segunda-feira, 15 de abril de 2019

BRASIL ‘MESTIÇO’

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Monica Lima
Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro
“O Brasil é um país mestiço.” Essa afirmação, tão comum ao se falar da composição da população brasileira, e que tem seu lado de verdade, é generalizante demais – razão por que é muito perigosa. A ideia que vem associada é a de que somos um país de ‘mistura de raças’, e, por sua vez, deriva de um entendimento que não apenas reconhece a existência de raças, como quase sempre vem acompanhado do ‘mito das três raças’, que apresenta como base para a formação da população brasileira componentes indígenas, negros e brancos. Isso pode até dar letra de samba – mas será que faz sentido para nossa história?

Raça como conceito científico não existe. Também é errôneo pensar que o povo brasileiro é resultado da miscigenação de africanos, europeus e populações indígenas. Mesmo quando se incluem outras contribuições ‘raciais’, como japoneses e libaneses, nesse caldo, erramos ao afirmar que essa ‘mistura’ teria ocorrido de forma natural e quase sempre harmoniosa.

No século 19 e nas décadas iniciais do século 20, o cruzamento de ‘raças’ era considerado um perigo de degeneração, e o ‘embranquecimento’ da população, um alvo a alcançar. O pensamento dominante na época via o desaparecimento da herança cultural e biológica de negros e indígenas como fator de progresso.

 

‘A Redenção de Cam’, pintura de Modesto Brocos y Gomes, retrata uma família miscigenada: avó negra, mãe mulata, pai e filho brancos. No século 19, o ‘embranquecimento’ da população era um alvo a alcançar. (imagem: Wikimedia Commons)

Mas, ao longo do século 20, o Brasil se transformava: cresciam as lutas sociais, surgiam novas ideias e aumentava a presença popular na vida política. E esse povo que saía às ruas e passava a votar não era ‘puro e branco’ como no Velho Mundo, muito pelo contrário. Pouco a pouco, foram aparecendo novas formas de se referir aos brasileiros e, entre elas, fortaleceu-se a ideia de povo mestiço como um valor positivo e característico da nossa população.

O artigo ‘Das moscas aos humanos: a genética e a questão da ‘mistura racial’ no Brasil’ na CH 326 mostra como a questão da ‘formação racial brasileira’ era vista no século 19 – um dilema para a construção da nação e da identidade nacional – e revela o interesse dos cientistas, já em meados do século 20, no estudo da variabilidade genética da população brasileira.


Povo cordial?

Junto com a construção da ideia de que a mistura entre povos de diferentes origens sempre foi tranquila e natural por aqui, veio aquela sobre a índole pacífica e cordial do povo brasileiro. Seríamos uma combinação perfeita de gente de pele morena, sorriso nos lábios, muita simpatia, sempre vivendo em paz, mesmo em condições muito difíceis. Trata-se de uma bonita imagem para ser assumida internamente e vendida como mercadoria atraente ao exterior. Mas teria isso um fundo de verdade?
O Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados na história da humanidade

Se pesquisarmos a história do Brasil, a resposta é não. Uma longa trajetória de lutas e resistência de africanos e seus descendentes escravizados, assim como de guerras promovidas contra grupos indígenas que lutavam para permanecer nas suas terras ancestrais, mostra totalmente o contrário. O Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados na história da humanidade: foram quase quatro séculos e mais de 4 milhões de africanos chegando aos portos brasileiros pelo comércio escravista. Somos o segundo país do mundo em população de origem africana, e o primeiro fora da própria África. E, hoje, mais da metade dos brasileiros se declara negro ou pardo.

Muitos de nós, entretanto, desconhecem o legado cultural dos povos africanos para o país. A história dos nossos antepassados até há bem pouco tempo não entrava nos livros didáticos e nas salas de aula brasileiras, onde predominava uma história europeia e ‘branca’. Isso vem mudando, embora devagar; ainda se vê muito preconceito e intolerância. Desde 2003, vigora uma lei que tornou obrigatório o ensino dessa parte da história. Conhecer a memória da África e dos negros no Brasil, assim como das culturas indígenas, significa mudar a perspectiva, e fazer com que os brasileiros possam se ver de outra maneira.


Ajustes necessários

É preciso repensar a ideia de africano como um todo único. A África é um continente e, mesmo ao sul do deserto de Saara, onde habitam em sua maioria povos de pele escura, há, e desde há muito tempo, uma enorme variedade de línguas, culturas, religiões, costumes e aparências entre os diferentes grupos humanos. Esses grupos interagiram e disputaram espaços e o domínio sobre produtos e rotas de comércio. Alguns se misturaram e deram origem a outros povos, como ocorreu em outros continentes e regiões do mundo.

Origens dos africanos escravizados no Rio de Janeiro no século 19 (no mapa, fronteiras do século 20). Grupos étnicos: 1. Bacongo; 2. Nsundi; 3. Tio, Monjolos; 4. Bobange; 5. Bundo; 6. Quissama; 7. Libolo; 8. Ovimbundo; 9. Ganguela; 10. Iaô; 11. Macua;12. Tumbuca; 13. Achanti; 14. Daomé; 15. Iorubá; 16. Ibo; 17. Fulani; 18. Hauçá; 19. Bornu; 20. Nupe. (imagem: Adaptada de KARASH, Mary. ‘A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p .53.)

A ideia de ‘africano’ surgiu apenas no século 19, vinculada à luta contra o tráfico e a escravidão. É, ao mesmo tempo, uma resposta e um novo significado ao tratamento dado pelos europeus aos nativos do continente. Por trás da generalização do termo, estava o objetivo da dominação europeia e uma justificativa para exercê-la. É difícil precisar a origem dos africanos trazidos para o Brasil. Muitos eram capturados longe do litoral, apesar de receberem o nome do local de partida. Outros – ao longo da travessia e em sua inserção na sociedade brasileira, no universo de outros nativos da África escravizados –, assumiam uma identidade que fazia referência ao seu local de origem. Outros, ainda, integravam-se a grupos da mesma região de procedência, ainda que pertencessem a povos diferentes.

Assim, os chamados ‘cabindas’ no Brasil, trazidos da região da baía de Cabinda (hoje em Angola), poderiam ser nsundis, tekes e gabões. Incluíam-se entre eles muitas vezes os anjicos e monjolos. Os ‘congos’ seriam originados de diversos grupos situados na vasta rede comercial do rio Zaire (Congo). E os ‘angolas’ podem ter sido trazidos do entorno da cidade de Luanda, mas também da área de Cassange ou do vale do rio Cuanza.

Esses grupos formaram a maioria dos cativos transportados para o Brasil, originários da grande região Congo­Angola. Mas houve muitos outros. Os ‘moçambiques’ poderiam ser macúas, ou senas, ou mujaus, entre outras origens, capturados em uma ampla área que abrangia o que é hoje o sul da Tanzânia, o norte de Moçambique, o Malauí e o nordeste da Zâmbia. Os africanos embarcados na África Ocidental (região do golfo da Guiné ou sua subdivisão, a Costa da Mina) poderiam ser todos incluídos no grande grupo que ficou conhecido como mina aqui no país, sendo, por sua vez, iorubas (também conhecidos como nagôs), hauçás, ibos, daomeanos ou mahís.
Havia escravos cristãos, muçulmanos e aqueles que acreditavam em religiões nativas. Eram povos com histórias, modos de vida e saberes distintos

Alguns entre os africanos escravizados eram cristãos, outros muçulmanos – tinham inclusive os que liam e escreviam em árabe – e, em sua maior parte, acreditavam em deuses de suas religiões nativas. Eram povos com histórias, modos de vida e saberes distintos – alguns trouxeram conhecimentos sobre técnicas agrícolas em clima tropical, outros eram mineradores experientes, outros artesãos ou conhecedores de práticas curativas.


Retratos da diversidade

Jean­Baptiste Debret (1768­1848), artista francês estudioso da natureza no Brasil, retratou os diferentes tipos de mulheres africanas que pôde observar na cidade do Rio de Janeiro. Nem na própria África seria possível encontrar tantos representantes de povos daquele continente como aqui. Debret produziu aquarelas que mostravam a diversidade de origens das mulheres que haviam sido trazidas e escravizadas no nosso país.

Com seus trajes e penteados, adornos e marcas faciais e de estética própria – como a prática de limar os dentes – essas mulheres afirmavam suas diferenças, também percebidas em suas tradições culturais e idiomas. Nada mais distante de suas vidas que a ideia de uma África no singular ou de características de comportamento e crença que unissem todas elas em um denominador comum. Essas africanas eram tão diferentes entre si como homens e mulheres europeus de países distintos.

Conhecer essas histórias africanas é uma maneira de desmascarar essa uniformidade inventada, e reconhecer o rico mapa da diversidade ‘negra’ que faz parte de nossas origens.

E de que vale saber essas diferenças todas e questionar uma imagem idealizada de país mestiço? Serve para nos aproximar de outras histórias que nos pertencem e nos darão a chance de chegar mais perto de entender que o tanto que nos diferencia nos aproxima, e nos faz mais humanos. Afinal, o racismo que se vê e percebe no Brasil é como uma mosca na sopa dos estudos sobre a nossa miscigenação.
Revista Ciência Hoje

domingo, 31 de março de 2019

NEONAZISTAS: OS FANTASMAS DE HITLER



Como a ideologia que prega o ódio renasceu na Europa, o mesmo cenário dos crimes contra a humanidade cometidos na Segunda Guerra – e como ela se espalha até mesmo no Brasil

EDUARDO SZKLARZ 

AP Photo


Atualmente, diversos países - inclusive o Brasil - assistem a movimentos neonazistas ressurgirem das cinzas. Mas o que explica esse fenômeno? Qual foi o momento em que ser nazista/fascista deixou de ser vergonhoso para se tornar aceitável?

