quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O que foi a Semana de Arte Moderna de 1922?


Gabi Portilho
Foi um evento de música, dança, poesia e artes plásticas que inaugurou um novo movimento cultural no Brasil: o Modernismo. Há exatos 90 anos, a elite cafeicultora paulista alugou o Teatro Municipal de São Paulo, pelo equivalente a R$ 20 mil, para receber um novo tipo de arte, fortemente influenciada pelas vanguardas europeias e que refletia o progresso e a industrialização que a cidade vivia naquele momento. Até então, o Rio era considerado a capital cultural do país. A elite acabou não entendendo completamente a proposta do evento, mas ele influenciou definitivamente os rumos culturais brasileiros. Mais de 40 anos depois, por exemplo, era possível perceber seus reflexos no Tropicalismo, proposto por Caetano Veloso e Gilberto Gil.
VISITA GUIADA
Viaje no tempo e passeie pela Semana de 22 com nosso folder especial:
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ARTISTAS CONVIDADOS
Oswald de andrade
Organizador do evento. Sua crítica ao compositor Carlos Gomes (O Guarani) e seu convite para que estudantes expressem sua “opinião” jogando tomates no palco certamente causarão controvérsia.
Anita Malfatti
Cada vez mais popular após as críticas do escritor Monteiro Lobato (que destruiu seus quadros a bengaladas!), ela desfiará todo seu expressionismo em 22 obras. Mário de Andrade é um de seus fãs.
Mário de andrade
Um dos idealizadores do evento, conduzirá a palestra A Escrava que Não É Isaura.Conheça sua proposta 
para o abrasileiramento
 da língua portuguesa
e a volta ao nativismo. Abaixo ao “passadismo”!
Manuel Bandeira
Embora esteja afastado dos palcos por conta de uma crise de tuberculose, seu poema “Os Sapos” será lido por Ronald de Carvalho e promete um soco no estômago dos escritores parnasianos!
Heitor Villa-Lobos
O compositor irá encantar o público com sua música clássica temperada com maxixe, samba e chorinhos. Nas palavras de Anita Malfatti, a mistura vai “abalar as paredes do velho Municipal”!

DESTAQUES DO EVENTO
Interação com o públIco
Fique à vontade para aplaudir ou vaiar. Para expressar sua opinião sobre quadros como Colombina, de Ferrignac, basta colar um bilhete atrás da tela. Haverá obras de arte acadêmica, bem ao gosto da burguesia, mas as novidades das vanguardas europeias desafiarão o consenso
IdeIas arejadas
A intenção é fundir influências do exterior e elementos brasileiros, buscando as raízes da nossa cultura indígena, africana e caipira. Mas, ao contrário dos ufanistas, há também um fascínio pelas máquinas e pela chegada do progresso, como retratado na obra Homens Trabalhando, da artista Zina Aita.
InfluêncIa duradoura
Espera-se que obras como Cabeça de Cristo, de Victor Brecheret, façam com que
a Semana tenha um longo impacto. Por exemplo: Tarsila do Amaral não participará, mas certamente será influenciada – ela e Oswald de Andrade até já estão discutindo um novo movimento, o Pau-Brasil.
PolêmIca no palco
Contemple as cores chocantes de O Homem Amarelo, de Anita Malfatti, e siga nesta vibração para a plateia do teatro. O poeta Menotti Del Picchia vai causar celeuma (e vaias?) com uma palestra sobre novos escritores. Villa-Lobos pretende confundir a plateia ao usar sapato em um pé e chinelo no outro. Nada de afronta: é só um calo inflamado!
Credito Márcia Camargos, historiadora e autora de A Semana de 22: Entre Vaias e Aplausos


Revista Mundo Estranho

Por que o burro virou símbolo da ignorância?


Ana Alice Vercesi
“A fama de ser um bicho com comportamento difícil e incapaz de aprender começou na Grécia antiga”, afirma Osvaldo Humberto Leonardi Ceschin, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humadas da USP.
Por volta de 600 a.C., o burro já era tratado em histórias como teimoso, bobo e ignorante. Em uma das fábulas de Esopo – narrativas orais sobre animais com características humanas –, o burro veste uma pele de leão e tenta assustar as pessoas, até que é pego pela raposa em um deslize. Posteriormente, essas histórias foram passadas para o papel e popularizadas por Fedro, no século 1, e pelo francês Jean de La Fontaine, no século 17.
Palavras associando o burro à estupidez e à ignorância começaram a aparecer no século 2: a expressão asinina cogitatio (“raciocínio de burro”, em latim) fazia parte da obra de Lucius Apuleius, autor de O Asno de Ouro, sobre um homem que vira um asno. “Na língua portuguesa, o termo ‘burrico’ surgiu no século 12”, explica Mário Eduardo Viaro, também da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
CONSULTORIA: Mário Eduardo Viaro e Osvaldo Humberto Leonardi Ceschin, ambos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP FONTE www.literature.org
Revista Mundo Estranho

“Aldeias do mal”


Morro da favela- Tarsila do Amaral

Governantes sempre associaram favelas ao crime e à falta de higiene

Romulo Costa Mattos

Em 5 de julho de 1909, o jornal Correio da Manhã escreveu sobre o Morro da Favela: “É o lugar onde reside a maior parte dos valentes da nossa terra, e que, exatamente por isso – por ser o esconderijo da gente disposta a matar, por qualquer motivo, ou, até mesmo, sem motivo algum –, não tem o menor respeito ao Código Penal nem à Polícia, que também, honra lhe seja feita, não vai lá, senão nos grandes dias do endemoninhado vilarejo”. 
Essa reportagem mostra que a percepção social da violência urbana nas favelas vem de muito tempo, assim como o estigma imposto aos seus habitantes. Pelo menos desde a década de 1900, os moradores das favelas são comumente vistos como grandes promotores da criminalidade na cidade do Rio de Janeiro. Ainda mais antiga é a idéia de que as moradias populares em geral seriam prejudiciais à ordem pública. 
Há projetos datados de 1855 que propunham a colocação de portões de ferro nos  cortiços, que deveriam ficar trancados a partir de certa hora. Mas foi nas últimas décadas do século XIX que a crise de habitação assumiu maiores proporções. Isto se deu em virtude das transformações desencadeadas pela decadência da cafeicultura no Vale do Paraíba, pela abolição da escravatura e pelo desenvolvimento do processo de industrialização – ainda que este último fosse incipiente. 
Nesse contexto, muitos ex-escravos e europeus – principalmente portugueses – acorreram para a cidade do Rio de Janeiro. O extraordinário crescimento populacional sobrecarregou  sua área central, que concentrava, havia décadas, as temidas habitações coletivas. A perseguição a essas moradias populares culminou na demolição, em 1893, do cortiço Cabeça de Porco, localizado próximo à região da Central do Brasil.

O prefeito Candido Barata Ribeiro (1843-1910) justificou o desalojamento de cerca de duas mil pessoas em nome da higiene pública. Os jornalistas foram além e festejaram o fim de um lugar que, segundo eles, abrigaria assassinos. Mas os interesses particulares não devem ser esquecidos, pois novos terrenos seriam abertos à exploração imobiliária.

       
Um grupo de ex-moradores do Cabeça de Porco conseguiu autorização para levar consigo ripas de madeira – muitos quartos ali se assemelhavam aos barracões das futuras favelas.

Caminharam então poucos metros até o Morro da Providência, onde levantaram novas moradias. Entre 1893 e 1894, soldados que combateram a Revolta da Armada obtiveram licença do governo para morar no Morro de Santo Antônio, no Centro. Começava assim a história das favelas no Rio de Janeiro.

Pouco tempo depois, em 1897, soldados retornados da Guerra de Canudos instalaram-se no já habitado Morro da Providência. No beligerante arraial baiano, a tropa do governo ficara na região de um morro chamado Favela, sendo esse o nome de uma planta resistente, que causava irritação no contato com a pele humana. Por abrigar pessoas que haviam tomado parte naquele conflito, o Morro da Providência foi popularmente batizado de Morro da Favela. O apelido pegou, e na década de 1920 as colinas tomadas por barracões e casebres passaram a ser conhecidas como favelas.

