quinta-feira, 17 de setembro de 2020

O SUSTENTÁCULO DO REGIME: A DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E OS ATOS INSTITUCIONAIS



Angelo Priori[1]

No Brasil, o fim das liberdades democráticas, a repressão e o terror como política de Estado, foram formuladas através de uma bem arquitetada estrutura legislativa, que dava sustentação ao regime militar. Devemos enfatizar que a ditadura militar não foi resultado do acaso, de um acidente. Pelo contrário, ela foi sendo estruturada conforme a democracia e a participação política da população iam se ampliando. Não podemos negar que no início dos anos 60 estava sendo configurada uma nova forma de ação, através da organização popular, que questionava o arbítrio interno e a dependência externa e exigia mudanças nas estruturas econômicas e sociais, visando uma maior inclusão social da população pobre e trabalhadora.

O grupo militar que tomou o poder em 1964 vinha de uma tradição militar mais antiga, que remonta à participação do Brasil na II Guerra. A participação do Brasil ao lado dos países aliados, acabou sedimentando uma estreita vinculação dos oficiais norte-americanos e militares brasileiros, como os generais Humberto de Castelo Branco e Golbery Couto e Silva [2].

Terminada a guerra, toda uma geração de militares brasileiros passaram a freqüentar cursos militares norte-americanos. Quando esses oficiais retornavam dos EUA, já estavam profundamente influenciados por uma concepção de “defesa nacional”[3]. Tanto que alguns anos mais tarde, vão criar a Escola Superior de Guerra (ESG), vinculada ao Estado Maior das Forças Armadas. Essa escola foi estruturada conforme sua similar norte-americana National War College.

Nos dez anos que vão de 1954 a 1964, a ESG desenvolveu uma teoria de direita para intervenção no processo político nacional. A partir de 1964, a ESG funcionaria também como formadora de quadros para ocupar funções superiores nos sucessivos governos”[4].

Foi dentro da ESG que se formulou os princípios da Doutrina de Segurança Nacional e alguns dos seus subprodutos, como por exemplo, o Serviço Nacional de Informações (SNI). Essa doutrina, que vai virar lei em 1968, com a publicação do decreto-lei no. 314/68, tinha como objetivo principal identificar e eliminar os “inimigos internos”, ou seja, todos aqueles que questionavam e criticavam o regime estabelecido. E é bom que se diga que “inimigo interno” era antes de tudo, comunista. Como diz Nelson Werneck Sodré: “o anticomunismo, foi assim e, sempre, o caminho para a ditadura”[5].

Essa nova estrutura de poder e de controle social se materializa com a publicação do Ato Institucional No. 1, que subvertia a ordem jurídica até então estabelecida. No preâmbulo do AI-1, instituído em 09 de abril de 1964, os militares já enfatizavam essa nova realidade.



O ato institucional que é hoje editado se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído os meios indispensáveis à ordem de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar de modo direto e imediato os graves e urgentes problemas de que dependem a restauração da ordem interna e o prestígio internacional de nossa pátria [6].



Com esse ato os militares não só ditavam novas regras constitucionais, como impunham profundas remodelações no sistema de segurança do Estado. Através do AI-1, foi institucionalizado o sistema de eleição indireta para Presidente da República, bem como dado poderes ao presidente para ditar nova constituição, fechar o congresso, caso achasse necessário, decretar estado de sítio, impor investigação sumária aos funcionários públicos contratados ou eleitos, abrir inquéritos e processos para apurar responsabilidades pela prática de crime contra o Estado ou contra a ordem política e social, suspender direitos políticos de cidadãos pelo prazo de dez anos e cassar mandatos legislativos de deputados federais, estaduais ou mesmo de vereadores.

Durante a ditadura militar foram editados 17 atos institucionais [7]. Mas entre eles, o mais polêmico e violento foi o de Número 5. O AI-5, editado em 13 de dezembro de 1968, reedita os princípios do AI-1, suspende o princípio do habeas corpus e institui de forma clara e objetiva a tortura e a violência física contra os opositores do regime. Na verdade o AI-5 simbolizou um terrível ciclo de repressão, com amplos expurgos em órgãos políticos representativos, universidades, redes de informação e no aparato burocrático do Estado, acompanhados de manobras militares em larga escala, com indiscriminado emprego da violência contra todas as classes.

Em tal contexto político, além de tudo, o Congresso Nacional teve suas atividades suspensas por quase um ano, fazendo companhia as assembléias estaduais e municipais que também foram fechadas. Com as bases do Congresso enfraquecidas, a facilidade encontrada para efetivar a publicação de atos institucionais e de decretos-leis foi grande. Os decretos-lei, em sua maioria, iniciaram um processo de regulamentação da economia brasileira, procurando, em larga medida, torná-la atrativa para os investidores estrangeiros através da concessão de incentivos fiscais que facilitassem o desenvolvimento econômico da nação.

O manto dos atos institucionais e a autoridade absoluta dos militares serviriam como proteção e salvaguarda do trabalho das forças repressivas, fossem quais fossem seus métodos de ação. Só para ter uma idéia, durante o regime militar foram criados vários órgãos de repressão, como o SNI, os DOI-CODIs, o CIEX, o CENIMAR, a CISA, além do fortalecimento dos DOPS em todos os Estados. Foram criados ainda os Inquéritos Policiais Militares (IPMs), cujo objetivo era processar e criminalizar militantes e políticos que lutavam contra o regime militar. Somente o projeto Brasil: Nunca Mais (BNM) conseguiu reunir cópias de 717 IPMs, onde foram processados mais de 20 mil pessoas [8].

O aparato repressivo estatal se constituía de elementos que agiam de forma integrada: uma rede eficiente de informação, representada essencialmente pelo SNI (Serviço Nacional de Informação) criado pelo General Golbery do Couto e Silva e em funcionamento desde 1964, responsabilizando-se por direcionar todas as informações recebidas para o Poder Executivo; organizações que encabeçavam as ações repressivas em nível local, como a DM (Divisão Municipal de Polícia), coordenada pela DOPS que, por sua vez, se encontrava sob a jurisdição das SESPs (Secretarias Estaduais de Segurança Pública); e por instâncias das Forças Armadas como o CIEX (Centro de Informação do Exército), CENIMAR (Centro de Informação da Marinha) e CISA (Centro de Informação da Aeronáutica). Estes setores contavam com a liberdade e autonomia para realizarem suas atividades. Em São Paulo, no ano de 1969, criou-se a Operação Bandeirantes (OBAN) que obtinha recursos financeiros do empresariado.

Não era formalmente vinculada ao II Exército, mas era composta com efetivos do Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Política Estadual, Departamento de Polícia Federal, Polícia Civil, Força Pública e Guarda Civil [9].

Servindo como molde e, sobretudo como um teste que, segundo os militares deu certo na luta contra a subversão, a OBAN gerou as condições, agora dentro de parâmetros formais, para a implantação, em escala nacional, do Departamento de Operações Internas - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). Surgiu em janeiro de 1970 e tinha o poder de usufruir, na área em que estivesse instalado, dos efetivos das Forças Armadas ou das polícias estaduais ou federal. No âmbito estadual, as Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS), também atuavam "em todos os níveis de repressão: investigando, prendendo, interrogando, torturando e matando"[10].

Uma das reflexões possíveis que tange a especificidade do governo militar brasileiro, refere-se a forma como o regime autoritário foi arquitetado no país. O regime foi articulado por uma notável ambigüidade, pois mesmo no exercício de um regime de exceção e essencialmente enfatizado por uma indelével "lógica da suspeição", os dirigentes procuravam legitimá-lo e caracterizá-lo como sendo um sistema de governo democrático. Do primeiro general-presidente (Humberto de Alencar Castello Branco) até o último (João Baptista de Oliveira Figueiredo) foi salientado, principalmente, nos discursos de posse dirigidos ao povo brasileiro, a adoção de "ações e comportamentos em nome da defesa da democracia no país"[11].

Por outro lado, constatou-se, ao longo de vinte e um anos de permanência dos militares no poder, que a existência de uma administração democrática foi apenas fictícia, haja vista o contundente papel repressor desempenhado pelo órgãos policiais e jurídicos a fim de suplantar possíveis distúrbios sociais que afetassem o andamento das atividades do Poder Executivo.

A instalação do governo militar no cenário político brasileiro não sofreu praticamente nenhum tipo de resistência. Com a deposição de João Goulart, o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, ocupou provisoriamente o cargo de Presidente da República. Mas, na realidade, o controle da situação política do país encontrava-se nas mãos dos líderes militares.

Em princípio, o golpe militar foi visto como um "movimento fadado a ser de curta duração e de alcance limitado"[12]. No entanto, com o decorrer dos primeiros dias, o comando militar se estruturava sobre pilares do autoritarismo e autonomeava-se salvador da democracia. O golpe se caracterizava como uma intervenção corretiva que se destinava a preservar valores democráticos. No entanto, esta aparência democrática era apenas teórica. Na prática, diversos brasileiros, inclusive ex-presidentes como Jânio Quadros e Juscelino Kubitschek, parlamentares, jornalistas, intelectuais, sindicalistas tiveram seus direitos políticos cassados. As punições foram as mais variadas e regulamentadas pelo combate à subversão e a corrupção.

O governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) representou o período de maior repressão, de arbitrariedade e de prepotência de todo o ciclo militar. Por outro lado, o "milagre econômico", que se processou entre os anos de 1968 e 1973, estigmatizado, principalmente pelos grandiosos projetos públicos e pelo acelerado crescimento econômico, diminuíram o impacto causado pelas medidas de segurança utilizadas pelo governo. Além do que, pela ação de um marketing eficiente e uma censura forte, criou-se um clima de ufanismo em toda a nação, contribuindo, em grande medida, para o fortalecimento da imagem do presidente que angariou grande margem de prestígio, principalmente nas camadas populares.

Foi no governo de Médici e, com menor ênfase no governo do General Ernesto Geisel (1974-1979), que os grupos identificados com a guerrilhas urbana e rural foram sendo progressivamente eliminados. A repressão desencadeada na época atingiu centenas, talvez milhares de pessoas envolvidas com a luta armada.

No Brasil os números da ditadura não são exatos. Depois de vinte anos do fim do governo militar, os acessos aos arquivos secretos ainda são proibidos. Os organismos de segurança, como o SNI ainda mantém seus arquivos fechados. Os únicos disponíveis para pesquisa, somente em alguns Estados brasileiros, são os arquivos do DOPS e o arquivo do projeto Brasil Nunca Mais (BNM). Por outro lado os arquivos privados de militares ainda não são muito conhecidos. Entre eles podemos destacar o Arquivo Peri Constant Bevilaqua, depositado no Museu Casa de Benjamin Constant, no Rio de Janeiro[13] e os dos generais Antônio Carlos Muricy e Golbery do Couto e Silva/Heitor Ferreira (APGCS/HF), além do Arquivo do General Ernesto Geisel, depositado no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas [14].

Aliás, essa é uma dívida que o Estado brasileiro tem com os seus cidadãos. Abrir e tornar público todos os arquivos da repressão da ditadura militar. A sociedade brasileira estabeleceu uma memória densamente acrítica com relação à ditadura: exemplo disso foi a anistia unilateral, tanto para os presos e torturados como para os torturadores (o que me parece uma discussão política vencida no Brasil). O que mais deixa indignado a comunidade de pesquisadores e os familiares das vítimas é que tanto o governo FHC, como o atual governo Lula não resolveram essa questão dos arquivos. Pelo contrário, FHC fez publicar e Lula confirmar um decreto colocando mais dificuldades de acesso aos documentos chamados sigilosos e confidenciais do período em tela.

Para finalizar, é importatante frisar que a memória desse período, de extrema repressão, onde as Forças Armadas tiveram a sua auto-imagem de defensora da pátria abalada, é ainda incômoda e imprecisa. É incômoda porque as novas descobertas sobre o período, sobretudo a partir dos depoimentos de ex-militares, trabalhos das comissões de direitos humanos, das comissões de familiares, dos grupos Tortura Nunca Mais, além de descobertas de arquivos, como o “arquivo do terror” [15], no Paraguai, desvenda com mais nitidez o terror que se abateu sobre os dissidentes do regime.

Isso faz com que, tanto a direita, como as classes dominantes, procurem se imiscuir dessa herança, através de discursos sobre a excepcionalidade do período e dos atos praticados. Elas estão imbuídas de apagar o passado e promover o esquecimento como a melhor forma da recuperação da harmonia nacional [16]. Apagar da memória os crimes cometidos pelas ditaduras é apagar da memória as lutas desenvolvidas contra elas. Apagar da memória esse passado traumático, indesejado, é querer impedir que a sociedade conheça o arbítrio e a violência política instaurada pelas ditaduras. Em contrapartida, os grupos de esquerda, os familiares e os ativistas de direitos humanos tem desenvolvido uma importante ação no sentido de construir uma memória que se contraponha à memória oficial.


[1] Professor do Departamento de História da UEM.

[2] HUGGINS, M. K. Polícia e política: relações Estados Unidos/América Latina. São Paulo: Cortez, 1998.

[3] ALVES, M. H. M. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1987.

[4] ARNS, P. E. Brasil: Nunca mais. Um relato para a história. Petrópolis: Vozes, 1985.p. 70.


[5] SODRÉ, N. W. Vida e morte da ditadura. 20 anos de autoritarismo no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 91.

[6] In: HELLER, M. I. Resistência democrática: a repressão no Paraná. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 627.

[7] Sobre os Atos Institucionais, ver: ALVES, Op. Cit. 1987; COUTO, R. C. História indiscreta da ditadura e da abertura – Brasil: 1964-1985. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1999; e GASPARI, E. A ditadura escancarada. São Paulo; Cia das Letras, 2002.

[8] ARNS, Op. Cit. 1985. Ver também: MIRANDA, N; TIBURCIO, C. Dos filhos deste solo. Mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/Boitempo editorial, 1999.

[9] ARNS, Op. Cit. 1985. p. 73.

[10] ARNS, Op. Cit. 1985. p. 74.

[11] AQUINO, M. A. A especificidade do regime militar brasileiro: abordagem teórica e exercício empírico. In: REIS FILHO, D. A. (org.). Intelectuais, história e política (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: 7 letras, 2000. p. 272.

[12] CARONE, E. O PCB (1964-1982). v. 3. São Paulo: Difel, 1982. p. 3.

[13] LEMOS, R. (Org.). Justiça fardada. O General Peri Bevilaqua no Superior Tribunal Militar (1965-1969). Rio de Janeiro: Bom Texto, 2004.

[14] GASPARI, E. A ditadura envergonhada.. São Paulo: Cia das Letras, 2002.

[15] CATELA, L. S.; JELIN, E. (Org.). Memorias de la represión. Los archivos de la represión: documentos, memoria y verdad. Madrid: Siglo XXI, 2002. MARIANO, N. C. Operación Cóndor. Terrorismo de Estado en el Cono Sur. Buenos Aires: Lohlé-Lumen, 1998. 

[16] SILVA, F. C. T. Política e memória na América Latina: a luta conta o esquecimento do tempo presente na Argentina, Uruguai e Brasil. In: MALERBA, J. (org.). I Fórum de Pesquisa – Programa Associado de Pós-Graduação em História UEM/UEL. Maringá: PGH/UEM, 2001.

As charges e a influência do Humor durante a Segunda Guerra Mundial


Vinícius Liebel[1]

A charge, enquanto parte da mídia jornalística, pode ser considerada um elemento formador de opinião pública. Sua força enquanto tal pode ser comprovada pela simples análise destas fontes, na qual verificamos a crítica ou a apologia a determinada ideologia ou governo.

Sua força é comprovada quando buscamos na teoria psicanalítica freudiana indícios que corroboram a eficiência do desenho humorístico enquanto meio propagandístico e influenciador de opiniões. Freud, em sua obra O Chiste e sua relação com o Inconsciente, traz-nos um tratado psicanalítico sobre a natureza do humor, suas ações e influências no inconsciente. Considerando as charges como uma das manifestações contemporâneas mais correntes de humor, buscamos nos apropriar deste discurso clássico e analisar como a charge pode repercutir na consciência de um indivíduo, pela produção do chiste e pelo riso.

O riso, para Freud, seria um liberador das emoções reprimidas. Desta forma, por trazer o prazer da liberação do stress emocional, a risada seria uma manifestação individual e egoísta. “O riso compensa, em seus efeitos, o dispêndio contínuo de energia, exigido para manter as proibições que a sociedade impõe e os indivíduos internalizaram.”[2] O prazer que a ato de rir traz ao indivíduo é, como toda espécie de prazer, de alguma forma, embriagante. A embriaguez então causada no indivíduo fortalece a idéia transmitida pelo fato desta idéia estar acompanhada do prazer proporcionado pela risada. O próprio ato de rir já é um indício da aceitação, por parte do indivíduo, da idéia passada. Assim,



Ele (o chiste) ademais subornará o ouvinte com sua produção de prazer, fazendo com que ele se alinhe conosco sem uma investigação mal detida, exatamente como em outras freqüentes ocasiões fomos subornados por um chiste inocente que nos levou a superestimar a substância de uma afirmação expressa chistosamente. Tal fato é revelado à perfeição na expressão “die Lacher auf seine Seite ziehen” (trazer os que riem para nosso lado).[3]



Conforme observamos, o humor seria uma das formas de protesto ou propaganda mais eficientes que podemos utilizar. As charges, por serem veiculadas em jornais e na grande mídia, têm um alcance maior que um gracejo contado numa roda de amigos. Por seu caráter mordaz, têm também a natureza da crítica e da revolta, e é dessa característica que resulta, em grande parte, a simpatia natural que sentimos por estes desenhos, pois “rimos delas, mesmo se mal-sucedidas, simplesmente porque consideramos um mérito a rebelião contra a autoridade”[4], o que nos passa a idéia de poder satirizar, por alguns instantes, um poder central. O chargista poderá tratar, através de seus desenhos, de características e críticas que não poderia tratar abertamente, seja por conta da censura ou de convenções morais. Ao passá-las para o desenho, está promovendo uma pequena “rebelião” contra o objeto da crítica, e, muito provavelmente sem saber, arrebanhando adeptos de suas opiniões pelo poder do riso.

Observaremos melhor essas colocações analisando uma de nossas fontes e verificando tais características nesse desenho.




