sábado, 17 de março de 2012

Catilinárias de Cícero – Oração I

Catilinárias de Cícero – Oração I
Índice
ORAÇÃO I DE M. T. CÍCERO CONTRA L. CATILINA Exórdio. Poderes dos cônsules.Planos da conspiração. Catilina tentou matar Cícero.Catilina deve sair da cidade.Os bons romanos odeiam Catilina. A cidade exige a expulsão de Catilina. O Senado e Catilina.Cícero prevê os ódios contra si. Catilina que vá junto dos seus amigos.Cícero não teme o ódio ou os perigos e cuida da salvação da pátria.Os motivos pelos quais Cícero não reputa acertada a condenação à morte de Catilina. Peroração. Invocação a Júpiter.ORAÇÃO I DE M. T. CÍCERO CONTRA L. CATILINA
Esta oração, pronunciada no dia 8 de novembro do ano 63 c C, é talvez a mais conhecida entre as orações de Cícero.

Cícero investe violentamente contra Catilina, que teve a ousadia de apresentar-se no Senado, embora todos saibam que um exército de revolucionários o espera na Etrúria, chefiado por Mânlio. Catilina mereceria a morte; porém Cícero não pede ao Senado que o processe. Roma pode ter a certeza que ele, Cícero, com a sua solêrcia, garantirá a liberdade do povo romano. Catilina, porém, deixe a cidade. Roma não quer mais saber dele, pois as suas culpas e torpezas são bem conhecidas. Deixe a cidade e, se quer, se junte aos seus companheiros, bem dignos dele, que o esperam para marchar contra Roma. Cícero não o teme, pois, com a ajuda de Júpiter Stator, o exterminará e, com ele a todos os inimigos da República.

Exórdio.
ATÉ quando, Catilina, abusarás de nossa paciência? quanto zombará de nós ainda esse teu atrevimento? onde vai dar tua desenfreada insolência? É possível que nenhum abalo te façam nem as sentinelas noturnas do Palatino, nem as vigias da cidade, nem o temor do povo, nem a uniformidade de todos os bens, nem este seguríssimo lugar do Senado, nem a presença e semblante dos que aqui estão? Não pressentes manifestos teus conselhos? não vês a todos inteirados da tua já reprimida conjuração? Julgas que algum de nós ignora o que obraste na noite próxima e na antecedente, onde estiveste, a quem convocaste, que resolução tomaste?

Oh tempos! oh costumes! Percebe estas coisas o Senado, o cônsul as vê, e ainda assim vive semelhante homem! Que digo, vive? antes vem ao Senado, é participante do conselho público, assinala e designa com os olhos, para a morte, a cada um de nós. E nós, homens de valor, nos parece ter satisfeito à República, evitando as suas armas e a sua insolência. Muito tempo há, Catilina, que tu devias ser morto por ordem de cônsul, e cair sobre ti a ruína que há tanto maquinas contra todos nós.

Porventura o insigne P. Cipião, Pontífice Máximo, não matou a Tibério Graco, por deteriorar um pouco o estado da República? e nós devemos sofrer a Catilina, que com mortes e incêndios quer assolar o mundo? Passo em silêncio aqueles antiquíssimos exemplos, de quando C. Servílio Ahala matou com sua própria mão a Spúrio Melo, que procurava introduzir novidade. Houve antigamente na República esta fortaleza de reprimirem homens de valor com os mais severos castigos seja ao cidadão pernicioso que ao cruelíssimo inimigo. Temos contra ti, Catilina, decreto do Senado veemente e severo; não falta conselho à República; nós, abertamento o digo, nós somos os que faltamos.