Já na década de 1900, os moradores das favelas eram comumente vistos como os grandes promotores da criminalidade no Rio de Janeiro

Nos primeiros anos, o Morro de Santo Antônio chamava mais a atenção dos poderes públicos por se localizar na área central da cidade. A prefeitura vez por outra demolia os barracos, que teimavam em reaparecer. O Morro da Favela ficava um pouco mais distante, na região portuária, que era tida como violenta e incivilizada devido a seu alto percentual de negros. Foi assim que, por um lado, a localização dessa colina deixou-a protegida das marretas municipais em um momento inicial. Por outro, contribuiu para que ela fosse considerada o território por excelência das “classes perigosas” – conceito esse que, na prática, colocava os pobres como perigosos.

  
Assim como os antigos cortiços, as favelas do início do século XX eram vistas como um problema de saúde pública e segurança. Mas o contexto no qual elas ganhavam notoriedade era outro. O Rio de Janeiro estava sendo construído como uma nova cidade, moderna, europeizada, capaz de ser o cartão-postal da recém-criada República. Contrariando esse ideal, as favelas passaram a ser vistas como outras cidades, corpos estranhos dentro da urbe formal.


As reformas urbanas do prefeito Francisco Pereira Passos (1836-1913) foram a maior realização daquela época. Entre 1902 e 1906, as principais ruas do Centro foram alargadas e novas artérias foram abertas, entre as quais a imponente Avenida Central. Quarteirões inteiros de cortiços foram destruídos. Quem não podia arcar com os custos do transporte e morar nos subúrbios teve de se virar para permanecer na valorizada área central. As habitações coletivas situadas nas suas imediações foram uma opção. Outra alternativa bastante aproveitada foram os seus morros.

     
A expansão das favelas durante a Reforma Passos transformou-as na principal representação de moradia popular, substituindo as habitações coletivas. Para jornalistas e escritores, a pobreza agora se encontraria ali. No fim da década de 1900, o Morro da Favela passou a ser considerado o lugar mais perigoso da capital, reforçando a má fama conquistada por seus moradores depois da participação na Revolta da Vacina, em 1904.


Na já citada edição de 5 de julho de 1909, o Correio da Manhã afirmava: “A Favela (...) é a aldeia do mal. Enfim, e por isso, por lhe parecer que essa gente não tem deveres nem direitos em face da lei, a polícia não cogita de vigilância sobre ela”. Na mesma reportagem, o morro foi chamado ainda de “aldeia da morte”.


Esse era o atalho que levava à negação da condição de cidadãos de seus moradores. Pelo menos desde o “bota-abaixo” promovido por Pereira Passos, existia a percepção de que essa colina seria também habitada pelos trabalhadores honestos. Mas a valoração positiva de seus habitantes só ganhou força nos anos 1920, quando as favelas tiveram sua expansão definitiva no cenário urbano.


Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), foi se  consolidando uma certa descrença no ideal de civilização que a Europa até então representava, com o surgimento de intelectuais empenhados em definir os traços de nossa nacionalidade. Ao mesmo tempo, artistas europeus começaram a visitar o Morro da Favela para conhecer a cultura proveniente dos povos africanos, em moda no Velho Continente, no que foram acompanhados pelos brasileiros. Em 1924, o modernista Oswald de Andrade escreveu em seu “Manifesto da poesia pau-brasil”: “Os casebres de açafrão e ocre nos verdes da Favela, sob o azul cristalino, são fatos estéticos”. 


Apesar de os morros serem considerados àquela altura símbolos nacionais – principalmente o da Favela –, seus moradores continuavam a ser relacionados à violência urbana. Segundo o Jornal do Brasil de 19 de maio de 1926, “a Favela é o Rio, mas o Rio integral, sincero, o Rio tal como Deus o fez. E tanto mais pitoresco, para ser visto, quando é lá que vimos um pouco da alma turbulenta, desordeira e, à sua maneira, épica da cidade”.


Ainda na década de 1920, as favelas foram incluídas pela primeira vez em um plano para o Rio de Janeiro. Com a chegada do urbanista francês Alfred Agache (1875-1959), em 1927, o fim das favelas foi oficialmente arquitetado. O prefeito Antônio Prado Júnior (1880-1955) o convidara para elaborar um projeto que abordasse a cidade como um todo, um sistema, um corpo integrado. Esse pensamento sobre seu espaço diferia das meras ações pontuais de embelezamento e higiene de outrora. Agache justificou a destruição das favelas “não só sob o ponto de vista da ordem social e da segurança, como sob o ponto de vista da higiene geral da cidade, sem falar da estética”.


Em 1927, quando Alfred Agache afirmou que as favelas teriam de ser erradicadas, o compositor José Barbosa da Silva, o Sinhô, freqüentador e defensor do Morro da Favela, escreveu “A Favela vai abaixo”. Os primeiros versos citavam as casinhas de madeira, cada vez mais retratadas por intelectuais e artistas: “Minha cabrocha/ A Favela vai abaixo/ Quantas saudades tu terás deste torrão/ Da casinha pequenina de madeira/ Que nos enche de carinho o coração”. 
Ao contrário do “Rei do Samba”, Agache se referia às favelas como “lepras” e “chagas”. O elevado custo financeiro e a Revolução de 1930, que levou Getulio Vargas ao poder, contribuíram, porém, para que seu projeto fosse arquivado. O governo de Getulio deixou as favelas em paz por algum tempo e chegou a defender, em determinadas instâncias, os seus moradores contra as ações dos proprietários de terrenos. Isso, decerto, reforçava a imagem do presidente como “pai dos pobres”.


O Código de Obras da cidade, de 1937, mostrou que essa situação era provisória. Entre seus objetivos estava a eliminação das favelas, em cujas casas era vedado qualquer tipo de melhoramento. Essa foi a primeira política formal de governo referente às favelas. Na Primeira República, a fiscalização e o conhecimento delas ficara a cargo da grande imprensa, que denunciava o surgimento de barracões e casebres, apontava para o adensamento populacional nos morros e pedia providências a esse respeito. Agora, os poderes públicos entravam em cena, para melhor conhecer as favelas e controlá-las. 


Relatório elaborado para a prefeitura pelo médico Victor Tavares de Moura – “Esboço de um plano para o estudo e a  solução das favelas no Rio de Janeiro”, 1940 –  é ilustrativo de como os morros eram vistos como um problema moral: “A vida lá em cima é tudo quanto há de mais pernicioso. Imperam os jogos de baralho (...) e o samba é diversão irrigada a álcool. Os barracões (...) abrigam, cada um, mais de uma dezena de indivíduos (...) em perigosa promiscuidade”. O médico defendia medidas como o controle da entrada de indivíduos de baixa condição social no Rio de Janeiro e o retorno deles  para seus lugares de origem. 

  
Outro trabalho destinado ao conhecimento das favelas, no início da década de 1940, foi o da assistente social Maria Hortência do Nascimento e Silva, que critica a valorização das favelas entre os intelectuais entusiastas da chamada cultura popular: “enquanto alguns se compenetram da gravidade do problema e procuram remediar a situação desses desgraçados, os cronistas se encantam pelo morro e o enaltecem (...) Será que do malandro querem fazer uma personalidade, e do samba um hino nacional?”.


A resposta era: sim. No plano cultural, Getulio Vargas anunciara o aproveitamento das potencialidades brasileiras, que tinha relação com a política econômica do país. Em um livro de exaltação ao Estado Novo, o jornalista Henrique Dias da Cruz havia explicado: “Não é mais, pois, o malandro, homem da desordem, que agride, que mata. A navalha e o revólver foram substituídos pelo pandeiro, pelo violão, pelo cavaquinho”.


 Enquanto o médico e a assistente social condenavam o estilo de vida nas favelas, o jornalista dizia que a vadiagem e o crime seriam coisas do passado nesses espaços. Essa diferença de opiniões relacionava-se à ocupação profissional de cada um. Enquanto os dois primeiros eram mais pragmáticos e justificavam a intervenção do Estado nas favelas, o último atuava no plano simbólico e tentava dar uma imagem positiva ao Estado Novo.