A fagulha nacionalista

A extrema direita não é um bloco monolítico. Alguns partidos são racistas, xenófobos, outros são contra muçulmanos ou gays. Muitos são tudo isso. Mas há um elemento comum a todos: o nacionalismo. “Nem todo nacionalismo é de direita e muito menos fascista, mas todo movimento nazifascista é nacionalista”, afirma o historiador Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus, superintendente da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba, em São Paulo.


Nacionalismos surgem em momentos de crise. Tem sido assim desde o final do século 19, quando russos massacraram milhares de judeus acusando-os pela morte do czar Alexandre II (1818-1881). A onda de perseguições se alastrou pelo Leste Europeu, onde judeus e outras minorias foram culpados pelas mazelas de cada país. Isso porque o nacionalismo não é um mero amor à pátria: é uma defesa ferina da identidade nacional que pressupõe a glorificação de “Nós” e a exclusão dos “Outros”. Por isso desemboca em violência.

Em 28 de junho de 1914, por exemplo, o nacionalista sérvio Gavrilo Princip disparou contra o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro da coroa austro-húngara. E deflagrou a Primeira Guerra. Durante o conflito, o nacionalismo serviu de base para a principal – e mais aterradora – invenção política do século 20: o fascismo. Era um movimento de massas autoritário e populista baseado no anticomunismo, na expansão imperialista e em um Estado policial que controlava a vida pública e privada das pessoas.

Gavrilo Princip, o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando / AFP

O fascista (e socialista na juventude) Benito Mussolini assumiu o poder na Itália em 1922 para logo implantar uma ditadura. “O fascismo reconfigurou as relações entre o indivíduo e o coletivo, de modo que o indivíduo não tinha direito algum fora do interesse da comunidade”, diz o historiador americano Robert Paxton no livro The Anatomy of the Fascism (“A Anatomia do Fascismo”).

Em 1933, o nazismo triunfou na Alemanha agregando um novo ingrediente ao pacote fascista: a raça. Hitler quis purificar a comunidade alemã dos seres considerados “inferiores”, entre eles judeus, homossexuais, eslavos, deficientes físicos e mentais. Segundo o führer, era preciso eliminar esses “bacilos” do corpo da sociedade para assegurar a supremacia ariana. Após a Segunda Guerra, contudo, o nacionalismo deu lugar ao mundo bipolar: EUA x URSS. As superpotências fatiaram o planeta em áreas de influência do capitalismo e do comunismo. Na lógica da Guerra Fria, ser extremista era vergonhoso. Mas não por muito tempo.


Cara nova

“O neonazismo surgiu na Europa entre as correntes de direita mais radicais. De certa forma, foi constituído pelos velhos nazistas que sobreviveram aos expurgos do pós-guerra, principalmente na Alemanha Ocidental”, diz Luiz Dario Ribeiro, professor de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

De fato, muitos nazistas convictos ingressaram no serviço público alemão após a guerra e aproveitaram os novos cargos para manter vivas as suas ideias. Foi o caso de Hans Globke, um dos autores das discriminatórias Leis de Nuremberg (1935) e colaborador de Adolf Eichmann, o arquiteto da “Solução Final”. Globke virou assessor do chanceler alemão Konrad Adenauer nos anos 50. Assim, o anticomunismo da Guerra Fria criou condições para que o caráter nazista desses agentes fosse esquecido.

Benito Mussolini e Adolf Hitler: o nacionalismo é o pai do fascismo / Wikimedia Commons

O próximo passo deles foi criar organizações de fachada para incorporar novos membros. O alemão Partido Nacional Democrático (NPD) e o Movimento Social Italiano (MSI), por exemplo, eram agrupamentos nazifascistas que se escondiam atrás de nomes simpáticos. “Os novos membros eram jovens convencidos de que deveria haver uma luta de vida e morte contra os comunistas”, diz Ribeiro.

Nos anos 60, o neonazismo ganhou adeptos com a crise do colonialismo europeu. Grupos como o Occident e o Exército Secreto Francês (OAS) atraíram nacionalistas frustrados pela derrota da França nas guerras de independência da Indochina (1946-54) e da Argélia (1954-62). O OAS perpetrou atentados contra argelinos e tentou até mesmo assassinar o presidente francês Charles de Gaulle por permitir a descolonização.

Pierre Sidos, fundador do Occident, era filho de um membro da Milice – a brigada paramilitar francesa que caçou judeus e membros da Resistência durante a ocupação nazista. Sidos prosseguiu com as ideias do pai, recrutando universitários para combater os manifestantes que pediam reformas no Maio de 68. De Gaulle proibiu o Occident, mas vários de seus membros integraram a Frente Nacional, fundada por Le Pen em 1972.

Os neonazistas também buscaram reabilitar a ideologia de Hitler. E para isso recorreram a uma teoria pseudocientífica, o revisionismo, que acusava os vencedores da guerra de contar a História à sua maneira. O pai do revisionismo foi o historiador francês Paul Rassinier.


O White Power: a suástica ganha adeptos nos Estados Unidos amparados na Primeira Emenda / Corbis

Ele havia sido prisioneiro político dos nazistas mas começou a defender o Terceiro Reich depois da guerra. Ele negava o Holocausto. “Eu estive lá e não havia câmaras de gás”, dizia. De fato, Rassinier esteve em Buchenwald, um campo de concentração situado na Alemanha que realmente não tinha câmaras de gás. Os campos de extermínio ficavam na Polônia ocupada, como em Auschwitz e Treblinka, dotados de câmaras de gás e crematórios.

Mas os livros delirantes de Rassinier conquistaram leitores na Europa e foram traduzidos nos EUA pelo historiador Harry Elmer Barnes – outro adepto de teorias da conspiração.

Barnes dizia que os julgamentos de nazistas como Eichmann eram uma tramoia sionista e descrevia os Einsatzgruppen (esquadrões da morte da SS) como “guerrilhas”. Outro revisionista norte-americano, Francis Parker Yockey, tinha ideias ainda mais estranhas. Ele defendia uma união totalitária entre a extrema direita, a URSS e governos árabes para derrotar o “poder judaico- americano”. Yockey foi preso pelo FBI por fraude, com três passaportes falsos, e se matou na prisão em 1960. Mas seu livro Imperium se tornou objeto de culto dos neonazistas.

Gangues se aliam ao partido

O nacionalismo sofreu uma metamorfose com a crise do petróleo de 1973. Em meio à recessão europeia, os extremistas adotaram um novo inimigo: o imigrante, sobretudo aquele oriundo das ex-colônias árabes. “A xenofobia atraiu jovens desempregados e sem perspectivas para a extrema direita”, diz Ribeiro.

Foi o caso dos skinheads, uma tribo formada nos anos 60 na Inglaterra por jovens de classe baixa que curtiam ritmos como ska e reggae. Os skinheads originais não eram racistas (muitos eram negros jamaicanos), mas alguns deles atacavam gays e asiáticos. E, na recessão dos anos 70, uma ala do movimento se vinculou ao partido neonazista inglês National Front (NF), que promovia a “superioridade branca”.

“Os partidos de extrema direita precisavam de militância e a encontraram nas gangues”, diz Nóbrega. Gritos de guerra xenófobos entraram para o repertório dos hooligans – torcedores de futebol conhecidos por deixar um rastro de vandalismo e pancadaria. O jornalista americano Bill Buford conviveu durante quatro anos com hooligans do Manchester United, na década de 80, e viu como eles eram facilmente recrutados pelo NF.


Skinheads poloneses: o discurso neonazista encontrou adeptos entre jovens marginalizados / AP Photo

Mas nem todos os brutamontes que surravam estrangeiros estavam desempregados. Muitos aderiram à violência xenófoba por pura sede de adrenalina. Foi o caso de Mick, o primeiro hooligan que Buford conheceu. “Ele parecia um eletricista perfeitamente feliz, com um enorme maço de dinheiro no bolso para comprar passagens e ver os jogos”, diz Buford no livro Entre os Vândalos. E, enquanto cooptavam as gangues, os partidos de extrema direita seduziam os eleitores. Em 1984, por exemplo, a Frente Nacional obteve quase 11% dos votos dos franceses e elegeu 10 membros ao Parlamento Europeu. Um deles foi Dominique Chaboche, antigo membro do grupo Occident.

Para recuperar terreno, partidos de esquerda também assumiram o discurso xenófobo e racista. Entre eles o Partido Socialista (PS) francês e o Partido Comunista Italiano (PCI), que acusaram os imigrantes de macular a cultura nacional. O objetivo era frear a debandada de eleitores para a direita. O resultado foi desastroso. Judeus franceses estão arrumando malas para mudar para Israel por medo de perseguição. De janeiro a maio, 2,5 mil franceses emigraram, quatro vez mais que em 2013.

No fim dos anos 80, as células extremistas já haviam erguido uma rede internacional. Ela era articulada pelo alemão Michael Kühnen, o norueguês Erik Blücher e o belga Léon Degrelle, um ex-general de Hitler que vivia na Espanha e liderava o Círculo Espanhol de Amigos da Europa (Cedade). Kühnen revelou que era gay em 1986, quando estava preso por incitar à violência. Após sua morte em decorrência da aids, em 1991, o neonazismo na Alemanha foi levado adiante por Christian Worch.

Nos EUA, a rede cresceu graças a Willis Carto, fundador do Instituto para a Revisão Histórica (IHR) e do extinto Liberty Lobby – que publicava o jornal antissemita Spotlight. Timothy McVeigh, o terrorista que em 1995 detonou um caminhão-bomba em frente a um edifício em Oklahoma City, deixando 168 mortos e 700 feridos, era leitor assíduo do Spotlight. McVeigh colocou anúncios no jornal para vender munição.

Fascismo maquiado

O grande salto da extrema direita veio após o fim da URSS, em 1991. Grupos nacionalistas até então sufocados pelo regime soviético despontaram no Leste Europeu. Com o fim do comunismo e a social-democracia desmoralizada, os extremistas europeus capitalizaram nas urnas. Na Dinamarca, por exemplo, o Partido Popular obteve 13 cadeiras no Parlamento em 1998.

