terça-feira, 24 de maio de 2022

A MULHER E SUAS CONCEPÇÕES HISTÓRICAS


DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/historia/concepcoes-historicas


CONTEÚDO


ARTIGO ORIGINAL

BORGES, José Carlos [1], LAPOLLI, Édis Mafra [2], AMARAL, Melissa Ribeiro do [3]

BORGES, José Carlos. LAPOLLI, Édis Mafra. AMARAL, Melissa Ribeiro do. A mulher e suas concepções históricas. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 06, Vol. 09, pp. 05-21. Junho de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/historia/concepcoes-historicas, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/historia/concepcoes-historicas
RESUMO

Com o passar dos anos a mulher teve diferentes concepções dentro da história, com muito trabalho duro e dedicação à mulher conquistou seu devido respeito, porém, nos dias atuais ainda é evidente a desigualdade de gênero. Este artigo de pesquisa bibliográfica, levanta reflexões sobre o papel da mulher dentro das diferentes sociedades de cada época, até alcançarmos o perfil da mulher atual, responsáveis por comandar famílias, empresas, universidades, cidades e até mesmo países. Criando uma visão através do empoderamento da figura feminina e sua importante participação na construção da sociedade atual.

Palavras-chave: Mulher, desigualdade de gênero, conquistas.
1. INTRODUÇÃO

Ao longo da História da Humanidade, os homens e as mulheres ocuparam papéis distintos dentro da família e sociedade. Por vários séculos em diferentes épocas e na maioria das sociedades, as mulheres foram descartadas das decisões importantes da vida social e foram vistas, como o sexo frágil.

O tempo passou e as mulheres aos poucos vem conquistando espaço dentro da sociedade, através de seu trabalho, seus valores e especialmente suas ações. Mas nem sempre foi assim, para que a mulher atual possa demonstrar seu real valor, existiram figuras importantes que conquistaram o respeito e o espaço dentro da sociedade de seu tempo. Cabe ressaltar, que a mulher tem ganhado espaço nos dias atuais, entretanto, ainda deve-se avançar muito para que obtenha um espaço mais igualitário, especialmente no mercado de trabalho.

Em um estudo realizado em 2018, pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) intitulado “Perspectivas Sociais e de Emprego no Mundo: Tendências para Mulheres 2018”, apontou que as mulheres são menos propensas a participar do mercado de trabalho do que os homens e têm mais chances de estarem desempregadas na maior parte dos países do mundo.

Apesar das barreiras de gênero impostas pela sociedade ao longo do tempo e espaço, foram muitas as mulheres que se destacaram ao longo dos séculos, tornando-se líderes ou referência dentro de sua sociedade.
2. A MULHER DA PRÉ-HISTÓRIA

Durante todo o período paleolítico a mulher ocupava o papel central da sociedade, os indivíduos eram caçadores-coletores e não havia necessidade de força, a cultura era cooperativa, de parceria, onde homens e mulheres conviviam harmonicamente. A divisão de trabalho entre os sexos existia, mas sem desigualdade. A mulher representava o poder de dar e nutrir, pois, nesse período o homem não conhecia sua função na procriação, o poder estava centralizado na mulher, porque acreditava-se que a reprodução era um privilégio divino, e por essa razão, muitas vezes a mulher era adorada como divindade.

Existe um elevado número de esculturas com formas femininas feitas nos períodos paleolítico e neolítico que foram encontradas por arqueólogos, como a vênus de Willendorf (Figura 01) e a vênus de Lasseul (Figura 02). Homens e mulheres se relacionavam por motivos espontâneos e simples, não havia transmissão de herança ou poder, e também não existiam disputas por territórios nem guerras, e a liberdade sexual era enorme. (PAGLIA, 1992; EISLER, 2007; MURARO, 2018).

Figura 1: Vênus de Willendorf


Fonte: Blog Em Clase conoce tu pasado

Figura 02: Vênus de Laussel, estatua da Idade Pré- Histórica


Fonte: Wikipédia – Arte na Pré- História

Quando a caça aos grandes animais se fez necessária e o homem dominou a agricultura, teve início a supremacia masculina e a competitividade entre os grupos de indivíduos. As mulheres ainda eram adoradas mas já começou a haver a estratificação social e sexual. Assim que o homem descobre seu papel na reprodução começa a controlar a sexualidade feminina. O casamento começa a existir, assim como a propriedade e a herança. Assim se formam as primeiras aldeias, cidades e impérios e a sociedade se torna patriarcal onde a lei do mais forte impera (MURARO, 2018).

Segundo Amaral (2019):

Observando a história da humanidade pode-se entender o caminho que as mulheres percorreram para que perdessem o status de divindade, adoradas nas sociedades primitivas, para um ser que depende da aprovação masculina para tudo. Como se constata, a dependência da mulher do poder masculino vem perdendo força nos últimos séculos, mas ainda continua sendo um obstáculo para que as mulheres readquiram seu poder e a sociedade volte a ser igualitária.

Com o passar dos anos essas sociedades foram evoluindo, até surgirem o berço das grandes civilizações (Sumérica, Egípcia, Babilônica, Grega, Romana entre outras), apesar de seguirem um modelo patriarcal, as mulheres eram adoradas por todos, seja pelas figuras das sacerdotisas, guerreiras ou até mesmo pelas representações femininas através de deusas.
3. A MULHER NA IDADE ANTIGA

Com a Idade Antiga, através da expansão da religião hebraica, a mulher começou a perder espaço dentro da sociedade e os casamentos se tornaram instituições centrais para a vida, ou seja, a mulher seria útil se fizesse parte de uma família. Além do mais, a religião centralizou o culto na figura do homem, conhecido também como pater. E as mulheres deveriam seguir e obedecer à figura masculina.

Somente no século I a.C. que as leis começaram a garantir maior liberdade e participação da mulher na vida pública, grande parte desse processo atribuído é a base da sociedade espartana. Apesar da sociedade ateniense ocupar um lugar de destaque na história da democracia, a participação das mulheres era nula, pois, a mulher era educada para servir ao lar e a família.

Em contrapartida a sociedade espartana, era uma sociedade extremamente militar e por esse motivo as mulheres ocupavam lugares de destaque nas decisões públicas. As mulheres espartanas também ocupavam um lugar de destaque, pois eram responsáveis por dar origem aos soldados espartanos. No mesmo período, porém, em um lugar de costumes totalmente diferentes, destacava a figura feminina imponente, a rainha Cleópatra.

Cleópatra Thea Filopator nasceu na cidade de Alexandria, em 69 a.C. foi a última rainha da dinastia de Ptolomeu, foi popularmente conhecida por atitudes pouco convencionais e por seus casos amorosos, incluindo nessa lista o grande imperador Júlio Cesar.

Figura 2: Figura da Cleópatra, representada pela atriz Elizabeth Taylor


Fonte: 40 FOREVER

A filha de Ptolomeu Auletes recebeu um nome de forte significado Thea “deusa” e Filopator “amada por seu pai“. Foi uma mulher com personalidade muito intensa, era uma hábil negociante, estrategista militar e falava seis idiomas.

A figura da rainha Cleópatra foi popularizada através da indústria cinematográfica, em uma das obras mais imponentes do cinema americano, o filme Cleópatra de 1963, interpretada pela carismática atriz Elizabeth Taylor.
4. A MULHER E A IDADE MÉDIA

A Idade Média foi considerada por muitos historiadores como a Idade das Trevas, uma época de muita perseguição religiosa, várias doenças e ataques entre povos, porém foi nessa época que as mulheres conquistaram acesso a grande parte das profissões e também ao direito de propriedade, porém subjugadas como podemos destacar no trecho do livro MALLEUS MALEFICARUM:

[..] convém observar que houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E como, em virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente (KREMER, SPRENGER 1991, pag. 116).

As mulheres deste período eram muito desvalorizadas, pois a sociedade era toda centralizada na figura do homem, porém com as guerras, doenças e perseguições a expectativa de vida desse período tornou-se muito baixa. Decorrente desses fatos as mulheres tornavam-se viúvas de forma precoce, assim tinham que assumir como chefe de família.