THE THREE GANGSTERS. Londres: [s.n.], 1941. 1 cartão postal: pb.



O desenho acima reflete claramente antipatia ante os três principais membros do Terceiro Reich: Goebbels, Ministro da Propaganda do Reich, Goering, considerado, até 1945, o segundo homem do governo alemão, e Hitler, o Führer nazista. Veiculado em cartões postais ingleses a partir de 1941, o desenho sobrepõe as caricaturas de Goebbels e Goering a corpos de macacos, sugerindo que ambos pensariam e agiriam como tal, bem como teriam semelhanças físicas. Outro aspecto satirizante, este referido à figura de Goering, é a ostensiva coleção de medalhas em seu peito, característica marcante que foi utilizada por vários dos caricaturistas do Comandante em Chefe da Luftwaffe.

A caricatura de Hitler, por sua vez, revela um julgamento quanto ao seu instinto belicoso. A caracterização do Führer na figura universalmente reconhecida da morte traz um aspecto muito mais crítico que a simples ridicularização de seus comparsas no mesmo desenho, contando também com o caráter cômico.

Os psicanalistas defendem que o riso causado pela figura facilitaria a apropriação destas caracterizações no julgamento pessoal do indivíduo que a observa. Desta forma, a idéia do autor da gravura, de que Hitler é a personificação da morte e do mal e de que seus comandados não passam de animais seria apropriada pelo observador.

O humor aqui utilizado tem, portanto, um propósito: o de desmobilizar a crença pública quanto ao personagem histórico Adolf Hitler e o sistema político que ele representa. Por sua vez, Pierre Ansart nos coloca uma diferenciação dual na relação do humor com a esfera política: em um sistema pluralista como a Democracia, no qual as paixões políticas são constantemente reprimidas e cortadas a fim de manter o equilíbrio do sistema, o humor tem como função promover a multiplicidade de opiniões e a descrença quanto aos elementos nocivos, mas, principalmente, evitar as demonstrações apaixonadas das massas para com esses mesmos elementos. Sua ridicularização estabelece uma situação de inferioridade, um julgamento de valores no qual o ser político torna-se bizarro e ridículo, afastando os indivíduos pela descrença causada. Inserindo Henri Bergson na discussão, o humor trata de promover uma homogeneização da sociedade.

Nossas fontes primárias são charges e caricaturas produzidas em dois sistemas e conjunturas distintas, porém, próximas se levarmos em conta a relação entre humor e política atentada por Ansart: o regime autoritário no Brasil de Getúlio Vargas e o regime totalitário alemão de Adolf Hitler. A natureza dessas fontes, entretanto, apesar de pertencerem a conjunturas semelhantes, são diferentes. Enquanto os desenhos brasileiros são produzidos por indivíduos e veículos desligados do Estado, a saber, por Belmonte e Chichorro, respectivamente da Folha da Manhã, de São Paulo, e do jornal O Dia, de Curitiba, onde a crítica velada, característica própria das charges, poderia encontrar espaço, as charges alemãs têm seu lugar em um jornal controlado pelo Estado nazista, o Der Stürmer. Pautando nossa pesquisa na caracterização do regime nazista, sua ideologia e seus líderes, buscamos analisar de que forma as charges destes diferentes autores cumpriam o papel propagandístico de que falamos anteriormente.

O primeiro caso analisado é o de Belmonte, criador do personagem Juca Pato e considerado por muitos o maior chargista brasileiro. O título é justificado, pois poucos como Belmonte conseguiram sintetizar, em um único desenho, tantas considerações e análises de um determinado fato ou situação. Utilizando-se do semblante do personagem retratado ou do ambiente em que se encontra, dos objetos que o rodeiam ou das manchetes de jornais que evocam o assunto, o autor condensa sua opinião e sua visão em um quadro de alguns centímetros quadrados e a apresenta ao leitor, como podemos observar a seguir:




Fonte: BELMONTE. Música Maestro. São Paulo: Folha da Noite, 1940.



Aqui, Belmonte faz referência ao caráter belicoso de Hitler, numa charge que podemos considerar uma pioneira entre muitas outras que fariam críticas diretas e agudas em relação ao líder alemão e sua ideologia. Neste desenho, datado de 09 de agosto de 1940 e publicado na Folha da Noite, o Führer é retratado como maior fomentador do conflito, acusado de alimentar a morte através de uma grande carnificina, mantida através dos vários bombardeios aéreos que atingiram o território britânico. O título do desenho, “No Restaurante ‘Ao Relâmpago’”, é uma referência direta à Blitzkrieg promovida pelos alemães principalmente no início do conflito mundial. Hitler como chef do restaurante, atende aos pedidos da Morte, que exige que seu pedido seja atendido rapidamente: “Então, como é? Essa comida vem ou não vem?!”. No menu do dia, escrito no quadro abaixo da janela da cozinha, encontramos pratos não usuais, como “consome de Bombas, Filet de Granadas, Salada de dinamite à Krupp Stukas e Paraquédas, RAF em churrasco, Gazes e micróbios, Whisky fervendo, Guarda-chuva torrado, etc, etc etc, surprezas.”

Os pratos servidos no restaurante “Ao Relâmpago” trazem nomes de armamentos utilizados durante a guerra, como bombas e granadas, e de divisões das forças armadas alemãs, como os pára-quedistas e os Krupp Stukas. Há ainda a referência ao guarda-chuva de Chamberlain, que no restaurante é servido torrado. Desta forma, Belmonte coloca a impossibilidade de paz naquele momento e a guerra como o fracasso definitivo das negociações diplomáticas que visavam o fim das agressões, promovidas pelo ex-primeiro-ministro inglês. De forma semelhante ao que acabamos de expor, Belmonte se utiliza de diferentes técnicas para manipular seus desenhos, como o cinismo, o nonsense e a alusão. Na crítica ao contra-senso das decisões tomadas pelos líderes nazistas e das posições que sustentavam referentes aos mais variados assuntos, encontramos a chave para o pensamento de Belmonte, para a linha editorial de seu jornal e para a opinião formada por seus leitores.

O segundo caso é o desenho humorístico de Alceu Chichorro, jornalista paranaense e figura constante nas reuniões intelectuais curitibanas. Assim como Belmonte, Chichorro criou um personagem, Chico Fumaça, que ilustrava as aspirações da classe média e que expressava as idéias do autor. A presença de Fumaça orienta as ações nos desenhos. Seu olhar direciona as atenções do público leitor e suas colocações passam as opiniões de seu criador e de seu jornal.

Ao atentarmos para as charges produzidas por Chichorro que fazem referências ao regime nacional-socialista, podemos observar dois momentos distintos: no primeiro, que compreende o período entre os anos de 1933, data de ascensão de Hitler ao cargo de chanceler, e 1942, ano da entrada do Brasil no conflito, a visão daqueles elementos é bastante branda. A origem de tal amenidade no trato do assunto tem várias possibilidades, que vão desde uma orientação editorial voltada ao público curitibano, que tinha visões otimistas acerca do regime alemão, até uma possível simpatia velada do autor para com a ideologia nazista. As razões para este comportamento de seus desenhos, entretanto, não passam de conjecturas.

O segundo momento que podemos visualizar é iniciado no ano de 1942, quando o Brasil ingressa no conflito junto aos Aliados. A partir de então, como era de se esperar, os desenhos passam a criticar e satirizar o regime de Adolf Hitler e suas ações. Interessante nesta fase de Chichorro é a sutileza das críticas, não lançando mão do horrendo em suas charges, mas se utilizando sim de um humor sadio, que beira à inocência.




ELOY. O Dia. 15 jan. 1943.



Na charge aqui exposta, produzida no ano de 1943, já situada, portanto, na segunda fase de Chichorro, podemos visualizar o humor brando do autor. Baseada em notícia de diários estrangeiros, no caso, de Estocolmo, que noticiavam que “o estado de saúde de Hitler era precário e a conselho médico, o füehrer (sic.) estaria usando óculos pretos”, a charge mostra um Hitler de postura autoritária, demonstrando deter (ou com a ilusão de deter) o poder sobre a África. A situação é denunciada, além pela pose do líder alemão, pela placa que no plano superior do desenho aponta para o continente africano. A ilusão do domínio do continente negro é causada pelo uso dos óculos escuros, que, como o título da charge proclama, causa uma “ilusão ensombrada” à vista do Führer.

O complemento do desenho é feito pelo diálogo travado entre Chico Fumaça e dona Marcolina, que observam Hitler: “ – Mas porque (sic.) os óculos pretos, Fumaça? – É para ter uma ilusão da conquista da.... África!...”. Aqui, Fumaça cumpre seu papel de observador e de humorista, ao satirizar a atitude do ditador e, de forma indireta, sua ambição de conquistar aquela região.

O terceiro caso analisado nesta apresentação é o do chargista Philippe Ruprecht, alemão que desenhava para o semanário Der Stürmer, editado em Nuremberg. A característica principal das charges publicadas neste jornal é que buscavam fixar nas mentes dos alemães os principais preceitos nacional-socialistas, dentre os quais se destaca o anti-semitismo. Novamente recorremos a Henri Bergson ao destacar uma “função social” para estas charges, qual seja, a de preparar a sociedade para o extermínio dos judeus em território alemão. O exemplo a seguir poderá ilustrar melhor esta questão.