Os três autores tinham em comum a idéia da necessidade de uma assistência educacional, que resolvesse o suposto problema moral dos moradores das favelas. O jornalista revelou a receita do regime: “ao invés de polícia, assistência moral; ao invés de cadeia, escola, hospital, trabalho”. Mas a onda repressiva que acompanhou a ditadura Vargas atingiu fortemente os tais malandros e contraventores – que a percepção social insistia em localizar nos barracões.

  
Mais ou menos na época desses trabalhos, o Estado Novo se ocupava da primeira política habitacional voltada para as camadas pobres da população. Entre 1942 e 1943, foram inaugurados parques proletários na Gávea, no Caju e no Leblon, que receberam entre sete e oito mil pessoas de quatro favelas. Os mecanismos de controle nesses locais eram notáveis. Além da exigência de atestado de bons antecedentes,  seus moradores eram identificados por meio de cartões. Apesar de os parques proletários terem sido concebidos como provisórios, sua população só foi expulsa décadas mais tarde, quando as áreas ao seu redor se valorizaram no mercado imobiliário.

 
Na década de 1940, os favelados passaram a despertar um novo tipo de medo: o de seu possível envolvimento com o comunismo

Nessa época, os moradores de favelas despertavam um novo tipo de medo, que era o de seu possível envolvimento com o comunismo. A prefeitura e a Arquidiocese do Rio de Janeiro haviam se articulado em 1946 para criar a Fundação Leão XIII e subir os morros antes que deles descessem os “comunistas”. A organização dos habitantes das favelas estava sendo favorecida pela restauração da ordem democrática na mesma época em que o Partido Comunista Brasileiro aparecia como a terceira força política na capital.

O aprofundamento da relação entre as favelas e a política nos anos 1950 levou a Igreja e o governo municipal a criarem outras instituições para atuar nesses espaços – respectivamente, a Cruzada São Sebastião (1955), que urbanizou favelas e construiu o conjunto habitacional conhecido como Cruzada, no Leblon, e o Serviço Especial de Recuperação das Favelas e Habitações Anti-higiênicas (1956). Datam ainda dessa época o Primeiro Congresso dos Favelados do Rio de Janeiro e a Coligação dos Trabalhadores Favelados do Distrito Federal – ambos de 1957. Na mesma década, a população das favelas cresceu 7%, enquanto que a do restante da cidade aumentou 2%.

       
Eleito primeiro governador do Estado da Guanabara, entre 1960 e 1965, Carlos Lacerda deu continuação à febre viária iniciada na década anterior, construindo viadutos e avenidas. Dentro do quadro de renovação urbana da metrópole, surgiu o programa de remoção de favelas. O governador, que, ainda como jornalista do Correio da Manhã, havia promovido em 1948 uma vigorosa campanha por sua extinção (a “Batalha do Rio”), iniciou a transferência de suas populações para lugares distantes da área central.


As remoções de favelas assumiram proporções gigantescas a partir de 1968. O governo federal criou a Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio, que atuou até 1973. Esse órgão unificou a política sobre as favelas com o objetivo de extingui-las – o que se relacionava à capacidade de articulação dos chamados favelados. A Federação das Associações das Favelas do Estado da Guanabara fora criada em 1962, no contexto da transferência compulsória de moradores para as vilas populares. Era dessa época o samba “Opinião” (1963), de Zé Kéti: “Podem me prender/ Podem me bater/ Podem até/ Deixar-me sem comer/ Que eu não mudo de opinião/ Daqui do morro/ Eu não saio não”. Entre 1962 e 1974, foram 80 favelas atingidas, 26.193 barracos destruídos e 139.218 habitantes removidos. Em anos de ditadura militar, líderes favelados foram torturados e assassinados.


Vitoriosa principalmente na imprensa escrita e nos telejornais, a associação entre violência e favelas se explica pela simplificada noção de que pobreza gera violência, quando, na verdade, esta tem origem na desigualdade social, na dinâmica de produção de riqueza. O que ocorre nas favelas é apenas a parte mais visível de um processo. Se as estatísticas insistem em localizar a violência nas favelas, apontando para o alto índice de morte de seus jovens, cabe perguntar: por que os seus moradores são vistos como os produtores do crime e não como os que possivelmente mais sofrem com ele na cidade? Talvez a tradição de pensamento sobre as favelas – como um problema de segurança, higiene e moral – ajude a responder. 

Romulo Costa Mattos é doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor da dissertação “A ‘Aldeia do Mal’: o Morro da Favela e a construção social das favelas durante a Primeira República” (UFF, 2004).
Revista de História da Biblioteca Nacional