Entretanto, a participação das mulheres durante a Idade Média foi ainda mais concisa por meio de mulheres de destaque que estudaram em universidades e que participaram da vida política da época, exemplos como de Hilda de Whitby que fundou vários mosteiros e conventos pela Europa, da Duquesa da Aquitânia que lecionou e governou o feudo junto ao seu marido, e um dos maiores exemplos da história Joana D’arc.

Joana D’arc é uma das mais ilustres figura da história francesa, nasceu no período da Idade Média, em uma época bastante conturbada e sem muito espaço para manifestação do pensamento feminino. Essa valente figura rompeu com os paradigmas impostos pela sociedade, vestia roupas masculinas e possuía uma forte personalidade.

Figura 3 : Representação de Joana D’arc canonizada

.

Fonte: PASCOM – Paróquia Santo Antônio

A história de Joana D’arca ecoou por todos os cantos do mundo, uma jovem de apenas 17 anos de idade que liderou as tropas francesas em seu primeiro combate na Guerra dos Cem anos (conflito entre França e Inglaterra travada entre 1337 e 1453), e que serviu de exemplo para muitas outras civilizações.

Apesar das várias conquistas no ano de 1431, aos 19 anos de idade, Joana foi queimada viva em praça pública acusada de heresia e bruxaria Após as conquistas, Joana tinha tornado-se muito popular e querida pelo povo, até mais que o próprio rei, esse fato culminou em sua morte. Logo após sua condenação, a Igreja Católica deu início a um processo de revisão do processo que culminou em sua morte, e, no ano 1456, Joana D’arc foi considerada inocente pelo Papa Calisto III, e em 1909 foi autorizado sua beatificação, sendo canonizada em 1920, pelo Papa Bento XV. Atualmente é considerada uma das figuras mais influentes da história e da religião mundial.
5. A MULHER DA IDADE MODERNA

A transição entre a Idade Média e Idade Moderna fez com que as mulheres começassem a ganhar espaço na sociedade mercantilista. Uma das mulheres que mais se destacaram na sociedade moderna foi a rainha Elizabeth.

Elizabeth I nasceu na localidade de Greenwich no ano de 1533, filha de Henrique VIII e Ana Bolena, ficou conhecida na história como Isabel “a rainha virgem”, pois nunca se casou, e foi a quinta e última monarca na linha de sucessão dos Tudor. Após coroação conturbada, Elizabeth reinou por muitos anos, e juntamente com seus conselheiros instaurou a chamada época de ouro da Inglaterra.

Figura 4: Retrato da Rainha Elizabeth I (Rainha Virgem)


Fonte: Wikipédia – Retrato de Elizabeth I

Entre os feitos da rainha virgem podemos destacar o estabelecimento da igreja protestante inglesa, o crescimento econômico e unificação da Inglaterra, além da grande aceitação popular da rainha, após anos de crise. Foi também durante o seu reinado que destacaram figuras artísticas de renome, como Sir Willian Shakespeare.

Nessa época decorrente da intensificação do comércio, e com a queda do Feudalismo, houve um fluxo acentuado de migração e urbanização, tornando assim a mulher uma importante mão de obra para a indústria.
6. A MULHER E A IDADE CONTEMPORÂNEA

Ao longo da história a mulher ocupou diferentes papéis dentro da sociedade, quebrando paradigmas e preconceitos de gêneros, tornando-se cada vez mais aceita dentro sociedade atual, como são os exemplos de algumas ilustres mulheres da sociedade brasileira e até mesmo mundial; exemplos como: Anita Garibaldi, Princesa Isabel, Antonieta de Barros, entre outras.

Assim como Joana D’ arc, a figura de Anita é admirada por todos e é considerada a heroína dos dois mundos, pois, esteve presente em batalhas tanto no continente americano quanto no europeu. Ana Maria de Jesus Ribeiro (Anita) nasceu no município de Laguna, Santa Catarina, onde conheceu o general Giuseppe Garibaldi aos 18 anos, abandonando assim seu marido para acompanhar o revolucionário italiano.

O livro de Anita Garibaldi do autor Paulo Markun, define a figura de Anita: “Esta mulher é morena como todos os crioulos dos trópicos, de personalidade simples, agitada e vivaz, com uma fisionomia bem desenhada e de semblante melancólico, mas olhos ardentes e másculo peito ” (MARKUN, 2008, p.24).

Figura 5: Retrato de Anita Garibaldi


Fonte: Jornal do Planalto

Anita participou de várias batalhas e arriscou diversas vezes a vida, levando munição aos guerreiros republicanos, cuidando dos feridos e até mesmo fazendo parte do combate. Após suas conquistas o casal Garibaldi foi perseguido por exércitos franceses, espanhóis e austríacos, buscaram refúgio por alguns meses em San Marino, até que Anita veio a falecer devido a uma forte febre e ao parto de sua quinta filha, que morreu junto com a mãe.

A bravura de Ana Maria de Jesus Ribeiro é conhecida mundialmente, a “heroína dos dois mundos” possui vários monumentos em sua homenagem, tanto na Itália quanto no Brasil.

Outra personalidade importante destaca-se na sociedade brasileira, a figura de Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon, popularmente conhecida como Princesa Isabel ou Isabel do Brasil, herdeira e regente do Segundo Império Brasileiro, filha de Dom Pedro II e da imperatriz Dona Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias.

Isabel uma mulher liberal, defensora dos políticos e artistas, uniu-se aos partidos abolicionistas, pois, era contrária ao regime de escravidão e defensora do sufrágio feminino. Financiou os movimentos abolicionistas até conseguir o apoio de parte da população da época, abolindo de vez a escravidão do Brasil com a criação da Lei Áurea.

Figura 6 : Princesa Isabel


Fonte: Vou passar. Club

Princesa Isabel faleceu na França no ano de 1921, aos 75 anos de idade. No ano de 2011, a pedido do grupo de monarquistas brasileiro, o arcebispo do Rio de Janeiro Dom Orani João Tempesta abriu um processo de beatificação, o qual foi encaminhado para a arquidiocese de Paris, na França.

Outra mulher imponente que foi destaque durante a Idade Contemporânea foi Antonieta de Barros, uma figura ilustre da sociedade catarinense e reconhecida por seus feitos em todo Brasil. Educadora, escritora, jornalista e política, dedicou sua vida a combater o analfabetismo e a defender a concessão de bolsas para cursos superiores a alunos carentes.

Figura 7: Retrato de Antonieta de Barros.


Fonte: PORTAL GELEDÉS. Você conhece Antonieta de Barros?

Foi à primeira mulher a ser eleita na Assembleia Legislativa de Santa Catarina e a primeira deputada negra do Brasil, desenvolveu trabalhos voltados às questões educacionais, condição feminina e preconceito racial.

Além desses feitos, dedicou parte de sua vida como educadora e diretora da Escola Complementar do Grupo Escolar Lauro Muller, da Escola Normal Catarinense e do Colégio Dias Velho. Também escreveu para vários jornais, publicou vários artigos e foi fundadora do jornal A Semana.

Uma mulher negra, pobre e órfã de pai, com muita dedicação e amor, lutou contra a discriminação de gêneros tanto dos sexos quanto raciais, tornando uma das mulheres mais influentes do estado de Santa Catarina.
7. O PERFIL DA MULHER NA ATUALIDADE

Após séculos de luta e muito trabalho árduo, as mulheres conseguiram ultrapassar algumas barreiras de diferenciação de gênero tornando-se profissionais de sucesso. Conquistando recentemente maior participação nos espaços sociais, profissionais e políticos. Mas mesmo tendo avançado muito, e galgado importantes degraus, a mulher ainda enfrenta preconceito de gênero e tem que superar inúmeras barreiras internas e externas (AMARAL, 2019). As mulheres da atualidade são educadoras, chefes de empresa, presidentes de nações que desafiam as barreiras que aparecem, cumprindo a dupla jornada, profissional e familiar, passando por cima do preconceito de gênero, enfrentando o teto de vidro e, em especial, superando a falta de autoconfiança.

No entendimento de Amaral (2019, p. 113):

[…] para conseguir se inserir no ambiente empresarial dominado pelos homens, essas mulheres tiveram atitude, lançando mão de características bem femininas como calma, paciência e persistência, marcando posição, mostrando muito trabalho, adquirindo autoconfiança, encarando seus medos internos, buscando se empoderar para assim enfrentar as barreiras ao empreendedorismo.