FIPS. Der Stürmer, ago 1934. Nuremberg. In BYTWERK, Randall. Julius Streicher – Nazi Editor of the notorious anti-semitic newspaper Der Stürmer. New York, Cooper, 2001. p. 84.



Visualizamos então a técnica da associação sendo utilizada na difamação do povo judeu. Aqui, um morcego que carrega a estrela de Davi no peito e que tem as feições características do indivíduo judeu representado nas charges de Rupprecht, surge nos céus espalhando terror e morte no seu caminho. O título, Der Vampyr[5], já demonstra a conotação que a charge pretende imprimir: a do judeu sugador e aproveitador. A legenda ratifica esta idéia ao dizer Vom Teufel in die Welt gesegt er stets die Völker quält und hekt[6]. Em linhas gerais, o significado da frase evoca uma qualificação dos judeus como povo do inferno, cuja principal ação no mundo abençoado, ou seja, o mundo germanizado, seria a de atormentar e sugar os cidadãos arianos. As charges do Der Stürmer se prestavam, portanto, para a degeneração do alvo (principalmente os judeus, mas também comunistas, católicos e maçons) através da utilização de um humor grosseiro, com alusões diretas, valendo-se de títulos e legendas para melhor transparecer sua intenção. Trata-se de um produto destinado a um público muito definido, qual seja, o ariano adepto ou simpatizante das idéias nazistas, em especial do anti-semitismo, e predisposto a acatar as opiniões expostas.

A partir destes três casos aqui analisados, podemos tirar algumas conclusões. Com o Der Stürmer a população alemã passou a “ver” a quebra da harmonia social que os judeus promoveriam e, como não havia a possibilidade deste “erro” se corrigir sozinho, passou-se a aceitar a idéia da extirpação deste “corpo estranho” da sociedade. Em outros termos, o humor de Rupprecht serviu como uma alavanca para o ódio dos arianos para com os judeus, não se dirigindo à “inteligência pura”[7], como pregava Bergson, mas a um dos sentimentos mais recônditos do ser humano, qual seja, o ódio. A busca era por uma uniformização das idéias raciais e da moral do povo alemão, negando nesse processo a moral cristã, judaica ou qualquer outra e impondo a moral do Partido Nazista, processo acelerado e intensificado pelo Terror empreendido pela polícia secreta e pelas outras formas de propaganda empregadas, como panfletos e discursos radiofônicos.

De forma semelhante, através do riso, Belmonte e Chichorro buscaram transmitir a visão da ruptura que os nazistas e suas idéias impunham à harmonia européia e mundial. Em seus casos, entretanto, as palavras e as imagens não eram direcionadas aos instintos ou às emoções dos ouvintes, mas sim à percepção racional destes diante das denúncias feitas pelos autores. Em outras palavras, eram direcionadas à inteligência pura. Porém, da mesma forma, visavam minar aqueles que tinham simpatias pelo Nazismo ou simplesmente arrebanhar a opinião dos indiferentes. Buscavam também, portanto, uma homogeneização da sociedade através da uniformização de sua mentalidade.

Neste sentido, as charges têm seu lugar no espaço público, na arena de discussões. Sua função de expositora e de formadora de opiniões permanece marcante, seja como crítica a um governo ou como apoio ao mesmo, seja em Democracias ou Ditaduras. Da mesma forma que os chargistas atuaram nas décadas de 30, combatendo ou alicerçando políticas governamentais, hoje ainda se destacam na formação da opinião popular, aliando-se ao poder vigente ou a ele se opondo; as charges continuam tendo grande atração para os leitores e ainda possuem a capacidade de influenciar, de alguma forma, a sociedade.


[1] Mestrando no curso de Pós-graduação em História pela Universidade Federal do Paraná.


[2] Cf. SALIBA, Elias Thomé. Raízes do Riso – A representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo. Cia das Letras, 2002. P. 23.


[3] FREUD, Sigmund. O Chiste e sua relação com o Inconsciente. Rio de Janeiro. Imago, 1977. p. 123.


[4] Ibid. p. 125.


[5] Trad. O Vampiro.


[6] Trad. Do demônio no mundo abençoado ele sempre agita e atormenta o povo.


[7] BERGSON, Henri. O Riso. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 4.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Meu reino por uma ereção

Resultado de imagem para afrodisíacos correram o mundo antigo

Impulsionados pelo temor da impotência, afrodisíacos correram o mundo

Mary Del Priore

“Que tens, caralho, que pesar te oprime
que assim te vejo murcho e cabisbaixo
sumido entre essa basta pentelheira,
mole, caindo perna baixo”.

Assim começa “Elixir do Pajé”, poema de Bernardo Guimarães publicado clandestinamente em 1875. Ele trata de um assunto que assombrava a sociedade patriarcal: a impotência sexual masculina. Considerada verdadeira maldição, ela provocava profundo sofrimento e situações de humilhação entre os homens. Ao longo de séculos, não faltam indicações do sonho de ereções permanentes e infatigáveis, mostrando que a obrigação da virilidade habita há tempos a nossa cultura.

Mas por que tanta ansiedade? Está na Bíblia: “Crescei e multiplicai-vos”. E era papel do homem garantir esta operação. Um breve papal de 1587 definia a impotência masculina como um impedimento ao sacramento do matrimônio. Os processos contra “maridos frígidos” se espalharam pela Europa entre os séculos XVI e XVIII. Não faltaram julgamentos públicos nos quais os homens tinham que fazer, seminus, “exames de elasticidade” ou ereção.

Com as grandes navegações européias, os poderes das substâncias afrodisíacas correram o mundo. Portugal era a porta de entrada desses produtos. O pequeno reino se constituiu em ponto de distribuição das especiarias de luxo vindas do Oriente. Perfumes da China e do subcontinente asiático e saberes fitoterápicos da América se uniam para a fabricação de filtros capazes de resolver casos de impotência.

Um dos mais notáveis cronistas a perceber a importância dos afrodisíacos foi o português Garcia da Orta, estudioso da farmacopéia oriental que viveu no século XVI. Entre suas prescrições estavam a Cannabis sativa (banguê ou maconha) e o ópio. Fundamentado em sua convivência com os indianos, Orta sabia que o ópio era usado para agilizar a “virtude imaginativa” e a retardar a “virtude expulsiva”, ou seja: controlar o orgasmo e a ejaculação. Além destes dois produtos, Orta menciona o betel, uma piperácea cuja folha se masca em muitas regiões do Oceano Índico. Sobre seu uso, lembra que “a mulher que há de tratar amores nunca fala com o homem sem que o traga mastigado na boca primeiro”.

Muitas especiarias eram consideradas afrodisíacas, como o açafrão, o cardamomo, a pimenta negra, o gengibre, o gergelim, o pistache e a noz-moscada. Outras substâncias com a mesma e poderosa reputação eram o âmbar e o almíscar, produtos que a Europa só foi conhecer no século XVI. A colonização da Ásia, da África e da América fez aumentar a variedade dos afrodisíacos utilizados. E não só entre plantas e alimentos. O rinoceronte proveniente da Guiné tinha raspas do chifre comercializadas devido a essa reputação, o que, aliás, ocorre até hoje.

Primeiro observador encarregado de fazer um relatório de história natural do Brasil, o holandês Guilherme Piso (1611-1678) registrou também, embora mais discretamente, algumas plantas afrodisíacas. Segundo ele, tanto “a pacoba quanto a banana são consideradas plantas que excitam o venéreo adormecido. Os portugueses as vendem diariamente o ano todo, afirmando que podem tornar o homem mais forte e mais capaz para os deveres conjugais”. As propagadas virtudes do amendoim também chamaram sua atenção.

Em obras publicadas na Europa, plantas vindas dos novos mundos eram divididas de acordo com suas propriedades, em rubricas como “amor, para incitá-lo”, “jogos de amor” e “para fortificação da semente” (ou seja, do sêmen). Em 1697, um desses livros menciona dezenove substâncias úteis para o sexo, extraídas dos reinos animal (genital de galo, cérebro de leopardo, formigas voadoras) e vegetal (jaca, orquídeas, pinhões).

O contato com os índios na América portuguesa levou ao emprego do fogo nos procedimentos de cura da impotência. Homens untavam o escroto e a região púbica com sebo de bode, “sentando-se sobre brasas vivas”. Provavelmente nasceu de tal prática a expressão “estar sentado em brasas”. Garrafadas à base de catuaba, largamente utilizadas até os dias de hoje, também decorrem dos conhecimentos fitoterápicos dos tupis-guaranis.

Na culinária, havia receitas específicas para “engendrar e facilitar a ereção e o coito”. Ingredientes como as ostras, o chocolate e a cebola eram apreciadíssimos, assim como a alcachofra, a pêra, os cogumelos e as trufas. O médico do rei D. João V, Francisco da Fonseca Henriques, em seu livro Âncora Medicinal (1731), cita pelo menos cinco plantas – a menta, o rabanete, a cenoura, o pinhão e o cravo –, atribuindo-lhes o dom de “provocar atos libidinosos e incitar a natureza para os serviços de Vênus”. Segundo ele, uma dieta casta devia evitar alimentos quentes, fortes e condimentados, aliando-se a tal cardápio outras terapias, como banhos frios e aplicações tópicas de metais.

