terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Leituras...

Sistema de blindagem política remonta ao MDB, diz autor

No processo de redemocratização, forças progressistas se reuniram para dar fim ao autoritarismo. Com o tempo, essa unidade possibilitou a criação um sistema de blindagem política que persiste até hoje.


Esse controle é chamado por Marcos Nobre de "pemedebismo" --para diferenciar do peemedebismo e "em lembrança do partido que capitaneou a transição para a democracia", como ele diz em "Imobilismo em Movimento".

Em nome da governabilidade, políticos fazem acordos que vão além das siglas, se autoprotegem e impedem transformações que podem colocar em risco a manutenção de interesses consolidados nos últimos 30 anos.

"Um dos mecanismos fundamentais desse controle está em uma cultura política que se estabeleceu nos anos 1980 e que, mesmo se modificando ao longo do tempo, estruturou e blindou o sistema político contra as forças sociais de transformação", escreve Nobre.

Em "Imobilismo em Movimento", o autor reconstrói a trajetória dessa prática desde o último governo da ditadura militar, com o general João Baptista Figueiredo, até a eleição de Dilma Rousseff, em 2010.

"O clamor da opinião pública já não conseguia provocar sequer arranhões nessa blindagem do sistema político. Cada vez mais questionada, a própria mídia deixou de desempenhar o papel de canalizar a insatisfação", diz. "Parecia que o país tinha se conformado com um sistema político fechado em si mesmo, impotente diante do fechamento dos canais de protesto capazes de furar o bloqueio. Até que veio junho de 2013, com sua rejeição incondicional do pemedebismo".

Professor de filosofia da Unicamp e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), Marcos Nobre, entre outras publicações, também assina "Curso Livre de Teoria Crítica" e "A Teoria Crítica". Leia trecho de "Imobilismo em Movimento"
Folha de S. Paulo

Leituras...


Historiador defende que a ditadura brasileira durou 11 anos

O regime militar no Brasil tem início com o golpe de 1964 e termina em 1985, quando é eleito primeiro o presidente civil. Pelo menos é assim que a maioria aprende na escola. Porém, segundo o historiador Marco Antonio Villa, apenas a metade desse tempo pode ser considerado como uma verdadeira ditadura.


Em "Ditadura à Brasileira", Villa defende que até o AI-5, de 1968, com a movimentação político-cultural que havia no Brasil, não vivíamos, efetivamente, sob um regime ditatorial.

Do mesmo modo, para ele, o Brasil deixa de ser uma ditadura com a abertura e a Lei da Anistia, em 1979.

Villa também argumenta que a comparação do regime brasileiro a outras ditaduras da América Latina é equivocada.

Enquanto a Argentina fechava cursos universitários e desindustrializava a economia, O Brasil abria instituições de ensino superior, industrializaram o país e modernizaram a infraestrutura.

Os justiceiros de hoje, naquela época, "estranhamente, omitiram-se quando colegas foram aposentados compulsoriamente pelo AI-5, como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso", diz Villa, "ou presos e condenados, como Caio Prado Júnior".

O livro "Ditadura à Brasileira" é um desdobramento do texto homônimo que Villa publicou na Folha de S.Paulo ("Opinião", 5/3/2009). O escrito foi contestado por "História à Brasileira" (8/3/2009), de Janio de Freitas, colunista da Folha.

Marco Antonio Villa também é autor de "Mensalão", "A História das Constituições Brasileiras", "Jango: um Perfil", "1932: Imagens de uma Revolução", "História Geral", "História do Brasil", "A Revolução Mexicana", "Vida e Morte no Sertão", "Canudos, História em Versos" e "Carta do Achamento do Brasil"
Folha de S. Paulo

Há 70 anos terminava o bloqueio de Leningrado pelos alemães


http://renanfelipe.spaceblog.com.br
DEUTSCHE WELLE

Durante quase 900 dias os moradores de Leningrado, a atual São Petersburgo, na Rússia, ficaram sitiados pelas Forças Armadas de Hitler, a Wehrmacht. Foram quase 900 dias de fome e frio.

No dia 8 de setembro de 1941, os alemães fecharam o cerco em torno de Leningrado. Mas Hitler não pretendia conquistar a segunda maior cidade da Rússia. Ele queria fazer com que as pessoas em Leningrado morressem sistematicamente de fome.

Em seguida, teve início a luta pela sobrevivência numa cidade sitiada. Logo os moradores começaram a comer tudo o que podiam. Eles cozinhavam couro, raspavam a cola do papel de parede, caçavam gatos e ratos. A situação se tornou tão extrema que houve casos de canibalismo. Por volta de 1 milhão de pessoas passaram fome e congelaram até morrer.

Somente em 27 de janeiro de 1944, há exatos 70 anos, o Exército Vermelho conseguiu finalmente libertar a cidade sitiada. Jörg Ganzenmüller, professor de história europeia na Universidade de Jena, pesquisou intensamente a história do bloqueio.

Ele escreveu artigos e um livro sobre o cerco de Leningrado. Em entrevista à Deutsche Welle, o historiador falou sobre a importância da tragédia na memória cultura da Alemanha e da Rússia e sobre o sofrimento da população civil.

*

Por que Hitler queria destruir justamente Leningrado?

De modo geral, ele estava interessado na destruição das cidades soviéticas, especialmente no norte e na região central da Rússia. Muitas vezes, ele mencionava Leningrado e Moscou na mesma frase.

Em seu livro, você descreve o bloqueio como parte da política alemã de extermínio. Qual era o objetivo?

Durante a campanha militar alemã na Rússia, Leningrado se tornou um campo de batalha à parte. Para o lado alemão, a cidade era importante especialmente sob o aspecto do abastecimento de comida.

Durante a campanha militar na Rússia, pretendia-se abastecer toda a Wehrmacht com alimentos do próprio país. De antemão, calculou-se que isso só seria possível se a população soviética passasse fome.

Nesse contexto, a população das grandes cidades já havia sido considerada como aquela que não podia ser alimentada. Quando a Wehrmacht, em meados de 1941, passou a ter problemas de reposição e abastecimento, dizia-se que não se podia alimentar uma cidade de 3 milhões de habitantes.

Como as pessoas vivenciaram o fim do bloqueio de Leningrado?

O bloqueio foi levantado em duas etapas. No início de 1943, o Exército Vermelho conseguiu estabelecer um corredor de abastecimento até a cidade sitiada. Assim, os moradores da Leningrado puderam se alimentar bem melhor do que antes. Mas o fim definitivo do bloqueio, em 27 de janeiro de 1944, foi saudado com uma salva de tiros.

Certamente as pessoas estavam fracas demais para sair dançando nas ruas, mas foi grande o alívio na cidade. A importância desse dia também se reflete no fato de ele continuar vivo, até hoje, na memória cultural, sendo motivo de grande celebração anual em São Petersburgo.

Na Alemanha, no entanto, a memória do bloqueio de Leningrado não tem quase nenhuma importância. Por que isso?

Na Alemanha, durante muito tempo foram lembrados os locais da guerra teuto-soviética em que houve muitas vítimas alemãs. Por isso o cerco a Stalingrado (hoje Volgogrado) é consagrado como mito e "sacrifício alemão" na memória do país.

Os crimes da Wehrmacht quase não foram lembrados até a década de 1980. O bloqueio de Leningrado era visto como um instrumento convencional de guerra. Com isso foi completamente negligenciado o fato de que Leningrado não deveria ser conquistada, mas esmagada pela fome.

Como o tema é tratado hoje em dia?

Em primeiro lugar, após a reunificação alemã, as imagens ocidental e oriental do bloqueio foram se unificando. Na Alemanha Oriental, a lembrança de Leningrado era muito mais presente do que na Alemanha Ocidental.

O bloqueio, por exemplo, era mencionado em livros didáticos. A segunda exposição sobre a Wehrmacht [mostra que, entre 2001 e 2004, percorreu a Alemanha], em que Leningrado teve um papel de destaque, também foi importante.

Nessa exposição, a estratégia alemã do cerco foi incluída no contexto da política de extermínio. Hoje o bloqueio é muito mais presente na mídia. Em 2001, por exemplo, o então chanceler federal Gerhard Schröder e o presidente russo Vladimir Putin depositaram, juntos, uma coroa de flores no memorial do cerco em São Petersburgo.

Até que ponto Leningrado é um exemplo de crime de guerra da Wehrmacht?

A política alemã de inanição foi abrangentemente implementada em dois lugares: em Leningrado e no tratamento de prisioneiros de guerra soviéticos. Esses são crimes que aconteceram sob o comando da Wehrmacht.

Dessa forma, trata-se de exemplos claros de crimes da Wehrmacht e não, por exemplo, de outras organizações como a SS [organização paramilitar do partido nazista]. 

Folha de São Paulo

domingo, 26 de janeiro de 2014

Com medo da própria sombra



Cláudia de Castro Lima


A expressão nasceu de um fato bem literal: um cavalo que tinha medo da própria sombra. Mas não era um cavalo qualquer – era o animal que Alexandre, o Grande, queria comprar.

Por volta de 340 a.C., o pai de Alexandre, Filipe II, rei da Macedônia, disse para o dono de um cavalo nervoso que estava à venda que aquele animal não servia para nada, já que ninguém podia montá-lo. Alexandre, aos 15 anos, retrucou: “Eu posso montá-lo”. Filipe II brigou com o filho, mas Alexandrinho insistia. Até que o rei, enfezado, disse que se o filho subisse no cavalo ele compraria o bicho.

O rapaz percebeu que o animal se agitava quando via sua sombra. Colocou-o de frente para o sol. Com a sombra para trás, o cavalo se acalmou. Alexandre o montou, ganhou o bicho e o batizou de Bucéfalo. Desde então, diz-se que alguém bastante covarde é como Bucéfalo: tem medo da própria sombra.