Poderes dos cônsules.
2. Decretou antigamente o Senado que Lúcio Opímio atendesse a que a República não recebesse algum detrimento; não se meteu uma só noite em meio que não fossem mortos C. Graco, de pai avô e antepassados nobilíssimos, e M. Fúlvio, consular, com seus filhos. Com semelhante decreto do Senado se entregou a República aos cônsules Caio Mário e Lúcio Valério; porventura tardou a República um só dia com a morte e suplício a Lúcio Saturnino, tribuno do povo, e a Caio Servílio, pretor? Mas nós há já vinte dias que consentimos se embotem os fios desta autoridade; temos o mesmo decreto do Senado, metido nas tábuas, como espada na bainha; segundo esta deliberação do Senado, Catilina, devias logo ser morto. Mas vives, e vives não para ceder, mas para te confirmar no teu atrevimento. Desejo, Padres Conscritos, ser clemente para convosco; desejo não ser cobarde em tamanhos perigos da República, mas a mim mesmo me condeno de inerte e culpado.

Há tropas na Itália contra a República, assentadas na garganta da Etrúria; cresce cada dia o número dos inimigos, mas o seu capataz e general o estamos vendo dentro de nossos muros, maquinando sempre a ruína da República. Se agora te mandasse prender, se te mandasse matar, mais receio que todos os bons dissessem que o fizera tarde, de que alguém que obrara cruelmente. Mas por certa causa não estou ainda resoluto a executar o que há muito devia ter feito. Matar-te-hei finalmente então, quando ninguém houver tão malvado, tão perdido, tão teu semelhante, que não confesse que isto se obrou com razão.

Enquanto houver quem se atreva a defe?i-der-te, viverás, e viverás como agora vives, cercado de muitas minhas fortes guardas, para que não te possa levantar contra a República; também os olhos e ouvidos de muitos, sem tu o sentires, te espreitarão, e guardarão como até agora o fizeram.


Planos da conspiração.
3. Portanto, Catilina, que podes mais esperar, se nem a noite com as suas trevas pode encobrir teus iníques congressos, nem a casa mais retirada conter com suas paredes a voz da tua conjuração? Se tudo se faz manifesto, se tudo sai a público? Crê-me o que te digo: muda de projeto, esquece-te de mortandades e incêndios; por qualquer parte te haveremos às mãos. Todos teus desígnios são para nós mais claros que a luz, o que bem é reconheças comigo. Não te lembras do que eu disse no Senado em 21 de Outubro, que Mânlio, ministro e sócio das tuas maldades, havia de estar armado em certo dia, o qual dia havia de ser o 26 de Outubro? Escapou-me, pois, Catilina, não só uma coisa tão horrível, mas nem ainda o dia? Eu mesmo disse que tu deputaras o dia 28 de Outubro para mortandade dos nobres; e então foi quando muitas das pessoas principais da cidade fugiram de Roma, não tanto por se salvarem, como por atalharem teus intentos. Poderás porventura negar-me que naquele próprio dia, por estares rodeado de minhas guardas e das minhas diligências, te não pudeste mover contra a República, quando, retirando-se os mais disseste que te contentavas com a minha morte? E quando esperavas tomar a Preneste por assalto de noite ao primeiro de Novembro, não achaste aquela colónia municionada por minha ordem, e com meus presídios, guardar e sentinelas? Nada obras, nada maquinas, nada cogitas que eu não só não ouça, mas veja e penetre claramente.

Catilina tentou matar Cícero.
4. Recorda-te enfim comigo desta última noite, e conhecerás que com maior cuidado velo eu para o bem da República do que tu para a sua destruição. Digo, pois, que foste na primeira noite pelos Falcá-rios para casa de Marco Leca (hei-de falar claro) onde concorreram muitos sócios da mesma loucura e perversidade; atrever-te-ás porventura a negá-lo? porque te calas? se ò negares convencer-te-ei; pois aqui estou vendo no Senado alguns que estiveram contigo. Deuses imortais! onde estamos? que República temos? em que cidade vivemos? Aqui, aqui, Padres Conscritos, entre nós, neste gravíssimo e santíssimo Conselho do Mundo, estão os que meditam a minha ruína, a de todos nós, a desta cidade e do universo. Eu cônsul, os estou vendo, e lhes peço parecer; e a quem com ferro devia acabar, nem siquer molesto com a voz. Estiveste pois, Catilina, naquela noite em casa de Leca; repartiste as regiões da Itália, determinaste para onde querias que cada um fosse, elegeste os que deixarias em Roma e os que levarias contigo; designaste os bairros da cidade para os incêndios, afirmaste que brevemente sairias de Roma, disseste que ainda demorarias um pouco, por estar eu ainda em vida; achaste dois cavaleiros romanos que te livraram deste cuidado, e te prometeram que pouco antes de amanhecer me matariam em meu mesmo leito. Tudo isto soube eu, apenas acabado o vosso congresso; fortifiquei e municionei minha casa com maiores guardas; não recebi os que pela manhã mandaste a saudar-me, vindo os mesmos, que eu tinha predito a pessoas de muito crédito que haviam de vir buscar-me naquele tempo.