“O ressurgimento do fascismo na Europa pós-Guerra Fria não é orquestrado por um ditador seguido por homens com camisas pardas e braçadeiras com suásticas”, diz o jornalista norte-americano Martin A. Lee no livro The Beast Reawakens (“A Besta Desperta”). “Uma nova geração de extremistas de direita, sintetizada pelo führer do Partido da Liberdade austríaco, Jörg Haider, adapta sua mensagem e seus modos aos novos tempos.”


Neonazistas em Fort Bragg, nos EUA / Corbis

Haider foi duas vezes governador do estado da Caríntia, na Áustria, e só não foi mais longe porque morreu num acidente de carro em 2008. Mas outros líderes como ele têm chegado lá. O búlgaro Volen Siderov ficou em segundo lugar nas eleições presidenciais em 2006. Seu partido, Ataka (“Ataque”), é hoje o quarto maior da Bulgária, com 23 cadeiras no Congresso.

Graças à internet, os extremistas propagam sua animosidade de forma simples e barata. Um dos primeiros sites de ódio foi o Stormfront, criado em 1995 por Don Black, ex-líder da Ku Klux Klan. Hoje o site conta com 250 mil membros e um fórum online com mais de 9 milhões de posts. A nebulosa virtual inclui o site Radio Islam, que dissemina propaganda antissemita em 23 idiomas. Esses portais seguem a tática de Hitler: usar a democracia para propagar mensagens antidemocráticas.

“Como a liberdade de expressão é um dos bens mais apreciados em qualquer democracia, ela não pode ser regulada de antemão. Cada caso tem que ser analisado”, diz Sergio Widder, representante do Centro Simon Wiesenthal para a América Latina. E nenhum país preza a liberdade de expressão mais do que os EUA. Isso explica por que muitos neonazistas hospedam seus sites em território norte-americano.

Por suas leis permissivas, os países escandinavos se transformaram em refúgio de extremistas. Não é à toa que o marroquino Ahmed Rami, fundador da Radio Islam, reside na Suécia. Redes de skinheads, como Combat 18 e Blood & Honour, também difundem sua mensagem ao redor da Europa sob o olhar complacente da polícia.

“Precisamos encontrar respostas que se adaptem aos novos desafios. Não podemos confrontar o nazismo do século 21 da mesma forma que nos anos 80”, diz Widder. Em 2010, por exemplo, a Rússia proibiu a publicação de Minha Luta, a autobiografia de Hitler, para tentar conter o extremismo. Mas o livro está disponível na web, virou best-seller entre os e-books e tem mais de 100 versões à venda na Amazon. “A obra de Hitler é uma fonte para quem estuda o nazismo. Não sei se proibir o livro é a melhor resposta. Vamos censurar o acesso à internet?”, diz Widder.

Encontrar respostas é difícil numa era em que a xenofobia existe até em governos democráticos. E o nazismo volta a assombrar quase sete décadas após a derrota alemã na guerra. Segundo estudo da Universidade de Leipzig, um em cada seis alemães orientais tendem à extrema direita. Em 2002, era só um em cada doze.

“A História é cíclica: tende a se repetir. E ela nos mostra que esse tipo de ideologia é nocivo. Começa pequeno e vai crescendo por meio da demagogia, muitas vezes com um discurso maquiado”, diz Carlos Reiss, coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba, único do gênero no Brasil. Aqui, aliás, páginas do Facebook cultuam a supremacia branca com ofensas a negros e índios. “Não somos racistas, somos orgulhosos”, proclama uma delas.

Saiba mais

The Anatomy of the Fascism, Robert Paxton, Vintage, 2005

Entre os Vândalos, Bill Buford, Companhia de Bolso, 2010

The Beast Reawakens, Martin A. Lee, Routledge, 1999

Antissemitismo e Nacionalismo, Negacionismo e Memória, Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus, Unesp, 2006
Revista Aventuras na História

MARCHA DO SAL: HÁ 89 ANOS GANDHI LIDERAVA UMA MULTIDÃO PARA UM ATO DE DESOBEDIÊNCIA CIVIL NÃO VIOLENTA



O movimento foi parte importante na conquista da Independência da Índia. Entenda o protesto!

ALANA SOUSA 

Wikimedia Commons


Em 12 de março de 1930, tinha início a lendária Marcha do Sal. Gandhi, seguido por voluntários, caminhou quase 400 quilômetros rumo ao mar da Arábia. O ato foi pacífico e durou 24 dias.

A marcha era uma violação do monopólio britânico sobre a fabricação e tributação do sal. Indianos de todo o país seguiram o exemplo de protesto, vendendo sal nas ruas.

Gandhi liderou a manifestação desde Sabarmati Ashram até a vila costeira de Dandi, que ficava em uma pequena cidade chamada Navsari, hoje no estado de Gujarat. Chegando ao destino, eles produziram sal sem pagar o imposto exigido.


O movimento, que se baseou no princípio de protesto não violento chamado satyagraha, ganhou a atenção mundial suficiente para impulsionar o movimento de independência da Índia e iniciou o Movimento Nacional de Desobediência Civil.

Quando a escolha de Gandhi de protestar pelo sal foi anunciada, jornais da Índia Colonial trataram o assunto com um tom cômico e até mesmo o vice-rei, lorde Irwin, escreveu: “No momento, a perspectiva de uma campanha de sal não me mantém acordado à noite”.

Entretanto, o líder da marcha tinha uma visão diferente sobre o produto: entendia que o item, por ser de uso diário, poderia afetar todas as classes de cidadãos, e declarou que “ao lado do ar e da água, o sal talvez seja a maior necessidade da vida”. Ao observar a dimensão do ato, as autoridades perceberam o poder do alimento como o símbolo principal.


Ao decorrer da Marcha do Sal, voluntários levavam água e comida para os manifestantes, além de cumprimentá-los com batida de tambores. Gandhi fez discursos no caminho atacando o imposto sobre o sal como inumano e o satyagraha como uma “luta do pobre”.

As autoridades britânicas usaram repetidamente a força para parar a marcha. A repressão prendeu desde políticos até pessoas comuns. Cerca de 60 mil pessoas foram presas no total. Com as cadeias lotadas, o vice-rei lorde Irwin, governante inglês da Índia, se dispôs a negociar a liberação dos detidos.

Só em 1931 foi quebrado o monopólio sobre o sal. Sinal de que a independência seria questão de tempo, foi conquistada em 15 de agosto de 1947.
Revista Aventuras na História

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

O nazismo era um movimento de esquerda ou de direita?


Camilla Costa
BBC Brasil

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Em meio a crise econômica e política na Alemanha, nazismo trazia ideia de "revolução social". mas só para os "arianos"

"Cara, cai na real! Ser de esquerda é ser a favor de milhares de mortes causadas pelo comunismo e nazismo no mundo. Reflita!", diz uma mensagem de janeiro no Twitter. "O socialismo/comunismo é uma ideologia de esquerda irmã do nazismo", diz outra do final de abril. Outro participante da rede social pergunta: "Quantas pessoas será que estão em grupos de libertários no Facebook discutindo se nazismo é esquerda ou direita neste exato momento?".

A discussão sobre se o movimento nazista alemão - cujo governo matou milhões de pessoas e levou à Segunda Guerra Mundial - teria as mesmas origens do marxismo ferve nas redes sociais há alguns meses, com a crescente polarização do debate político no Brasil.

Mas historiadores entrevistados pela BBC Brasil esclarecem o que dizem ser uma "confusão de conceitos" que alimenta a discussão - e explicam que o movimento se apresentava como uma "terceira via".

"Tanto o nazismo alemão quanto o fascismo italiano surgem após a Primeira Guerra Mundial, contra o socialismo marxista - que tinha sido vitorioso na Rússia na revolução de outubro de 1917 -, mas também contra o capitalismo liberal que existia na época. É por isso que existe essa confusão", afirma Denise Rollemberg, professora de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF).

"Não era que o nazismo fosse à esquerda, mas tinha um ponto de vista crítico em relação ao capitalismo que era comum à crítica que o socialismo marxista fazia também. O que o nazismo falava é que eles queriam fazer um tipo de socialismo, mas que fosse nacionalista, para a Alemanha. Sem a perspectiva de unir revoluções no mundo inteiro, que o marxismo tinha."

O projeto do movimento nazista, segundo Rollemberg, previa uma "revolução social para os alemães", diferentemente do projeto dos partidos de direita da época, "que vinham de uma cultura política do século 19, de exclusão completa e falta de diálogo com as massas".

Mesmo assim, ela diz, seria complicado classificá-lo no espectro político atual. "Eles rejeitavam o que era a direita tradicional da época e também a esquerda que estava se estabelecendo. Eles procuravam se mostrar como um terceiro caminho", afirma.

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Nacionalismo

A ideia de uma "revolução social para a Alemanha" deu origem ao Partido Nacional-Socialista alemão, em 1919. O "socialista" no nome é um dos principais argumentos usados nos debates de internet que falam no nazismo como um movimento de esquerda, mas historiadores discordam.

"Me parece que isso é uma grande ignorância da História e de como as coisas aconteceram", disse à BBC Brasil Izidoro Blikstein, professor de Linguística e Semiótica da USP e especialista em análise do discurso nazista e totalitário.

"O que é fundamental aí é o termo 'nacional', não o termo 'socialista'. Essa é a linha de força fundamental do nazismo - a defesa daquilo que é nacional e 'próprio dos alemães'. Aí entra a chamada teoria do arianismo", explica.

De acordo com Blikstein, os teóricos do nazismo procuraram uma fundamentação teórica e filosófica para defender a ideia de que eles eram descendentes diretos dos "árias", que seriam uma espécie de tribo europeia original.