Este era o outro lado da moeda: embora os afrodisíacos tivessem nobre função social, num tempo em que a Igreja controlava corações e mentes, os excessos sexuais eram considerados pecado ou doença. Como antídoto, eram receitados anafrodisíacos, definidos como “aqueles remédios que ou moderam os ardores venéreos ou mesmo os extinguem”. No sumário de alguns herbários constavam plantas com finalidades variadas: ao lado daquelas que podiam “induzir a fazer amor”, outras evitavam “sonhos venéreos quando se polui sonhando” ou eram capazes de “fazer perder o apetite para jogos de amores”.

A mais eficaz das plantas antieróticas revelava seu efeito no próprio nome: o agnus castus tornava o homem “casto como um cordeiro porque ele reprime o desejo de luxúria”. Havia anafrodisíacos que agiam “espessando a semente” e tornando-a, portanto, mais difícil de escorrer. Nessa categoria estavam as sementes de alface, melancia e melão. Outra opção era utilizar metais como chumbo, mármore e pórfiro – aplicados sobre o períneo ou sobre os testículos, essas “frígidas” substâncias faziam diminuir o ardor.

Alguns produtos mudaram de finalidade com o tempo. O chocolate, antes usado até durante o jejum católico, passou a ser condenado por provocar excesso de calor. Em seu lugar, surgiu a louvação antierótica do café, que só mais tarde seria visto como excitante.

O uso excessivo de afrodisíacos provocava o aparecimento de “doenças” de origem sexual, como a erotomania. Esta “febre amorosa” atingia homens e mulheres, provocando inchação no rosto, aumento dos batimentos cardíacos, sufocações, raivas, furores uterinos, satiríases e outros “perniciosos sintomas”. A cura demandava sangrias abundantes – nos braços, pés e atrás das orelhas –, dietas que excluíam tudo o que fosse “quente”, banhos gelados ou dormir sobre tábua dura.

Tanto em Portugal quanto na América portuguesa, vivia-se a crença de que poderes demoníacos atuavam sobre o corpo e a sexualidade. Neste caso, pouco importavam as explicações médicas, mais valendo a simbologia dos rituais mágicos. Defumar as partes vergonhosas com os dentes de uma caveira, pendurar galhos de artemísia na porta de casa ou passar esterco da pessoa amada no sapato direito eram formas de expulsar o demônio que causava a impotência. Comer uma pega, ave corvídea também conhecida por pica-pica, como ajudava! “Urinar num cemitério pela argola da campa [sineta] de uma sepultura” tinha que funcionar! Untar o membro com “água que cair da boca de qualquer cavalo” era eficácia garantida! Para os casais que desejassem apenas se prevenir deste mal, recomendava-se ao marido “trazer consigo o coração da gralha macho e à mulher, o da gralha fêmea”.

Aos nossos olhos, esse parece outro mundo: a obrigação de procriar, o medo do maligno, o preconceito, a opressão da Igreja, os feitiços, as simpatias e crendices. Atualmente, a impotência é tratada como uma especialidade médica como outra qualquer. Será? O entusiasmo com que foi recebida uma certa pílula azul talvez demonstre que ainda estão bem vivos entre nós alguns traços daquela antiga maneira de pensar.

Mary Del Priore é professora do curso de pós-gradução em História da Universidade Salgado de Oliveira (Universo), sócia honorária do IHGB e autora de História do Amor no Brasil (Contexto, 2005).

Saiba Mais - Bibliografia:

CARNEIRO, Henrique. Filtros, mezinhas e triacas – as drogas no mundo moderno. São Paulo: Xamã, 1994.

CARNEIRO, Henrique. Amores e sonhos de flora – afrodisíacos e alucinógenos na botânica e na farmácia. São Paulo: Xamã, 2002.

DARMON, Pierre. O tribunal da impotência – virilidade e fracassos conjugais na França. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

DEL PRIORE, Mary, História do Amor no Brasil (Contexto, 2005).
Revista de História da Biblioteca Nacional

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

COMO AS EMPRESAS FINANCIARAM O NAZISMO DE HITLER


A ideologia do lucro de grandes empresas fez com que muitas delas colocassem dinheiro no Estado alemão durante o período nazista, produzindo inúmeras das tecnologias usadas nos campos de concentração

ISABELA BARREIROS


Ruas da Alemanha durante o regime nazista - Wikimedia Commons


Os campos de concentração alemães puderam funcionar, da maneira que operaram, devido ao gás Zyklon B, que era usado nas câmaras de gás do holocausto. A empresa responsável pela produção era a IG Farben, mas atualmente a conhecemos com outro nome — a organização que financiava o gás que matou milhões de judeus, hoje, se chama Bayer.

Além dela, inúmeras empresas deram suporte financeiro ao nazismo de Hitler e ao fascismo de Mussolini, na Alemanha e Itália. Segundo o livro “A Ordem do Dia” do escritor francês Éric Vuillard, BMW, Fiat, Volkswagen, Siemens, IBM, Chase Bank, Hugo Boss, General Electric e outras grandes corporações conseguiram se estabelecer e, ainda, lucrar com o autoritarismo e antissemitismo da ideologia nazista.

A IBM organizou praticamente todo plano de extermínio judeu. “Com a IBM como parceira, o regime de Hitler pôde substancialmente automatizar e acelerar as seis fases dos 12 anos de Holocausto: identificar, excluir, confiscar, ‘guetizar’, deportar e exterminar”, analisa o jornalista estadunidense Edwin Black no livro Nazi Nexus (Nexo Nazista). A empresa facilitou o processo de identificação dos judeus, e depois disso, também coordenou os sistemas de trens que os levavam para os campos.


Segundo o artigo Aposta em Hitler — O valor das conexões políticas na Alemanha Nazista, de Thomas Ferguson e Hans-Joachim Voth, uma em cada sete empresas aprovavam o nazismo no início dos anos 1930. Os autores apontam que muitas estavam envolvidas com o regime, e foram muito bem compensadas por isso.

O artigo revela que as instituições que apoiaram o movimento nazista tiveram uma alta extraordinária e incomum, com retornos avaliados em 5 a 8% entre o período de janeiro e março de 1933.

O livro The Wages of Destruction (Os salários da destruição, em tradução livre) de Adam Tooze fala sobre como o governo nazista fez parcerias com empresas alemãs, que apoiavam os interesses seus ideológicos e de guerra para conseguir benefícios, subsídios e a uma grande repressão ao movimento sindical alemão.


O anticomunismo

Mas porque os empresários resolveram apoiar o nazismo? “Quando Hitler subiu ao poder, os industriais não falavam uma língua só. Mas a maioria estava feliz de apoiar nazistas em vez de comunistas, e de dar suporte a um movimento político que prometia limitar, senão esmagar, o crescente poder dos trabalhadores organizados”, avalia o historiador da Universidade do Alabama, Jonathan Wiesen.

No Mein Kampf (Minha Luta), Hitler fala sobre como o marxismo, — e o judaísmo —, deveriam ser combatidos, considerando estes como os maiores males que a Alemanha teria de enfrentar. “Nesse tempo, abriram-se-me os olhos para dois perigos que eu mal conhecia pelos nomes e que, de nenhum modo, se me apresentavam nitidamente na sua horrível significação para a existência do povo germânico: marxismo e judaísmo.”


A relação com o capitalismo

Segundo o filósofo italiano Antonio Gramsci, o fascismo operou como uma tentativa de superação de uma crise, que ele considera como cíclica do capitalismo. Para ele, o regime funcionou “como uma nova forma de reorganização do sistema capitalista sob a lógica de um Estado de Exceção”.

Marco Pais Neves dos Santos, escritor português da Universidade Nova de Lisboa, explica em seu artigo O Estado Nacional-Socialista na ótica de Norbert Frei os motivos que levaram à ascensão de Hitler.

Ele destaca “a degradação econômica e social da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, a crise do capitalismo, a fragilidade social, o antissemitismo, o anticomunismo e o desejo de mudança de alguns setores da sociedade”. Esses pontos podem ser considerados como parte da crise cíclica do capitalismo descrita por Gramsci.

“O fascismo é a fase preparatória da restauração do Estado, ou seja, de um recrudescimento da reação capitalista, de um endurecimento da luta capitalista contra as exigências mais vitais da classe proletária”, analisou Gramsci em 1920.

Consolidando novamente o sistema capitalista, a partir da parceria com as grandes empresas alemãs, o nazismo conseguiu restabelecer sua economia de maneira muito rápida. A custo de milhões de vidas, mas o fez.

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Aventuras na História

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

O ROMANCE: UMA LONGA HISTÓRIA

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O romance é o gênero literário mais produzido e mais consumido no Ocidente, pelo menos desde o século 19. Para isso contribuiu o desenvolvimento da imprensa periódica, em que muitas obras foram pela primeira vez publicadas, na forma de folhetins, ou seja, em capítulos semanais ou mensais, como no caso de obras primas de Dostoievski (1821-1881) e de Machado de Assis (1839-1908). O próprio incremento na circulação de jornais e revistas, a partir de então, testemunha uma ampliação do público leitor, o qual se pode dizer, sem perigo de exagero, foi formado por meio justamente da leitura de romances. Seguir um romance em folhetim equivalia ao que muita gente faz hoje consumindo novelas na televisão, considerando que mesmo quem não soubesse ler poderia ouvir as histórias lidas por outros.
Seguir um romance em folhetim equivalia ao que muita gente faz hoje consumindo novelas na televisão

Foi a partir dessa experiência, que historicamente constituiu nossos hábitos de leitura, que se criou a sensação de que o romance é um gênero moderno, relacionado com a própria formação de um público leitor urbano e burguês. Assim, o escritor brasileiro Donaldo Schüler, em Teoria do romance, afirma que ele é a “epopeia da modernidade”, ou, nos termos do filósofo húngaro Georg Lukács (1885-1971), em livro com o mesmo título, “a forma da virilidade madura, por oposição à infantilidade da epopeia” clássica.