Revista Aventuras na História

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Arthur Conan Doyle e o espiritismo


Pai do célebre detetive Sherlock Holmes, o escritor escocês foi um dos mais fervorosos seguidores e divulgadores do espiritismo
Maurício Manuel | Colaborou na reportagem: Filipe Albuquerque

Há quem não reconheça o escritor escocês Arthur Conan Doyle pelo nome, mas é bem difícil encontrar alguém que jamais tenha ouvido falar do personagem mais famoso inventado por ele: Sherlock Holmes. Os romances policiais estrelados pelo detetive garantiram ao seu criador um lugar de destaque na história da literatura. O que pouca gente sabe, no entanto, é que Conan Doyle, além de brilhante romancista, também foi um dos mais aguerridos divulgadores do espiritismo.

Oriundo de uma família católica e educado por jesuítas, Conan Doyle nada tinha de espírita até os 28 anos de idade. Ao contrário! Depois de se formar médico, em 1882, revelou-se um tremendo materialista. Renunciou não apenas ao catolicismo mas a toda e qualquer religião, passando a se autodenominar agnóstico - aquele que se julga incapaz de afirmar se Deus existe ou não.

Tudo mudou em 1887. Depois de visitar o amigo Alfred Wilkes Drayson, um importante astrônomo convertido ao kardecismo, Doyle voltou para casa quase convencido de que a existência de vida após a morte era um fato. "Ele não era homem de aceitar facilmente as coisas", afirma a pesquisadora Maria Aparecida Romano, em artigo publicado na Revista Cristã de Espiritismo. "Mas, diante dos seguros argumentos apresentados por Drayson, foi levado a meditar e ler algumas obras espíritas. Em pouco tempo, estava familiarizado com as verdades da nova doutrina."

Semeador

Espiritismo, àquela altura, já não era novidade. O Livro dos Espíritos, no qual Allan Kardec estabelece os princípios da doutrina, já circulava havia 30 anos. Mas demonstrações de mediunidade, como as famosas sessões de mesas girantes, continuavam mobilizando corações e mentes. Doyle passou a frequentá-las.

Numa dessas reuniões, ainda desconfiado de que tudo não passava de trambique, perguntou às entidades que ali se manifestavam: "Quantas moedas tenho no bolso?" Ouviu como resposta uma desconcertante reprimenda: "Estamos aqui para instruir e elevar as almas, não para fazer adivinhações". Dali em diante, Doyle se entregaria ao estudo de fenômenos supostamente espirituais. E não apenas se converteria ao espiritismo. Ele se transformaria numa espécie de soldado da doutrina.

Nas décadas seguintes, o escritor alcançaria fama mundial com as aventuras de Sherlock Holmes. E colocaria todo o prestígio amealhado com elas a serviço de sua nova crença. Doyle atraiu multidões a dezenas de palestras doutrinárias. De 1915 em diante, praticamente abandonou a ficção - passou a escrever apenas obras espíritas. A mais conhecida, História do Espiritismo (Pensamento), é um clássico - até hoje considerada um dos mais completos relatos sobre a origem e o desenvolvimento da doutrina. "Dada a projeção de seu nome", diz a pesquisadora Maria Aparecida, "deve-se a Arthur Conan Doyle parte da penetração do espiritismo em muitos países, notadamente aqueles de língua inglesa."

Elementar, meu caro Doyle

Acusado de enaltecer o ocultismo, escritor foi censurado na União Soviética

O envolvimento de Arthur Conan Doyle com o espiritismo rendeu problemas para quem não tinha nada a ver com isso: o detetive Sherlock Holmes, seu personagem de ficção mais famoso. Em 1929, a série de contos intitulada As Aventuras de Sherlock Holmes foi proibida na União Soviética, que acabava de comemorar os primeiros dez anos de revolução comunista. Tudo porque em outra obra, História do Espiritismo, Doyle louvava fenômenos supostamente espirituais produzidos por médiuns como Eusapia Palladino. O escritor acabou acusado por Stálin de fazer propaganda do ocultismo, algo incompatível com o ateísmo de Estado que vigorava naquele país.

Saiba mais
LIVRO
A Nova Revelação, Arthur Conan Doyle, FEB, 1996.
Nesse pequeno livro (135 páginas), publicado originalmente em 1918, o escritor descreve como se deu sua conversão ao espiritismo.
Revista Aventuras na História

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Arábia, o refúgio dos deuses gregos

Antes da ascensão do islamismo, credos politeístas encontraram na Península Arábica um local para continuar existindo, preservadas das grandes religiões que acreditavam em um deus único, como o cristianismo triunfante

Álvaro Oppermann | Ilustração Daniel Rosini


Por volta do século 5, os habitantes da região do Mediterrâneo tinham se convertido ao cristianismo. O panteão de deuses da Grécia e de Roma era só lembrança do passado. E, pelo jeito, os velhos deuses estavam mesmo na hora de se aposentar. O historiador Plutarco, sacerdote do templo de Delfos, lamentava-se, no século 2, que Apolo se calara: não respondia mais às consultas oraculares feitas por ele. Até os cultos de deuses "importados", como o da egípcia Ísis e do persa Mitra, estavam em baixa. Em 394, um pequeno grupo de devotos de Ísis fez a última procissão em homenagem à deusa pelas ruas de Roma.


As religiões pagãs tinham sido varridas do mapa? Não. No século V, na Península Arábica, os deuses greco-romanos sobreviviam. Em Failaka (no atual Kuwait), festivais populares eram organizados em devoção ao deus Poseidon (o Netuno dos romanos) e à deusa Artemis (Diana). A deusa Minerva (Al-Lat) tinha adoradores na Arábia, na Síria e na Palestina. "Até o século 4, quase todos os habitantes da Arábia eram politeístas", diz o professor de Oxford Robert G. Hoyland, autor de Arabia and the Arabs - From the Bronze Age to the Coming of Islam ("Arábia e os Árabes - Da Era do Bronze à Vinda do Islã"). "Al-`Uzza (Afrodite) era cultuada no Sinai e na Arábia", diz James E. Montgomery, professor de História Árabe da Universidade de Cambridge, autor de Arabic Theology, Arabic Philosophy: From the Many to the One ("Teologia Árabe, Filosofia Árabe: do Múltiplo ao Uno").

Como aconteceu essa assimilação? Bem, não foi só da Grécia e de Roma que os árabes pegaram deuses emprestados. "Hoje se acredita que as divindades árabes eram formas locais, adaptadas, das divindades do mundo antigo do Mediterrâneo", registrou Timothy Winter, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, no ciclo de palestras A Crash Course in Islamic History (Breve Curso de História Islâmica). Os árabes assimilaram os deuses dos povos vizinhos, adaptando-os à sua religião. A deusa Al-Lat, como vimos, era Minerva (nome romano da grega Atena) sob disfarce, mas nem tão disfarçada assim: em Cartago, a mesma deusa usava o nome de Allatu. "Muitas das divindades da Antiguidade ocidental poderiam ser facilmente intercambiáveis", diz a historiadora Mary Beard, autora de Religions of Rome ("Religiões de Roma"). No século 5 a.C., isso já tinha despertado a atenção de Heródoto. Em seu périplo por terras árabes, o historiador observou um pacto entre dois chefes tribais feito em nome de Dionísio (o Baco romano). "Os árabes chamam Dionísio de Orotal", escreveu Heródoto nas Histórias (430 a.C.).

Um caso ilustrativo é fornecido pelas observações do general romano Aelius Gallus. Em 26 a.C. ele foi enviado ao sul da Arábia para costurar acordos comerciais com os reinos da região (chamada de Arabia Felix, "feliz"). Os romanos cobiçavam o incenso e as especiarias. Gallus, em seu diário, não deixou de notar a semelhança entre os deuses locais e o panteão romano. "O nosso Júpiter aqui é Dhu'Shara", espantou-se.

Ídolos na caaba

O panteão árabe era bem pobre em termos de causos mitológicos. A origem da religião, ou religiões, da Arábia pré-islâmica está envolta em um manto de obscuridade. "Nós praticamente não possuímos informações sobre os mitos e narrativas que decodificariam a religião da Arábia pré-islâmica", diz Hoyland. "Muitos autores greco-romanos escreveram tratados sobre a Arábia e as coisas dos árabes, mas infelizmente eles foram perdidos, ou deles só sobraram fragmentos." Os dados completos disponíveis são provenientes da historiografia islâmica, posterior. Tal como os primeiros autores cristãos (Eusébio de Cesareia, Santo Agostinho, Tertuliano), os muçulmanos viram o passado pagão - romano ou árabe - sob o prisma da religião nascente. Reza a lenda (exposta no Livro do Gênesis, na Bíblia), que os árabes descenderiam de Ismael, o filho de Abraão com a concubina Hagar, a serva egípcia de sua esposa, Sara. Quando Sara deu à luz Isaac, obrigou o marido a expulsar a serva e o primogênito. Hagar e o menino erraram pelo deserto, até chegarem ao árido vale de Meca, onde se estabeleceram.