"Estudiosos na Europa tinham o 'sonho da raça pura' nessa época. Quanto mais próximos da tribo ariana, mais pura seria a raça. E esses teóricos acreditavam que o grupo germânico era o mais próximo. Daí surgiu a tese de que, para serem felizes, tinham que defender a raça ariana, para ficar longe de subversões e decadência. (Alegavam que) a raça pura poderia salvar a humanidade."

A ideia de uma defesa do povo germânico ganhou popularidade em um momento de perda de territórios, profunda recessão e forte inflação após a Primeira Guerra Mundial - e tornou-se o centro do movimento nazista.

"Era preciso recuperar a moral do pobre coitado, que não tinha dinheiro e era 'massacrado pelos capitalistas'", explica Blikstein. Nesse contexto, afirma, o nazismo vendia a ideia de "reeguer o orgulho da nação ariana. O pressuposto disso seria eliminar os não arianos. E essa teoria foi aplicada até as últimas consequências".

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Segundo especialistas, judeus eram perseguidos por simbolizarem dois "inimigos" do nazismo: o capitalismo liberal e o socialismo marxista
'Marxistas e capitalistas'

Mesmo propagando a ideia de que o nazismo planejava uma revolução social na Alemanha - o que incluía, por exemplo, maior intervenção do Estado na economia -, o partido fazia questão de deixar clara sua oposição ao marxismo.

"Os comícios hitleristas eram profundamente antimarxistas", disse à BBC Brasil a antropóloga Adriana Dias, da Unicamp, que é estudiosa de movimentos neonazistas.

"O nazismo e o fascismo diziam que não existia a luta de classes - como defendia o socialismo - e, sim, uma luta a favor dos limites linguísticos e raciais. As escolas nacional-socialistas que se espalharam pela Alemanha ensinavam aos jovens que os judeus eram os criadores do marxismo e que, além de antimarxistas, deveriam ser antissemitas."

Os judeus, aliás, tornaram-se o ponto focal da perseguição nazista porque representavam tanto o socialismo como o capitalismo liberal, mesmo que isso possa parecer antagônico nos dias de hoje.

"Havia uma simbologia do judeu como representante, por um lado, do socialismo revolucionário - porque Marx vinha de uma família judia convertida ao protestantismo, assim como muitos bolcheviques", diz a historiadora Denise Rollemberg.

"Por outro lado, os judeus eram associados ao capitalismo financeiro porque os judeus assimilados (que assumiram as culturas de outros países, para além da nação religiosa) que viviam na Europa tinham uma tradição de empréstimos de dinheiro e de negócios."
'Precisão científica'

A "precisão científica" do extermínio de judeus na Alemanha nazista também dificulta as comparações com a perseguição política no regime socialista soviético, na opinião de Izidoro Blikstein.

"Há muitos genocídios pelo mundo, mas nenhum igual ao nazismo, porque este era plenamente apoiado por falsa teoria científica e linguística e levada até as últimas consequências. A União Soviética também tinha campos de trabalhos forçados, mas não existia uma doutrina para justificar isso", afirma.

"Mas há traços comuns entre o nazismo o regime (soviético) de Stálin. A propaganda, por exemplo, e o fato de que ambos eram regimes totalitários, que controlavam e legislavam sobre a vida pública e também privada do cidadão", admite.

Além dos judeus, o regime nazista também perseguiu democratas liberais, socialistas, ciganos, testemunhas de Jeová e homossexuais - algo que, hoje, contribui para que o nazismo seja classificado como extrema-direita, e o aproxima de grupos que pregam contra a comunidade LGBT, contra imigrantes e contra muçulmanos, por exemplo.

"Todo esse projeto de repressão, censura, campos de concentração e extermínio nazista era direcionado a quem estava fora do que eles chamavam de 'comunidade popular', o povo alemão. Mas alemães que eram democratas liberais e socialistas também eram excluídos por serem contrários ao projeto nazista e colocarem em risco essa comunidade popular", explica Denise Rollemberg.

No entanto, para Blikstein, a ideia de raça é tão central ao nazismo que, assim como não se pode usar o projeto de revolução social para classificá-lo como "esquerda", também é difícil defini-lo como a "direita" que conhecemos hoje.

"Dizer apenas que Hitler era um político de direita é apequenar o nazismo. Foi mais do que direita ou esquerda. Foi uma doutrina arquitetada para defender uma raça, embora esse conceito seja discutível e pouco científico", diz.

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'Crise de referências'

Uma recapitulação do projeto e do regime nazista, de acordo com os especialistas no assunto, aumenta a confusão: deveria haver igualdade social e distribuição de renda, mas imigrantes, judeus, opositores políticos e até filhos "não talentosos" de alemães seriam excluídos dela por serem "menos puros"; o Estado prometia interferir mais na economia para benefício dos cidadãos, mas empresas privadas tiveram os maiores lucros com a máquina de extermínio e de guerra nazista; o movimento dizia defender os trabalhadores, mas sindicatos trabalhistas foram extintos, assim como o direito de greve; o socialismo marxista era considerado ruim, mas o liberalismo também.

Como seria possível defender todas estas ideias ao mesmo tempo?

"Quando o partido foi constituído, ele tinha uma vertente mais à esquerda e uma mais à direita. No início, tinha um discurso bastante antiburguês. Mas ao assumir o poder na Alemanha, o grupo à direita foi fazendo mais alianças com a burguesia e expulsando o grupo à esquerda", diz a historiadora da UFF.

"Além disso, o nazismo nasce no meio de uma crise de referências muito grande após a Primeira Guerra. Muitos passaram de um lado para outro. Os valores muitas vezes vão se embaralhar, e esses conceitos de direita e esquerda atuais não resolvem bem o problema."

Entre historiadores, a tentativa de traçar paralelos entre o nazismo e o fascismo europeus e o regime stalinista na União Soviética também não é nova, segundo Rollemberg.

"Todos eles eram regimes totalitários, mas o totalitarismo pode estar de qualquer lado. Hoje entendemos que há o totalitarismo de direita, como o nazismo e o fascismo, e o de esquerda, como o da União Soviética."

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

UM OLHAR NA HISTORIA: A MULHER NA ESCOLA (BRASIL: 1549 – 1910)



Maria Inês Sucupira Stamatto – Programa de Pós-Graduação em Educação - UFRN 

Este texto aborda a problemática do processo de escolarização que se realizou no Brasil desde a chegada dos jesuítas até o início da República, sob a ótica do gênero. A situação de exclusão da mulher da escola em outros países, em épocas anteriores, já foi constatada por autores que trabalharam com alfabetização e leitura, e mesmo cantada em prosa e verso, como podemos ilustrar com a “Balada para rezar a Nossa Senhora”: ...Sou mulher pobrezinha e quase no final. Eu nada sei, jamais por mim letra foi lida. Vejo na igreja que freqüento, paroquial, Pintado o céu, onde o alaúde, a harpa é ouvida, E o inferno, onde os danados fervem sem medida: Um me apavora, o outro a alegria em mim derrama... . ( Villón apud in Martins, 2001, p.133.) Poderíamos afirmar que esta realidade já não é mais a mesma? Segundo dados recentes, temos a informação de que 125 milhões de crianças no mundo não freqüentam a escola sendo que dois terços deste número são meninas e que um em cada quatro adultos nos países em desenvolvimento não sabe ler ou escrever, sendo que dois terços deste percentual são mulheres (Mittler, 2002, p.11). Será que no Brasil a situação é ou foi diferente? Como historicamente aconteceu a escolarização da população brasileira, atentando para a questão feminina? Assim, escolhemos como objetivo desta pesquisa observar de que forma ocorreu a inserção da mulher na rede escolar, tanto enquanto aluna como profissional da educação, isto é, em situações do mercado de trabalho deste ramo: professora, diretora, supervisora. Nesta etapa do trabalho optamos por uma abordagem histórica, levantando documentos variados e nos apoiando em bibliografia já produzida sobre o assunto.

Da educação das meninas por Fénelon (1852)


Maria Helena Camara Bastos

Resumo

Durante longo tempo, a sociedade ocidental refutou a igualdade de instrução para os dois sexos. A longa dominação da Igreja Católica sobre a educação explica o privilegiamento da formação masculina, ou seja, dos futuros padres. Na Renascença, raros são os humanistas, como J. J. Vives ou Tomas Morus, a defender uma educação igual para mulheres e homens. Um espírito liberal como Erasmo também duvidou do interesse das meninas em aprender o latim (Bastos; Garcia, 1999, p. 79).

Angèle Mérici e sua congregação das Ursulinas, fundada em 1536, traçou, por três séculos, o programa comum de ensino para as mulheres: “ler, escrever, trabalho em agulha e instrução religiosa”, para formar as boas (futuras) mães cristãs, na falta de fazer piedosas noviças, cuja instrução tinha uma finalidade eminentemente endógena (Chassanges, 1983, p.10). Tanto Fénelon como a Marquesa de Maintenon não mudaram essa orientação, persuadidos que estavam que saber ler, escrever, costurar, cantar e rezar eram suficientes para a reprodução sociocultural (Bastos; Garcia, 1999, p. 78).

A partir do estudo que realizamos sobre a circulação da obra “As Aventuras de Telêmaco” (1694-98), de François Salignac de la Mothe Fénelon (1651-1715), no Brasil e, principalmente, da sua apropriação escolar (Bastos, 2009), nos questionamos sobre seu outro sucesso no século 17 - “De l’éducation des filles” (1687-1696), um clássico sobre a educação feminina. Procuramos por uma tradução para o português, localizando um exemplar na Bibliothèque nationale de France (BnF) de 1852. O qual reproduzimos para o leitor brasileiro.