As mulheres do século XXI adquiriram um novo perfil através da apropriação do conhecimento, especialmente a partir da década de 1960 e 1970 com os movimentos feministas, ganhando maior espaço na sociedade, com ênfase na educação superior. O movimento feminista iniciado no final do século XIX foi essencial para que as mulheres conseguissem galgar posição nos espaços sociais, pessoais e políticos.

Para se empoderar e conseguir enfrentar as barreiras que ainda existem as mulheres precisam passar por uma mudança cultural e principalmente comportamental, se capacitar, e vencer os medos internos. À medida que se empodera consegue se impor em situações onde era silenciada, se inserir em ambientes onde antes era excluída, tendo atitude e encarando obstáculos, sempre procurando o equilíbrio nos diversos aspectos da vida (AMARAL, 2019).

Um bom exemplo foi a Primeira Ministra britânica Margareth Thatcher, que comandou o Reino Unido, em plena Guerra Fria, entre os anos de 1979 até 1990, talvez uma das mulheres mais importantes imponentes do cenário mundial contemporâneo. Ficou conhecida como Dama de Ferro, devido sua política agressiva e anticomunista; criou medidas para estabilizar a economia inglesa que passava por um momento conturbado, com taxas elevadas de inflação, altos índices de desempregos e uma enorme crise petrolífera. Amada por alguns e odiada por outros, Margareth Thatcher nunca escondeu sua admiração pelas práticas capitalistas, combatendo veemente a expansão do socialismo e do sindicalismo, através de sua política neoliberalista conservadora. Entre suas citações mais marcantes, podemos destacar frases como: “O problema com o comunismo é que um dia o dinheiro dos outros acaba”. E a frase utilizada em seu discurso após o ataque terrorista do grupo, IRA (Exército Republicano Irlandês). “A ganância é um bem”.

Alguns anos se passaram e o mundo todo começou a aceitar no cenário político várias figuras femininas, inclusive mulheres que se tornaram mundialmente influentes, como a ex-presidente do Brasil Dilma Rousseff, eleita dois mandatos consecutivos, da presidente da Argentina Cristina Kirchner, chefe de governo da Alemanha: Ângela Dorothea Merkel e rainha da Inglaterra Elizabeth II, entre outras figuras femininas de destaque.

Exemplos de grandes mulheres, não se restringem somente a área política, no cenário social e corporativo mundial também existem mulheres de destaque, tais como a apresentadora Oprah Winfrey, considerada pela revista Forbes em 2017, como a mulher mais rica do mundo, com um patrimônio estimado em 2,4 bilhões de dólares. Outra importante mulher que não podemos deixar de citar é a jovem paquistanesa Malala Yousafzay, que aos 17 anos de idade tornou-se a mais jovem pessoa a receber o Prêmio Nobel da Paz, em 2014. Malala sobreviveu a uma tentativa de assassinato do Talibã em 2012, e com isso fortaleceu sua luta a favor da educação das meninas e o combate contra o trabalho infantil no Paquistão.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde os primórdios da humanidade a figura feminina e a igualdade de gênero apresentam diferentes concepções através do tempo e espaço. Por meio de muita luta e sofrimento as mulheres estão conquistando cada vez mais espaço na sociedade. Mesmo sendo maioria entre a população mundial as mulheres ainda tem dificuldade de se inserir nos espaços sociais, políticos e econômicos.

Pode-se observar que mesmo enfrentando inúmeras barreiras, várias mulheres se destacaram na história da humanidade. Essas mulheres sem dúvida eram seres humanos diferenciados e com capacidade intelectual e força emocional acima da média para conseguir tal feito, cada uma na época em que viveu. Mesmo com tantos exemplos de mulheres que se sobressaíram no passado e se destacam atualmente, uma parcela expressiva vive à margem desse contexto, a grande maioria das mulheres que vivem no século XXI ainda enfrenta violência, preconceito, discriminação e dificuldade para se sobressair tanto na área profissional como pessoal. Segundo dados do ano de 2000 da Comission on the Women (ONU), uma a cada três mulheres sofreram algum tipo de agressão, tanto física quanto moral ou sexual em todo mundo, e no Brasil a cada cinco minutos uma mulher é agredida, dados alarmantes que retrataram uma realidade não muito distante de muitos.

No mercado de trabalho infelizmente não é diferente, apesar de ter as mesmas condições intelectuais que o homem, e ser, na maioria dos casos, mais escolarizada, as mulheres ainda enfrentam a desigualdade de gênero especialmente no que se refere a obstrução masculina, diferenças salariais, dupla jornada e preconceito. De acordo com OTI (Organização de Trabalho Internacional) em seu relatório “Perspectivas Sociais e de Emprego no Mundo: Tendências para Mulheres 2018”, a taxa global de participação das mulheres na força de trabalho é de 48,5% em 2018, 26,5 % abaixo da taxa dos homens.

As mulheres percorrem um caminho muito mais árduo que os homens para obter sucesso e se destacar. Com o objetivo de se inserir no ambiente empresarial ou social dominado por homens as mulheres precisaram se empoderar, buscando desenvolver a autoconfiança, ter atitude e usar características essencialmente femininas como persistência, paciência e cuidado, trabalhando e estudando mais que os homens e enfrentando os medos internos.

Apesar de toda dificuldade, e as imposições impingidas pelos homens que resultaram na desigualdade de gênero, a mulher foi parte essencial na história, desenvolvendo seu papel com maestria, confrontando o preconceito e as barreiras de cada tempo e lugar. Com o decorrer dos anos a mulher histórica criou uma base concreta para a mulher da atualidade, servindo de alicerce para que a mulher do século XXI possa competir lado a lado com a figura masculina, apesar da dupla jornada, dos preconceitos diários enfrentados, dos problemas familiares e da barreira interna que é difícil de ser superada: a falta de autoconfiança.
REFERÊNCIAS

ABRIL Cultural. Princesa Isabel. Coleção Grandes Personagens da Nossa História. São Paulo: Abril Cultural, s/d.

ADAMS, Simon. Leicester and the Court: Essays in Elizabethan Politics. Manchester: Manchester University Press, 2002. ISBN 978-0-7190-5325-2.

AMARAL, Melissa Ribeiro do. EMPODERAMENTO DA MULHER EMPREENDEDORA: uma abordagem visando o enfrentamento de barreiras. Dissertacao de Mestrado pelo Programa de Pos-Graduacao em Engenharia e Gestao de Conhecimento – PPGEGC. Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Florianópolis, 2019.

BARMAN, Roderick. Princesa Isabel do Brasil: Gênero e Poder no Século XIX. São Paulo: UNESP, 2005.

BEAUNE, Colette. Joana D’Arc: Verdades e Lendas. Cassará Editora, 2013.

BRASIL ESCOLA. As Grandes Mulheres da História. Disponível em <http://www.brasilescola.com/historia/grandesmulheres.htm> Acesso: 30 mar. 2020.

EN CLASSE CONOCE TU PASADO. Vênus de Willendorf. Disponível em <http://oculimundienclase.blogspot.com/2012/08/la-venus-de-willendorf.html> Acesso: 30 mar. 2020.

EISLER, R. O Cálice e a Espada: nosso passado, nosso futuro. São Paulo: Palas Athena, 2007.

FASHIONATTO. 24 Grandes Mulheres da História. Disponível em: http://fashionatto.literatortura.com/2014/03/08/especial-mulheres-conheca-23-grandes-mulheres-da-historia/ Acesso: 30 mar. 2020.

Jornal do Planalto. AMABRASÍLIA realiza homenagem à heroína da pátria, Anita Garibaldi. Disponível em: <https://jornaldoplanalto.com.br/web/amabrasilia-realiza-homenagem-a-heroina-da-patria-anita-garibaldi/> Acesso em: 30 mar. 2020.

KRAMER, H. SPRENGER, J. Malleus Malleficarum: O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1995.

MARKUN, Paulo. Anita Garibaldi: uma heroína brasileira. 4ª edição, São Paulo, KIMURA, Shoko. Geografia no ensino básico: questões e propostas. São Paulo: Contexto, 2008.