A religião original da Arábia seria estritamente monoteísta, baseada na crença no Deus Uno, ensinada por Abraão a Ismael. Segundo a história islâmica, a Caaba - "A Casa de Deus", prédio de forma cúbica no coração de Meca - teria sido construída por Abraão e Ismael. Na obra O Livro dos Ídolos, do século 9, que trata do politeísmo árabe, é dito que o primeiro descendente de Ismael a adulterar a religião de Abraão foi um certo Al-Harith, guardião da Caaba. Ele retornou a Meca com um ídolo de pedra e pediu sua intercessão junto a Deus. Com o tempo, a presença de Deus tornou-se tênue no imaginário local, e os ídolos, que antes serviam de ponte entre os homens e Deus, usurparam a posição divina. Viraram deuses, no plural. No século 3, segundo Al-Azraqi, autor das Crônicas da Meca Gloriosa, 400 ídolos de pedra haviam sido erigidos ao redor da Caaba, homenagem aos mais diversos deuses da Arábia e dos povos vizinhos. Essa é a versão dos historiadores muçulmanos, que enfatizaram, em suas narrativas, um monoteísmo mítico em Meca. Os vestígios arqueológicos, no resto da Arábia, apontam à anterioridade das religiões politeístas na região.

Ascensão do Islã


Graças à Caaba, Meca teve, antes do Islã, importância na vida religiosa árabe. Era uma espécie de Aparecida, que atraía romeiros à cidade. Os líderes de Meca davam boas-vindas a todas as divindades e religiões. A cidade funcionava como uma espécie de ONU multicultural do paganismo antigo. Cada tribo tinha o seu próprio santuário ali. Ao contrário da imponente estatuária romana, os ídolos árabes eram bem modestos. A estátua de Al-Lat em seu templo oficial, em Ta'if, era fruto da reforma de uma panela de pedra, utilizada por um judeu para cozinhar mingau. "Muitas vezes, os ídolos eram somente uma pedra polida", diz Ibn Al-Kalbi.

A vida religiosa não estava restrita a Meca. Cada cidade tinha seu deus. Em Hegra, no norte, os habitantes diziam-se "filhos de Manat", que os gregos chamavam de Tyché - a Fortuna dos romanos. Em Mleiha, nos atuais Emirados Árabes, o deus popular era Kahl. Em Palmira, na Síria, o culto era à deusa Bel. Os templos religiosos pré-islâmicos não diferiam, em sua arquitetura simples, da casa de um árabe afluente da época, em cuja sala de estar erigia-se um pequeno altar dedicado ao deus, ou deuses, da predileção do proprietário. Leite, vinho, cereais, carne de camelo e de ovelha eram depositados diante do altar. Junto à Caaba, em Meca, costumava-se sacrificar camelos. "Os árabes possuíam deidades auxiliares, chamadas mundhat, que cuidavam da proteção dos vilarejos, das casas e até das pessoas individualmente", diz Hoyland. Esses entes sobrenaturais não seriam muito diferentes do que hoje se chamam "anjos".

Na época do surgimento do Islã, no século 7, há indícios de declínio econômico na Península Arábica. O comércio de incenso, vindo do Iêmen, sofreu um baque com a concorrência marítima dos romanos, pelo Mar Vermelho, estabelecida após a missão do general Gallus (que foi na verdade uma rasteira nos mercadores árabes). Um segundo golpe, ainda mais duro, foi sentido com a ascensão do cristianismo, que praticamente aboliu, no Mediterrâneo, o uso religioso do produto, associado ao paganismo. Na época de Mao-mé, o sul da Arábia era uma pálida imagem do passado. Meca tinha uma economia pequena.

O advento do Islã representou o fim do paganismo. Na história do apostolado de Maomé (por volta de 609 a 632 d.C.), os senhores políticos de Meca tentaram dissuadi-lo de sua missão religiosa. Em 622, em reunião na Câmara do Conselho da cidade, chefes de diversos clãs decidiram assassiná-lo. Para sacramentar a decisão, fizeram um banquete, sacrificando animais num altar a Al-`Uzza. O atentado falhou, motivando a Hégira, o êxodo de Maomé a Medina, que marca o início do calendário islâmico.

Em 630, o exército comandado pelo Profeta conquistou Meca. Os ídolos em volta da Caaba foram queimados. Maomé enviou missões militares para demolir os principais templos da península, como o de Al-`Uzza em Nakhla. Lá, o general Khalid bin Walid, um brilhante estrategista militar, conhecido como a "Espada do Islã", não se contentou em destruir o templo. Segundo Waqidi, cronista das campanhas militares dos primórdios do Islã, Khalid viu surgir dos escombros uma mulher nua. Os fios da sua cabeleira, de tão longos, iam quase até o chão. Ela fitou o general, impávida, imóvel, majestosa. Khalid diz ter sentido um calafrio à sua visão. Era a sacerdotisa de Al-`Uzza. "Nós negamos a ti, e não à veneração!", gritou ele. A cavalo, avançou em disparada contra ela, sacou a espada e a decapitou. Era o fim dramático da última representante de Afrodite na Arábia. Nem os deuses duram para sempre.

Divino trio


Na história da Arábia pré-islâmica, três deusas estiveram no centro da devoção popular: Manat, Al-Lat e Al-`Uzza. Segundo o antigo historiador Ibn Al-Kalbi, elas seriam as divindades mais antigas da região. Manat representava a sábia anciã, e seria uma adaptação da deusa grega Tyché (Fortuna para os romanos). Al-Lat, figura materna, uma versão local de Atena (Minerva em Roma). E Al-`Uzza, a adolescente, um sincretismo com a deusa Afrodite (Vênus).

Depois da Caaba, os templos de Al-`Uzza, no Vale de Nakhla (um dia de viagem de camelo ao sul de Meca), e de Al-Lat, em Ta'if, eram os mais visitados. Ta'if, cercada por muralhas, era localizada numa região verdejante e de clima ameno do Hijaz, região centro-oeste da Arábia, próxima ao Mar Vermelho. A cidade era conhecida como "Jardim do Hijaz", e a deusa, a "Dama de Ta'if". (Os árabes gostavam de uma alcunha; esta, aliás, uma palavra de origem árabe: Al-qunya).

Os pastores e camponeses da Arábia faziam preces a Al-Lat para aumentar a fertilidade dos rebanhos. Manat era a deusa da morte e do destino. Isso pode soar funesto, mas tinha um lado positivo: quando uma mudança surpreendente acontecia na vida de um árabe - o paciente desenganado que se recuperava de uma doença grave, ou o pobre que ficava rico por um golpe de sorte -, fazia-se uma oferenda a Manat, a senhora da roda da fortuna. Na Nabateia, os fraudadores de escrituras de tumbas funerárias (comércio escuso que, pelos registros, devia ser bem ativo) tinham de pagar multa - mil moedas de prata - ao templo de Manat em Petra, ao serem descobertos. O culto árabe mais fervoroso era o dedicado a Al-`Uzza, segundo testemunho de autores cristãos que pregaram na região. "Os sarracenos adoram a deusa Vênus e a associam à estrela da manhã", escreveu Santo Hilário, no século 4. ("Sarraceno", de acordo com uma etimologia, seria "aquele expulso por Sara": os árabes eram tidos como descendentes de Ismael, filho de Abraão com a serva egípcia Hagar). Em Meca, a poderosa tribo dos Quraish, principais oponentes de Maomé e do Islã, dizia-se "filha de Hubal e Al-`Uzza".

Deuses e monstros

Os deuses e criaturas sobrenaturais do panteão árabe

Dhu'Shara, o leão alado

Categoria: divindade


Também chamado de Dusares, foi cultuado na Arábia e na Nabateia (atual Síria). Era o "Senhor de Petra", uma grande cidade de estilo romano, com ágora, banhos públicos e avenidas em colunata. Era identificado com Júpiter. Mas, ao que se saiba, não lançava raios. Seu poder mágico era o de se transformar em leão alado. Dhu'Shara era casado com Al-`Uzza (Vênus), virgem adolescente na mitologia árabe.


Nakruh, o senhor da destruição

Categoria: divindade


"Deus da Morte", "Deus do Ódio", "Senhor da Destruição", "Vingador Implacável". Não, não são filmes antigos com Clint Eastwood, e sim algumas das alcunhas do deus árabe. Ele foi muitas vezes associado ao Saturno romano (e ao Cronos grego). Enfezado, tentou assassinar o próprio irmão, Wadd. Mas Nakruh tinha um lado bom e justo. Era o protetor das mulheres grávidas.


Ghila, a maligna

Categoria: animal fantástico


A criatura teria surgido por causa de uma maldição de Dhu'Shara. Certa vez, um grupo de demônios femininos foi à mansão celeste para bisbilhotar. Como punição, foram arremessadas para a Terra. Algumas caíram nos rios, e viraram a fêmea do crocodilo. Outras, cuja parada foi o deserto, viraram ghilas.


Hubal, o deus da Lua

Categoria: divindade


Deus da Lua, na religião de Moab, na atual Síria, foi adotado na Arábia, tornando-se uma de suas principais divindades. O seu primeiro vestígio na região - descoberto nos anos 1990 - é o de um altar e incensórios em Muweilah, nos Emirados Árabes, cuja data aproximada é de 800 a 700 a.C. Não há correspondência entre ele e os deuses greco-romanos. Segundo uma etimologia possível, seria uma corruptela de "Baal", deus semita.


Al-Qaum, o deus da guerra e das caravanas

Categoria: divindade


Quando os mercadores árabes voltavam sãos e salvos de uma longa viagem, faziam oferendas ao deus. Conhecido como divindade da guerra, Al-Qaum era igualmente o protetor das caravanas. Também foi chamado de "Deus da Noite": os nabateus, que, assim como os árabes, o adoraram, transportavam cargas valiosas à noite, para não serem roubados. Faziam então uma reza ao deus.


Serpentes aladas

Categoria: animal fantástico


A melhor descrição sobre estas criaturinhas peçonhentas voadoras foi de Heródoto, que ficou conhecendo sobre elas em suas andanças pela Arábia, no século V a.C. Estes ofídios com asas gostavam de fazer voos migratórios sazonais ao Egito. Mas lá eram repelidos pela íbis, ave que lembra a cegonha.