Hoje, o que poderíamos dizer sobre a leitura de “Da educação das meninas”? Essa obra é um discurso fundador sobre a educação das mulheres e contribui para a compreensão da historicidade dos processos discursivos sobre como as questões de gênero se relacionam e como contribuem para tecer e homogeneizar a memória de uma época. Além disso, fazendo uso das palavras de Calvino (2006, p. 137), Fénelon foi “autor de um afresco do seu tempo”, construindo um texto repleto de conteúdos/ mensagens, pleno de sentidos e marcando uma concepção de educação de que “a virtude pode ser ensinada e que o vício é conseqüência da ignorância” (Brum, 1995, p. 57).

terça-feira, 27 de novembro de 2018

A história esquecida do 1º barão negro do Brasil Império, senhor de mil escravos


Marcus Lopes
De São Paulo para a BBC News Brasil

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Almeida fazia parte de um pequeno grupo de mestiços de origem africana que conseguiram ascender financeira e socialmente

Um próspero fazendeiro e banqueiro do Brasil nos tempos do Império, dono de imensas fazendas de café, centenas de escravos, empresas, palácios, estradas de ferro, usina hidrelétrica e, para completar a cereja do bolo, de um título de barão concedido pela própria Princesa Isabel. A biografia do empresário mineiro Francisco Paulo de Almeida, o Barão de Guaraciaba, não seria muito diferente de outros nobres da época não fosse um detalhe importante: ele era negro em um país de escravos.

No ano em que a Lei Áurea completa 130 anos, vale a pena conhecer a trajetória do primeiro e mais bem-sucedido barão negro do Império, um personagem praticamente desconhecido na História do Brasil. Empreendedor de mão cheia e com grande visão de negócios em um país ainda essencialmente agrário, ele tem uma trajetória que lembra a de outro barão empreendedor do Império, este bem mais famoso: o Barão de Mauá.

Com um patrimônio acumulado de 700 mil contos de réis, que garantia ao dono status de bilionário na época em que viveu, Almeida nasceu em Lagoa Dourada, na época um arraial próximo a São João del Rei, no interior de Minas Gerais, em 1826.

A origem da sua família é pouco conhecida. Filho de um modesto comerciante local chamado Antônio José de Almeida, na certidão de batismo consta como nome da mãe apenas "Palolina", que teria sido uma escrava. "Infelizmente não sabemos o destino de Palolina e a quem ela pertencia, mas, sim, ela era escrava", afirma o historiador Carlos Alberto Dias Ferreira, autor do livro Barão de Guaraciaba - Um Negro no Brasil Império.

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A secretária administrativa Mônica de Souza Destro, trineta do barão, é hoje a guardiã da história da família

O nome, porém, provoca discussões entre os descendentes do barão, já que, por um erro de grafia no registro, "Palolina", na verdade, seria Galdina Alberta do Espirito Santo, esposa de Antônio e considerada pelo próprio barão sua legítima mãe. "Certamente seu pai ou mãe tinham ascendência negra, mas não existe nenhum registro provando que ele era filho de escravo ou escrava", afirma a trineta do barão e guardiã da história da família, a secretária administrativa Mônica de Souza Destro, que mora em Juiz de Fora (MG).

Ainda na adolescência, Almeida começou a vida como ourives fabricando botões e abotoaduras em sua terra natal, na região aurífera de Minas. Nos intervalos, tocava violino em enterros, onde recebia algumas moedas como pagamento e os tocos das velas que sobravam do funeral, que utilizava para estudar à noite. Por volta dos 15 anos, tornou-se tropeiro entre Minas e a Corte, no Rio de Janeiro.

Nessas idas e vindas, ganhou dinheiro comprando e vendendo gado, conheceu muitos fazendeiros e negociantes nos caminhos das tropas e começou a comprar terras na região de Valença, no interior fluminense, para plantar café.

Após casar-se com dona Brasília Eugênia de Almeida, com quem teve 16 filhos, tornou-se sócio do seu sogro, que também era fazendeiro e negociante no Rio de Janeiro.
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Certidão de batismo de um dos 16 filhos do barão: Com a morte do sogro, ele assumiu os negócios e sua fortuna disparou

Após a morte do sogro, assumiu todos os negócios e sua fortuna disparou: comprou sete fazendas de café espalhadas pelo Vale do Paraíba fluminense e interior de Minas. Apenas na fazenda Veneza, em Valença, possuía mais de 400 mil pés de café e cerca de 200 escravos. Levando-se em consideração que ele tinha outras áreas produtoras de café, o barão pode ter tido até mil escravos, segundo Ferreira.

"Não se trata de uma contradição ele ter sido negro e dono de escravos, pois tinha consciência do período em que vivia e precisava de mão de obra para tocar suas fazendas. E a mão de obra disponível era a escrava", diz Ferreira.

"Ainda que nos cause repúdio hoje em dia, o contexto de escravidão era uma coisa normal e era mão de obra que existia naquele tempo", completa Mônica, que prepara uma biografia do seu ancestral, ainda sem data para ser publicada.

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Imagem mostra uma das fazendas do barão, que teve cerca de mil escravos no conjunto de suas propriedades, o que historiador não vê como contradição: "Essa era a mão de obra disponível"

Em sociedade com outros empreendedores com quem mantinha contato, Guaraciaba tornou-se banqueiro e fundou dois bancos: o Mercantil de Minas Gerais e o Banco de Crédito Real de Minas Gerais. A diversificação empresarial não parou por aí.

Em um período em que as ferrovias começavam a rasgar o território nacional, participou da construção da Estrada de Ferro Santa Isabel do Rio Preto (depois incorporada pela Rede Mineira de Viação), cujos trilhos passavam por suas propriedades, em Valença.

A ferrovia, que ligava Valença a Barra do Piraí e se tornou importante para escoar o café do Vale do Paraíba, foi inaugurada por D. Pedro 2º em 1883. Teriam começado aí as boas relações entre Guaraciaba e a família real, que culminariam na concessão do título de barão pela princesa Isabel, regente na ausência do pai, em 1887.

O título foi concedido por "merecimento e dignidade", em especial pela dedicação de Guaraciaba à Santa Casa de Valença, onde foi provedor. Mas entrar para a nobreza tinha um custo fixo e tabelado pela Corte: 750 mil réis.

Sempre atento às oportunidades de negócios que chegavam com o progresso, Almeida foi sócio fundador da primeira usina hidrelétrica do país, inaugurada em 1889, em Juiz de Fora (MG). A Companhia Mineira de Eletricidade, que construiu a usina, também foi responsável pela iluminação pública elétrica em Juiz de Fora. O barão, claro, foi um dos participantes e financiadores da modernidade que aumentou o conforto da população.
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Antiga mansão do Barão de Guaraciaba, chamada de Palácio Amarelo, hoje é sede da Câmara Municipal de Petrópolis, no Rio de Janeiro

Dono de um estilo de vida condizente com a nobreza imperial, o Barão de Guaraciaba possuía uma confortável residência na Tijuca, no Rio de Janeiro, e outra em Petrópolis, destino de veraneio preferido dos ricos e da nobreza.

Na cidade serrana construiu uma mansão que posteriormente foi chamada de Palácio Amarelo e que hoje abriga a Câmara Municipal. Também fazia diversas viagens para a Europa, principalmente para Paris, para onde mandou seus filhos para estudar.

"Guaraciaba distinguiu-se por ter sido financeiramente o mais bem-sucedido negro do Brasil pré-republicano. Ele se tornou o primeiro barão negro do Império, notabilizando-se pela beneficência em favor das Santas Casas", afirma a historiadora e escritora Mary Del Priore.

Segundo ela, Almeida fazia parte de um pequeno grupo de mestiços de origem africana que conseguiram ascender financeira e socialmente.

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Após a proclamação da República, Guaraciaba começou a se desfazer dos seus bens, mas viveu uma vida bastante confortável até sua morte

O racismo, porém, permanecia arraigado na sociedade brasileira, independentemente da posição financeira, diz Priore. Alguns desses empreendedores, a exemplo do Barão de Guaraciaba, conquistaram ou compraram seus títulos de nobreza junto ao Império, sendo por isso chamados na época de "barões de chocolate", em alusão ao tom da pele.

"O sangue negro corria nas melhores famílias. Não faltavam casamentos de 'barões de chocolate' com brancas", completa a historiadora.

Após a proclamação da República, Guaraciaba começou a se desfazer dos seus bens, mas viveu uma vida bastante confortável até morrer, na casa de uma das filhas, no Rio de Janeiro, em 1901, aos 75 anos.

Seus herdeiros, inclusive alguns ex-escravos agraciados pelo dono e que permaneceram com o patrão após a alforria, receberam dinheiro e propriedades, e se espalharam pelos Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais.

"Ele foi um grande empreendedor que acabou banqueiro, homem de negócios, fazendeiro e senhor de escravidão. É preciso empenho e coragem dos historiadores para estudar esses símbolos bem-sucedidos de mestiçagem", diz Mary Del Priore, que resgata um pouco da história do Barão de Guaraciaba em seu livro Histórias da Gente Brasileira.
Fonte:  BBC Brasil

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

As raízes do fascismo segundo Trotsky

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Henrique Carneiro

Nascidos das frustrações, da decadência social da pequena-burguesia e das camadas médias após uma guerra devastadora, o nazi-fascismo de Hitler e Mussolini levou a Alemanha e a Itália a uma guerra ainda pior, a que mais matou até hoje em toda a história da humanidade


O nazi-fascismo foi derrotado na pior guerra já conhecida pela humanidade. Na Alemanha e Itália estas palavras foram proibidas como denominação política.

No século XXI, no entanto, os movimentos europeus neonazifascistas se reciclaram. Deixaram de serem grupos saudosistas e se vincularam com o fenômeno de uma nova extrema-direita que mantém muitas das características fascistas, mas não todas.

O fascismo não pode ser generalizado para qualquer direita, mesmo que extremada. Os regimes ditatoriais, por exemplo, não são necessariamente fascistas, pois carecem do elemento de mobilização popular que foi típico do fascismo.