Para o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940), em ensaio sobre O narrador, ainda que os “primórdios do romance” remontem à Antiguidade, ele necessitou de “centenas de anos para encontrar na burguesia ascendente os elementos favoráveis a seu florescimento”. Ora, como toda generalização, isso tem algo de verdadeiro, mas tem também um tanto de inexatidão.
O reconhecimento

Para o reconhecimento do romance como gênero temos uma data exata – 1670 – e um texto preciso: o prefácio do bispo francês Pierre-Daniel Huet (1630-1721) ao romance intitulado Zaíde, uma história espanhola, assinado por Jean Regnault, Senhor de Segrais (1624-1701), mas que se acredita tenha sido de fato escrito por uma mulher, Madame de La Fayette (1634-1693).

Nesse prefácio, que logo começou a ser publicado autonomamente com o título Tratado da origem dos romances, Huet elabora uma tipologia do gênero, ao mesmo tempo em que traça sua história. Segundo ele, os romances, esse “agradável divertimento dos preguiçosos honestos”, têm como característica serem “ficções de aventuras amorosas, escritas em prosa, com arte, para o prazer e a instrução dos leitores”.
Quando o gênero começa a receber uma denominação, portanto, realçam-se dois traços nele: a prosa e o fato de que se escreve nas línguas modernas, especificamente nas línguas latinas ou românicas

Um problema para o reconhecimento do romance enquanto gênero decorre de sua própria designação. Nas línguas europeias modernas, concorrem dois termos que têm origem nas palavras latinas novella e romanice. A primeira forneceu, por exemplo, a denominação do inglês novel e a do espanhol novela; já a segunda, por influência do francês roman, produziu a palavra romance, em português, romanzo, em italiano, roman, em russo, romaani, em finlandês, para citar só poucos exemplos.

Registre-se que, na Idade Média, novella designava um gênero narrativo em prosa considerado então novo (o termo sendo derivado exatamente de novus), por oposição aos gêneros tradicionais, em geral em verso – os contos narrados por Boccaccio (1313-1375) no Decamerão podem assim ser classificados. Já romanice é um advérbio que significa ‘em língua românica’, por oposição a latine, ou seja, ‘em latim’, a língua culta na qual então em geral se escrevia. Quando o gênero começa a receber uma denominação, portanto, realçam-se dois traços nele: a prosa e o fato de que se escreve nas línguas modernas, especificamente nas línguas latinas ou românicas.

É nesse sentido que o tratado de Huet é importante: retrocedendo à Antiguidade grega e romana, defende ele o reconhecimento de um gênero – o das narrativas de ficção em prosa – por retrospectiva. Assim, os primeiros exemplares seriam os romances gregos que ele acreditava terem sido escritos antes da era cristã, mas que hoje sabemos serem em geral do segundo século depois de Cristo. De fato, trata-se de um conjunto de textos em prosa que narram histórias de amor e de aventuras, dos quais o representante mais significativo são as Etiópicas, de Heliodoro (século 3). O modelo geral envolve dois jovens que se apaixonam perdidamente, são separados, vagam em inúmeras aventuras por vários países ao redor do Mediterrâneo, mantendo-se todavia fiéis um ao outro, até o encontro final.


Os primeiros romances foram um conjunto de textos gregos escritos em prosa no início da era cristã que narram histórias de amor e de aventuras. (ilustração: Luiz Baltar)

As aventuras podem ter menos importância, pondo-se toda a ênfase no amor, como acontece em Dáfnis e Cloé, de Longo (século 2), em que o enredo se concentra na descoberta do amor por dois adolescentes. Encontramos ainda romances paródicos, em que o amor se traduz em sexo e toda a luz se joga nas aventuras, como Lúcio ou o asno, escrito em grego pelo sírio Luciano (século 2), e o Asno de ouro, escrito em latim pelo africano Apuleio (século 2), uma história fantástica narrada pelo próprio protagonista, de nome Lúcio, que, transformado por artes mágicas em asno, se mete numa sucessão de embrulhadas até recuperar a forma humana.

Essa forma narrativa teve prosseguimento tanto no mundo bizantino, quanto na Europa ocidental. As novelas de cavalaria, como as do ciclo do Graal, que têm como personagens o Rei Artur e os cavaleiros da távola redonda, são legítimos continuadores do romance antigo de amor e aventuras, o mesmo se podendo dizer de Tristão e Isolda, bem como de outras obras escritas em várias línguas europeias e para muitas outras também traduzidas. Não é contudo só a temática que aproxima esses textos de seus antecedentes pagãos, mas também o fato de que são narrativas de ficção em prosa. É legítimo, portanto, como pretende Huet, que se trace uma história do romance de longa duração.
Constante mutação

Nessa história um marco indubitavelmente se destaca, o espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), não só pela alta qualidade de suas obras, como também pela forma dupla como ele, conscientemente, se inseriu na tradição do romance. De um lado, seu livro mais conhecido, O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, retoma num viés paródico as novelas de cavalaria medievais, numa técnica narrativa em que o mais relevante é como se expõem os próprios mecanismos narrativos do romance, posto que seu herói, Dom Quixote, é um especialista nesse tipo de literatura, um louco genial enlouquecido justamente por ter lido muitas histórias de amor e aventuras.

Mas Cervantes escreveu ainda outro romance, Os trabalhos de Persiles e Sigismunda, em que, conforme suas próprias palavras, pretendia “competir com Heliodoro”, ou seja, trata-se de um texto que disputa com o mais famoso dos romances gregos antigos, procurando ultrapassá-lo.
Aquilo que mais caracteriza o romance, em qualquer das modalidades que assumiu em sua longa história, é justamente esse viés referencial – ou seja, que remete a outros textos – e experimentalista

Pode-se dizer que aquilo que mais caracteriza o romance, em qualquer das modalidades que assumiu em sua longa história, é justamente esse viés referencial – ou seja, que remete a outros textos – e experimentalista.

Segundo o teórico russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), em Questões de literatura e estética: a teoria do romance, trata-se de um gênero em constante mutação diante de nossos olhos, traço que a filósofa búlgaro-francesa Julia Kristeva, em O texto do romance, definiu como seu caráter “transformacional”.

Sem dúvida, é esse experimentalismo que tem marcado o romance também nos períodos mais próximos de nós, tornando-o capaz de exercer um fascínio sempre renovado no público leitor. Da narrativa de viés mais tradicional, com um narrador externo e onisciente, às experiências mais ousadas, em que o narrador retira a máscara para se dirigir ao leitor ou se apresenta sob as condições mais surpreendentes – como o asno dos experimentos antigos ou o defunto autor das Memórias póstumas de Brás Cubas, de nosso Machado de Assis –, é como se o gênero buscasse sempre e sempre de novo surpreender o leitor.

Se, de um lado, o romance é de todos os gêneros literários o que mais aparenta se reduzir à linguagem comum, já que simples prosa, por outro, com toda sua sofisticação formal – mesmo quando adota a forma despojada do discurso mais simples – vem a ser o mais mimético dos gêneros, justamente por representar essa função básica da linguagem que é contar histórias.

Jacyntho Lins Brandão
Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais
Autor de A invenção do romance (Brasília: Editora UnB, 2005)
Revista Ciência Hoje

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Acosta Ñu: a sangrenta batalha em que crianças lutaram contra o Exército do Brasil na Guerra do Paraguai


Ana Pais (@_anapais)
BBC News Mundo

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Chamada de 'Guerra de la Triple Alianza' no Paraguai, o conflito dizimou metade da população do país

Há 150 anos o Paraguai foi cenário de "uma das mais terríveis batalhas da história militar do mundo", a de Acosta Ñu.

Assim foi descrito o confronto pelo jornalista Julio José Chiavenato em Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai, publicado há quase quatro décadas e considerado importante obra da historiografia regional.

No Brasil, o episódio ficou conhecido como a Batalha de Campo Grande.

Ainda que muitos de seus dados tenham sido posteriormente questionados ou desmentidos, o texto de Chiavenato serviu para lançar luz sobre o que hoje é amplamente reconhecido como o conflito mais sangrento da história da América Latina: a Guerra do Paraguai (ou "Guerra de la Triple Alianza", como é conhecida no vizinho).

Entre 1865 e 1870, o Paraguai enfrentou os Exércitos do Brasil, da Argentina e do Uruguai.

Calcula-se que, em 5 anos, tenham morrido entre 200 mil e 300 mil paraguaios, que correspondiam na época à metade da população do país. Do total de mortos, 80% eram homens.

Mas o que aconteceu na Batalha de Acosta Ñu para que ela se tornasse, nas palavras de Chiavenato, o "símbolo mais terrível da crueldade dessa guerra"?