Orotal, o boa-praça

Categoria: divindade


O Baco da Arábia. Assim como o deus romano, era chegado a um vinho. Aliás, na Arábia pré-islâmica, o costume de beber era arraigado. "O vinho era tido como um dos melhores presentes que a fortuna poderia agraciar ao árabe da era pré-islâmica", diz Toshihiko Izutsu, professor da Universidade de Keio, no Japão. Orotal foi popular na parte norte da Arábia. Não há referência arqueológica a ele no sul da península.


Al-Khutby, o sábio

Categoria: divindade


O deus mais afeito ao conhecimento era Al-Khutby. Foi o deus da sabedoria, protetor dos estudiosos e escribas. Sua representação iconográfica era bem simples, um mero pilar. Na Arábia, sofreu sincretismo com o deus romano Mercúrio (Hermes na Grécia). Tinha asas nos pés, com o poder de percorrer grandes distâncias em pouco tempo. Nas tempestades, "surfava" pelas nuvens, conduzido pelos relâmpagos.


Gênios do bem e do mal

Categoria: ser sutil


Os djinns (traduzidos por "gênios" em línguas ocidentais) eram criaturas feitas de ar, fumaça e fogo. "Um tipo particular de gênio era o qarîn, o 'djinn acompanhante'." Quando uma pessoa nascia, um qarîn nascia ao mesmo tempo. Os dois viveriam juntos e morreriam no mesmo dia. O gênio seria uma alma gêmea do ser humano.


Linha do tempo
2 500 a.C. a 1 750 a.C.

Escavações dão indícios de que, na fronteira da Arábia com a Mesopotâmia, vivia-se um período de prosperidade.

715 a.C.

Primeira referência pictórica à religião do Reino de Sabá: uma inscrição no templo do deus Almaqah. Os sabeus cultuavam essa divindade central.

430 a.C.

Relato de Heródoto sobre os árabes, na obra Histórias. Faz referência aos deuses árabes Orotal e Al-Lat.

50

Em Petra, cidade cosmopolita no norte da Arábia, há registros do culto à deusa Bel e à deusa egípcia Ísis.

219

O autor Al-Azraqi escreve a obra Crônicas da Meca Gloriosa. Retrato do culto politeísta em Meca. Na cidade, 400 estátuas de divindades foram erigidas em volta da Caaba.

609

Início da história do Islã, com a revelação dos primeiros versículos do Alcorão ao profeta Maomé.

622

Perseguição e tentativa de assassinato a Maomé leva à fuga do Profeta para Medina, a Hégira.

624

A Batalha de Badr marca o primeiro conflito armado entre os clãs politeístas de Meca e os adeptos do Islã.

630

Conquista de Meca pelo exército de Maomé. Destruição dos ídolos das divindades da religião politeísta árabe.

632

Morte de Maomé.

632 - 634

Repressão à idolatria pelo primeiro califa, Abu Bakr. Com a morte do Profeta, a região do Najd, no centro da Arábia, abandonou as práticas islâmicas e voltou à antiga religião.

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Livro

Arabia and the Arabs - From the Bronze Age to the Coming of Islam, Robert G. Hoyland, Routledge, 2001
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O Livro dos Ídolos, de Ibn Al-Kalbi (em inglês)

Revista Aventuras na História

domingo, 19 de janeiro de 2014

Coréia do Norte - O reino da Família Kim

Em novembro último, o Exército da Coréia do Norte bombardeou uma ilha ocupada pela vizinha Coréia do Sul. O episódio seria apenas mais um na tensa rotina de convivência entre os dois países, não fosse a suspeita de que o ataque tenha sido ordenado por Kim Jong-un, o sucessor do atual Líder nacional, Kim Jong Il. Na Coréia do Norte é assim: o Poder passa de pai para filho, como se a nação não passa
Morgana Gomes



A primeira dinastia socialista
Três anos depois, em 1948, quando a União Soviética estabeleceu a República Democrática Popular na Coreia do Norte, como líder oficial do Partido dos Trabalhadores Coreano, Kim Il-Sung passou a ter um poder quase que total sobre o país, ao exercer um papel similar ao que Mao Tsé Tung (1893 – 1976) desempenhou na China. Entre 1950 e 1953, liderou os nortecoreanos na guerra contra a Coreia do Sul, na época, protegida pelos Estados Unidos e Nações Unidas. Após o acordo de paz entre as duas Coreias, intensificou seu governo ditatorial, tendo como base o culto à personalidade. Desde então, passou a ser tratado como "Grande Líder". Ao mesmo tempo, seu filho Kim Jong-il (1942), ao ganhar o atributo de "Estimado Líder", acabou designado à sucessão. Embora houvesse pleitos eleitorais na Coreia do Norte, antes de morrer de parada cardíaca em 1994, aos 82 anos, Kim Il-Sung conseguiu empossar seu filho no cargo de secretário-geral do Partido dos Trabalhadores da Coreia, partido que governa de fato a República Popular Democrática da Coreia do Norte, assegurando a sucessão familiar. Embora, haja quem diga que essa situação tenha sido decidida de forma quase que ditatorial, o certo é que Kim Jong-il foi preparado, desde cedo, para substituir o pai.

Retratos oficias de Kim Sung Il e Kim Jong Il presentes em cada vagão do metrô de Pyongyang


A segunda dinastia socialista da família Kim
Ao longo de sua vida escolar, Kim Jong-il foi preparado para atuar na política, tanto que participou de grupos de estudo de teoria política marxista e, ao entrar na universidade, dedicou-se a economia política marxista. Em 1961, juntou-se ao Partido dos Trabalhadores da Coreia, ao mesmo tempo em que começou a acompanhar o pai em tours de orientação em fábricas, fazendas e outros locais de trabalho. Nessa época, ele ainda era chamado de playboy, por gostar de mulheres, bebidas e filmes de faroeste. Contudo, após graduar-se em 1964, deu inicio à própria ascensão na hierarquia do poder. Como instrutor chefe do Comitê Central do Partido, trabalhou para que as atividades da entidade não se afastassem da linha ideológica definida por seu pai. Ele também colocou em prática medidas para garantir o sistema ideológico do Partido, atuando sobre os meios de comunicação, escritores e artistas, enquanto supervisionava as atividades de propaganda.


Mapa da Coréia, dividida em Norte e do Sul, pelo paralelo 38

Entre 1967-1969, voltou sua atenção para os militares, por acreditar que os burocratas do Exército do Povo Coreano oprimiam organizações políticas do Exército. Por conseguinte, durante a Quarta Reunião Plenária do Comitê, expôs certos oficiais que foram posteriormente expulsos. Em 1973, tornou-se encarregado de assuntos de organização e, simultaneamente, de propaganda e assuntos do partido, posição que lhe permitiu se firmar como intérprete oficial de Kim Il-sung. e de suas ideias. Em 1974, foi eleito para o Comitê Político do Partido, período em que lançou um novo método de guiar a revolução que, por sua vez, ofereceu formação política, científica e técnica em cursos de curta duração. No final da década de 1970, já estava envolvido no planejamento econômico e em várias campanhas para desenvolver rapidamente determinados setores da economia, ao mesmo tempo em que trabalhava em iniciativas destinadas a construir uma massa de movimentos políticos dentro das Forças Armadas. Também foi ativo nos esforços para criar uma campanha para a reunificação da Coreia. Em paralelo, o governo começou a construir o culto de sua personalidade e Kim Jong-il passou a ser regularmente aclamado pela mídia como o "destemido líder" e "o grande sucessor à causa revolucionária”. Surgiu, então, a figura mais poderosa por trás de Kim Il-Sung. No final de 1991, foi nomeado comandante supremo das forças armadas norte- coreanas. Considerando que o exército é a base real de poder na Coreia do Norte, este foi um passo fundamental para a ascensão política, planejada pelo pai que, em 1992, declarou publicamente que seu filho estava no comando de todos os assuntos internos da Coreia do Norte. Logo em seguida, as transmissões de rádio começaram a se referir a Kim Jong-il como o "Querido Pai", já sugerindo uma promoção. Com a morte de Kim Il-Sung, o filho Kim Jong-Il que já ocupava o cargo de secretário-geral do Partido dos Trabalhadores da Coreia desde 1997, também assumiu a presidência da Comissão Nacional de Defesa. Em 1998, quando sua colocação foi declarada como sendo "o mais alto cargo do Estado", ele passou a ser considerado o líder máximo da República Democrática Popular da Coreia do Norte, posição que ocupa até hoje.

A futura terceira dinastia dos Kim
Em junho de 2009, como já era esperado, Kim Jong-il também nomeou o seu filho Kim Jong-un para a sucessão. O jovem que também é conhecido como Kim Jong-woon ou Kim Jung Woon é o terceiro e mais jovem filho do atual líder coreano com sua última esposa Ko Young-hee (1953 – 2004). A informação se tornou pública por meio do impresso JoongAng Daily. Porém, pouco se sabe de Kim Jong-un.