Na extrema-direita de hoje em dia, à exceção de extremistas como o norueguês Anders Behring Breivik, que explodiu um carro bomba em Oslo e matou dezenas de jovens a tiros no encontro da Liga de Juventude dos Trabalhadores (sessão estudantil do Partido Trabalhista norueguês) em 2011, o programa de extermínio das organizações de esquerda, dos sindicatos e dos movimentos sociais também é atenuado. O racismo deixa de lado o antijudaísmo e se reconcilia com Israel e o sionismo, mas encontra outros semitas, dessa vez os árabes, e outros povos asiáticos e africanos para discriminar como indesejáveis. O estatismo é substituído por uma aceitação pragmática da lógica dos mercados financeiros. Assim age, por exemplo, Marine Le Pen, do Front Nacional na França. Poucos são os que, como o partido Aurora Dourada, na Grécia, mantém o ideário neonazi quase sem camuflagem.

O caso brasileiro é peculiar, pois a extrema-direita aqui foi, inicialmente, um tipo local de fascismo, o integralismo de Plínio Salgado, e que já adotava, em lugar do nacional desenvolvimentismo, uma doutrina neoliberal. Nos diversos governos do regime militar houve certamente fascistas, mas não se pode caracterizar o regime político em si como fascista, mas sim bonapartista. Além da ausência do culto pessoal ao líder, os governos militares brasileiros mantiveram mesmo que estritamente controladas as instituições parlamentares, que o fascismo clássico sempre suprimiu.

Agora, no ano de 2018, a candidatura de Jair Bolsonaro, um capitão deputado abertamente neofascista, coloca em debate que tipo de regime político poderia se constituir em seu governo. Haveria um auto-golpe, a supressão do parlamento, dos partidos, dos sindicatos e dos movimentos sociais?

Diferentemente do fascismo clássico, inexiste uma organização orgânica em torno ao culto da liderança do capitão que se notabiliza pelo estilo truculento, pela ignorância, pela ameaça de fuzilamento dos adversários, pela misoginia, homofobia e racismo explícitos. O aspecto doutrinário também é muito escasso, mas a adesão do fundamentalismo religioso pode oferecer um novo estofo místico.

Antes de caracterizar as formas dos neofascismos contemporâneos e suas conexões com os fenômenos chamados de alt-right, “direita alternativa”, que influenciaram muito a eleição de Trump, nos Estados Unidos, é indispensável um olhar histórico para o que foi o fascismo clássico e como ele foi ou deixou de ser combatido.

Para isso, a publicação desse conjunto de textos de Leon Trotsky, escritos enquanto o fascismo crescia na Europa, é muito oportuna.


Fascismo clássico

O emblema do partido nacional fascista na Itália era o fascio littorio. Fascio, palavra italiana, se refere a um feixe de varetas em torno de uma estaca que sustenta uma machadinha, um símbolo do poder que desde o império Romano fez parte das armas do soldado de escolta das autoridades, chamado de lictor. O número de lictores dependia do posto em questão.

Estes lictores, oriundos da plebe e que serviam de guarda do poder, resumem bem o que é o fascismo: uma força recrutada nas camadas plebeias a serviço de um poder extremado dos ricos que impõe a ordem em uma sociedade desigual.

As formações paramilitares que se formaram após a primeira guerra mundial na Itália e que levaram Mussolini ao poder se chamaram fascio di combatimento, ou “feixes de combate”.

Em 1922, 40 mil “camisas negras”, que era como se uniformizavam essas milícias, cercaram Roma e tomaram o poder num golpe que impôs a nomeação de Mussolini como chefe do governo, do qual só sairia preso, 23 anos depois. O estatuto nacional do partido fascista, de 1932, se define no artigo primeiro como “uma milícia civil voluntária as ordens do Líder (Duce) ao serviço do Estado fascista” e a obrigação maior dos seus membros se resume ao lema “crer, obedecer, combater”.

Após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial (a Itália entrou tardiamente no conflito, contra a Alemanha e Áustria-Hungria, rompendo a Tríplice Entente que mantinha com elas), além da destruição geral, houve pesadas retaliações econômicas no Tratado de Versalhes que levaram à pior crise inflacionária e de desemprego já conhecida.

O Partido Nazista, cinco anos após a sua fundação, teve apenas 1,1% dos votos com o general Ludendorff, na primeira eleição presidencial da história da Alemanha, em 1925, vencida pelo marechal Hindenburg, da direita tradicional. Em 1930, após a crise da bolsa de 1929, teve 16% nas legislativas. Na presidencial, em 1932, Hitler saltou para 30% no primeiro turno e 36% no segundo turno. Quem ganhou, entretanto, foi novamente Hindenburg. Mas, em janeiro de 1933, o presidente Hindenburg chamou Hitler para chefiar o governo como chanceler. Um mês depois, ocorria o incêndio do Reichstag, e Hitler declarava uma lei de plenos poderes e abolia todos os demais partidos. Ao final do ano, faz eleições de fachada e o partido nazista obtém 92% dos votos. Seis meses mais tarde, em 30 de junho de 1934, massacrou os rivais internos ao partido, da milícia SA, na Noite das Longas Facas, assim como passou a prender e assassinar membros da oposição liberal, socialista e comunista, judeus, homossexuais, maçons, ciganos e toda a oposição. Em agosto, Hindenburg morre, tornando o Führer o único governante.

O fascismo italiano esteve no poder por 23 anos. O nazismo alemão por 12. O primeiro chegou ao poder por um golpe, o segundo, por eleições e, em seguida, por meio de um autogolpe em que adquiriu poderes ditatoriais.

Nascidos das frustrações, da decadência social da pequena-burguesia e das camadas médias após uma guerra devastadora, o nazi-fascismo de Hitler e Mussolini levou a Alemanha e a Itália a uma guerra ainda pior, a que mais matou até hoje em toda a história da humanidade.

A frente única antifacsista

Os textos que compõem o livro Como esmagar o fascismo foram escritos por um dos líderes da revolução russa, Leon Trotsky, banido de seu país e exilado na Turquia, na ilha de Prinkipo, enquanto ocorria o processo de crescimento do nazi-fascismo.

Ele critica a política desenvolvida pelo Partido Comunista alemão, o KPD, seguidor da linha de Moscou, que levava, na opinião dele, a uma derrota. A sua tese mais retomada ao longo dos textos de diferentes momentos é a de que foi a recusa da frente única com o Partido Social Democrata por parte dos comunistas que levou o nazismo a crescer. A estratégia que ele insiste em defender é a da frente única.

O objetivo mais característico de todos os movimentos nazifascistas desse período era o de buscar a destruição de todas as formas de organização partidária, sindical e social independente. Como escreve Trotsky, citando o italiano Ercoli: “a essência e a função do fascismo consistem em abolir completamente as organizações operárias e em impedir o seu restabelecimento”.

Para isso, outro traço comum é, já antes da chegada ao poder, desenvolverem milícias paramilitares como força de intimidação. Só quando chegam ao governo que passam a controlar diretamente as forças armadas. No caso alemão, a milícia da SA (Sturmabteilung “Destacamento Tempestade“), que ajudou na tomada do poder por Hitler, foi depois, em 1934, descabeçada com o massacre dos seus dirigentes.

O setor social que se constitui como base inicial da adesão a tais movimentos foi o da pequena-burguesia, especialmente desmoralizada após as crises econômicas que destruíram a Alemanha no primeiro pós-guerra, e setores desempregados e empobrecidos das classes média.

Neofascismo hoje

O surgimento desses movimentos políticos que destroem os movimentos sociais, sindicatos e as instituições da democracia liberal, como partidos, eleições e parlamento, impondo um sistema de partido único com elementos militarizados foi o resultado direto da pior crise e da mais sangrenta guerra vivida em muitos séculos na Europa e no mundo. A escolha de objetos de ódio como bodes expiatórios também é sempre um meio de criar uma tensão agressiva e discriminatória na sociedade.

Hoje em dia, vivemos em escala mundial os efeitos da última crise econômica e financeira de 2008, que aumentaram a desigualdade mundial e se agravaram pelas guerras do Iraque e da Síria, que causaram uma crise social de imigração. O fracasso dos partidos socialdemocratas na Europa, que executaram os mesmos planos de austeridade da direita e a fraqueza das propostas socialistas mais radicais de solidariedade internacionalista, ajudam a compreender o crescimento de uma onda neofascista europeia que reabilita parte do legado da época da segunda guerra. É reciclado o programa de racismo, xenofobia, militarismo e repressão aos movimentos sociais com novos partidos que obtém maior influência na Hungria, Polônia, Itália, Rússia, Ucrânia e até mesmo na Suécia. A eleição de Trump, nos Estados Unidos, também aumenta a conexão da chamada “direita alternativa” que ganha um enorme papel em seu governo.

No Brasil, os movimentos verde-amarelos que fizeram demonstrações de massa pelo impeachment de Dilma Roussef conviveram com pequenos grupos de militância neofascista, fundamentalista religiosa e até de velhos integralistas ou mesmo monarquistas. Nas eleições de 2018, pequenos partidos inexpressivos até então, como o PSL, elegeram grandes bancadas e ganharam governos de estado. O seu maior representante, Jair Bolsonaro, ganhou as eleições presidenciais.

Se é apenas o velho conservadorismo de uma burguesia escravista que retoma ascendência sobre o povo por meio de candidatos populistas militares que defendem o autoritarismo ou se há o surgimento de uma nova formação política de tipo fascista explícito ainda é uma questão em aberto.

O período entre-guerras do nascimento do nazi-fascismo clássico é muito diferente dos tempos atuais. O conflito inter-imperialista e o belicismo chauvinista que conduziram à guerra não se encontram agora. O ultraliberalismo austericida se tornou uma política global para aumentar a extração de rendas à custa de maior desigaldade, miséria e rebaixamento salarial. O parentesco ideológico do neofascismo global continua, entretanto, com suas afinidades supremacistas brancas, de machismo militarista, de pregação do extermínio de adversários e de grupos sociais estigmatizados e de defesa do privatismo contra qualquer tipo de reforma social distributivista ou compensatória.