MURARO, R. M. Introdução. In: KRAMER, K.; SPRENGER, J. Malleus Maleficarum (1487). 4. ed. Rio de Janeiro: [s. n.], 2018.

NAÇÕES UNIDAS BRASIL. OIT: participação das mulheres no mercado de trabalho ainda é menor que dos homens. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/oit-participacao-das-mulheres-no-mercado-de-trabalho-ainda-e-menor-que-dos-homens/>Acesso em: 30 mar. 2020.

PAGLIA, C. Personas Sexuais: Arte e Decadência de Nefertite a Emily Dickinson. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

PASCOM – Paróquia Santo Antônio. Santa Joana. Disponível em: <http://pascomstoantoniocr.blogspot.com.br/2014/05-santa-joana-darc.html> Acesso em: 30 mar. 2020.

PIAZZA, Walter. Dicionário Político Catarinense. Florianópolis: Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1985.

PORTAL GELEDÉS. Você conhece Antonieta de Barros? Disponível em <https://www.geledes.org.br/voce-conhece-antonieta-de-barros/> Acesso em: 30 mar. 2020.

VOU PASSAR. CLUB. Quem foi princesa Isabel? Disponível em: < https://voupassar.club/quem-foi-princesa-isabel/> Acesso em: 30 mar. 2020.

WIKIPÉDIA. Arte na Pré- História. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Arte_da_Pr%C3%A9-Hist%C3%B3ria> Acesso em 30 mar. 2020.

WIKIPÉDIA. Retrato de Elizabeth I da Inglaterra. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Portraiture_of_Elizabeth_I_of_England> Acesso em 30 mar. 2020.

40 FOREVER. A arte de se maquiar. Disponível em <http://www.40forever.com.br/a-arte-de-se-maquiar/elizabeth-taylor-cleopatra-blue-dress-2/> Acesso em: 30 mar. 2020.

[1] Especialista em Gestão e Tutoria da EAD.

[2] Doutora em Engenharia e Gestão do Conhecimento.

[3] Mestre em Engenharia e Gestão do Conhecimento
https://www.nucleodoconhecimento.com.br/

A TRAJETÓRIA DA DISCRIMINAÇÃO DAS MULHERES



A Academia de Ciências do Terceiro Mundo chama a atenção para a necessidade dos países em desenvolvimento usarem todo o potencial intelectual disponível - homens e mulheres - para o seu avanço sócio-econômico. A advertência parece óbvia, mas milhares de mulheres brasileiras não têm a oportunidade de usar sua inteligência e competência na área científica e tecnológica.

A baixa participação feminina na ciência é abordada no livro O laboratório de Pandora: estudos sobre a ciência no feminino, de Fanny Tabak, editado pela Garamond . A autora fundou o primeiro núcleo de estudos da mulher no Brasil, impulsionando outros projetos na área. Pesquisadora pioneira, seus estudos têm ajudado na formulação de políticas públicas de incentivo à participação das mulheres nessa área.

Em seu livro, Fanny mostra que a baixa participação feminina na ciência não é exclusividade brasileira. Essa escassa atuação foi notificada há dez anos na I Conferência da TWOWS-Third World Organization for Women in Science, uma organização de estímulo à atuação feminina nas áreas de C&T nos países em desenvolvimento. Na época, cientistas brasileiras apontaram uma realidade pessimista quanto ao status da mulher na pesquisa do Brasil.

Outras cientistas da América Latina e Caribe relataram dificuldades na dedicação integral às atividades científicas, por causa da pouca disponibilidade de tempo, por serem responsáveis, também, pelas tarefas domésticas.

Na mesma conferência, dados apresentados por cientistas colombianas mostraram que a realidade dos países latino-americanos se assemelha à brasileira. Alicia Reichel, da Academia de Ciência e Relações Internacionais da Colômbia, mostrou que o machismo e a estrutura familiar são fatores determinantes que dificultam o acesso das mulheres colombianas às carreiras científicas.

Há mais de 10 anos dessa primeira conferência, ainda persistem estereótipos sexuais na educação e pressão social que induzem jovens brasileiras, ao concluírem o ensino médio, a escolher carreiras tradicionalmente femininas, diz Fanny. Outras publicações reforçam o seu argumento. É o caso de O martelo das feiticeiras:'Malleus Maleficarum', escrito pelos inquisidores Heinrich Kramer e Fames Sprenger, em 1484, que foi o manual usado na Inquisição. Na introdução da edição moderna do livro, Rose Marie Muraro escreve que os grupos primitivos, hoje representados por poucos povos ainda existentes, sobreviviam da coleta dos frutos, pequena caça e pesca. Sem divisão de trabalho entre os sexos, a mulher era considerada sagrada por dar a vida. Quando os homens começaram a caçar grandes animais, a força física tornou-se importante e a supremacia masculina se estabeleceu.

Ao dominar a sua função reprodutora, o homem passou a controlar a sexualidade feminina e a mulher passa a ser sua propriedade, tendo como única função reconhecida, a reprodução.

Do fim do século XIV até meados do século XVIII, tidos como séculos de "caça às bruxas" as mulheres foram duramente reprimidas e morreram aos milhares. Era perigoso ser mulher: qualquer uma poderia ser julgada como bruxa e submetida às regras cruéis do Malleus Maleficarum.

Ameaças e discriminação ainda não acabaram. Fanny escreveu O laboratório de Pandora para denunciar a condição das mulheres brasileiras na ciência. Pode-se até dizer que, por suas mãos e de outras mulheres revolucionárias -"bruxas do terceiro milênio" - as bruxas da Idade Média começam a ser vingadas.



Juliana Schober
Revista Ciência e Cultura

domingo, 22 de maio de 2022

Maternidade e formas de maternagem desde a idade média à atualidade




Motherhood and mothering forms since the middle ages to the present

Silvia Mayumi Obana Gradvohl1, I, II, III, IV; Maria José Duarte Osis2, II; Maria Yolanda Makuch3, II

I Professora do curso de Psicologia da Universidade São Francisco (USF – Campinas e Itatiba)
II Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas – Universidade Estadual de Campinas (FCM-UNICAMP) SP - Brasil
III Universidade Paris Diderot (Paris 7)
IV Bolsa Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior/Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior PDSE/CAPES


RESUMO

Tradicionalmente a maternidade e a maternagem são vistas como decorrentes de relações biológicas e afetivas estabelecidas entre mãe e filho. Atualmente, com o avanço das tecnologias reprodutivas e as novas configurações familiares, observa-se o desenvolvimento de novas possibilidades de maternidade e maternagem que questionam os vínculos biológicos e os papéis de gênero nos cuidados ao filho. A reflexão sobre a construção social da maternidade e da maternagem ao longo do tempo pode favorecer a discussão sobre as demandas das novas configurações familiares. O objetivo deste artigo é realizar uma reflexão sobre os diferentes valores da maternidade e as diversas formas de maternagem desde a Idade Média até a atualidade, nas sociedades ocidentais.

Palavras-chave: Maternidade, Maternagem, Mulher.

ABSTRACT

Traditionally motherhood and mothering are seen as resulting from biological and affective relations between mother and son. Today, with the advancement of reproductive technologies and new family configurations observed the development of new sources of motherhood and maternal bonds questioning the biological and gender roles in the care of child. The reflection on the social construction of motherhood and mothering over time can encourage discussion about the demands of new family configurations. The purpose of this article is a reflection on the different values of motherhood and the various forms of mothering since the Middle Ages to the present, in western societies.

Keywords: Maternity, Mothering, Woman.





Introdução

De modo geral, observa-se que o desejo pela maternidade pode ocorrer antes mesmo da existência de um corpo grávido, com as brincadeiras de bonecas na infância (Gradvohl, Osis & Makuch, 2013). Entretanto, é durante a gravidez, com a presença do filho em seu corpo, que a mulher começa a se sentir mais intensamente como mãe (Lo Bianco, 1985). A intensidade e o momento em que se vivenciará a maternidade estão diretamente relacionados às influências culturais do meio em que a mulher se encontra e também de sua história pessoal e afetiva (Badinter, 1987).