Provavelmente, ele nasceu em 1983 ou no principio de 1984. Por muito tempo, apenas uma fotografia, de quando tinha 11 anos, confirmava sua existência. É certo que estudou na Suíça, época em que usou um pseudônimo para fingir ser filho de um motorista, embora estivesse sob a tutela de Ri Tcheul, embaixador norte-coreano no país. Sabe-se que, ao retornar à sua terra natal, renunciou às influências ocidentais. Somente em 28 setembro de 2010, sua imagem oficial foi divulgada. Fisicamente, o jovem general de quatro estrelas do Exército Popular da Coreia do Norte, é bem parecido com o pai; inclusive, ambos partilham de alguns problemas de saúde idênticos, como coração e diabetes. A imprensa noticia que parte dos preparativos para a consagração de Kim Jong-un, como sucessor de seu pai, já começou. No entanto, analistas de política internacional acreditam que, diante de uma morte inesperada de Kim Jong-il, devido a inexperiência do jovem para liderar o país de imediato, seu tio, Chang Sung-Taek (1946), vice-presidente da Comissão de Defesa Nacional, poderá atuar como regente da Coreia do Norte. De qualquer forma, no momento que Kim Jong-un se tornar lider da Coreia do Norte, seu país e o Nepal serão as únicas duas monarquias comunistas do mundo...
Kim Jong-un sucessor do trono

Manutenção do poder pelo culto à personalidade

Na história, os monarcas sempre procuraram ser cultuados de diversas maneiras. Na China Imperial, no Antigo Egito, no Japão, no Tibete, no Império Romano, entre outros, eles eram considerados deuses. Já os reis europeus afirmavam governar por vontade de Deus e, em consequência, exerciam o direito divino sobre a Terra. Com o posterior desenvolvimento da fotografia, da gravação sonora, do cinema e da comunicação de massa, bem como da educação pública e das técnicas de publicidade, os líderes políticos puderam projetar uma imagem positiva de si mesmos, como nunca antes fora possível. Nessas circunstâncias, no século XX, surgiram os recentes cultos à personalidade, cuja estratégia é a propaganda política baseada na exaltação das virtudes (reais ou supostas) e na figura do governante, que passa a se destacar em cartazes gigantescos, que impregnam a mente do povo que é incitado, pelos meios de comunicação, a bajulá-lo como um ser perfeito, protetor da nação.

Na Coreia da Norte, por volta de 1950, Kim Il-Sung começou tirar proveito desse recurso, de início para si próprio, depois para promover a sucessão de seu filho que, por sua vez, também vem empregando a mesma estratégia para se consagrar como lider e projetar seu jovem sucessor. No caso do “eterno” Presidente da Coréia do Norte, o culto à personalidade lhe rendeu mais de 500 estátuas, nas quais os cidadãos ainda depositam tributo anual por ocasião do aniversário oficial ou de morte. Sua imagem também aparece associada ao transporte público. Cartazes e fotos se destacam em cada estação de trem, nos aeroportos e nas passagens fronteiriças que levam a China. Se não bastasse, seu retrato ainda estampa as notas de 100 norte won. Portanto, fica difícil esquecê-lo, diante do bombardeio visual que, de forma direta ou indireta, induz ao culto de sua imagem.
Revista Leituras da História

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Nova Era Politeísmo renovado


O movimento da Nova Era com seus ensinos metafísicos de influência oriental surgiu com uma proposta de um novo modelo de consciência moral, psicológica e social
 Morgana Gomes

Muitos rituais pagãos foram absorvidos, modificados, renomeados e incorporados pela Igreja Católica - que insistia em rotular a antiga religião como bruxaria, "coisa do demônio". Era uma tentativa de impor a crença a um único Deus poderoso que, por sua vez, punia aqueles que não obedeciam a seus ensinamentos. A instituição chegou a torturar os pagãos e criou a Inquisição para perseguir aqueles que não professassem a fé católica.


Homens simples, mulheres parteiras, benzedeiras e os que conheciam o poder das ervas, além dos chamados magos, sacerdotes e sacerdotisas das diversas tradições pagãs foram reprimidos, tanto pela força da lei quanto pelos radicais convertidos ao cristianismo.



Em meados de 1970, o movimento da Nova Era com seus ensinos metafísicos de influência oriental, linhas teológicas e crenças espiritualistas, animistas e paracientíficas surgiu com uma proposta de um novo modelo de consciência moral, psicológica e social, visando a integração e a simbiose com o meio envolvente, a Natureza e até o Cosmos. Era o neopaganismo, que se espalhou pelos Estados Unidos, Reino Unido, Europa de língua alemã - Escandinávia, Europa eslava, Europa latina e outros países - e o Canadá.

Desde o princípio da humanidade, por sentir-se limitado perante a natureza e até em relação aos próprios contemporâneos, o homem criou deuses que poderiam lhe dar proteção. Essa concepção se espalhou, contaminou os demais e, em pouco tempo, surgiram deuses de todas as formas imagináveis: da agricultura, chuva, oceanos, fertilidade, guerra, ventos, Sol, Lua etc.


Em paralelo, também foram aparecendo determinados esquemas que deram concretude à espiritualidade pagã, cujas características principais centravam- se na radical imanência divina (a divindade se encontrava na própria Natureza - o que incluía os próprios humanos - e se manifestava através dos seus fenômenos), na ausência da noção de pecado, de inferno e do mal absoluto. Formou-se, então, a comunidade pagã que, ao evoluir, acabou por adquirir o status de sociedade.

Nesse contexto, se por um lado a imanência dos deuses conferia à divindade características antropomórficas, por outro, a relação entre os homens e eles se dava de forma pessoal e direta. Logo, a ideia de afronta à divindade também era tratada pessoalmente com o deus ofendido.

Esse tipo de relação conduziu ao não dogmatismo, que ainda conferiu à religiosidade um traço quase que doméstico, vivenciado por pequenos grupos com laços de sangue ou de compromisso. Assim, cada um podia cultuar o seu Deus eleito da forma que desejasse, sem nenhum tipo de imposição de terceiros.

Já em relação à ausência da noção de pecado, também não havia a concepção de santidade nem de profano. Graças a esse fato, logo no início, dispensou-se a construção de templos de reverência aos deuses, mas não o estabelecimento de Sítios Sagrados que passaram a ocupar bosques, poços, montanhas, entre outros lugares.


Em virtude dessas características, rapidamente, o calendário religioso dos povos primitivos começou a se confundir com o calendário sazonal e agrícola. Por conseguinte, essa correspondência também estabeleceu o caráter de fertilidade e do eterno retorno a crença pagã.

O labirinto é um símbolo neopagão, que induz os adeptos seguirem em busca da ancestralidade, trilhando um caminho já percorrido por tantos outros.

Ainda que, alguns povos tenham desenvolvido a ideia de um "Outro Mundo", a vida pós-morte nunca foi um ideal pagão, pois isso significaria ficar fora do ciclo natural e, portanto, da comunidade que festejava seus deuses nos momentos de mudança e auge desses mesmos ciclos. Dessa forma, o chamado "Outro Mundo" seria apenas uma passagem da vida ao renascimento, no qual o encontro com a deidade se daria sempre em comunhão com a Natureza.

Seguindo essa evolução, surgiram os Grandes Festivais, repletos de rituais que comprometiam todos os membros de uma comunidade específica em uma religiosidade mágica, na qual a espiritualidade era alcançada pela manipulação da carne e dos elementos, através do corpo e da natureza, nos chamados "feitiços".

Festival Pagão em Stonehenge, planície de Salisbury, próximo a Amesbury, condado de Wiltshire, sul da Inglaterra.

Mas com a divindade representada no mundo terreno, também não havia conflitos internos nem a necessidade de se dominar ou conter impulsos naturais que, por sua vez, deveriam fluir livremente sem culpa. Isso explica porque os pagãos - inclusive os atuais - valorizam mais a vivência da religiosidade pelo corpo - em detrimento do espírito -, pois a repetição dos mesmos ritos, sempre na mesma época, criaria uma união mística com todos aqueles que já celebraram. Dessa forma, acreditava- se que, ao presente, retornaria o momento primitivo da sua realização e todos aqueles que, ao longo dos séculos, tenham participado dele.

De acordo com essa proposição, apesar dos vários povos que desenvolveram individualmente seus costumes religiosos, locais e ancestrais, o que poderia se mostrar como diferença entre religiões, apenas primava pelas características básicas do paganismo, que permaneceu com todos os seus rituais típicos até os dias de hoje.

Rituais e dogmas

Com o advento do cristianismo e a oficialização da Igreja Católica, embora muitos rituais pagãos tenham sido absorvidos, modificados, renomeados e incorporados pela instituição religiosa, o povo pagão, principalmente na Idade Média, se viu submetido entre aqueles que ainda praticavam seus rituais. Alguns os faziam dentro das próprias igrejas, erguidas em áreas que anteriormente eram ocupadas por santuários pagãos, perante a concessão dos sacerdotes que, sem alternativa, aceitavam tal condição para manter seu rebanho reunido.

Mesmo assim, a Igreja insistia em rotular os rituais praticados na antiga religião como bruxaria, "coisa do demônio", na tentativa de impor a crença a um único Deus poderoso que, por sua vez, punia e castigava aqueles que não obedeciam a seus ensinamentos.

Grupo neopagão Ásatrúarfélagið a caminho de um ritual

A instituição chegou a empreender torturas e campanhas militares para alcançar seus objetivos, mas não satisfeita, ainda criou a Inquisição para perseguir e punir todos aqueles que não professassem a fé católica. Porém, ao mesmo tempo em que a Igreja transformava o paganismo em sinônimo de satanismo, em nome do poder adquirido como representante do Deus Uno, o clero exigia do povo tudo que desejava, principalmente bens materiais. Dessa maneira, ele conseguia se sustentar num luxo inacessível entre os que viviam quase que miséria nas cercanias dos feudos e igrejas.

Na época, homens simples, mulheres parteiras, benzedeiras ou que conheciam o poder das ervas contra certas doenças, além dos chamados magos, sacerdotes e sacerdotisas das diversas tradições pagãs eram reprimidos, tanto pela força da lei quanto pelas perseguições histéricas dos radicais convertidos ao cristianismo.