sábado, 15 de setembro de 2012

O filósofo e o nazismo

Contrariando a onda liberal da época, Marcuse defendia que totalitarismo e capitalismo não são termos contraditórios, pois o capitalismo é um sistema que regulamenta a totalidade das relações sociais
por Raffaele Laudani
Num artigo de 1976, Herbert Marcuse anunciava o advento de uma nova ordem autoritária que havia encontrado nos Estados Unidos sua forma mais evoluída. Esta nova ordem é o que hoje é chamado de globalização: um sistema capaz de utilizar sabiamente sejam "as formas tradicionais da repressão política exercidas pelas forças da ordem" — como a violência, as sanções econômicas e a discriminação —, seja "um aparelho de doutrinação técnica e ideológica em constante aperfeiçoamento" — como os meios de comunicação, a escola etc, [1] formas de controle social que o filósofo alemão considerava típicos do mundo unidimensional do período pós-Segunda Guerra Mundial e que a nova ordem neoliberal tratava de intensificar. [2] É menos conhecido que — em dois ensaios datando de 1942, até hoje inéditos: State and Individual under National Socialism (O Estado e o Indivíduo sob o Nacional-Socialismo) e The New German Mentality (A Nova Mentalidade Alemã) [3] — Marcuse observou as mesmas características no regime nazista.
Desenvolvida nos anos de sua colaboração com os serviços secretos norte-americanos, a reflexão de Marcuse se inscreve no quadro do debate, então bastante animado, sobre a natureza e o sentido do regime nazista. Debate para o qual contribuíram amplamente intelectuais de origem judia recém-chegados aos Estados Unidos. O filósofo alemão era então um dos principais representantes da "Escola de Frankfurt", uma das principais correntes marxistas heterodoxas que não se identificavam com a linha oficial da 3ª Internacional — para a qual o nazismo não passava de uma "ditadura aberta dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro". [4]
Debate sobre o totalitarismo
No interior do grupo de Frankfurt existiam, porém, posições divergentes. Sustentada por Max Horkheimer e Friedrich Pollock, uma primeira linha de interpretação descrevia o nazismo como uma forma de capitalismo de Estado, uma nova ordem que sucedia ao capitalismo no lugar do socialismo, invertendo a relação tradicional de dependência da política em relação à economia (um raciocínio que levaria Horkheimer, depois da guerra, a substituir a categoria marxista de "classe" pela de "racket"). A segunda, sustentada por Franz Neumann, Arkadij Gurland e Otto Kirchheimer, e mais conforme ao marxismo, preferia descrever o regime nazista como uma forma de "capitalismo monopolista totalitário", sublinhando seu caráter de continuidade com a estrutura hierárquica da ordem capitalista. [5]
Igualmente emigrados para os Estados Unidos, outros intelectuais alemães, como Ernst Fraenkel, viam no nazismo a coexistência de um "Estado normativo" (necessário para garantir o funcionamento de uma economia que permanecia capitalista) e de um "Estado discricionário" (que operava em torno de um quadro jurídico insignificante, com base num puro critério de "oportunidade política" visando, em primeiro lugar, aos "inimigos" do regime) [6] Estas reflexões baseiam-se, em seguida, no debate sobre o totalitarismo, para o qual contribuiu de maneira fundamental uma outra exilada alemã de origem judia, Hannah Arendt.
A racionalidade da eficiência e da precisão
Em sua obra, o campo de extermínio, como lugar de suspensão do direito e como lugar de desestruturação e de reconstrução do humano, torna-se a metáfora emblemática de uma forma política inédita, mas profundamente enraizada no construtivismo racionalista moderno, convencido que tudo pode ser modificado pela ideologia, compreendendo aí a "condição humana". [7]
Em relação a estas contribuições, a posição de Marcuse inscreve-se transversalmente à perspectiva marxista, embora com raízes nela. Contrariamente à onda liberal, [8] totalitarismo e capitalismo não são, para ele, termos contraditórios, pois o capitalismo é um sistema que regulamenta a totalidade das relações sociais. Ao longo do século XX, esse caráter inveterado do capital aparece manifesto, e o sistema torna-se, segundo Marcuse, totalitário. As palavras "monopolista" e "totalitário" (e, mais tarde, "unidimensional") são assim quase sinônimos, e representam as duas faces de um mesmo fenômeno, no qual "a sociedade em sua totalidade se levanta contra os interesses particulares" através de uma nova forma de racionalidade: a racionalidade técnica, baseada sobre os critérios da eficiência e da precisão.
Uma forma de tecnocracia
A expressão "totalitarismo" é para Marcuse, portanto, um conceito genérico que serve para explicar a nova tendência do capitalismo como sistema, tendência essa que se manifesta sob formas históricas diversas, em personificações da totalidade (nazi-fascismo, comunismo soviético e Estado de bem-estar social) que, não obstante sua especificidade, são frutos do desenvolvimento do capital monopolista.
O estudo do modelo nacional-socialista representa, para Marcuse, a primeira tentativa de analisar estas formas históricas da totalidade, às quais sucederão as contribuições mais conhecidas sobre o marxismo soviético e sobre as democracias liberais ocidentais. [9] O filósofo alemão visa em particular ao repúdio das teses opostas, mas simétricas, que descrevem o nazismo simplesmente como uma revolução ou como uma restauração da ordem alemã tradicional. O regime nazista não modificou as relações de produção, nem, muito menos, ultrapassou a contradição fundamental entre capital e trabalho. Não obstante isso, o Estado nazista tem pouco em comum com a estrutura do velho Reich e produziu uma inegável modernização técnica do país. O nazismo — explica Marcuse — é uma forma de tecnocracia: "As considerações técnicas da eficiência imperialista e da racionalidade extrema substituem os critérios tradicionais de rentabilidade e bem-estar geral". [10]
Opressão totalitária e penúria
O reino do terror, na Alemanha nazista, não foi sustentado exclusivamente pela força bruta, mas também "pela manipulação engenhosa do poder inerente à tecnologia: a intensificação do trabalho, a propaganda, a formação dos jovens e dos trabalhadores, a organização da burocracia governamental, industrial e de partido — todos instrumentos de terror cotidiano do nazismo — se conformam às diretrizes da máxima eficiência tecnológica". [11] A realidade nacional-socialista é aquela de um Estado-máquina que parece se mover em virtude de sua própria necessidade, a da expansão econômica e da produção de massa. Com o advento da racionalidade tecnológica, o livre sujeito econômico torna-se "objeto de uma organização e coordenação em grande escala e a realização das capacidades individuais transforma-se em eficiência padronizada".
"A racionalidade tecnológica — explica Marcuse — é, ao mesmo tempo, a padronização e a concentração monopolista." A tecnologia é "um modo de produção", "uma maneira de organizar e de perpetuar (ou transformar) as relações sociais, uma manifestação do pensamento e dos hábitos dominantes, um instrumento para o controle e a dominação". O nacional-socialismo, neste sentido, representa "um exemplo evidente das modalidades com as quais uma economia altamente racionalizada e mecanizada — e que possui o máximo de eficiência produtiva — pode operar no interesse da opressão totalitária e perpetuar um regime de penúria". [12]
A "mobilização total"
O sistema nacional-socialista é, portanto, uma resposta capitalista e autoritária às transformações econômicas e sociais que ocorreram ao longo do século XX. Ao comentar um discurso de Adolf Hitler aos industriais, de 1932, Marcuse destaca como os interesses da grande indústria são ainda aqueles em torno dos quais é construída a organização econômica do III Reich. Esses interesses, no entanto, se sujeitam à nova fase monopolista de acumulação de capital que, para sustentar o crescimento da competição no mercado mundial, impõe uma "transformação das relações econômicas em relações políticas". A dominação e a expansão políticas devem não somente suplementar, mas ultrapassar a dominação e a expansão econômicas.
O Estado torna-se assim o agente executivo da economia, que organiza e coordena a "mobilização total" da nação em direção ao objetivo imperativo da expansão econômica. A conseqüência necessária desta transformação é a instauração de um sistema abertamente autoritário: o nazismo "tende a abolir qualquer separação entre Estado e sociedade através da transferência das funções públicas aos grupos sociais atualmente no poder". O sistema tende, em outras palavras, "à autonomia do governo direto e imediato dos grupos sociais dominantes sobre o resto da população".
Um instrumento para a opressão
O fim da separação entre esfera pública e privada, típico da era liberal do capitalismo, repercute no plano individual com a supressão da privacidade e a abolição sub-reptícia de tabus tradicionais sobre o sexo e a moral cristã. O efeito disso não é, porém, a liberação das faculdades individuais, mas seu consumo pela massa, o que intensifica a fragmentação e o isolamento recíproco. Pois a massa não é unida por uma consciência e interesse comuns, mas é composta de indivíduos "perseguindo cada um seus próprios interesses primitivos, que são unificados pela redução deste interesse ao mero instinto de auto-conservação, idêntico para cada um deles". A perda da independência necessária à mobilização integral da força de trabalho é recompensada por uma nova segurança econômica e uma nova liberdade de costumes. "O nacional-socialismo — escreve Marcuse — transforma o sujeito livre em sujeito economicamente estável; a realidade da segurança econômica eclipsa o perigoso ideal da liberdade."
Além do recurso à mitologia ancestral e violenta, consideradas por Marcuse como aspectos superficiais e ainda imperfeitos do sistema, o nazismo compartilha os traços fundamentais da nova ordem descrita em sua obra O Homem unidimensional ("uma ordem que conseguiu coordenar também as zonas escondidas mais perigosas da sociedade individualista") e, graças ao bem-estar assegurado pelo pleno emprego, "induz cada indivíduo a apreciar e a perpetuar um mundo que se serve dele como de um instrumento para a opressão".
Um aparente conflito de opiniões
Competitividade, eficiência, segurança são elementos que funcionam como palavras de ordem também para a nova ordem globalitária. [13] O conteúdo dado a estes conceitos é, porém, diferente: se, para Marcuse, a abolição da distinção entre Estado e sociedade — requerida pelas exigências de eficiência e competitividade mundiais — se manifestava pela saída da política de seus domínios tradicionais — via a intervenção do Estado na economia — hoje estas mesmas exigências se manifestam de maneira oposta, pelo recuo da esfera pública em proveito dos mercados, que ocupam, sem contestação, o campo das decisões políticas. O tema da segurança também mudou de sentido: com a difusão do empobrecimento maciço mesmo nas sociedades tecnologicamente avançadas, a segurança perde seu significado econômico e retoma seu sentido policial de "tolerância zero", de enclausuramento e reclusão dos homens e mulheres que sitiam a fortaleza empobrecida.
Um sistema repressivo que perdeu, portanto, até a última justificativa racional de sua perpetuação, que abre espaço à crítica e talvez a perspectivas de uma verdadeira renovação. Mas que, do mesmo modo, parece mais forte e incontestável do que nunca. O sucesso dos adversários do neoliberalismo dependerá de sua capacidade em resolver este aparente conflito de opiniões entre força inusitada e ausência de legitimação, sem cair em uma reprodução simplista das receitas do passado.
Contra-educação, a arma principal
Como dizia o próprio Herbert Marcuse: "Contra o espectro do fascismo à americana, a esquerda, enfraquecida por suas divisões, sem organização eficaz, trava um combate desigual. Sua arma principal permanece sendo a educação política — a contr