Enquanto a maternidade é tradicionalmente permeada pela relação consanguínea entre mãe e filho, a maternagem é estabelecida no vínculo afetivo do cuidado e acolhimento ao filho por uma mãe. O modo como se dará esse cuidado, segundo a antropóloga Kitzinger (1978), dependerá dos valores socialmente relacionados ao que é ser mulher e ao significado de um filho em um determinado contexto cultural. Desta forma, espera-se que a valoração e a vivência da maternidade e da maternagem variem historicamente e de acordo com a inserção das mulheres em culturas específicas. O objetivo deste artigo é realizar uma reflexão sobre os diferentes valores da maternidade e as diversas formas de maternagem desde a Idade Média até a atualidade nas sociedades ocidentais.

A desvalorização da maternidade e da maternagem

Durante a Idade Média, a família europeia era constituída a partir dos interesses econômicos, excluindo qualquer tipo de relação afetiva entre os cônjuges e entre estes e os filhos. Os casamentos eram arranjados e visavam à manutenção dos bens familiares. Neste cenário, as mulheres e as crianças figuravam igualmente como pessoas de pouca importância, que se subordinavam ao marido/pai. Nenhum valor especial era atribuído à maternidade e tampouco aos bebês. A maternagem não era exercida pelas mães, que a delegava às camponesas pobres. Os bebês eram alimentados pelas amas-de-leite e permaneciam sob os cuidados de terceiros até atingirem cerca de oito anos de idade. Após essa idade as crianças eram integradas às atividades domésticas cooperando como força de trabalho e sendo consideradas adultos em miniatura (Ariès, 1981).

A ausência da maternagem pela mãe e a falta de cuidados especiais colaboravam para as altas taxas de mortalidade dos nascidos vivos naquela época (Badinter, 1987). A justificativa para a negligência das mães era que o bebê não merecia tamanha atenção, uma vez que, por ser frágil, teria poucas chances de sobrevivência (Ariès, 1981). Também na Idade Média era comum o infanticídio e a prática do abandono da criança à própria sorte como forma de limitar o número de filhos (Bonnet, 1990). As famílias eram numerosas e o acolhimento às pessoas nas casas não se restringia aos que possuíam os mesmos laços sanguíneos, sendo dominante a vida em comunidade. Também não existia privacidade nas casas e todas as pessoas tinham livre acesso a todos os cômodos (Ariès, 1981).

Valorização da maternidade e maternagem

Entre os séculos XVII e XIX, com o desenvolvimento do capitalismo e a ascensão da burguesia, instaura-se a divisão entre esferas públicas e privadas. Cabia ao estado administrar as relações de produção e à família as condições de sobrevivência. Deste modo, a criança, até então criada em comunidade, passa a ser responsabilidade dos pais. Ao mesmo tempo, consolida-se a diferenciação de papéis sociais. Ao homem caberia o sustento da casa, enquanto à mulher os cuidados da família (Scavone, 2001).

Esse cuidado da mulher com os filhos não se restringiria apenas ao atendimento das necessidades básicas do bebê, mas também a uma disponibilidade psíquica, a qual passa a ser denominada maternagem (Winnicott, 1956/2000).

Nesse período, tem início uma alteração na imagem da mulher como mãe. A maternagem passa a ser extremamente valorizada e os cuidados relativos a essa atividade passam a ser exclusivos da mãe. Ela é quem deve cuidar e amamentar os filhos (Correia, 1998). O desenvolvimento da nova função culmina na rápida associação entre mulheres, e maternidade e maternagem. Ao mesmo tempo, iniciam-se por volta de 1760 as publicações médicas definindo como deveria ser esse cuidado e estabelecendo a amamentação como um dever das mães. Boas mães seriam aquelas que nutrissem um amor incondicional pelos filhos. É nessa época que surge o mito do instinto materno, segundo o qual a maternidade era uma tendência feminina inata, assim como a maternagem, pois se somente as mulheres poderiam gestar, eram elas as pessoas mais apropriadas para criar os bebês (Badinter, 1987).

Dentro desse contexto, no início do século XIX, evidencia-se cada vez mais a exaltação social da maternidade e da maternagem. A mulher adquire maior valorização social, passando a ser a responsável pelo lar e pela criação dos novos cidadãos (Moura, 2004). Com a incorporação das novas atividades, as mulheres passam a desejar adjetivos como “mulher-mãe”, “rainha do lar”, que agregavam respeito às chamadas novas mulheres modernas (Freire, 2008).

Quanto mais responsabilidades a mulher assumia dentro do lar como mãe e educadora, maior era o status adquirido na sociedade, que valorizava o devotamento e sacrifício em benefício dos filhos e da família (Moura, 2004).

A valorização da vida familiar contribui para que tenha início o desenvolvimento da vida privada também. As casas passam a ser dividas por cômodos e ocorre a maior proximidade entre os membros familiares. Os vínculos tornam-se mais afetivos e os casamentos arranjados perdem espaço (Ariès, 1981). As crianças passam a ser consideradas como promessas de realização dos adultos, merecendo todo cuidado e atenção da mãe. Além do cuidado materno, o estado passa a ter interesse na educação dos futuros cidadãos. Isso ocorre porque a moralidade da família passa a ser essencial à consolidação do sistema capitalista.

A valorização da maternidade na Europa, despovoada após a primeira guerra mundial, também respondia aos interesses pró-natalistas do estado capitalista. Para esse sistema, o aumento da população favoreceria o enriquecimento da nação. Respondendo aos objetivos do estado capitalista, a ideologia maternalista na Europa, além de incentivar o aumento das taxas de fecundidade, transformou a maternidade em um dever patriótico. Às mães caberia o futuro da nação. Seriam elas as responsáveis pelos filhos saudáveis que se tornariam cidadãos úteis à pátria.

Dentro desse contexto, evidencia-se uma pressão social para que as mulheres se tornassem mães. Isto desencadeou nas mulheres que não tinham o desejo da maternidade a sensação de inadequação social (Correia, 1998) ou culpa por não terem condições de dedicarem-se única e exclusivamente à maternagem devido à chamada jornada dupla de trabalho (no lar e fora do lar) (Moura, 2004).

Questionamento da maternidade e da maternagem

Respondendo à pressão social para a maternidade, iniciam-se paralelamente dois tipos de movimentos feministas: o movimento radical, que associava a maternidade à submissão ao homem (Szapiro, 2008), e o movimento maternalista, que defendia a maternidade e a maternagem como principais papéis sociais femininos, reivindicando o reconhecimento dessas funções como um trabalho que deveria ser remunerado (Bock, 1991).

O movimento radical compreendia a maternidade e a maternagem como responsáveis por tornarem as mulheres dependentes dos homens, uma vez que a dependência do filho à mãe por um longo período de tempo a impossibilitava de realizar outras atividades. Segundo esse movimento, a solução para as mulheres se encontrava no controle da reprodução (Scavone, 2001). Assim, a procriação não deveria mais ser considerada como destino inevitável da mulher, mas sim como uma opção (Szapiro, 2008).

Por outro lado, o movimento maternalista considerava a maternagem como uma das atividades essenciais à vida feminina. Tão essencial e importante que deveria ser remunerado pelo Estado como um trabalho, já que era também uma atividade social. O objetivo desse movimento era, portanto, a remuneração dos trabalhos domésticos. Não havia questionamentos quanto à limitação da mulher ao trabalho doméstico como no movimento radical.

As reinvindicações das feministas radicais, como a luta pela contracepção livre e gratuita e a liberação do aborto, no início do século XX, tinham como premissa fundamental a livre escolha pela maternidade (Scavone, 2001). Tais reinvindicações progressivamente abriram espaços para questionamentos a respeito da imposição social às mulheres para a maternidade e da atividade exclusiva da maternagem às mães, contrariando os preceitos do instinto materno.

A paternagem participativa

Se antes houve a reinvindicação das mulheres ao direito de escolher quando a maternidade deveria ocorrer, porque elas desejavam realizar outras atividades, ao ocorrer de fato o ingresso das mulheres no mercado de trabalho por volta de 1960, a demanda passa a ser sobre a divisão das tarefas domésticas e da maternagem com os homens (Freitas, 2007).