Do século XV ao XVII, milhares de processos sob a tutela da Inquisição percorreram tribunais eclesiásticos e civis por toda Europa e até o Novo Mundo. Pessoas foram torturadas, executadas em fogueiras ou afogadas; outras tiveram membros arrancados. Uma simples suspeita já era motivo para a execução e todo conhecimento, considerado suspeito aos olhos da Igreja, era motivo de perseguição. Sem alternativa, o povo teve que se converter de forma aparente. No entanto, a semente do paganismo permaneceu enterrada na consciência de muitos, apenas esperando o momento certo de germinar e dar frutos novamente.

O advento da Nova Era
Passaram-se séculos, até que em meados de 1970, o movimento da Nova Era com seus ensinos metafísicos de influência oriental, linhas teológicas e crenças espiritualistas, animistas e paracientíficas eclodiu com uma proposta de um novo modelo de consciência moral, psicológica e social, que visava à integração e a simbiose com o meio envolvente, a Natureza e até o Cosmos. Até então pressionados, alguns se despertaram para a liberdade de culto e começam a reverenciar a ancestralidade pagã. Mas ainda assim foram tidos como visionários, quando não loucos.

Entre eles, a maioria era composta por mulheres, principal vítima da Igreja Católica durante a Inquisição. Elas se irmanam em uma grande variedade de movimentos religiosos modernos, que apresentam uma imensa gama de crenças, incluindo o politeísmo, o animismo, o panteísmo e outros paradigmas, nos quais, além de reinventaram rituais, se livraram dos dogmas impostos pelas instituições religiosas oficiais. Com determinismo, elas espalharam suas ideias e angariaram adeptos que, diante dos muitos escândalos religiosos que acabaram por ser divulgados, se viram traídos "pelo faça o que eu mando, mas nunca o que eu faço".

Ritual neopagão da vertente Wicca

Com a ajuda da mídia, o retorno a ancestralidade e as crenças se tornaram um fenômeno, principalmente entre aqueles que pertenciam às classes sociais mais altas, tanto em termos financeiros, quanto intelectuais. O movimento, então, recebeu o nome de neopaganismo e contagiou, principalmente, os habitantes dos países mais desenvolvidos, em especial os Estados Unidos e Reino Unido, mas também a Europa continental (Europa de língua alemã, Escandinávia, Europa eslava, Europa latina e outros países) e o Canadá. Segundo estatísticas, só nos Estados Unidos há cerca de um terço de todos os neopagãos do mundo atual, montante que representa aproximadamente 0,2% da população do país e a sexta maior denominação não-cristã, depois do judaísmo (1,4%), islamismo (0,6%), budismo (0,5%), hinduísmo (0,3%) e o Unitário- Universalismo (0,3%).

Na Islândia, os membros do grupo neopagão Ásatrúarfélagið representam 0,4% da população nacional. Por isso, traços e influências do antigo paganismo nórdico ainda podem ser encontrados na cultura e nas tradições de países modernos, tais como a Dinamarca, Suécia, Noruega, Ilhas Faroé e Groelândia, bem como em todos os outros territórios que receberam imigrantes dessas nações.

Na Lituânia, uma das últimas áreas da Europa a ser cristianizada, muitas pessoas que não assimilaram totalmente o culto do Deus Único, continuaram seguindo uma versão reconstruída da religião pré-cristã da região, a Romuva. Na Grécia, desde 1990, o Supremo Conselho dos Gentios Helenos institucionalizou o dodecateismo, também conhecido como reconstrucionismo politeísta helênico, que visa reviver as práticas religiosas que se originaram na antiguidade gloriosa do país mediterrâneo.

Hoje, embora a maior religião neopagã seja a Wicca, outros grupos adquiriram um porte significativo, como o Neodruidismo, o Neopaganismo Germânico e o Eslavo. Entre os praticantes desses grupos, enquanto alguns primam pela conexão com formas antigas do paganismo, numa continuidade histórica marginal (à margem da religião que se autoafirmava como única verdade no Ocidente: a cristã), outros introduzem mudanças e inovações.

Mas apesar das diferenças elementares, em comum, todas as vertentes apresentam tentativas de reconstrução, ressurgimento ou, mais comumente, adaptação de antigas religiões pagãs do período pré-cristão europeu a atualidade, porém sem se restringir somente a elas, em virtude das experiências e das necessidades encontradas no mundo contemporâneo.


Sobre o termo neopaganismo
Usado para especificar o renascimento do paganismo na década de 1970, ele é usado por acadêmicos e adeptos para identificar novos movimentos religiosos que enfatizam o panteísmo e a veneração da natureza ou que procuram reviver ou reconstruir os aspectos históricos do politeísmo. Já os escritores eruditos empregam o termo "paganismo contemporâneo", para designar todos os novos movimentos religiosos politeístas, uso que foi favorecido pela publicação The Pomegranate: The International Journal of Pagan Studies.

De certa forma, o termo neopagão ainda proporciona um meio de distinção entre pagãos históricos de culturas politeístas antigas ou tradicionais e os adeptos de movimentos religiosos modernamente constituídos. Por sua vez, a categoria das religiões conhecidas como neopagãs inclui desde abordagens sincréticas ou ecléticas (como as da Wicca, Neodruidismo, Dianismo e Neoxamanismo) até aquelas mais ligadas a tradições culturais específicas, como as muitas variedades de reconstrucionismo politeísta (Helênico, Nórdico etc.). Nesse sentido, alguns reconstrucionistas rejeitam o termo neopagão, porque pretendem criar uma abordagem historicamente orientada para além do neopaganismo mais eclético e geral.
Revista Leituras da História

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

As moedas holandesas no Brasil

 
Florim
  
Soldo
Cercados pelos portugueses no litoral de Pernambuco e não dispondo de dinheiro para pagar seus soldados e fornecedores, os holandeses realizaram a primeira cunhagem de moedas em território brasileiro. Conhecidas como "moedas obsidionais" ou "moedas de cerco", estas foram também as primeiras moedas a trazerem o nome do Brasil. Por causa da inexistência de ferramentas e materiais adequados, e da urgência do trabalho, as moedas foram feitas de forma bastante rudimentar.

Em 1645 e 1646 foram cunhadas moedas de ouro de III, VI e XII florins e em 1654, pouco antes da partida, moedas de prata, nos valores de XII, X, XX, XXX e XXXX soldos, havendo, entretanto, polêmica quanto à autenticidade dos quatro últimos valores. A inscrição G.W.C. corresponde às iniciais de "Companhia das Índias Ocidentais", em holandês.
 http://www.bcb.gov.br

Moedas-mercadorias no Brasil



 
Pau-Brasil
  ]
Zimbo
  
Pano de Algodão
Nos dois primeiros séculos após o descobrimento, em face da inexistência de uma política monetária especial para a Colônia, a quantidade de moedas em circulação era insuficiente para atender às necessidades locais. Por esse motivo, diversas mercadorias foram utilizadas como dinheiro, inclusive pelo próprio governo, sendo comuns os pagamentos realizados em açúcar, algodão, fumo, ferro, cacau e cravo, entre outros.

Em algumas ocasiões, o uso de mercadorias como moeda obedeceu a determinações legais. Em 1614, por exemplo, o governador do Rio de Janeiro estabeleceu que o açúcar corresse como moeda legal, ordenando que os comerciantes o aceitassem obrigatoriamente como pagamento. No Maranhão, que constituía um estado politicamente separado do Brasil e onde a principal moeda corrente era o algodão, foi legalmente estabelecida, em 1712, a circulação do açúcar, cacau, cravo e tabaco como moeda.

Os escravos africanos chegados ao Brasil utilizaram em suas trocas o zimbo, concha de um molusco encontrada nas praias brasileiras e que circulava como dinheiro no Congo e em Angola.
 http://www.bcb.gov.br

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

A monarquia e o mundo dos negócios



Marisa Saenz Leme
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Departamento de História, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Franca/SP, Brazil




MARSON, I. A.; OLIVEIRA, C. H. L. de S. (Org.) Monarquia, liberalismo e negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Edusp, 2013.

A Importância da monarquia brasileira foi reconsiderada entre nós a partir dos anos 1970, com base na renovação metodológica dos estudos de história política, internacionalmente desenvolvida. Longamente tido como "flor exótica" no continente americano, ficou o regime muito tempo bastante esquecido dos estudos considerados "críticos", em que se valorizavam, sobretudo, a formação escravista colonial e a sua desagregação, a partir dos anos 70 do século XIX, a par da própria desagregação do Império. Mas, por intermédio de estudos em grande parte realizados nos cursos de pós-graduação das nossas universidades, com base em intensa pesquisa empírica, a formação e desenvolvimento da monarquia brasileira vêm se mostrando um campo fértil para a compreensão das relações entre sociedade e Estado no Brasil. A obra ora em apreço representa um salto qualitativo na renovação desse campo historiográfico. Nela se realizou, por intermédio de um conjunto de trabalhos desenvolvidos nos cursos de pós-graduação da USP e da Unicamp, uma articulação teórico-historiográfica entre a instituição do Estado - que, na sua própria forma monárquica, ao contrário do que por muito tempo se pensou, foi liberal desde os primórdios da Independência - e o mundo dos negócios, num país em que as atividades econômicas urbanas tiveram um peso bem maior do que se costuma considerar. Trata-se de relações contraditórias, que não se explicam pelo que em certos vetores analíticos se avalia como "distorções" das realidades brasileiras, ou ibero-americanas, consideradas atrasadas, periféricas, imperfeitamente capitalistas e liberais. Pelo contrário, conforme explicitam na Introdução as organizadoras do livro, as relações sociedade-Estado desenvolvidas no Brasil independente e, num sentido amplo, as próprias relações coloniais decorreram das contradições que marcaram os próprios fatores originários do liberalismo.