Catilina deve sair da cidade.
5. Sendo tudo isto assim, Catilina, prossegue o que principiaste, vai-te enfim da cidade, abertas estão as portas, anda; há muito tempo te desejam por general aqueles teus acampamentos de Mânlio; leva contigo todos os teus, ou ao menos muitos deles, limpa esta cidade; já não podemos viver mais contigo, nem eu o posso sofrer, tolerar, consentir. Infinitas graças devo dar aos deuses imortais, e a esse mesmo Júpiter Stator, antiquíssimo protector desta cidade, de ter tantas vezes escapado a esta tão horrível torpe e prejudicial peste da República. Não convém que por causa de um homem perigue muitas vezes a República. Enquanto me armaste traições, Catilina, sendo eu cônsul designado, não me defendi com guardas públicas, mas com diligências particulares; quando nos próximos comícios consulares me quiseste matar, reprimi teus perversos intentos com o socorro dos amigos e soldados, sem tumulto algum; enfim todas as vezes que me acometeste, pessoalmente te resisti, posto que visse andar a minha ruína emparelhada com grande calamidade da República; agora já acometeste abertamente toda a República, os tempos dos deuses eternos, as casas de Roma, as vidas dos cidadãos, e em uma palavra, tocas a arruinar e destruir toda a [tália. Mas como não me resolvo ainda a pôr emobra o principal e próprio deste Império, executarei o que é de menor severidade e para o bem público mais proveitoso, pois se te mandar matar, ficará na República o demais esquadrão de conjurados. Se saíres (como te persuado há muito), ficará a República limpa desta enorme sentina de teus sócios. E duvida porventura, Catilina, mandando eu fazer o que já executavas de tua livre vontade? Manda o cônsul sair da cidade o inimigo. Perguntas-me se porventura para o desterro? não te mando; mas se me consultas, aconselho-te.

Os bons romanos odeiam Catilina.
6. Que coisa há ainda nesta cidade que te possa dar gosto, pois ninguém há que não te tema? fora desta conjuração de gente estragada, ninguém há que não te aborreça. Que nodóa de torpeza doméstica se não tem lançado na tua vida? que infâmia em matérias particulares se não tem amontoado sobre aqueles labéus? que lascívia de olhos, que atrocidade de mãos, que perversidade deixou jamais de haver em todo teu corpo? que mancebo houve, a quem não enredasses com atrativos viciosos, e a quem não conduzisses ou para insolências com armas, ou para dissoluções com incentivos? E que é o que há pouco obraste, quado com a morte da tua primeira mulher despojaste a casa para novas bodas? não acumulaste sobre esse delito outra incrível maldade? o que eu passo em claro, e de boa mente sofro se cale, para que não conste que existiu nesta cidade, ou se deixou sem castigo tão enorme crime. Passo em silêncio a perdição dos teus bens, que sabes te está iminente nos próximos Idos. Não falo no tocante às particulares ignomínias de teus vícios, nem na tua doméstica penúria e miséria, mas no que pertence ao governo da República, e à vida e proveito de todos nós. Pode porventura, Catilina, agradar-te a luz desta cidade, ou este ar que respiramos, sabendo que nenhum dos circunstantes ignora que no último de Dezembro, sendo cônsules Lépido e Fúlvio, estiveste armado no comício do povo? que ordenaste uma esquadra para matares os cônsules e pessoas principais da cidade? que não foi razão alguma ou temor que tivesses, mas a fortuna da República a que conteve a tua protérvia e desaforo? Mas deixo já isto que nem é ignorado, nem há muito cometido. Quantas vezes estando eu já eleito, quantas, sendo já cônsul, me quiseste matar? a quantos golpes, atirados de modo que pareciam ine-/ vitáveis, escapei eu, como lá dizem, com um pequeno desvio do corpo? Nada fazes, nada consegues, nada maquinas, que eu logo não saiba; e nem por isso cessas de levar por diante teus projectos e intentos. Quantas vezes te arrancaram já essa faca das mãos? quantas te caiu por acaso e escorregou? e ainda assim não podes estar muito tempo sem ela; na verdade, não sei a que sacrifícios a consagraste e dedicaste, que: julgas preciso cravá-la no corpo do cônsul. ,