A participação masculina nessas novas demandas não ocorre de modo igual. A presença masculina ocorre de forma mais efetiva no que se refere aos cuidados com os filhos, se comparada à participação nas atividades domésticas (Araújo & Scalon, 2005). Válido ressaltar, entretanto, que essa proximidade masculina no cuidado com o filho é mais frequente na criança em idade escolar, quando já deixaram de ser alimentados exclusivamente pelo leite materno (Demo, 1992).

Já a menor participação dos homens nas tarefas domésticas é atribuída ao fato de que estas atividades ainda são consideradas essencialmente femininas, permanecendo ainda a segregação por gênero (Jablonski, 2010).

Embora ainda incipiente, nota-se que a maior participação dos homens nos cuidados ao filho, tem possibilitado a desintegração de antigos estereótipos paternos e maternos, favorecendo a paternidade participativa. Neste novo modelo de paternidade, espera-se do homem não apenas o sustento financeiro da família, como na família patriarcal, mas uma paternidade que se expresse também nos cuidados educacionais e afetivos com os filhos (Freitas et al.,2009)

É a partir da paternidade participativa que tem início o conceito de parentalidade por volta dos anos 60. O termo parentalidade surgiu na França e se refere à dimensão do processo e construção do relacionamento entre pais e filhos (Zornig, 2010). Nesse conceito, o cuidado com os filhos é exercido tanto pelo pai quanto pela mãe. Nesse sentido, a maternagem começa a ser concebida como uma tarefa a ser exercida independente do gênero (Scavone, 2001).

Diferentes tipos de maternidade e maternagem

A partir dos anos 90 do século XX, com o avanço da medicina reprodutiva possibilitando novas formas de procriação, vem à tona a questão do parentesco sanguíneo na maternidade e paternidade. (Pozzi, 2009). As tecnologias reprodutivas separam a reprodução da sexualidade, rompendo com o determinismo biológico. Além da quebra da certeza universal de que mãe seria a mulher que pariu a criança (Freire, 2008). Com isso, há o surgimento da família artificial, com personagens que se distinguem em mãe biológica (mãe que “empresta” o útero ou doa os óvulos) exercendo a maternidade substitutiva (Freire, 2008) e o pai biológico (pai que doa os espermatozoides) cumprindo a paternidade genética (Scavone, 2001). Do mesmo modo, se estabelecem a mãe e o pai sociais, aos quais cabe exercer a atividade de maternagem com o bebê.

Recentes conquistas na medicina reprodutiva ainda levantam questões bem mais complexas como a possibilidade de um mesmo bebê ter três pais genéticos. Trata-se de projeto inglês que poderá legalizar a modificação do genoma humano por meio da doação mitocondrial de uma mulher saudável a um casal cuja mulher seja portadora de algum problema grave. Através dessa técnica o núcleo do óvulo da mãe seria inserido no óvulo da doadora saudável e, posteriormente, seria fertilizado com o espermatozoide do pai. No projeto, a doadora seria considerada como um doador de órgãos (Pubmed Health, 2014).

Ainda ao final do século XX, observa-se que também as uniões homoafetivas suscitam questões bem mais complexas em relação à maternagem do que a paternidade participativa e as questões de gênero a ela relacionadas. Para os casais homoafetivos o desejo da constituição de uma família é dificultado pela genuína impossibilidade de gerar um filho que seja fruto da relação que vivenciam. A vinda de um filho para essas uniões é sempre dependente de uma terceira pessoa com quem um dos membros do casal homoafetivo procriaria. Ou ainda de terceiros, no caso de adoção (Passos, 2005).

Esse novo tipo de família suscita a questão do exercício da maternagem por dois pais ou duas mães. Para Roudinesco (2003) essas novas configurações questionam as funções paternas e maternas, antes rigidamente demarcadas, e apontam para uma forma mais flexível e afetuosa de relacionamento. Assim, é possível pensar em uma horizontalidade das hierarquias e na ausência de papéis fixos entre os membros, possibilitando distintas referências de autoridade. Além disso, as filiações ocorreriam não apenas entre os familiares, mas também entre grupos de amizade (Passos, 2005).

Também é preciso considerar que, atualmente, nas camadas mais pobres a maternagem é dividida com os vizinhos da comunidade, avós, tios e filhos mais velhos (Almeida, 2007). Por outro lado, nota-se que em famílias com maior poder aquisitivo, a maternagem é dividida com creches, escolas de artes, música, idiomas, esporte e outras atividades que mantenham a criança ocupada. Esse tipo de maternagem é denominado de terceirização do cuidado e traz como pano de fundo a preocupação dos pais com o futuro profissional dos filhos (Andrade, Mishima-Gomes & Barbieri, 2012).



Considerações finais

Os papéis sociais de homens e mulheres em relação à procriação e cuidado dos filhos se modificam ao longo da história e do desenvolvimento socioeconômico dos grupos humanos. A maternidade já teve diferentes valores sociais e hoje pode ser avaliada como desvalorizada e ao mesmo tempo valorizada. Desvalorizada, se pensarmos nas mães de gestação que muito se assemelham às mães da Idade Média, que basicamente pariam os filhos e depois os entregavam aos cuidados de terceiros. Por outro lado valorizada, se considerarmos a maternidade genética, quando a mãe social faz questão de que o filho tenha seu material genético.

Quanto à maternagem, evidencia-se que não é mais exercida unicamente pela mãe, sendo dividida com outras pessoas ou instituições, prática também já realizada na Idade Média. Entretanto, ao contrário do que ocorria naquela época, não podemos considerar que por conta disso possa ser considerada como desvalorizada, pois, muitas vezes, deixar o cuidado do filho sob a supervisão de terceiros é a única alternativa para que a mãe possa trabalhar e assim contribuir para o sustento (essencial ou não) da família.

As mudanças na maneira como as sociedades ocidentais lidam com as questões relativas à procriação e ao cuidado com os filhos aparecem como resultado da interação entre as condições materiais da existência e as transformações do pensamento e do imaginário social. Isto faz com que os significados atribuídos aos relacionamentos e aos papéis sociais se modifiquem e passem a demandar novas adaptações nos diversos contextos sociais. A reflexão sobre a construção social da maternidade e da maternagem ao longo do tempo pode favorecer a discussão sobre as demandas das novas configurações familiares frente a uma realidade que muitas vezes só atende aos tradicionais modelos familiares.



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Silvia Mayumi Obana Gradvohl

Maria José Duarte Osis

Maria Yolanda Makuch


1 Psicóloga, professora do curso de Psicologia da Universidade São Francisco (USF – Campinas e Itatiba). Mestre em Ciências da Saúde pelo Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas – Universidade Estadual de Campinas (FCM-UNICAMP), atualmente é aluna de doutorado pelo mesmo Departamento e Universidade (UNICAMP) SP- Brasil, com período de doutorado sanduíche na Universidade Paris Diderot (Paris 7) - bolsa PDSE/CAPES.
2 Socióloga, Ph.D. Professora Colaboradora do Programa de Pós-graduação em Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas – Universidade Estadual de Campinas (FCM-UNICAMP), SP – Brasil.
3 Psicóloga, Ph.D. Professora Colaboradora do Programa de Pós-graduação em Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas – Universidade Estadual de Campinas (FCM-UNICAMP), SP – Brasil.
Revista Pensando Familia

O corpo no Ocidente Medieval




Diogo da Silva Roiz

RESENHAS

O corpo no Ocidente Medieval
Diogo da Silva Roiz


Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul

Uma história do corpo na Idade Média.

LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas

Tradução: Marcos Flamínio Pires. Revisão técnica: Marcos de Castro.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 207 p.

O corpo está no centro de toda relação de poder.

Mas o corpo das mulheres é o centro,de maneira imediata e específica.1



Desse modo, Michelle Perrot, em 1994, sintetizava as relações de poder que mediavam estreitamente os debates sobre 'gênero' na Europa. Muito embora Jacques Le Goff apenas circunstancialmente houvesse tratado do assunto, com Uma história do corpo na Idade Média, que foi escrito em parceria com Nicolas Truong, os autores ofereceram uma bela contribuição para o entendimento desse tema na Civilização do Ocidente Medieval.



