uso dos bárbaros (I, 2)” ― Citado em MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 135-136.


[31] ROUCHE, Michel. “Alta Idade Média ocidental”, op. cit., p. 446.


[32] Regra de São Bento (depois de 529 d.C.), cap. 70. Documento consultado na INTERNET: http://www.ricardocosta.com/bento.htm


[33] “O que retém a vara aborrece a seu filho, mas o que ama, cedo o disciplina.” (Prov. 13:24); “Não retires da criança a disciplina, pois, se a fustigares com a vara não morrerás. Tu a fustigarás com a vara e livrarás a sua alma do inferno.” (Prov. 23.13-14)


[34] “Os meninos e adolescentes ou os que não podem compreender que espécie de pena é, na verdade, a excomunhão, quando cometem alguma falta, sejam afligidos com muitos jejuns ou castigados com ásperas varas, para que se curem.” ― Regra de São Bento, cap. 30 (http://www.ricardocosta.com/bento.htm)


[35] “As crianças por tal falta recebam pancadas” ― Regra de São Bento, cap. 45.


[36] Mesmo nesse aspecto, o das surras, há de se relativizar: um dos maiores sucessos editoriais no Brasil, o livro Meu Bebê, Meu Tesouro, de DELAMARE, defendia que as crianças deveriam levar uma surra todos os dias!


[37] MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 119. Naturalmente Manacorda se refere ao sadismo por parte de quem aplicava o castigo, isto é, os monges. Falo isso porque, certa vez, ao ler parte desse texto em sala de aula na UFES, uma aluna ficou em dúvida se o sadismo era por parte de quem batia ou de quem apanhava!


[38] “Pode haver, com efeito, alguns casos particulares desses tipos. Mas os monges são pessoas que fizeram e fazem livremente a sua opção pela vida silenciosa e penitente, por amor a Deus que transborda na caridade para com o próximo.” ― NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média, op. cit., p. 91-92.


[39] San Cesáreo de Arles, Sermo ad monacho, CCXXXVI, 1-2, Morin, t. II, p. 894. Citado em DE CASSAGNE, Irene. Valorización y educación del Niño en la Edad Media, op. cit., p. 22.


[40] Citado em MANACORDA, Mario Alighiero. História da Educação - da Antigüidade aos nossos dias, op. cit., p. 135. Esse belo texto medieval também é analisado em NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média, op. cit., p. 157-159 (SÖHNGEN, C. J. De medii aevi puerorum institutione in occidente. Diss. Amsterdam 1900).


[41] TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”. In: BURGUIÈRE, André, KLAPISCH-ZUBER, Christiane, SEGALEN, Martine e ZONABEND, Françoise (dir.). História da Família. Tempos Medievais: Ocidente, Oriente. Lisboa: Terramar, 1997, p. 69-84.


[42] “O comércio de escravos fora rigorosamente interdito em 779 e 781 (...) mas continuou, não obstante (...) Agobardo mostra-nos que este comércio vinha de longe (...) conta-nos que no começo do século IX chegara a Lião um homem, fugido de Córdova, onde tinha sido vendido como escravo por um judeu de Lião. E afirma a este propósito que lhe falaram de crianças roubadas ou compradas por judeus para serem vendidas.” ― PIRENNE, Henri. Maomé e Carlos Magno. Lisboa: Publicações Dom Quixote, s/d., p. 228.


[43] Christopher Brooke analisa a história do casamento (O casamento na Idade Média. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d) sem, contudo, tratar da ética conjugal dos espelhos carolíngios, preferindo fazer seu recorte nos séculos feudais (XI-XII).


[44] “O modelo conjugal que a elite religiosa procura então impor como regulador da violência social implica, além disso, um reconhecimento da mulher enquanto pessoa, enquanto consors de pleno direito na sociedade familiar (...) A perfeita igualdade entre os cônjuges é um dos temas mais constantes da literatura matrimonial, em plena concordância com a legislação que, desde meados do século VIII, não cessa de proclamar que a lei do matrimônio é uma só, tanto para o homem como para a mulher.” ― TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”, op. cit., p. 87. Também é desnecessário dizer que a violência sexual da época era contra a mulher.


[45] “Esta temática deverá ser relacionada com a luta que nessa época se travava contra as práticas contraceptivas, o aborto provocado e o infanticídio. Comporta igualmente um dever de educação cristã que tem como resultado, em Teodulfo de Orleães, uma definição do officium paterno e materno.” ― TOUBERT, Pierre. “O período carolíngio (séculos VII a X)”, op. cit., p. 87.


[46] “Que ajuntem e reúnam ao redor de si não só filhos de condição servil, mas também filhos de homens livres.” ― Da Admonitio generalis, cap. 72. In: BETTENSON, H. Documentos da Igreja cristã. São Paulo: ASTE, 2001, p. 168.


[47] Todos esses avanços jurídicos em relação à mulher e à criança foram acompanhados, paradoxalmente, por um discurso clerical anti-feminino! Para esse tema, ver especialmente DUBY, Georges. Eva e os padres. Damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. De qualquer modo, é fato que a mulher moderna ocidental hoje desfruta de uma posição social melhor que no Oriente, especialmente nos países de cultura islâmica.


[48] “O gosto que os autores medievais tinham pela etimologia derivava de uma atitude com relação à linguagem bastante diferente da que geralmente temos hoje. Na Idade Média, ansiava-se por saborear a transparência de cada palavra; para nós, pelo contrário, a linguagem é opaca e costuma ser considerada como mera convenção (e nem reparamos, por exemplo, em que coleira, colar, colarinho, torcicolo e tiracolo se relacionam com colo, pescoço).” ― LAUAND, Luiz Jean. Cultura e Educação na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 106.


[49] Esse é um ponto no qual a pedagogia medieval difere enormemente da moderna, pois é quase senso comum hoje afirmar que as crianças são receptáculos vazios (tabula rasa) e o educador enche-as de conteúdo.


[50] PRICE, B. B. Introdução ao Pensamento Medieval. Lisboa: Edições Asa, 1996, p. 88.


[51] Este trabalho é a primeira parte da palestra intitulada "Reordenando o conhecimento: a educação na Idade Média e o conceito de ciência expresso na obra Doutrina para Crianças (c. 1274-1276) de Ramon Llull" proferida na II Jornada de Estudos Antigos e Medievais: Transformação social e Educação - 10 e 11 de Outubro de 2002 - Universidade Estadual de Maringá (UEM), evento coordenado pela Profª Drª Terezinha Oliveira.
http://www.hottopos.com/videtur17/ricardo.htm