[1] Ler, de Herbert Marcuse, "Un nouvel ordre", Le Monde Diplomatique, julho de 1976.
[2] Ler, de Herbert Marcuse, O Homem unidimensional. Ensaio sobre a ideologia da sociedade industrial avançada. Sobre Marcuse, ler também, de Douglas Kellner, Herbert Marcuse and the Crisis of Marxism, ed. University of California Press, Berkeley, 1984.
[3] Os dois ensaios foram publicados pela primeira vez em Herbert Marcuse, Technology, War and Fascism, de Douglas Kellner, ed. Routledge, Londres-New York, 1998.
[4] Segundo as palavras empregadas pelo dirigente comunista George Dimitrov no VII Congresso do Komintern.
[5] Ler, de Rolf Wiggershaus, Die Frankfurter Schule, München-Vien, ed. Carl Hanser Verlag, 1986.
[6] Ler, de Ernst Fraenkel, Der Doppelstaat, Frankfurt am Main-Köln, ed. Europäische Verlagsanstalt, 1974.
[7] Ler, de Hannah Arendt, The Origins of Totalitarianism, New York, ed. Hartcourt Brace, 1966.
[8] Ler, de Carl Friedrich e Zbignew Brzezinski, Totalitarian Dictatorship and Autocracy, ed. Harvard University Press, 1956. Ler também, de Raymond Aron, Etats démocratiques et Etats totalitaires, em "Commentaire", 24, 1983-1984.
[9] Conforme, respectivamente, O Marxismo soviético, e O Homem unidimensional.
[10] Ler, de Herbert Marcuse, Some Social Implications of Modern Technology, em "Studies in Philosophy and Social Science", 9, 3, New York, 1941, pp. 414-39.
[11] The New German Mentality, op. cit.
[12] Some Social Implication... , op. cit.
[13] Ler, de Ignacio Ramonet, "Regimes globalitaires", Le Monde Diplomatique, janeiro de 1997, e Géopolitique du Chaos, ed. Galilée, Paris, 1998.
Le Monde Diplomatique Brasil

Assim se colonizou a África negra


No século 16, as invasões portuguesa e marroquina iniciaram a desestruturação dos reinos e impérios ao sul do Saara — onde havia cidades de mais de 100 mil habitantes. Após três séculos de guerras, e escravidão ocidental e árabe, a população estaria reduzida a um quarto da original e as sociedades, arrasadas
por Louise Marie Diop-Maes
No século 16, na maior parte das regiões da África subsaariana, existiam cidades de tamanho considerável para a época (de 60 mil a 140 mil habitantes ou mais), aldeias grandes (de mil a 10 mil habitantes), parte de reinos e impérios notavelmente organizados, territórios de habitat disperso denso. É isso que revelam os vestígios e escavações arqueológicas, bem como as fontes escritas, tanto externas (árabes e européias, anteriores a meados do século 17) como internas (autóctones, escritas em árabe, língua da religião, ou no latim da Europa). A agricultura, criação de animais, caça, pesca, artesanato muito diversificado (tecidos, metais, cerâmica etc.), navegação fluvial e lacustre, comércio local e distante, com moedas específicas, eram bem desenvolvidos e ativos.
O nível intelectual e espiritual era análogo ao do Norte da África na mesma época. O grande viajante árabe do século 14, Ibn Battuta, louva a segurança e a justiça encontrada no império do Mali. Antes da utilização de armas de fogo, o comércio árabe permanecia secundário em relação à atividade econômica e ao volume da população. Leão, o Africano (início do século 16), menciona que o rei de Bornu (região chadiana) organizava apenas uma expedição por ano para capturar escravos [1].
A partir do século 16, a situação modifica-se radicalmente. Os portugueses penetram ao sul da foz do rio Congo, conquistam Angola, destróem os principais portos da costa oriental e alcançam o atual território de Moçambique. Os marroquinos atacam o império songai, que resiste durante nove anos. Os agressores dispõem de armas de fogo; os subsaarianos, não. Milhares de habitantes são mortos ou capturados e condenados à escravidão. Os vencedores se apossam de tudo: homens, animais, provisões, objetos preciosos e o que mais possam pegar.
Reinos e impérios são pulverizados em principados ? levados a guerrear com freqüência cada vez maior, a fim de ter prisioneiros que possam ser trocados, principalmente por fuzis, indispensáveis na defesa e no ataque. Populações são deslocadas ? provocando novos choques, campos de refugiados, a propagação de um estado de guerra latente até o coração do continente. As investidas militares multiplicam-se, ao ponto de atingir, no nordeste da África Central do início do século 19, o número de 80 por ano, segundo o erudito tunisiano Mohamed el Tounsy, que viajou por Darfur e Ouaddaï (atual Chade) nessa época [2]. A porcentagem de cativos em relação ao conjunto da população aumenta continuamente, entre o século 17 e o fim do 19. "Distritos outrora densamente povoados foram reconquistados pelo mato" ou pela floresta [3].
A partir das invasões portuguesa e marroquina, 
toda a estrutura social entra em colapso

O tecido sócio-econômico e político-administrativo, que fora constituído aos poucos, se corrompe e arruína inteiramente. Nos locais onde o cultivo de alimentos e a obtenção de água são difíceis, as pessoas vêem-se, com freqüência, reduzidas à auto-subsistência. Uma regressão enorme ocorre em todos os domínios. O destino dos cativos se agrava. Uma nova categoria social nociva emerge: a dos agentes comerciais, dos encarregados de caravanas, dos intérpretes, dos intermediários, dos abastecedores ? os "colaboracionistas" da época, enfim. Alguns príncipes tentam, em vão, se opor a esse comércio cada vez maior de seres humanos. Mas o rei de Portugal responde negativamente às cartas de protesto de Alfonso, o rei do Congo — convertido ao cristianismo. Um de seus sucessores é reduzido ao silêncio pelas armas. O mesmo em Angola.
O posto de comércio francês no Senegal fornece armas aos mouros para que ataquem o damel [4], que não autoriza a passagem das caravanas de escravos. É portanto a demanda externa que provoca uma enorme disseminação e proliferação da escravidão na África negra.
No começo, os reis entregavam apenas os condenados à morte. Mas os portugueses desejam efetivos mais volumosos, que eles próprios se encarregam de capturar, atacando sem qualquer outro pretexto. De 1575 a 1580, Dias Novais, primeiro governador de Angola, expedia cativos a um ritmo de 12 mil por ano em média [5]. É duas vezes mais, só partindo de Angola, que todo o tráfico transaariano na mesma época, se tomarmos como referência, por exemplo, os números colhidos pelo historiador norte-americano Ralph Austen.
No século 17 e, principalmente, no 18, a maior parte dos armadores europeus — sobretudo os holandeses, ingleses e franceses — dedica-se a tal tráfico marítimo ultra-lucrativo. Na segunda metade do século 18, atingem-se números extraordinários: exceto nos anos de guerra entre franceses e ingleses, centenas de navios embarcam de 150 mil a 190 mil cativos por ano [6]. A insegurança generalizada e crescente multiplica a penúria, fome, doenças locais e, pior de tudo, doenças trazidas de fora — particularmente, a varíola. As endemias se instalam e as epidemias se alastram.
Guerras, tráfico de escravos, queda da natalidade: um enorme déficit demográfico reduz a um quarto a população

Surge um enorme déficit demográfico. Ele é devido, em primeiro lugar, a todos os que morreram por causa dos ataques e durante as transferências do interior para os pontos de partida e os entrepostos; aos que se suicidaram e aos revoltosos executados no momento do embarque; aos óbitos resultantes da multiplicação das investidas e das guerras internas provocadas pela desarticulação de entidades políticas, pela fuga das populações, pela vontade cada vez maior de fazer prisioneiros; aos mortos pela fome (após pilhagem de colheitas e estoques) e por doenças de todo tipo; aos que padecem devido à introdução de armas de fogo e álcool adulterado, ao retrocesso da higiene e dos conhecimentos adquiridos.
A todos esses mortos somam-se os cativos e cativas arrancados do subcontinente. O próprio número de nascimentos entra em queda, devido à desarticulação da sociedade. Como durante a Guerra dos Cem Anos, que levou a França a perder metade de sua população, o decréscimo se fez de maneira irregular, variando conforme a região. Acentua-se fortemente a partir do fim do século 17. De meados do século 18 em diante, o decrescimento global é maciço e rápido.
É possível avaliar esse decrescimento? Para medir os efeitos demográficos da Guerra dos Cem Anos na França, comparamos o número de residências existente antes da guerra com o número contabilizado depois. Na África, tanto quanto na Índia, não dispomos de registros de batismos e outros, mas sabemos, a partir dos viajantes e exploradores do século 19, que, na parte ocidental, as maiores aglomerações não contavam com mais de 30 mil a 40 mil habitantes. Eram, portanto, cerca de quatro vezes menores do que as maiores cidades do século 16.
Segundo os mesmos testemunhos, pode-se observar que a diferença era ainda maior entre a população rural ou entre o número de combatentes que um príncipe ou um líder guerreiro podia arregimentar. Será a relação aproximada de 4 para 1, observada na África Ocidental, representativa da diminuição do conjunto da população africana negra entre os séculos 16 e 19? Do cabo das Palmas [7] ao sul de Angola, as perdas foram ainda mais elevadas. Gwato (Ughoton), o porto de Benin, contava 2 mil residências quando os portugueses lá chegaram e não mais que 20 ou 30 quando os exploradores do século 19 apareceram [8]. O historiador norte-americano William G. Randles mostra que a população de Angola havia igualmente se reduzido em proporções imensas [9]. Por outro lado, as regiões do Chade, no interior, permaneceram bastante povoadas até cerca de 1890 — com cidades de 3 mil habitantes em 1878.
A mesma destruição da Guerra dos Cem Anos na Europa, 
porém por mais de três séculos...