Não faz muito tempo que os estudos históricos se abriram para um conjunto de temas e objetos mais amplo, o que, mesmo assim, não quer dizer que todos os temas, fontes e objetos já foram pesquisados pelo historiador. Quanto maior é o número de abordagens possíveis de serem utilizadas na pesquisa histórica, mais nítida se torna a constatação de que as 'grandes' mudanças teóricas e metodológicas da história são provenientes da renovação e da ampliação dos temas investigados.



No entanto, o problema, muitas vezes, está em operacionalizar adequadamente um procedimento de pesquisa à análise de certos objetos. Cada vez mais tem se demonstrado que certos problemas, certas abordagens são pertinentes para alguns temas, mas não para outros. Como tornar o assunto passível de ser inquirido e estudado pelo pesquisador é, nesse caso, o problema fundamental. E foi pensando nessas questões que os autores indicam a necessidade de estudarem o 'corpo' na Idade Média europeia e justificam esse propósito.



Desde o início a preocupação dos autores esteve em demonstrar que o corpo, enquanto objeto de pesquisa, constitui uma das grandes lacunas da história, "um grande esquecimento do historiador. A história tradicional era, de fato, desencarnada. Interessava-se pelos homens e, secundariamente, pelas mulheres. Mas quase sempre sem corpo" (p. 9). Pensando nisso, seria, segundo eles, "preciso [...] dar corpo à história. E dar uma história ao corpo" [porque] "o corpo tem uma história", [e a] "concepção do corpo, seu lugar na sociedade, sua presença no imaginário e na realidade, na vida cotidiana e nos momentos excepcionais sofreram modificações em todas as sociedades históricas" (p. 10). Por isso mesmo, a "história do corpo na Idade Média é [...] uma parte essencial de sua história global" (p. 11), inevitável e indispensável para se compreender adequadamente a sociedade contemporânea, na qual o corpo tem, progressivamente, ganhado cada vez mais destaque na mídia.



Mas, tratando-se de um tema pouco estudado, embora justificável de tal esforço, como deve ser estudado o corpo na história das sociedades? Como o corpo foi pensado e visualizado na Idade Média? O que foi, portanto, o 'corpo' para aquela sociedade do Ocidente Medieval?



Para eles, primeiro, o corpo foi o resultado de uma das várias tensões vividas no período, porque a "dinâmica da sociedade e da civilização medievais resulta[va] de tensões" (p. 11). E uma das principais tensões no período "é aquela entre o corpo e a alma". De um lado, o corpo é fruto da benção e da glorificação, principalmente religiosa (quando se trata do corpo de Cristo), e, de outro, é "desprezado, condenado, humilhado". Isso porque "O corpo cristão medieval é de parte a parte atravessado por essa tensão, esse vaivém, essa oscilação entre a repressão e a exaltação, a humilhação e a veneração" (p. 13). Segundo, e como consequência, as representações dos homens sobre as mulheres, e sobre eles mesmos no período (que tinha na visão sua principal medida de sentido da realidade), acabavam sendo mediadas por aquelas 'tensões' entre o material e o espiritual. Terceiro, para melhor compreender o período, os autores pensaram a Idade Média na sua divisão clássica dos séculos V ao XV e, também, entre os séculos XV e XVIII, cujas principais características, eles acreditam, ainda estejam incidindo sobre a sociedade ocidental.



Portanto, dos questionamentos acima, o mais difícil para os autores foi como estudar o corpo, objeto praticamente "esquecido pela história e pelos historiadores", segundo apontam, ao longo da justificativa desse trabalho. Para eles, autores como Norbert Elias, Marc Bloch, Lucien Febvre, Michel Foucault, e mesmo Jules Michelet no século XIX, foram exceções àquela regra, abrindo caminhos, que depois foram prosseguidos por Ernest H. Kantorowicz (1895-1968), Mikhail Bakhtin (1895-1975), Michel de Certeau (1925-1986), Georges Duby (1919-1996), Paul Veyne, Peter Brown e Jean-Claude Schmitt. Os autores indicam ainda a importância dos estudos sociológicos (desde os produzidos por Émile Durkheim) e dos antropológicos (desde os pioneiros do século XIX). Ao demonstrarem sua dívida intelectual para com esses autores pioneiros, eles apontam que, ainda assim, o corpo continuou um objeto pouco estudado. Desse modo, o corpo ser investigado na Idade Média era também oportuno, não apenas por ser escassamente estudado, mas porque naquele período se concebeu muitos de nossos comportamentos. Com o 'cristianismo' houve uma reestruturação nos conceitos e nas práticas corporais e comportamentais daquela sociedade. Foi o momento de formação do 'Estado' e das 'cidades modernas', "de que o corpo será uma das mais prolíficas metáforas e cujas instituições o irão moldar". No plano cultural houve uma completa alteração no espaço urbano, que acabou redefinindo as próprias práticas religiosas, ao redimensionar o centro de poder do 'campo' para as 'cidades'. Na Idade Média, "o corpo é o lugar crucial de uma das tensões geradoras da dinâmica do Ocidente" (p. 31), porque até então era uma novidade. Por outro lado, pensar o corpo e a sua história é pertinente também para se inquirir a sociedade contemporânea e a sua revolução comportamental, sexual, gestual e corporal, acelerada a partir dos anos de 1960.



Para delimitarem melhor a pesquisa, os autores dividiram o trabalho em quatro capítulos. Os dois primeiros, mais densos e consistentes, abrangem 98 páginas (56 p. e 42 p.) e discutem as consequências do carnaval e da quaresma, e de viver e morrer na Idade Média. Os dois últimos, com 42 páginas (22 p. e 20 p.), discutem como o corpo passou a ser sistematicamente 'civilizado' e utilizado como uma 'metáfora' para se pensar outras questões e lugares.



Para eles,



A humanidade cristã repousa tanto sobre o pecado original - quanto sobre a encarnação: Cristo se faz homem para redimir os homens de seus pecados. Nas práticas populares, o corpo é contido pela ideologia anticorporal do cristianismo institucionalizado, mas resiste à sua repressão (p. 35).



A 'tensão' entre um corpo feminino 'diabolizado' e um corpo masculino 'endeusado' ficaria latente no período, porque de início o corpo na Idade Média foi renunciado. Controlar a sexualidade feminina, seus gestos, suas práticas, sua conduta na sociedade passaria a ser uma questão mediada pela Igreja e aceita pela sociedade. Mesmo assim, o próprio corpo feminino não deixou de também ter 'tensões' entre o bem (a procriação, a virgindade de 'Maria', a castidade e o cuidado com a família) e o mal (a sexualidade, a prostituição, a luxúria e a perversão da alma), porque "o culto do corpo da Antiguidade cede lugar, na Idade Média, a uma derrocada do corpo na vida social" (p. 37). Igualmente importante, foram os 'tabus' construídos pela instituição religiosa sobre os fluidos corporais, como o esperma e o sangue. E "é possível afirmar que o corpo sexuado da Idade Média é majoritariamente desvalorizado, as pulsões e o desejo carnal, amplamente reprimidos" (p. 41), principalmente, no discurso institucionalizado da Igreja:



[...] a religião cristã institucionalizada introduz uma grande novidade no Ocidente: a transformação do pecado original em pecado sexual. Uma mudança que é uma novidade para o próprio cristianismo, já que, em seus primórdios, não aparece traço algum de uma tal equivalência, assim como nenhum termo dessa equação figura no Antigo Testamento da Bíblia. O pecado original, que expulsa Adão e Eva do Paraíso, é um pecado de curiosidade e de orgulho (p. 49).



No entanto,



A transformação do pecado original em pecado sexual é tornada possível por meio de um sistema medieval dominado pelo pensamento simbólico. Os textos da Bíblia, ricos e polivalentes, se prestam de bom grado a interpretações e deformações de todos os gêneros. A interpretação tradicional afirma que Adão e Eva quiseram encontrar na maçã a substância que lhes permitiria adquirir uma parte do saber divino. Já que era mais fácil convencer o bom povo de que a ingestão da maçã decorria da copulação mais que do conhecimento, a oscilação ideológica e interpretativa instalou-se sem grandes dificuldades (p. 51).