Travada em 16 de agosto de 1869, a batalha foi protagonizada, do lado paraguaio, crianças e adolescentes. Seu impacto foi tão forte que a data acabou virando o Dia da Criança no Paraguai.

Em memória aos combatentes e ao aniversário de 150 anos do episódio, o governo paraguaio inaugura nesta sexta-feira (16) um monumento na cidade de Eusebio Ayala.
A 'guerra total'

"O ano de 1869 marca definitivamente o conceito de guerra total", diz o historiador paraguaio Fabián Chamorro à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
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Massacre de crianças foi um dos pontos mais horrendos da guerra

Com o Exército paraguaio praticamente exterminado, explica Chamorro, figuras importantes dentro das forças aliadas chegaram a sinalizar que a guerra teria terminado e que seria o momento de deixar o país.

Conforme Chiavenato, uma dessas figuras era o general Luís Alves de Lima e Silva, futuro duque de Caxias, que liderava as tropas brasileiras no Paraguai.

"Quanto tempo, quantos homens, quantas vidas e de quantos recursos necessitaremos para terminar a guerra, quer dizer, para transformar em fumaça e pó toda a população paraguaia, para matar até os fetos no ventre das mulheres?", argumentou com o imperador Dom Pedro 2º.

A ordem, entretanto, era de que a guerra só chegaria ao fim com a morte do presidente do Paraguai, o marechal Francisco Solano López, o que só aconteceria em 1º de março de 1870.

"Não tinha necessidade de fazer toda essa caçada, em que a população civil foi a principal prejudicada", ressalta Chamorro.

Enquanto lutava pela própria sobrevivência, Solano López recrutava soldados cada vez mais jovens.

"Primeiro eles tinham 16 anos, depois 14, 13 anos", relata Barbara Potthast, professora de História Ibérica e Latinoamericana na Universidade de Colônia, na Alemanha.

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Mulheres e crianças acabaram integrando o Exército do Paraguai

A historiadora encontrou até registros de alistamento de meninos de 11 anos - que não chegavam a ir para a frente de batalha, mas se dedicavam a outras tarefas, como transportar materiais.

O mesmo acontecia com as mulheres, muitas vezes encarregadas da logística.

"Não era um exército profissional como conhecemos hoje", pontua Potthast. "Como muitos dizem, era o 'povo pegando em armas'."
Escudo humano?

Solano López conseguiu escapar algumas vezes dos aliados. Sua última "fuga milagrosa" aconteceu quatro dias antes de batalha de Acosta Ñu, quando caiu Piribebuy.

"Em 12 de agosto (de 1869), as forças paraguaias se dividiram em duas: o marechal ia em uma coluna e, em outra, mulheres, crianças e idosos", conta Chamorro.

O último grupo levava toda a logística do Exército em carros de boi: canhões, armas, vestuário, acessórios de cozinha.

Direito de imagemSECRETARIA NACIONAL DE CULTURA DO PARAGUAYImage caption
A batalha de Acosta Ñu aconteceu há 150 anos em local próximo ao que hoje é a cidade de Eusebio Ayala, no centro do Paraguai

Segundo o historiador, eles foram alcançados pelos aliados - em sua maioria soldados brasileiros - e "não tiveram outra opção a não ser lutar".

Já Potthast cita outra teoria. "O que se diz, e não tenho motivos para duvidar, é que nessa batalha a função das crianças e jovens era servir como uma espécie de barreira para o avanço do Exército."

O fato é que Solano López conseguir mais uma vez fugir para o Norte com o restante das tropas, onde continuaram a resistência.
20 mil contra 3,5 mil

A batalha de Acosta Ñu aconteceu próximo ao que hoje é a cidade de Eusebio Ayala, no centro do Paraguai, e foi, nas palavras de Chamorro, "um verdadeiro massacre".

"De um lado estavam os brasileiros, com 20 mil homens", escreveu Chiavenato. "De outro, os paraguaios, com 3,5 mil soldados entre 9 e 15 anos, além de crianças de 6, 7 e 8 anos que também 
acompanhavam o grupo."

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Prisioneiro paraguaio e seu captor brasileiro: Guerra do Paraguai durou 5 anos

Ainda que não haja consenso sobre o número - e alguns relatos chegam à cifra de 700 -, os diferentes historiadores e registros destacam a crueldade que marcou a batalha.

As crianças e jovens lutaram ao lado de alguns veteranos de guerra, um contingente estimado em algo entre 500 e 3 mil, a depender da fonte.

De qualquer forma, existia uma assimetria grande entre os dois exércitos, que não só era númerica e etária, mas também tecnológica.

"As armas usadas pelos paraguaios tinham um alcance máximo de 50 metros", diz Chamorro, enquanto "os rifles Spencer, usados sobretudo pela cavalaria imperial do Brasil, tinha um alcance de mais de 500 metros."

"Ou seja, para que o paraguaio pudesse confrontar um brasileiro, tinha que encarar dez descargas de bala. Era impossível", completa.

A isso se soma o fato de que os mais novos não tinham nem força física para empunhar as armas, muito menos nas condições em que estavam, com fome e muitas vezes doentes, acrescenta Potthast.
No campo de batalha

A batalha começou pela manhã e terminou cerca de 10 horas depois, com poucas baixas do lado brasileiro e quase nenhum sobrevivente do lado paraguaio.

Direito de imagemSECRETARIA NACIONAL DE CULTURA DO PARAGUAYImage caption
Monumento em 'honra aos heróis da pátria, os meninos mártires de Acosta Ñu' durante sua construção

Os detalhes sobre o confronto, mais uma vez, divergem a depender da fonte.

Potthast afirma que, para que os soldados brasileiros não percebessem que lutavam contra crianças, foram colocadas barbas falsas nos meninos. Já Chamorro argumenta que não haveria tempo naquelas circunstâncias para que se preocupassem com esse tipo de detalhe.

Diz-se ainda que os pequenos iam armados com varas que simulavam rifles.

"As crianças de 6 a 8 anos, no calor da batalha, aterrorizadas, se agarravam às pernas dos soldados brasileiros, chorando, pedindo que não os matassem. E eram degoladas no ato", escreveu Chiavenato em sua obra, conforme a tradução do Portal Guaraní.

À tarde, ele acrescenta, quando as mães recolhiam os corpos dos filhos e ainda havia feridos, os brasileiros teriam queimado todo o lugar.

O general brasileiro Dionísio Cerqueira, entretanto, que participou da batalha, deu outra perspectiva. "Que luta terrível entre a piedade cristã e o dever militar! Nossos soldados diziam que não lhes dava gosto lutar contra tantas crianças."

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Dia da Criança é comemorado desde 1948 no Paraguai no dia 16 de agosto

"O campo ficou repleto de mortos e feridos do lado inimigo, entre os quais nos causava muita pena, pelo número elevado, os soldadinhos, cobertos de sangue, com as perninhas quebradas, alguns nem sequer haviam atingido a puberdade", completou.

Potthast, por sua vez, encontrou relatos que afirmavam que, pelo contrário, os pequenos não choravam, mesmo quando eram feridos.

Nas palavras da historiadora alemã, o único ponto em comum entre os observadores e historiadores de todos os lados era o "valor e a coragem da luta dos paraguaios, inclusive dos meninos soldados".
Identidade nacional

Tanto Chamorro quanto Potthast ressaltaram que o conceito de infância no século 19 não era o mesmo que hoje. Ainda assim, a ideia do "menino herói" que morreu defendendo sua nação é parte da identidade nacional paraguaia.

"Essa guerra é o acontecimento mais importante da história do Paraguai", disse a historiadora alemã à BBC News Mundo. "É pedra fundamental do nacionalismo que se desenvolveu no século 20."

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A Guerra do Paraguai é fundamental para entender o nacionalismo hoje no país, diz Potthast

A ideia difundida por uma parte dos acadêmicos e por vários governos, sobretudo militares, foi a de que os paraguaios "perderam a guerra, mas lutaram com heroísmo, e é desse heroísmo que tiram força", destaca Potthast.

A batalha de Acosta Ñu foi usada como uma "excelente propaganda para transformar as crianças em futuros soldados", acrescenta Chamorro, que lembra, porém, que o serviço militar no Paraguai é obrigatório.

O decreto que em 1948 fixou o 16 de agosto como Dia da Criança no Paraguai destacava a importância de "fomentar por todos os meios a difusão e intensificação do sentimento nacionalista por meio das grandes memórias".

Sobre as crianças especificamente, destacava que elas deveriam ser educadas com base no patriotismo.

"Há trabalhos escolares escritos depois de 1948, por exemplo, em que se vê um garoto assistindo a um desfile militar e falando para o pai: 'Papai, quero ser soldado'. Ao que ele responde: 'Você já é um soldado'."

Um século e meio depois, o monumento inaugurado neste 16 de agosto pelo presidente Mario Abdo Benítez é, segundo a Secretaria Nacional de Cultura, "em honra aos heróis da pátria, os meninos mártires de Acosta Ñu".

domingo, 11 de agosto de 2019

Sarah Baartman: a chocante história da africana que virou atração de circo


Justin Parkinson

Image captionEm outubro de 1810, Sarah Baartman foi levada da África do Sul à Grã-Bretanha para aparecer em espetáculos. (Foto SPL)

Há dois séculos, Sarah Baartman morreu após passar anos sendo exibida em feiras europeias de "fenômenos bizarros humanos". Agora, rumores de que sua vida poderia ser transformada em um filme de Hollywood estão causando polêmica.