Abrangendo dois grandes "momentos" da constituição e desenvolvimento do Brasil enquanto país independente, essas questões são analisadas, na primeira parte do livro, basicamente, à luz da Independência; na segunda parte, trata-se de se observar as relações sociedade-Estado nas regências e na ainda conturbada década da Maioridade, seguindo-se o desenvolvimento do jogo político e empresarial nas décadas seguintes, num Império já estabilizado.

Como tem mostrado a historiografia mais recente, no plano socioeconômico a nossa independência assentou-se em grande medida em determinados grupos das elites coloniais, que se desenvolveram sobretudo no século XVIII no sudeste e sul da colônia. A formação desses grupos e a articulação entre eles é elemento capital para se compreender, entre outros fatores, a maneira pela qual diferentes regiões da Colônia Brasil, longamente pouco identificadas entre si, uniram-se num todo maior. Nessa dimensão, Ana Paula Médici mapeou os grupos de contratadores de impostos, envolvidos numa extensa rede de produção e comércio na então capitania de São Paulo. Capitania que, junto com Minas Gerais, teve papel fundamental no modo pelo qual se realizou a independência, com base no centro monárquico estabelecido no Rio de Janeiro. De acordo com Vera Lucia N. Bittencourt, esse processo resultou de um complexo jogo de articulações políticas, com bases socioeconômicas. Conforme Norbert Elias (O processo civilizador: formação do Estado e civilização), foi o comércio, diferentemente das atividades estritamente rurais, que possibilitou o alargamento das fronteiras entre áreas antes apartadas, favorecendo posturas de negociação para a solução dos impasses políticos e o desenvolvimento de um Estado centralizado. Tese que se confirma na recomposição sociopolítica, feita pela autora, de um momento ainda muito pouco estudado na historiografia: a regência de D. Pedro, entre a partida de D. João VI para Lisboa e a declaração da independência. Inicialmente frágil, a autoridade do príncipe aos poucos se consolidou, no concerto das alianças e acordos entre a autoridade estatal e os grupos civis.

Mas a atuação desses grupos já adquirira feição específica, dada a possibilidade de maturação política decorrente da presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro. Próximos ao núcleo central do poder metropolitano, os elementos de maior relevância socioeconômica a ele se articulavam, não apenas no plano estritamente econômico, mas no da busca de status social e político, o que, entre outros fatores, levava ao patrocínio das festas públicas realizadas na corte joanina, conforme a exposição de Emilio Carlos R. Lopes.

Fundamentalmente, foram se constituindo, de modo mais ou menos explícito, diferentes projetos para o Brasil em formação, vivenciando-se um amplo processo de disputas políticas, que, com a Revolução Liberal do Porto em 1820, tomou impulso e adquiriu grande visibilidade. Nesse contexto, não faltou a ocorrência de embate violento, consubstanciado nos conflitos ocorridos na Praça do Comércio do Rio de Janeiro, quando da reunião montada devido às demandas de representação política surgidas com a Revolução. Cecília Helena S. Oliveira desvenda a rede de relações sociais ocultas sob o jogo político que se realizava na corte, envolvendo elementos da burocracia e diferentes grupos civis, em que se destacou um grupo de liberais aparentemente mais radicais, responsáveis pela convocação da reunião. Produtores inicialmente de menor porte financeiro do que os abastados comerciantes de "grosso trato" advogavam, a par de reformas políticas radicais, no quadro do liberalismo, a defesa do comércio e da indústria "nacionais" e outras medidas de proteção ao trabalho, urbano e rural. Reivindicações essas que propiciaram a mobilização de diferentes camadas da população.

Nessas disputas, o violento episódio - ainda historiograficamente pouco conhecido - é emblemático para nele se distinguirem as formas de atuação e de justificativas políticas dos grupos envolvidos, bem como as diferentes interpretações dos contemporâneos a seu respeito. Perdendo o controle de uma reunião por eles articulada, os "radicais" procuraram se desvincular da massa que atraíram com suas propostas, na medida em que essa apresentou comportamentos políticos próprios.

Argumenta-se neste livro, já na sua Introdução, a compatibilidade entre continuidade do escravismo e adoção do liberalismo no Brasil independente, o que é fundamental não só para se entender a devida complexidade das relações sociedade-Estado no Brasil até o terceiro quartel do século XIX, como o liberalismo em si. Observe-se que a conservação do escravismo constitui fator que, numa perspectiva linear - na contramão das abordagens analíticas apresentadas na introdução e nos capítulos deste trabalho - é utilizada para se defender a tese do "atraso" brasileiro, considerado incompatível com o ser liberal. Nessa dimensão, João Eduardo F. Scanavini relata as discussões parlamentares que se seguiram à assinatura do tratado anglo-brasileiro de 1826, proibindo o tráfico atlântico de escravos. Deputados de tendências políticas distintas se alternaram na sua condenação (maioria) e na sua defesa (minoria), em termos amplamente ajustados ao jogo entre as competências do Executivo e do Legislativo, como costuma acontecer nos Estados de institucionalização liberal.

A segunda parte do livro aborda um Império que, embora já constituído, ainda sofria contestações importantes, até se "estabilizar" nos anos 50 do século em apreço. Importa perceber a fluidez entre posturas liberais e conservadoras que se articulavam no mundo dos negócios, embora, no plano político, se desdobrassem em matizes diferenciados, cujos sentidos, como argumenta Eric Hörner, precisam ser revistos. Problematizam-se as interpretações a respeito, em grande parte decorrentes do anacronismo de se pensar a primeira metade do século XIX em razão das cristalizações ocorridas no seu último quartel.

Embora em processo de estabilização com a Maioridade de D. Pedro II - a qual, em 1840, forçou o fim da conturbada experiência regencial -, o Império brasileiro ainda sofreu uma expressiva contestação com a Revolução Praieira, ocorrida em Pernambuco em 1848, denominada "liberal". Izabel de Andrade Marson revela exemplarmente os limites desse projeto. Explorando as contradições dos discursos praieiros e conservadores, mostra como a defesa da proteção ao comércio de retalho e da chamada "indústria nacional", em contraposição ao "laissez-faire" conservador, formou um delineamento ideológico entre os "revolucionários" da Praieira, chamados liberais, e os conservadores, adeptos do "progresso". "Progresso" esse simultaneamente aberto ao mercado internacional e, internamente, representado pelos proprietários rurais mais ricos, financeiramente capazes de transformar tecnologicamente a produção do açúcar.

O projeto "liberal", contudo, apoiado pelos proprietários rurais mais pobres e por diferentes camadas urbanas, tinha como limite fundamental, desvelado pela autora, a seguinte contradição: boa parte da massa urbana dos seus adeptos agia em razão de interesses/representações passadistas, de caráter artesanal-corporativista, enquanto o projeto de "indústria nacional liberal" trazia implícita a transformação dessas figuras sociais em mão de obra para as fábricas. Propositura essa naturalmente camuflada nos discursos liberais, de grande mobilização popular. Numa leitura linear, esse quadro propiciou, por muito tempo, uma interpretação da Praieira como uma revolução efetivamente popular, até mesmo socialista. Observe-se, nesse cenário, a recorrência do que Cecília Helena S. Oliveira qualificou como a "astúcia liberal", na década de 1820, quando os liberais envolvidos nas disputas da Praça do Comércio se desvencilharam das camadas efetivamente populares que os apoiavam.

Na sequência das "revoluções", a "conciliação" - ainda que precária enquanto tal - indica uma institucionalização política que teria permitido aos seus atores arrojarem-se na fluidez das relações entre "política, partidos e empreendimentos".

Dessa forma, interesses mais particularizados se apresentaram na trajetória político-empresarial de Teófilo Ottoni, que, com imagem marcadamente liberal, como mostra Maria Cristina N. Ferreira Neto, teria na realidade se envolvido num jogo de alianças com políticos conservadores, visando o favorecimento legal, por intermédio de aprovações parlamentares, das iniciativas do seu empreendimento. De forma semelhante, como expõe Eide Sandra A. Abreu, o liberal Tavares Bastos, partícipe da contraditória Liga Progressista, compactuou com um conjunto de trâmites escusos entre público e privado - envolvendo o Parlamento, autoridades do Executivo brasileiro e diplomatas - para obter a aprovação de uma companhia de navio a vapor estadunidense e favorecer a imigração daquele país para o Brasil. Cabe frisar que, na contramão do que sucedera no período da Independência e na Revolução Praieira, foram os conservadores, nesse momento, a defenderem o que seria a "indústria nacional" no contexto.

Conforme Habermas (Mudança estrutural da esfera pública), com o advento do Estado liberal, a esfera pública, em grande parte consubstanciada no Parlamento, passou a ser dirigida, na contramão do Estado absolutista, a partir da esfera privada, constituindo-se assim contraditoriamente o liberalismo, desde os seus primórdios, entre as suas dimensões públicas e privadas, entre um discurso descentralizador e o Estado impositivo. Estado esse que, no caso do Brasil, foi grandemente pensado como "demiurgo" da nossa sociedade, tese cabalmente desmentida pela obra ora em apreço.

É professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", campus de Franca (SP). @ - saenzl@terra.com.br
Revista Estudos Avançados - USP

Presença francesa no Brasil

Álvaro Faleiros
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo/SP, Brazil



PERRONE-MOYSÉS, L. Cinco séculos de presença francesa no Brasil: invasões, missões, irrupções. São Paulo: Edusp, 2013.

O Ano 2009 foi oficialmente o Ano da França no Brasil. Dentre as centenas de atividades realizadas, uma das que mais bem sintetizaram as intensas relações entre Brasil e França foi o ciclo de conferências promovido pelo Núcleo de Pesquisas Brasil-França (Nupebraf) do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), realizado no Centro Universitário Maria Antonia, durante o qual especialistas brasileiros e franceses das áreas de História, Antropologia, Literatura, Artes plásticas, Música, Teatro, Fotografia e Arquitetura trataram das relações entre os dois países.