Assim, não é por acaso que "a subordinação da mulher possui uma raiz espiritual, mas também corporal". Sendo ela 'fraca', conforme a verá a Igreja, "a primeira versão da Criação presente na Bíblia é esquecida em proveito da segunda, mais desfavorável à mulher". Com isso, da "criação dos corpos nasce, portanto, a desigualdade original da mulher", e ela "irá pagar em sua carne o passe de mágica dos teólogos, que transformaram o pecado original em pecado sexual". Por outro lado, "ela é subtraída até mesmo em sua natureza biológica, já que a incultura científica da época ignora a existência da ovulação, atribuindo a fecundação apenas ao sexo masculino" (p. 54). Não foi sem razão que Georges Duby disse que essa Idade Média é "masculina", pois todos os discursos que nos chegaram, além de serem escritos por homens, estes estavam convictos de sua superioridade, como lembrarão ainda os autores.



De acordo com os autores, a revanche do 'corpo' martirizado pela Quaresma, que visava contornar o 'paganismo' e sistematizar regras de conduta para homens e, principalmente, para as mulheres, estava nas práticas do Carnaval. A tensão entre a Quaresma e o Carnaval será também uma tensão entre a vontade e a liberação, a regra e a discórdia, o bem e o mal, o homem e a mulher, numa sociedade fundamentalmente rural (já que em torno de 90% da população vivia nos campos nesse período). As cidades só passaram a ter maior representatividade entre os séculos XII e XIV. Numa tensão semelhante estará o 'trabalho', entre o castigo e a criação. Vê-se ainda que



O corpo é separado entre as partes nobres (a cabeça, o coração) e ignóbeis (o ventre, as mãos, o sexo). Ele dispõe de filtros que podem servir para distinguir o bem do mal: olhos, orelhas e boca.



A cabeça está do lado do espírito; o ventre, do lado da carne. Ora, o riso vem do ventre, isto é, de uma parte má do corpo [não sendo, por isso, visto com bons olhos pelos teólogos e, consequentemente, pela sociedade] (p. 76).



Assim, o "Carnaval do coração se manifesta[va] sob a Quaresma do corpo. [...] O que não quer dizer que os homens e as mulheres da Idade Média não conheçam os arroubos do coração ou as folias do corpo, que ignorem o prazer carnal e a afeição pelo ser amado, mas o amor, sentimento moderno, não era um fundamento da sociedade medieval" (p. 97). O desinteresse pela mulher na Idade Média dá-se também no período de gestação, em que a mulher grávida "não é objeto de nenhuma atenção particular". E essa desatenção perpassa sobre todas as camadas da sociedade. Na velhice, a mulher também não será bem quista, em muitas ocasiões, por ser, dependendo de sua conduta, vista como 'bruxa'. De modo geral, a velhice feminina terá uma desatenção semelhante à da mulher grávida.



As doenças e o estado mental das pessoas durante esse período também sofrerão altos e baixos, vindo a ser ora motivo de aversão, ora de cuidados e de arrependimento. Mais ainda,



[...] os homens da Idade Média podem recorrer a um outro médico além de Cristo. Pouco a pouco, os médicos da alma - os padres - se distinguem daqueles do corpo - os médicos -, que vão se tornar ao mesmo tempo sábios e profissionais, assim como uma corporação, um corpo de ofício. Surgem escolas de medicina, assim como universidades em que homens se formam em uma ciência que é considerada, sem dúvida, um dom de Deus, mas, igualmente, um ofício. Os médicos trabalham, pois, como profissionais pagos [...] (p. 113).



As 'tensões' da Idade Média, por isso mesmo, não se limitavam apenas às questões corporais, mas estavam, inevitavelmente, ligadas a questões espirituais. O trato dos vivos com os mortos é um exemplo singular:



Desde a Antiguidade, com efeito, os vivos se ocupavam dos corpos dos membros de suas famílias. As mulheres, em particular, eram encarregadas de lavá-los, de prepará-los para juntarem-se ao reino dos mortos que, segundo a crença, retornavam às vezes para atormentar a alma dos vivos. Com o cristianismo, estabelece-se uma hierarquia entre os defuntos, sem colocar em questão as práticas herdadas do paganismo. Somente as sepulturas dos santos, danificadas e manipuladas de diferentes maneiras, podiam ser objeto de celebração e veneração. Reza-se para os mortos, é certo, mas com a intercessão de novos heróis, os santos (p. 122).



É a conduta dos 'vivos' que mediará os seus destinos após a 'morte'. Aos que se comportaram adequadamente, o 'Paraíso'; aqueles que não, o 'Inferno'. Esse era o tipo de 'horizonte' que invadia o pensamento dos homens e das mulheres da Idade Média.



A dieta alimentar, o respeito às regras, o cultivo do espírito e a submissão à Igreja marcavam, assim, as expectativas dos homens e das mulheres. Desse modo, o cuidado com o nu, com os excessos de alimentos, a 'gula', com as práticas corporais (o sexo, em particular) e esportivas (a mostra do corpo em público), igualmente, marcavam o tipo de conduta a ser respeitada. Durante a Idade Média, as normas quanto às condutas corporais não se limitavam apenas aos membros da sociedade, como ainda faziam parte da própria organização das metáforas usadas para definir o espaço de convivência social, em especial, o das cidades:



As concepções organicistas das sociedades fundadas sobre metáforas corporais que utilizam ao mesmo tempo partes do corpo e o funcionamento do corpo humano ou animal em seu conjunto remontam à alta Antiguidade. [...] O sistema cristão de metáforas corporais repousa sobretudo no binômio cabeça/coração. O que dá toda força a essas metáforas nesse sistema é o fato de que a Igreja, sendo comunidade de fiéis, é considerada um corpo do qual Cristo é a cabeça. Essa concepção dos fiéis como semelhantes a membros múltiplos, levados por Cristo à unidade de um só corpo, foi estabelecida por São Paulo (p. 162).



Nessa medida, a metáfora corporal também será igualmente importante na definição da organização das cidades e da realeza, das funções do rei e de sua mediação entre a matéria e o espírito. Portanto,



A história do corpo oferece ao historiador e ao interessado em história uma vantagem, um interesse suplementar. O corpo ilustra e alimenta uma história lenta. A essa história lenta, que é, em profundidade, a das idéias, das mentalidades, das instituições e mesmo a das técnicas e das economias, esse interesse dá um corpo, o corpo (p. 173).



Nesse sentido, o "corpo tem, portanto, uma história", o corpo foi o tema dessa história escrita pelos autores. Resumido o enredo principal do livro, convém que se analisem alguns pontos. Primeiro, embora partam do suposto de que a abordagem cubra o período do século V ao XVIII, a interpretação privilegia os séculos X ao XIV. Segundo, por ser uma obra de caráter de síntese (tal como o ensaio), e não monográfico, nem por isso deixa de ser oportuna a observação sobre o uso demasiado das generalizações, quanto aos comportamentos femininos e masculinos para o período, sobre a maneira de controlar as vontades humanas por intermédio de um sistema de regras de conduta (elaborado e organizado pela Igreja) e sobre as formas de representação dos corpos para toda a sociedade europeia na Idade Média. Destaque-se ainda que, mesmo sendo um tema pouco explorado pela historiografia ocidental, a história do corpo mostra-se um tema rico, e ainda mais complexo do que supuseram os próprios autores, mesmo quanto ao que concerne ao período da Idade Média.2 Deixando de lado as reservas, não há como negar os méritos e as contribuições dessa obra, principalmente, por destacar as 'metamorfoses', positivas e negativas, sobre as representações do corpo feminino e masculino, e suas tensões entre o material e o espiritual na Civilização do Ocidente Medieval.


Notas

1
Michelle PERROT, 2005, p. 447.


2
Jean-Claude SCHMITT, 2007; e Alain CORBIN, Georges VIGARELLO e Jean-Jacques COURTINE, 2008.


CORBIN, Alain; VIGARELLO, Georges; COURTINE, Jean-Jacques (Orgs.). História do corpo Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. 3 v.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história Tradução: Viviane Ribeiro. Bauru, SP: Edusc, 2005.
SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens. Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru, SP: Edusc, 2007.


O corpo no Ocidente Medieval Diogo da Silva Roiz 1 Michelle PERROT, 2005, p. 447. 2 Jean-Claude SCHMITT, 2007; e Alain CORBIN, Georges VIGARELLO e Jean-Jacques COURTINE, 2008.
Revista Estudos Femininos