Sarah Baartman morreu em 29 de dezembro de 1815, mas o show, sob uma perspectiva ainda mais macabra, continuou.

Seu cérebro, esqueleto e órgãos sexuais continuaram sendo exibidos em um museu de Paris até 1974. Seus restos mortais só retornaram à África em 2002, após a França concordar com um pedido feito por Nelson Mandela.

Ela foi levada para a Europa, aparentemente, sob promessas falsas por um médico britânico. Recebeu o nome artístico de "A Vênus Hotentote" e foi transformada em uma atração de circo em Londres e Paris, onde multidões observavam seu traseiro.

Hoje em dia, ela é considerada por muitos como símbolo da exploração e do racismo colonial, bem como da ridicularização das pessoas negras muitas vezes representadas como objetos.
Boatos

Recentemente, começou a correr um rumor de que a cantora Beyoncé estaria planejando escrever e protagonizar um filme sobre Baartman.

Os representantes da artista negaram essa informação, mas o burburinho foi suficiente para provocar preocupação.

Jean Burgess, chefe do grupo khoikhoi – a etnia de Baartman – disse que Beyoncé não conta com "a dignidade humana básica para ser digna de escrever a história de Sarah, menos ainda para interpretá-la". Ela justificou que via com "arrogância" a suposta ideia de Beyoncé de "contar uma história que não pertence a ela" e sugeriu que a atriz fizesse um filme sobre indígenas americanos.

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Boato de filme sobre vida de Baartman foi desmentido por equipe de Beyoncé


Já Jack Devnarain, presidente do Sindicato de Atores da África do Sul, disse que os cineastas têm "direito de contar a história de pessoas que as fascinam e não devemos nos opor a isso".

Ao negar qualquer vínculo com o filme, o representante de Beyoncé ponderou que "esta é uma história importante que deve ser contada".
História

A vida de Baartman foi marcada por penúrias.

Acredita-se que ela tenha nascido na Província Oriental do Cabo da África do Sul em 1789.

Sua mãe morreu quando ela tinha dois anos e seu pai, um criador de gado, morreu quando ela era adolescente.

Ela começou a trabalhar como empregada doméstica na Cidade do Cabo quando um colono holandês assassinou seu companheiro, com quem havia tido um bebê que também morreu.

Em outubro de 1810, apesar de ser analfabeta, ela supostamente assinou um contrato com o cirurgião inglês William Dunlop e o empresário Hendrik Cesars, dono da casa em que ela trabalhava, que disse que ela viajaria para a Inglaterra para aparecer em espetáculos.
Atração

Quando ela foi exibida em um estabelecimento em Piccadilly Circus, em Londres, causou fascinação.


"É preciso lembrar que, nesta época, nádegas grandes estavam na moda, e por isso muitas pessoas invejavam o que ela tinha naturalmente", diz Rachel Holmes, autora de A Vênus Hotentote: vida e morte de Saartjle Baartman.

O motivo para isso é que Baartman, também conhecida como Sara ou Saartjie, tinha esteatopigia, uma condição genética que faz com que a pessoa tenha nádegas protuberantes devido à acumulação de gordura. Essa condição é mais frequente em mulheres e principalmente entre aquelas de origem africana.

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A Venus de nádegas "belas" e as curvas de uma mulher 'esteatopígica'

Mas a própria palavra é motivo de debate, porque, para muitos, seria racista o fato de ela sugerir que se uma mulher tem nádegas grandes e é negra, sofre de uma doença.

Já para as nádegas pequenas a palavra é "calipigia", em referência à famosa estátua romana Vênus Calipigia – que significa "a Vênus das nádegas belas".
Toda uma Vênus

No espetáculo, Baartman usava roupa justa e da cor da sua pele, contas e plumas e fumava um cachimbo.

Clientes mais abastados podiam pagar por demonstrações privadas em suas casas, em que era permitido que os convidados a tocassem.

Os "empresários" de Baartman a apelidaram de "Vênus Hotentote" porque, nesta época, esse era o termo que os holandeses usavam para descrever os khoikhois e aos san, os principais membros de um importante grupo populacional africano, os khoisans.

Atualmente, o termo 'hotentote' é considerado pejorativo.
Livre ou assustada?

Nesta época, o império britânico já havia abolido o tráfico de escravos (em 1807), mas não a escravidão.

Mesmo assim, ativistas ficaram horrorizados com a forma como os empresários de Baartman a tratavam em Londres.

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Charges políticas foram feitas com figura de Baartman

Eles foram processados judicialmente por deter Baartman contra sua vontade, mas foram declarados inocentes. A própria Baartman testemunhou a favor deles.

"Ainda não se sabe se Baartman foi forçada, como os defensores da abolição e os ativistas humanitários alegavam, ou se atuou por livre arbítrio", diz o historiador Christer Petley, da Universidade de Southampton, na Inglaterra.

"Se eles a estavam obrigando a trabalhar, é possível que tenha se sentido intimidada demais para dizer a verdade no tribunal. Nunca saberemos."

"O caso é complexo e a relação entre Baartman e seus chefes definitivamente não era igualitária."
A caminho de Paris

Holmes destaca que o show de Baartman incluía dança e interpretação de vários instrumentos musicais, e diz que um público "sofisticado" em Londres – uma cidade em que as minorias étnicas não eram raras – não teriam se encantado por muito tempo com ela apenas pela sua cor.

De qualquer forma, com o tempo, o show da "Vênus" foi perdendo seu caráter de novidade e popularidade entre o público da capital, e por isso ela saiu em turnê pela Grã-Bretanha e Irlanda.

Em 1814, foi para Paris com seu empresário, Cesars, e outra vez virou uma celebridade, que tomava coquetéis no Café de Paris e ia às festas da alta sociedade.

Cesars voltou para a África do Sul e Baartman caiu nas mãos de um "exibidor de animais" cujo nome artístico era Reaux

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Baartman conquistou fama novamente em Paris

Ela bebia e fumava sem parar e, segundo Holmes, "provavelmente foi prostituída por ele".
'Grotesco'

Eventualmente, Baartman aceitou ser estudada e retratada por um grupo de cientistas e artistas, mas se recusou a aparecer completamente nua na frente deles.

Ela argumentava que isso estava além de sua dignidade: nunca havia feito isso em seus espetáculos.

Foi neste período que teve início o estudo que chegou a ser chamado de "ciência da raça", diz Holmes.

Baartman morreu aos 26 anos de idade.

A causa foi descrita como "uma doença inflamatória e eruptiva". Desde então, cogita-se que tenha sido resultado de uma pneumonia, sífilis ou alcoolismo.

O naturalista Georges Cuvier, que dançou com Baartman em um das festas de Reaux, fez um modelo de gesso de seu corpo antes de dissecá-lo.

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Autoridades francesas e sul-africanas com o molde de gesso de Baartman antes da devolução

Além disso, preservou seu esqueleto, pôs seu cérebro e seus órgãos genitais em frascos, que permaneceram expostos no Museu do Homem de Paris até 1974, algo que Holmes descreve como "grotesco".
De volta para casa

"A dominação dos africanos foi explicada com ajuda da ciência, estabelecendo que os khoisan eram um grupo menos nobre no progresso da humanidade", escreveu Natasha Gordon-Chipembere, editora de Representação e feminilidade negra: o legado de Sarah Baartman.

Após sua eleição em 1994 como presidente da África do Sul, Nelson Mandela solicitou a repatriação dos restos mortais de Baartman e o modelo de gesso feito por Cuvier.

O governo francês acabou aceitando o pedido e fez a devolução, em 2002.

Em agosto do mesmo ano, seus restos mortais foram enterrado em Hankey, província onde Baartman nasceu, 192 anos após ela sair com destino à Europa.

Vários livros já foram publicados sobre a maneira como ela foi tratada e sua transcendência cultural.

"Ela acabou se tornando um molde sobre o qual se desenvolvem múltiplas narrativas de exploração e sofrimento da mulher negra", escreveu Gordon-Chipembere, que acha que, em meio à tudo isso, Baartman, "a mulher, permanece invisível"

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Restos mortais foram enterrados em província em que ela nasceu

Em 2010, o filme Black Venus e o documentário The Life and Times of Sara Baartman contaram a história dela. Em 2014, a revista americana Paper botou na capa uma foto da celebridade americana Kim Kardashian balançando um copo de champanhe sobre suas nádegas avantajadas. Vários críticos reclamaram que a imagem lembrava desenhos retratando Baartman.

No ano passado, uma placa no local em que ela está enterrada em Hankey foi vandalizada com tinta branca. Isso ocorreu na mesma semana em que a Universidade da Cidade do Cabo retirou, após protestos, a estátua de Cecil Rhodes, um empresário e político do século 19, que declarou notoriamente que os britânicos seriam "a primeira raça no mundo".

"As pessoas estão resolvendo sobre como querem lidar com essas questões", diz Petley. "Muitas vezes elas foram ocultadas, e chegou a hora de reavaliá-las."
BBC Brasil