No atual Sudão, o despovoamento começa com a dominação escravista do paxá egípcio Mohammed Ali, em 1820. Na África Oriental, os planaltos elevados, como em Ruanda e Burundi, permanecem densamente povoados, em torno de 100 habitantes por quilômetro quadrado, contrariamente ao que se deu na região do lago Niassa. Na África do Sul, a partir da primeira metade do século 19, a ação dos ingleses se soma à dos bôeres [10] para dizimar as populações autóctones. No conjunto, parece razoável considerar que a população da África negra era, no século 19, três a quatro vezes menor do que no século 16.
Mas será possível saber o tamanho da população da África negra perto de meados do século 19? A conquista colonial (artilharia contra fuzis de tráfico), o trabalho forçado multiforme e generalizado, a repressão das numerosas revoltas por meio do ferro e do fogo, a subalimentação, as diversas doenças locais e, de novo, as doenças importadas e a continuação do tráfico oriental reduziram ainda mais a população que baixara para quase um terço, já em 1930. Nessa época, medidas administrativas e sanitárias propiciaram a retomada do crescimento demográfico, que foi cada vez maior.
Essa avaliação foi possível porque, com a presença européia no interior dos territórios, certos dados estatísticos foram acrescentados às fontes narrativas [11]. Em 1948-1949, um recenseamento geral e coordenado foi efetuado em toda a África subsaariana. Após a correção por falta de declaração, a população foi estimada em, aproximadamente, 140 a 145 milhões de pessoas. Pode-se supor que, em 1930, a população somava de 130 a 135 milhões de indivíduos. Esses representavam, então, dois terços da população aproximada das décadas de 1870-1890 — cerca de 200 milhões. Segundo o resultado de minhas pesquisas, a população era da ordem de pelo menos 600 milhões (uma média de 30 habitantes por km2) no século 16 . Os números antigos de 30 a 100 milhões são totalmente imaginários, como bem o mostrou Daniel Noin, ex-presidente da Comissão de População da União Geográfica International (IGU, segundo as iniciais em inglês) [12].
Entre meados do século 16 e 19, a população subsaariana decaiu em cerca de 400 milhões. Desse total, a porcentagem dos que foram deportados do litoral e do Sahel é impossível de precisar, em função do volume do contrabando e do número muito elevado de clandestinos, antes e depois da proibição do tráfico. Segundo diversas fontes e pesquisas, os números oficiais para o tráfico europeu são, na realidade, o dobro [13]. As estimativas do tráfico árabe são também aleatórias. Para fornecer uma ordem de grandeza, digamos que o número, para os dois tráficos somados, deva se situar entre 25 e 40 milhões. Continua ainda um tanto discutível, mas não resta dúvida que as estimativas frágeis não dão conta da enormidade das dissimulações. Cerca de 90% da perda de população deveram-se a mortes ocorridas na própria África. Isso se explica pela situação de grave insegurança no conjunto do território, que persistiu por quatro séculos, resultado dos efeitos destrutivos, diretos e indiretos, de dois tráficos simultâneos, cada vez mais intensos.
Uma Guerra dos Cem Anos que durou três séculos, com as armas da Guerra dos Trinta Anos, e depois as dos séculos seguintes. A conquista e a ocupaç
Louise Marie Diop-Maes é doutora em geografia humana, autora de Afrique noire, démographie, sol et histoire (Dakar-Paris, Présence Africaine/Khepera, 1996).

[1] Jean-Léon l?Africaine, Description de l?Afrique, Paris, Adrien-Maisonneuve, 1956.
[2] Pierre Kalck, Histoire de la République centrafricaine, Paris, Berger Levrault, 1995.
[3] Charles Becker, "Les effets démographiques de la traite des esclaves en Senegambie", em De la traite de l?esclavage, actes du Colloque de Nantes, t. 2, Nantes-Paris, CRHMA e SFHOM, 1988.
[4] Título dado aos soberanos animistas do reino de Cayor (Senegal).
[5] William G. Randles, De la traite à la colonisation: les Portugais en Angola, em Annales ESC, 1969.
[6] Idem.
[7] Localizado na fronteira entre o que são hoje a Libéria e a Costa do Marfim, margem Norte do Golfo da Guiné (Nota da edição brasileira)
[8] Raymond Mauny, Les siècles obscurs de l?Afrique, Paris, Fayard, 1970
[9] Charles Becker, op. cit.
[10] Colonizadores holandeses (e franceses).
[11] Wiliam Randles, op. cit.
[12] Idem.
[13] Daniel Noin, La population de l?Afrique subsaharienne, Éditions Unesco, 1999.
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Le Monde Diplomatique Brasil

A complexa gênese do povo judeu

Descobertas arqueológicas e etnográficas recentes revelam: a idéia de que os judeus seriam descendentes diretos de Moisés, Davi e Salomão é uma farsa ideológica. Como tantos outros povos, eles formaram-se num processo histórico rico e contraditório, que envolve múltiplas etnias e não cabe na descrição religiosa e fundamentalista que ainda prevalece
por Shlomo Sand
Qualquer israelense sabe que o povo judeu existe desde a entrega da Torá [1]no monte Sinai e se considera seu descendente direto e exclusivo. Todos estão convencidos de que os judeus saíram do Egito e fixaram-se na Terra Prometida, onde edificaram o glorioso reino de Davi e Salomão, posteriormente dividido entre Judéia e Israel. E ninguém ignora o fato de que esse povo conheceu o exílio em duas ocasiões: depois da destruição do Primeiro Templo, no século 6 a.C., e após o fim do Segundo Templo, em 70 d.C.
Foram quase 2 mil anos de errância desde então. A tribulação levou-os ao Iêmen, ao Marrocos, à Espanha, à Alemanha, à Polônia e até aos confins da Rússia. Felizmente, eles sempre conseguiram preservar os laços de sangue entre as comunidades, tão distantes umas das outras, e mantiveram sua unicidade.
As condições para o retorno à antiga pátria amadureceram apenas no final do século 19. O genocídio nazista, porém, impediu que milhões de judeus repovoassem naturalmente Eretz Israel, a terra de Israel, um sonho de quase vinte séculos.
Virgem, a Palestina esperou que seu povo original regressasse para florescer novamente. A região pertencia aos judeus, e não àquela minoria desprovida de história que chegou lá por acaso. Por isso, as guerras realizadas a partir de 1948 pelo povo errante para recuperar a posse de sua terra foram justas. A oposição da população local é que era criminosa.
De onde vem essa interpretação da história judaica, amplamente difundida e resumida acima?
Trata-se de uma obra do século 19, feita por talentosos reconstrutores do passado, cuja imaginação fértil inventou, sobre a base de pedaços da memória religiosa judaico-cristã, um encadeamento genealógico contínuo para o povo judeu. Claro, a abundante historiografia do judaísmo comporta abordagens plurais, mas as concepções essenciais elaboradas nesse período nunca foram questionadas.
Em Israel, há departamentos acadêmicos especiais para o estudo da "história do povo judeu". Lá prevalecem temerosos e conservadores, revestidos por uma retórica apologética baseada em idéias preconcebidas