Estudar a gênese do nazi-fascismo é indispensável para se compreender seu significado histórico, seu destino catastrófico na Europa e as suas reciclagens atuais, que é a única forma de se poder combatê-lo. As políticas adotadas pela esquerda, para Trotsky, foram errôneas na década de 1930 e tornaram mais difícil a luta contra a ascensão fascista.

O neofascismo contemporâneo dependerá para sua disputa pelo poder não apenas da credulidade das massas e da violência de suas ações, mas das respostas que os movimentos sociais darão ao seu crescimento, sobretudo quando ele chega a governar ganhando maiorias eleitorais.

*Henrique Carneiro é historiador. Este texto é o prefácio do livro Como esmagar o fascismo, lançado dia 2 de novembro pela Autonomia Literária.
LE MONDE DIPLOMATIQUE

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Segredos e mentiras


O sigilo absoluto das reuniões da maçonaria serviu de pretexto para os ataques feitos por uma Igreja Católica conservadora

Françoise Jean de Oliveira Souza

“Cumpre, antes de mais nada, rasgar as falsas vestiduras com que se adornam os maçons e mostrar o que eles são”. A frase do papa Leão XIII (1879-1903) reflete bem o antagonismo que se estabeleceu entre a Igreja Católica e a maçonaria mundial ao longo do século XIX e no início do XX. Repudiados pelo catolicismo, os maçons foram duramente acusados de crimes como transgressão das leis, conspiração e satanismo. Diante do crescimento das idéias liberais, a Igreja via ameaçada a sua presença no mundo ocidental. O pensamento conservador católico lançou-se então, violentamente, contra seus principais inimigos, numa tentativa de “barrar o carro da revolução”, como se dizia na época.

As transformações políticas ocorridas depois da Revolução Francesa, que puseram à prova as bases do absolutismo em fins do século XVIII, levaram a Igreja a combater ferozmente movimentos considerados revolucionários, como os liberais, comunistas, anarquistas, progressistas e outras tendências políticas. A maçonaria foi uma das práticas consideradas ameaçadoras pela Igreja. Mas por que os maçons estavam na lista de inimigos da Igreja?

A maçonaria tem origem em corporações de ofício medievais, compostas por trabalhadores especializados na arte da construção. Devido à natureza itinerante de sua atividade, eles não se prendiam a nenhum feudo, tendo o privilégio da livre circulação. Com isso, surge a expressão “pedreiros-livres”, ou “francos-maçons”. Só a partir do século XVI a maçonaria passa a admitir membros de outras classes de trabalhadores.

Os setores mais conservadores da Igreja eram contrários às idéias liberais difundidas pela maçonaria. Insistindo na defesa de valores tradicionais absolutistas, o conservadorismo católico rejeitava a liberdade de pensamento e de culto, a igualdade de direitos, o individualismo e o racionalismo.



A ordem maçônica se desenvolveu em harmonia com os novos espaços e valores modernos, nos quais os indivíduos tinham liberdade para expor suas idéias e debatê-las dentro das novas regras constitucionais. O caráter fechado dessas sociedades, que cultivavam em estrito sigilo as práticas e os rituais realizados dentro dos templos, fez da Maçonaria um dos primeiros espaços privados sobre os quais a jurisdição da Igreja Católica não podia atuar, o que certamente representava uma afronta ao poder do papa. A Igreja Católica via na ordem maçônica uma ameaça à salvação das almas daqueles que conviviam com a promiscuidade das seitas pagãs e um perigo para os Estados monarquistas absolutistas.

Durante o século XIX, a preocupação com os maçons se torna mais visível. Nessa época, aumenta a quantidade de documentos oficiais da Igreja que condenavam essa sociedade: de 1738 a 1840 foram publicados 14 documentos papais; entre 1846 e 1903, esse número subiu para 201. Mas o momento máximo de radicalização do conservadorismo católico ocorreu em 1864, quando o papa Pio IX redigiu a encíclica Quanta Cura. Nesta espécie de carta circular da Igreja, ele condena os “erros modernos”, entre os quais destaca a maçonaria. Diante da reestruturação da sociedade em moldes liberais, a Igreja insiste numa postura inflexível e procura defender sua doutrina a todo custo.

A partir da segunda metade do século XIX, os planos conservadores também ganharam força no clero brasileiro, quando se inicia um processo de reorganização interna da Igreja no Brasil conhecido por “romanização”. Este procedimento buscava excluir da Igreja os elementos influenciados pelas idéias modernas e defendia a supremacia do poder do papa. Além disso, os planos conservadores visavam proteger a estrutura familiar patriarcal, a cidadania associada ao catolicismo, e combater tentativas de implantação de uma educação laica. 

Além da fragilidade, da ingenuidade e do exagero dos argumentos apresentados pelas idéias conservadoras, havia ainda aspectos históricos e culturais da sociedade brasileira, fortemente marcada pelo sincretismo religioso. A Igreja Católica, por exemplo, também não conseguiu manter afastados outros oponentes, como as religiões afro-brasileiras, o espiritismo e o protestantismo. Neste sentido, pode-se dizer que esse discurso conservador fracassou.

Mas, em compensação, o argumento católico foi vitorioso na construção de um conjunto de representações simbólicas referentes à instituição maçônica. Grande parte da população brasileira não teria receio de definir a maçonaria como uma sociedade marcada pelas práticas ocultistas, realizadora de rituais macabros, e que a todo o momento está conspirando contra algo.
Para firmar negativamente a maçonaria na imaginação coletiva, o mito do complô maçônico foi o principal instrumento dos pensadores católicos pertencentes à ala conservadora. Foi comum, por exemplo, a aproximação da maçonaria ao judaísmo. A maçonaria foi associada ao estereótipo do judeu traidor e obcecado pelo desejo de dominar o mundo. Dessa associação surgiu a crença de que a maçonaria era um instrumento dos judeus para se infiltrarem em vários países, segmentos sociais, instituições e até mesmo no interior da Igreja, onde “o chefe israelita da “franco-maçonaria” seria conduzido ao papado.

Elaborada na Europa no fim do século XIX, a idéia do complô maçônico influenciou vários autores brasileiros, sendo que cada um montou, à sua maneira, diferentes versões para esse mito. Dom Vital, bispo de Olinda entre 1872 e 1878, escreveu em uma de suas instruções pastorais que previa uma conspiração maçônica com a intenção de aniquilar a religião católica e o cristianismo para, num segundo momento, eliminar todas as monarquias e implantar a república universal.

Segundo o bispo, os maçons penetrariam no meio católico, aproveitando-se do clero mais jovem para difundir as idéias liberais, até conseguirem a cooptação do papa. Da mesma forma, ao pregar no Brasil o ensino laico, sem influência de qualquer religião, a maçonaria visava atingir a juventude para formar uma geração materialista e que apoiaria a segunda etapa do plano: o fim da monarquia.

No século XX, é possível perceber a permanência do mito do complô entre os intelectuais católicos brasileiros. Gustavo Barroso foi um dos seus maiores divulgadores ao traduzir para o português “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, obra de autoria desconhecida que denunciava um plano judaico-maçônico de dominação mundial. Dizia Barroso que a maçonaria teria se colocado a serviço do judaísmo para que este, por meio de seus membros, articulasse a Revolução Francesa, considerada a etapa inicial da ascensão dos judeus ao poder. E completava dizendo que o passo seguinte seria a revolução socialista, também articulada pela maçonaria, que assim ganharia a confiança das massas proletárias. O último passo seria o domínio universal de Israel.



Gustavo Barroso também via um plano maçônico específico para o Brasil. Segundo ele, os principais acontecimentos da história brasileira podiam ser explicados como resultado das ações conspiratórias maçônicas. Utilizando-se da filantropia, por exemplo, a maçonaria teria apoiado o movimento de libertação dos escravos, não com intenções nobres, mas visando provocar a queda da monarquia. Aliás, dos primeiros movimentos de libertação até a proclamação da República, a maçonaria teria agido sempre de maneira oculta.

A Igreja encontrou na maçonaria características que permitiram transformá-la em um verdadeiro “bode expiatório”, responsabilizando-a por todos os males. Na verdade, o medo da maçonaria significava insegurança frente ao estabelecimento da sociedade burguesa, que trazia consigo novas estruturas sociais, valores e formas de organização política aos quais a Igreja já não conseguia impor sua influência com a mesma intensidade de antes.

Outro ponto forte do discurso antimaçônico se refere à associação direta da instituição ao satanismo. Sustentar esta acusação não foi tarefa difícil, já que a simbologia maçônica, com sua influência egípcia e cabalística, além de seus incompreensíveis rituais e cerimônias de iniciação, alimentavam essas associações. Muitas versões foram desenvolvidas pelos católicos para explicar a origem satânica dos maçons.

Na primeira das versões, conta-se que, após o surgimento das corporações dos pedreiros-livres, o diabo teria delas se apoderado. Em seguida, misturou à maçonaria todos os pecados que havia feito brotar na Terra e a transformou na “seita tenebrosa”, uma verdadeira síntese de todas as heresias.


Numa segunda versão elaborada pelos ideólogos católicos, a maçonaria descenderia dos templários, da cabala, do protestantismo ou do gnosticismo, uma espécie de método que procura conciliar todas as religiões por meio do conhecimento. Independentemente da versão que narra as suas origens, a maçonaria estava sempre associada à idéia de pecado e erro.

A terceira associação freqüentemente feita à maçonaria refere-se ao seu caráter revolucionário. Para Dom Vital, a maçonaria seria a “revolução em permanência”, e de seus “antros” teriam saído os principais líderes da “nefasta” Revolução Francesa. Os católicos conservadores, já preocupados com o crescimento do movimento operário, também associaram o discurso maçônico de igualdade e fraternidade universal às idéias anarquistas e comunistas, acusando a maçonaria de querer formar uma sociedade sem distinção de classes e de pátria. Tal situação seria desejada pelos maçons, porque desta maneira o povo ficaria completamente sem governo, permanecendo na anarquia e em situação ideal para que satanás criasse seu “trono imperial”.