O período contemplado pelas conferências retomou cronologicamente a extensa e ininterrupta relação franco-brasileira, partindo de reflexões sobre a França Antártica (século XVI) e chegando aos dias de hoje. O livro Cinco séculos de presença francesa no Brasil: invasões, missões, irrupções, organizado pela professora emérita da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Leyla Perrone-Moisés, e publicado agora pela Edusp, reúne esse importante conjunto de trabalhos.

"O Brasil de Montaigne", que abre o volume, foi escrito por Frank Lestrignant e trata da importância do contato de Montaigne com índios brasileiros e com escritos de viajantes para a elaboração de suas reflexões sobre as noções de civilização e de barbárie. O Brasil lido por Montaigne o leva, por exemplo, a considerar que "cada qual chama de barbárie o que não é de seu costume". O modo como Montaigne lida com a alteridade, lembra Lestrignant, faz que Montaigne invente, em "Dos Canibais", a "heterologia", isto é, "um discurso do outro, que é ao mesmo tempo discurso sobre o outro e discurso em que fala o outro". E prossegue o autor: "a heterologia provê um espaço intermediário, um palco reversível, em que a última palavra não pertence necessariamente ao sujeito primeiro do discurso", podendo o enunciador ser também sujeito a crítica. A "declamação em eco" presente na retórica de Montaigne é também, e sobretudo, aquela do próprio ritual sacrificial a que se refere. Ao propor tal passagem, Lestrignant produz um espelhamento verbal altamente sugestivo, o que faz deste um dos mais instigantes textos do livro.

De grande interesse também é o segundo artigo, "Franceses no Maranhão: história de intérpretes", de Beatriz Perrone-Moisés. Nele, a autora retoma a trajetória de Charles des Vaux, jovem nobre responsável pela ideia da fundação da França Equinocial no século XVII, assim como a história de David Migan, jovem intérprete francês que viveu entre os índios tupi. O centro do argumento de Beatriz Perrone-Moisés é que "Des Vaux e Migan desempenham papéis tão ou mais vitais para a França equinocial quanto alguém como La Ravardière, personagem que a historiografia optou por reter". Ao colocar o que chama de "intérpretes-embaixadores" como protagonistas da história da França Equinocial, a antropóloga lança luz sobre estratégias fundamentais de contato e de conquista ainda pouco visíveis para a historiografia oficial.

O terceiro e o quarto ensaios não tratam mais da época das invasões e sim das ditas "missões" do século XIX. O que está em jogo, primeiramente, é o questionamento da própria noção de missão, pois, como aponta Leyla Perrone-Moisés em sua apresentação, "as últimas pesquisas sobre o assunto mostram que os artistas franceses acolhidos pela corte de dom João VI, para fundar a primeira Escola de Belas Artes do Brasil, foram missionários voluntários".

Em "A Arcádia francesa chega ao Brasil: as telas melancólicas de Nicolas-Antoine Taunay", Lilia Moritz Schwarcz reflete sobre o modo como a complexa relação entre os artistas franceses e a recém-chegada corte portuguesa foi sendo acordada. Destaca a pesquisadora que os artistas franceses logo perceberam que sua verdadeira função seria "construir cenários rápidos e dar grandiosidade a essa corte imigrada". Nesse contexto, coube a Nicolas-Antoine Taunay a difícil tarefa de tentar "traduzir" para os trópicos a experiência de uma pintura de representação do Estado de cunho neoclássico. É o choque de culturas expresso na pintura, por exemplo, pela dificuldade em retratar a escravidão, que faz da experiência de Taunay um retrato dos "mal entendidos" que envolvem a vinda dos artistas franceses ao Brasil.

O ensaio "Jean-Baptiste Debret: um filho da Revolução Francesa diante do Brasil nascente", do filósofo Jacques Leenhardt, aponta para esse outro importante artista do período, o pintor Jean-Baptiste Debret. Assim como Taunay, ele depara com o descompasso entre a realidade brasileira e a ética neoclássica, "inaplicável às circunstâncias brasileiras". Debret, entretanto, abandona a pompa monárquica e debruça-se sobre a vida da rua, o que faz dele, nas palavras de Leenhardt, uma das mais importantes "testemunhas das transformações mais dramáticas que afetam o país".

O texto seguinte, "O teatro francês no Brasil do século XIX", de João Roberto de Faria, trata da presença francesa nos meios teatrais, presença que se dá tanto pelo predomínio do repertório dramático em nossos palcos como pela vinda de companhias dramáticas e de grandes artistas franceses, sobretudo ao Rio de Janeiro. Roberto de Faria destaca a figura de João Caetano, responsável, a partir dos anos 1830, pela adoção do repertório dramático francês de modo hegemônico, tendência que, entre compreensões e incompreensões, atravessa todos os movimentos literários do período, desde o romantismo até o naturalismo, estando na base da formação de nosso repertório nacional também. A presença de artistas franceses em palcos brasileiros foi também avassaladora, sendo responsável por parte considerável do que se convencionou chamar de dramaturgia séria. Essa forte presença não parece ter levado, contudo, à produção de um teatro brasileiro inovador, o que leva o pesquisador a afirmar que, tanto na formação de repertório quanto de companhias, "surpreende e incomoda que não tenhamos tido no período uma dramaturgia mais rica, sintonizada pelo menos com aquela predominante nos palcos franceses".

O segundo texto dedicado à literatura do século XIX é "A França literária de Machado de Assis", de Gilberto Pinheiro Passos. Partindo do conceito de paródia, seja temática, seja estilística, Pinheiro Passos desenvolve acurada leitura do modo como Machado de Assis retoma o gênero das "Memórias", presente tanto na obra Memorial de Santa-Helena de Las Casas, como nas Mémoires d'outre tombe de Chateaubriand, renovando-o. Essa "criação de memórias póstumas à brasileira" surge para o pesquisador como uma brilhante "confissão da incapacidade ou desinteresse dessa parcela social [a classe dominante] de entender e modificar o país". Pinheiro Passos estabelece também importante paralelo entre as Illusions perdues de Balzac e Quincas Borba, além de apontar de modo preciso para as leituras de Pascal na elaboração da complexa Capitu. O vasto conhecimento da obra de Machado de Assis ainda leva o pesquisador a se debruçar sobre a presença de Racine em Esaú e Jacó. O raro poder de síntese de Pinheiro Passos permite, em pouco mais de uma dezena de páginas, retomar grandes linhas de força do romance machadiano.

A presença francesa no século XX, por sua vez, é analisada em três ensaios. Em "Darius Milhad e o Brasil: o olhar do viajante, através de seus textos (1917-1949)", Manoel Corrêa do Lago se debruça sobre a estada do compositor francês no Brasil entre 1917 e 1918. De forma bastante detalhada, retoma tanto as conferências de Milhaud que tem o Brasil como tema e as composições que realizou inspirado em seus estudos de ritmos brasileiros, assim como suas atividades concertísticas e sua circulação no meio carioca. Em sua conclusão, Lago destaca que os escritos de Milhaud em sua fase brasileira "constituem, no seu conjunto, um tesouro de informações, de caráter etnomusicológico, sociológico e musical, sobre o Brasil que emergia da Primeira Guerra Mundial".

O entre-guerras é também o período tratado em "Fascínio e rejeição: Blaise Cendrars e Benjamin Péret no Brasil", de Carlos Augusto Calil. Grande conhecedor da obra de Cendrars e de Péret, Calil apresenta as contradições e descobertas que envolvem a presença desses artistas franceses no Brasil. Se, por um lado, a presença de Cendrars foi "decisiva para a consolidação do movimento modernista no Brasil", por outro, o poeta não resiste à "idealização do Brasil". Em relação a Péret, o poeta surrealista acaba expulso do Brasil em 1930 e, quando volta ao país na década de 1950, acaba preso, levando Calil a falar em dupla rejeição do Brasil em relação ao "inconveniente poeta". Assim, em ambos os casos, "a irredutível experiência brasileira, cujo elemento irracional enseja um movimento de suspeita e fascínio, ganha identidade pelo mútuo estranhamento".

O fascínio exercido pelo Brasil também é analisado em "Pierre Verger e Marcel Gautherot, da França ao Brasil: experiências cruzadas e convenções de representação", de Heliana Angotti-Salgueiro. Como destaca o ensaio, se é possível identificar nas imagens dos fotógrafos franceses "convenções de representação do exotismo", os clichês de seus retratos etnográficos "não maquiavam ou estetizavam a pobreza, nem dignificavam ideologicamente seus modelos" e, sim, representavam um modo de olhar que, segundo Angotti-Salgueiro, pode ser compreendido como um "humanismo documentário".

Diferentemente dos textos anteriores, os quatro ensaios que encerram o volume apontam para possíveis futuros cruzamentos. Imagem do próprio Ano da França no Brasil, os textos "A literatura Francesa de hoje", de Gilles Lapouge; "A irrupção da arte contemporânea nos museus de arte antiga", de Jean Galard; "A arquitetura expressiva ou o pós-modernismo à francesa", de Françoise Gaillard; e "A crise da literatura francesa e da irradiação intelectual da França no mundo", de Pierre Rivas, permitem ao leitor entrar em contato com questões que alimentam hoje o debate de ideias na França, abrindo espaço para que, neste século que se inicia, o contato entre a cultura brasileira e a cultura francesa prossiga profícuo em seus choques, encontros e equívocos, como apontam os instigantes ensaios que compõem o livro Cinco séculos de presença francesa no Brasil: invasões, missões, irrupções.

É doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (2003); professor de Literatura Francesa da FFLCH-USP. @ - faleiros@usp.br
Revista Estudos Avançados - USP