Quando apareciam descobertas capazes de contradizer a imagem do passado linear, elas praticamente não tinham eco. Como um maxilar solidamente fechado, o imperativo nacional bloqueava qualquer espécie de contradição ou desvio em relação ao relato dominante. E as instâncias específicas de produção do conhecimento sobre o passado judeu contribuíram muito para essa curiosa paralisia unilateral: em Israel, os departamentos exclusivamente dedicados ao estudo da "história do povo judeu" são bastante distintos daqueles da chamada "história geral". Nem o debate de caráter jurídico sobre "quem é judeu" preocupou esses historiadores: para eles, é judeu todo descendente do povo forçado ao exílio há 2 mil anos.
Esses pesquisadores "autorizados" tampouco participaram da controvérsia trazida pela revisão histórica do fim dos anos 1980. A maioria dos atores desse debate público veio de outras disciplinas ou de horizontes extra-universitários, inclusive de fora de Israel: foram sociólogos, orientalistas, lingüistas, geógrafos, especialistas em ciência política, pesquisadores em literatura e arqueólogos que formularam novas reflexões sobre o passado judaico e sionista. Dos "departamentos de história judaica" só surgiram rumores temerosos e conservadores, revestidos por uma retórica apologética baseada em idéias preconcebidas.
Ou seja, após 60 anos recém-completos, a historiografia de Israel amadureceu muito pouco e, aparentemente, não evoluirá em curto prazo. Porém, os fatos revelados pelas novas pesquisas colocam para todo historiador honesto questões fundamentais — ainda que surpreendentes, numa primeira abordagem.
Considerar a Bíblia um livro de história é um dos debates. Os primeiros historiadores judeus modernos, como Isaak Markus Jost e Léopold Zunz, não encaravam o texto bíblico dessa forma, no começo do século 19. A seus olhos, o Antigo Testamento era um livro de teologia constitutivo das comunidades religiosas judaicas depois da destruição do Primeiro Templo. Foi preciso esperar até 1850 para encontrar historiadores como Heinrich Graetz, que teve uma visão "nacional" da Bíblia. A partir daí, a retirada de Abraão para Canaã, a saída do Egito e até o reinado unificado de Davi e Salomão foram transformados em relatos de um passado autenticamente nacional. Desde então, os historiadores sionistas não deixaram de reiterar essas "verdades bíblicas", que se tornaram o alimento cotidiano da educação israelense.
Nos anos 1980, as descobertas arqueológicas abalam os mitos fundadores. Moisés não conduziu à "terra prometida". Não houve revolta dos escravos egípcios. O reinado suntuoso de Davi e Salomão foi inventado. A "segunda diáspora", também

Mas eis que, ao longo dos anos 1980, a terra treme, abalando os mitos fundadores. Novas descobertas arqueológicas contradizem a possibilidade de um grande êxodo no século 13 antes da nossa era. Da mesma forma, Moisés não poderia ter feito os hebreus saírem do Egito, nem tê-los conduzido à "terra prometida" — pelo simples fato de que, naquela época, a região estava nas mãos dos próprios egípcios! Aliás, não existe nenhum traço de revolta de escravos no reinado dos faraós, nem de uma conquista rápida de Canaã por estrangeiros.
Tampouco há sinal ou lembrança do suntuoso reinado de Davi e Salomão. As descobertas da década passada mostram a existência de dois pequenos reinos: Israel, o mais potente; e a Judéia, cujos habitantes não sofreram exílio no século 6 a.C. Apenas as elites políticas e intelectuais tiveram de se instalar na Babilônia, e foi desse encontro decisivo com os cultos persas que nasceu o monoteísmo judaico.
E o exílio do ano 70 d.C. teria efetivamente acontecido?
Paradoxalmente, esse "evento fundador" da história dos judeus, de onde a "diáspora" tira sua origem, não rendeu sequer um trabalho de pesquisa. E por uma razão bem prosaica: os romanos nunca exilaram povo nenhum em toda a porção oriental do Mediterrâneo. Com exceção dos prisioneiros reduzidos à escravidão, os habitantes da Judéia continuaram a viver em suas terras mesmo após a destruição do Segundo Templo.
Uma parte deles se converteu ao cristianismo no século 4, enquanto a maioria aderiu ao Islã, durante a conquista árabe do século 7. E os pensadores sionistas não ignoravam isso: tanto Yitzhak ben Zvi, que seria presidente de Israel, quanto David ben Gurion, fundador do país, escreveram sobre isso até 1929, ano da grande revolta palestina.
Ambos mencionam, em várias ocasiões, o fato de que os camponeses da Palestina eram os descendentes dos habitantes da antiga Judéia [2].
O êxito da religião de Jesus não colocou fim ao judaísmo. Cem anos depois, surgiu o vigoroso reino judeu de Himiar, onde atualmente está o Iêmen. Após o século 7, berberes judaizados participaram da conquista da Península Ibérica

Mas, na falta de um exílio a partir da Palestina romanizada, de onde vieram os judeus que povoaram o perímetro do Mediterrâneo desde a Antigüidade? Por trás da cortina da historiografia nacional, esconde-se uma surpreendente realidade histórica: do levante dos macabeus, no século 2 a.C., à revolta de Bar Kokhba, no século 2 d.C., o judaísmo foi a primeira religião prosélita. Nesse período, a dinastia dos hasmoneus converteu à força os idumeus do sul da Judéia e os itureus da Galiléia, anexando-os ao "povo de Israel". Partindo desse reino judeu-helenista, o judaísmo se espalhou por todo o Oriente Médio e pelo perímetro mediterrâneo. No primeiro século de nossa era surgiu o reinado judeu de Adiabena, no território do atual Curdistão, e a ele seguiram-se alguns outros com as mesmas características.
Os escritos de Flávio Josefo são apenas um dos testemunhos do ardor prosélito dos judeus: de Horácio a Sêneca, de Juvenal a Tácito, vários escritores latinos expressaram seu temor sobre a prática da conversão, autorizada pela Mixná e pelo Talmude  [3].
No começo do século 4, o êxito da religião de Jesus não colocou fim à expansão do judaísmo, mas empurrou seu proselitismo para as margens do mundo cultural cristão. Cem anos depois, surgiu o vigoroso reino judeu de Himiar, onde atualmente está o Iêmen. Seus descendentes mantiveram a fé judaica após a expansão do Islã e preservam-na até os dias de hoje. Da mesma forma, os cronistas árabes nos contam sobre a existência de tribos berberes judaizadas: contra a pressão árabe sobre a África do Norte, no século 7, surgiu a figura lendária da rainha judia Dihya-el-Kahina. Em seguida, esses berberes judaizados participaram da conquista da Península Ibérica e estabeleceram ali os fundamentos da simbiose particular entre judeus e muçulmanos, característica da cultura hispano-arábe.
A conversão em massa mais significativa ocorreu, no entanto, entre o mar Negro e o mar Cáspio, no imenso reino Cazar do século 8. A expansão do judaísmo do Cáucaso até as terras que hoje pertencem à Ucrânia engendrou várias comunidades que seriam expulsas para o Leste europeu pelas invasões mongóis do século 13. Lá, os judeus vindos das regiões eslavas do sul e dos atuais territórios alemães estabeleceram as bases da grande cultura ídiche [4].
Desde os anos 1970, uma sucessão de pesquisas "científicas" israelenses se esforça para demonstrar, por todos os meios, a proximidade genética dos judeus do mundo inteiro