FRANÇOISE JEAN É DOUTORANDA EM HISTÓRIA PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO (UERJ) E AUTORA DA DISSERTAÇÃO “VOZES MAÇÔNICAS NA PROVÍNCIA MINEIRA 1868-1889”. UFMG, 2004.
Revista de História da Biblioteca Nacional

domingo, 30 de setembro de 2018

Bonaparte na cabeça


O imperador ainda é referência na política e na cultura

Vivi Fernandes de Lima

Um louco encontra um colega nos corredores do hospício e fala: “Eu sou Napoleão!” O outro fica indignado: “O quê? Quem te disse isso?” A resposta é ainda mais ousada: “Deus”. O outro estranha: “Eu?” Esta é uma das piadas que circulam em conversas bem-humoradas que têm o imperador francês como personagem, tocando numa característica marcante dos relatos sobre sua personalidade: a mania de grandeza. Só mesmo Deus seria capaz de dizer algo superior ao general. Essa mesma megalomania pode ser o que associa a imagem de Napoleão à loucura. Em 2001, no longa-metragem de ficção “As novas roupas do imperador”, de Alan Taylor, o próprio general desiste de informar sua identidade quando descobre um manicômio onde todos os internos dizem ser Napoleão Bonaparte e ostentam, inclusive, o mesmo tipo de chapéu de sua farda.

No Brasil, não é só nas piadas que o personagem histórico está presente. A lista telefônica indica a existência de mais de dois mil Napoleões que vivem no Brasil. O consultor de informática e professor Napoleão Verardi, paulistano, 54 anos, é um deles. A escolha de seu nome foi uma homenagem ao avô materno, que era italiano. “Mas eu não botaria esse nome nos meus filhos. Ele carrega um peso muito grande. Não dá pra passar despercebido”, diz Verardi, habituado a ouvir brincadeiras como “qual a cor do seu cavalo branco?” ou “foi assim que Napoleão perdeu a guerra”. 

O administrador Napoleão Roque, baiano, 58 anos, também não acha mais graça nessas piadas. No trabalho, quando atende o telefone, já indica que não é muito chegado a seu primeiro nome. Ele atende: “Alô, Roque falando”, omitindo o Napoleão. “Eu não suporto meu nome. É muito forte, não combina comigo. Sou uma pessoa tranquila”, diz ele, que foi batizado em homenagem ao bisavô. Se ele odeia se chamar Napoleão, imagine se também fosse Bonaparte? A resposta vem sem hesitação, em bom baianês: “Ave Maria! Eu ia pedir pra morrer!”

Mas nem todos pensam assim. Napoleão Bonaparte Gomes é oficial da Marinha aposentado e adora seu nome. “Acho que talvez isso tenha me influenciado a seguir a carreira militar. É uma grande honra ser homônimo do imperador francês, porque ele é um exemplo a ser seguido”, diz Gomes, que alcançou o posto de vice-almirante da Armada. 

Já a fisioterapeuta carioca Daniela, 35 anos, tem o nome do imperador no sobrenome. Ela gosta tanto que o repetiu na certidão de suas duas filhas. “É um tipo de marketing. Quando apresentamos nosso nome, todo mundo lembra”, diz Daniela, orgulhosa. Aliás, segundo ela, a família inteira gosta muito do nome. “Eu tinha até um tio que se chamava Waterloo”, lembra, achando graça na referência à batalha que pôs fim à carreira vitoriosa do líder dos franceses.

Não é só nas certidões de nascimento que Napoleão está presente no Brasil. Volta e meia, programas de TV, grafiteiros e até escolas de samba relembram o imperador francês. A autora de telenovelas Janete Clair (1925-1983) chegou a criar em “Rosa Rebelde” (1969) uma trama em torno do exército do general. Em 2008, a escola de samba Imperatriz Leopoldinense desfilou na Marquês de Sapucaí cantando “Ou ficam todos/Ou todos se vão/Embarcar nessa aventura/E au revoir Napoleão”, uma referência à vinda da família real portuguesa para o Brasil. No ano passado, a TV Globo exibiu o especial infanto-juvenil “A princesa e o vagabundo”, cuja trama se baseava nas conquistas napoleônicas: o reino fictício da Landinóvia é invadido pelo exército de Napoleão e a princesa Lili é salva pelo vagabundo Didi, interpretado por Renato Aragão.

Fã do personagem histórico, o sociólogo e crítico literário Antonio Candido de Mello e Souza guarda uma coleção de postais com a imagem de Napoleão e suas batalhas. “Comecei minha coleção em 1929, numa viagem a Paris. Hoje tenho mais de 60 postais. Os italianos são mais raros”, diz ele, contando que alguns são em alto-relevo e mais coloridos, com a notoriedade de especialista no assunto. Quanto ao motivo do interesse por Napoleão, Antonio Candido é enfático: “Ele foi um grande general e dominava a arte militar. Transformou o seu tempo”.

O historiador Modesto Florenzano, da USP, reconhece que ainda há um fascínio pelo general, que já foi bem maior. Segundo ele, nenhum outro personagem histórico encheu tanto o imaginário da população quanto Napoleão no século XIX: “A fama vem de sua genialidade no plano político e militar e também do fato de ele ter saído do nada. Napoleão chegou ao poder pelos próprios méritos, não nasceu em berço de ouro. Isso é inédito. Ele teve uma projeção avassaladora, venceu batalhas espetaculares. Não houve em nenhum rincão da Europa alguém que não soubesse quem era Napoleão. Essa referência foi passada de pai para filho e chegou ao Brasil”. 

Para Florenzano, a popularidade de Napoleão pode ser comparada à de nomes como Carlos Magno. A força de sua imagem começou a diminuir na Revolução Russa: “Na Primeira Guerra Mundial, outros líderes começaram a aparecer, como Lênin, Stalin, Trotski e Mussolini”. Apesar de ter a atenção dividida com outras personalidades, a memória de Napoleão é bastante presente, sempre com imponência. Para se ter uma ideia, seus restos mortais, guardados no Hotel dos Inválidos, em Paris, foram colocados de modo que o visitante tenha que se abaixar para ver o túmulo, ficando obrigatoriamente em postura de reverência. “Eu duvido que alguém adepto da esquerda política vá visitar o túmulo de Mussolini, por exemplo. Mas o túmulo de Napoleão recebe visitantes de esquerda e de direita”, exemplifica Florenzano.

A mesma idolatria chegou a outros cantos do mundo. Na Eslovênia, há um monumento em homenagem ao general. Em Havana, Cuba, existe o Museu Napoleônico, que abriga objetos pessoais do imperador. Em Nova Orleans, nos Estados Unidos, a Napoleon House é uma das atrações turísticas do centro histórico da cidade. Conta a lenda que a casa iria abrigar o imperador depois de executado um plano de fuga na época em que ele estava exilado na ilha de Santa Helena. A história se encaixaria bem com o plano da passagem de Napoleão por Pernambuco em 1817, já que, depois de desembarcar no Recife, ele iria seguir para os EUA [ver artigo “A besta e o mito”, pág. 26]. Mas estudos comprovam que a casa foi construída depois da morte de Napoleão.

No cinema, a vida do general ou suas conquistas são retratadas em diversos filmes. O maior banco de dados de produção audiovisual da Internet, The Internet Movie Database, registra mais de 70 títulos de filmes com o nome Napoleão. Se forem somadas as séries de TV, esse total passa dos 100. Mesmo assim, as criações em torno do famoso general parecem não ter fim. Este ano, será lançado o filme “Betsy and the emperor” (ainda sem título em português) – baseado no livro infantil de Staton Rabin – com o ator Al Pacino interpretando o imperador no período do exílio.

Outro roteiro cinematográfico, desta vez brasileiro, pretende chegar às telas mostrando um ponto de vista diferente para o período em que Napoleão esteve preso. O cineasta Germano Coelho está trabalhando no projeto do filme “1817”, que irá tratar da Revolução Pernambucana, quando foi articulada a passagem de Napoleão pelo país. Para o pesquisador e jornalista Leonardo Dantas, o episódio é tão pouco conhecido quanto a própria Revolução de 1817. “Mas não tem nada de imaginário, é real”. O historiador Oldimar Cardoso, da USP, já foi ao Arquivo Estadual do Recife em busca das correspondências que comprovem a articulação deste plano, mas não as encontrou. Essas comunicações já foram descritas no livro Aventuras e aventureiros no Brasil (1929), de Alfredo de Carvalho. “O problema é que o arquivo é muito desorganizado. São pilhas de documentos que os pesquisadores não sabem nem por onde começar o trabalho. Dizem que as cartas estão lá. O difícil é achá-las”, conta Oldimar.

Enquanto pesquisadores procuram relatos que comprovem o plano de fuga, a população parece estar mais interessada na ficção, inventando e recriando piadas a cada dia em torno do imperador dos franceses. O imaginário é tamanho que a fama de loucos brasileiros que se apresentam como Napoleão, ao que parece, é um mito. O psiquiatra e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz Marco Aurélio Soares Jorge, esclarece: “Um esquizofrênico pode ter delírios a ponto de achar que é a reencarnação de uma pessoa famosa. Mas, normalmente, esse delírio está mais próximo da cultura dessa pessoa. Em 30 anos de profissão, nunca tive nenhum paciente que achasse que era Napoleão. O brasileiro delira que é o presidente da República, Jesus e até Xuxa”. Mas os piadistas não ligam para a realidade. Parece que com Napoleão as anedotas ficam melhores.

Saiba Mais - Internet

SILVA, Leonardo Dantas. “A fracassada fuga de Napoleão para o Brasil”.
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