Esses relatos sobre as origens plurais dos judeus figuraram, de forma mais ou menos hesitante, na historiografia sionista até o início dos anos 1960. Depois disso, foram progressivamente marginalizados e, por fim, desapareceram totalmente da memória pública israelense. Afinal, os conquistadores de Jerusalém em 1967 deveriam ser os descendentes diretos de seu reinado mítico, e não de guerreiros berberes ou cavaleiros cazares. Com isso, os judeus assumiram a figura de éthnos específico que, depois de 2 mil anos de exílio e errância, voltava para a sua capital.
E os defensores desse relato linear e indivisível não mobilizam apenas o ensino de história: eles convocam igualmente a biologia. Desde os anos 1970, uma sucessão de pesquisas "científicas" israelenses se esforça para demonstrar, por todos os meios, a proximidade genética dos judeus do mundo inteiro. A "pesquisa sobre as origens das populações" representa hoje um campo legítimo e popular da biologia molecular, e o cromossomo Y masculino ganhou um lugar de honra ao lado de uma Clio judia na busca desenfreada pela unicidade do "povo eleito".
Essa concepção histórica constitui a base da política identitária do estado de Israel e é exatamente seu ponto fraco. Ela se presta efetivamente a uma definição essencialista e etnocentrista do judaísmo, alimentando uma segregação que mantém a distância entre judeus e não-judeus.
Israel, 60 anos depois de sua fundação, não aceita conceber-se como uma república que existe para seus cidadãos. Quase um quarto deles não é considerado judeu e, de acordo com o espírito de suas leis, esse estado não lhes pertence. Ao mesmo tempo, Israel se apresenta como o estado dos judeus do mundo todo, mesmo que não eles não sejam mais refugiados perseguidos, e sim cidadãos com plenos direitos, vivendo como iguais nos países onde residem. Em outras palavras, um etnocentrismo sem fronteiras serve de justificativa para uma severa discriminação ao invocar o mito da nação eterna, reconstituída para se reunir na "terra dos antepassados".
Escrever uma nova história judaica, para além do prisma sionista, não é tarefa fácil. A luz que se refrata ao passar por esse prisma se transforma, insistentemente, em cores etnocêntricas. Mas, se os judeus sempre formaram comunidades religiosas em diversos lugares e elas foram, com freqüência, constituídas pela conversão, obviamente não existe um éthnos portador de uma mesma origem, de um povo errante que teria se deslocado ao longo de 20 séculos.
Sabemos que o desenvolvimento de toda historiografia — e, de maneira geral, as da modernidade — passa pela invenção do conceito de nação, que ocupou milhões de seres humanos nos séculos 19 e 20.
Recentemente, porém, esses sonhos começaram a ruir. Cada vez mais pesquisadores analisam, dissecam e desconstroem os grandes relatos nacionais e, principalmente, os mitos da origem comum, caros aos cronistas do passado. Certamente os pesadelos identitários de ontem darão espaço, amanhã, a outros sonhos de identidade. Assim como toda personalidade é feita de identidades fluidas e variadas, a história também é uma identidade em movimento.


traduções deste texto >> English — Israel deliberately forgets its history Esperanto — Kiel elpensiĝis la juda popolo ? français — Comment fut inventé le peuple juif
Shlomo Sand é historiador, professor da Universidade de Tel-Aviv e autor de Comment le peuple juif fut inventé (Como foi inventado o povo judeu), Paris, Fayard, 2008.

[1] Texto fundador do judaísmo, a Torá é composta pelos cinco primeiros livros da Bíblia, ou Pentateuco: Gênese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
[2] Cf. David ben Gurion e Yitzhak ben Zvi, Eretz Israel no passado e no presente (1918, em ídiche), Jerusalém, Yitzhak ben Zvi, 1980 (em hebraico), e Yitzhak ben Zvi, Nossa população no país (em hebraico), Varsóvia, O Comitê Executivo da União da Juventude e o Fundo Nacional Judeu, 1929.
[3] A Mixná, considerada como a primeira obra de literatura rabínica, foi concluída no século 2 d.C. O Talmude sintetiza o conjunto dos debates rabínicos referindo-se à lei, aos costumes e à história dos judeus. Há dois Talmudes: o da Palestina, escrito entre os séculos 3 e 5, e o da Babilônia, concluído no fim do século 5.
[4] Falado pelos judeus da Europa oriental, o ídiche é uma língua eslavo-germânica, com palavras vindas do hebraico
Le Monde Diplomatique

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Como as grandes religiões velam seus mortos?


Sheyla Miranda
Judaísmo
O velório é o momento de reunir familiares e amigos do falecido para exaltar suas qualidades, falar das bondades que praticou em vida e fazer orações em nome de sua alma. O caixão é ladeado por velas, para que o espírito encontre um caminho iluminado. A maior honra ao morto é oferecer donativos a entidades beneficentes em sua homenagem, o que traria conforto espiritual à alma diante de Deus
MELHOR É O SILÊNCIO
Na curta cerimônia, mulheres cobrem a cabeça com um lenço e homens com o quipá . Ninguém deve puxar conversa nem dar pêsames aos familiares do falecido: os judeus creem que nenhuma palavra pode expressar tamanha dor, então o melhor é ficar quieto nessa hora
EM VOZ ALTA
O caixão fica fechado - expor o morto seria desrespeito, já que para os judeus o importante é lembrar-se da pessoa como era em vida. O corpo nunca fica sozinho e os presentes não comem, bebem, cantam nem ouvem música. Em voz alta, rola a leitura de salmos e declarações sobre as virtudes do falecido
HinduísmoNos rituais fúnebres hindus, o velório é apenas uma transição entre duas etapas mais importantes: a preparação do corpo, feita logo após a morte, e a cremação, que tem forte simbologia. Por isso mesmo, não há regra estabelecida para essa fase e os adeptos de diversos segmentos do hinduísmo despedem-se, cada qual, à sua maneira
RITUAL LIVRE
Há regiões da Índia em que familiares e amigos jogam pétalas de rosas , margaridas e jasmins sobre o corpo e dão três voltas em torno dele. Deixar cartas sobre o falecido, pedindo que a alma encontre o caminho da luz, também é comum. Outrocostume é fazer orações e ler textos sagrados diante do morto
BUDISMOFamiliares, amigos e um monge oram e despedem-se com calma, já que a morte é uma etapa de um longo processo evolutivo, e não um fim definitivo. Os visitantes levam palavras de consolo para os parentes do morto e também algum dinheiro, para ajudá-los com as despesas do funeral
Desapego iluminado
O corpo é colocado em um caixão, com um rosário budista enrolado nas mãos. Os presentes recitam textos sagrados em coro. Algumas subdivisões dos budistas oferecem alimento e água num altar, como símbolo de desapego do corpo físico. Junto do caixão, acendem-se velas e incensos
ISLAMISMOPara os muçulmanos, o velório é um intervalo entre outras etapas do ritual de despedida. Como o corpo deve ser sepultado depressa, a cerimônia mais serve para que os familiares tenham tempo de cumprir com burocracias para o enterro ou para que aguardem a chegada de algum parente
Simples assim
Vestir preto não é obrigatório, mas os presentes devem estar trajados sobriamente, sobretudo as mulheres, que devem manter a cabeça coberta. Os presentes rezam em conjunto, perto do caixão, para que a alma do falecido siga em paz seu caminho. Os familiares podem permitir música durante a cerimônia
CRISTIANISMOFamiliares e amigos recebem condolências em sinal de luto e respeito. O caixão fica aberto para que os presentes toquem o corpo e dirijam-lhe as últimas palavras. A cerimônia deve ser a melhor possível, em sinal de reverência à memória do morto
Orações finais
Os católicos rezam e celebram uma missa, além de entoar cantos religiosos. Um padre faz as exéquias - conjunto de rezas para "encomendar o corpo" para a vida eterna. Familiares e amigos do morto se vestem de maneira sóbria e respeitosa. Os protestantes, por sua vez, não adotam o preto como cor oficial do luto
Primavera iluminada
No caso dos católicos, há uma cruz em cima do caixão e quatro velas ao redor. As velas simbolizam a luz de Cristo ressuscitado e são acesas para iluminar o caminho da alma até a eternidade. Amigos enviam flores aos familiares, simbolizando a "primavera da vida que floresce na eternidade"
• O número 3 é simbólico para os hindus. Segundo a crença, são três os deuses - Brahma, Vishnu e Shiva - que representam o ciclo completo da existência
• Os crisântemos são as flores preferidas pelos brasileiros para homenagear quem já morreu
CONSULTORIA Cecilia Ben David, coordenadora pedagógica do Centro da Cultura Judaica; Swami Krishna Priya Ananda, mestre espiritual da Sociedade Internacional Gita do Brasil; Cido Pereira, padre da Arquidiocese de São Paulo; Shake Juma, do Centro de Estudos e Divulgação do Islã; Padman Samten, lama do Centro de Estudos Budistas Bodisatva