A cidade exige a expulsão de Catilina.
7. E que vida é ao presente essa tua? falarei ra contigo, não como agastado com a ira que devo, mas movido da compaixão que não mereces. Há pouco chegaste ao Senado; em um tão grande congresso, qual de teus amigos e parentes te saudou? não havendo memória que tal jamais sucedesse a ninguém, esperas que te afrontem de palavra, sendo já condenado pelo gravíssimo juizo desta tacidurnidade? Que foi isto que assim que chegaste se evacuaram estas ordens de assentos? que vem a ser que assim que te sentaste, todos os consulares, que designaste para a morte, deixaram devoluta e nua esta parte de assentos? Enfim de que ânimo julgas levar isto? Por certo que se os meus servos me temessem da sorte que a ti temem os teus patrícios, abandonaria sem demora a própria casa; e tu ainda te não resolves a deixar a cidade? Se eu me visse tão gravemente suspeito e ofendido de meus cidadãos, antes quereria carecer da sua presença, que sofrer que com tão maus olhos me vissem todos. E tu, conhecendo pelo próprio remorso de teus delitos esta justa e geral indignação, que há tanto mereces, ainda duvidas retirar-te da vista e presença daqueles que te não podem suportar nem ver? Se teus pais se temessem de ti e te aborrecessem, e os não pudesse sem nenhum modo aplacar, creio te retirararias de seus olhos para outra parte; pois, agora que a pátria, mãe comum de todos nós, te aborrece e teme, não julgando de ti outra coisa senão que meditas o seu parricidio, porque não respeitarás a sua autoridade, seguirás o seu juizo, temerás o seu poder? Ela é a que, como falando contigo, te diz desta sorte: Muitos anos há que não houve maldade que não viesse de ti, nenhum delito sem ti; em ti só não se castigou a morte de muitos cidadãos, as opressões e roubos de nossos aliados. Não só tiveste poder de infrigir as leis e as causas, mas de as abolir. Ainda que tudo isto não se devia tolerar, ainda assim o sofri como pude; mas o estar eu toda em temor unicamente por teu respeito, o temer-se a Catilina com qualquer rumos que haja, o nâo se poder tomar conselho algum contra mim, que não dependa da tua protérvia, não se deve levar à paciência. Portanto, vai-te já daqui, livra-me deste temor, se bem fundado para não estar oprimida, se vão para deixar de temer.

O Senado e Catilina.
8. Se, como disse, a pátria te disesse estas coisas, não mereceria conseguir sua pretensão, ainda que a não pudesse conseguir com força? Por que motivo tu próprio te foste entregar à prisão? Com que fim disseste que, por evitar suspeitas, querias morar em casa de Marco Lépido, do qual não sendo recebido, te atreveste a vir também comigo e pedir-me te recolhesse em minha casa? E recebendo de mim por resposta que em nenhum modo podia estar seguro contigo dentro das mesmas paredes, havendo grande risco ainda dentro dos mesmos muros, buscaste a Quinto Metelo, pretor, do qual repudiado, passaste para casa do teu companheiro, o excelente varão Marco Marcelo, a quem avaliaste de suma diligência para te guardar, de suma sagacidade para vigiar e de sumo valor para te vingar. Mas quão longe deve estar do cárcere e prisão quem se julga a si mesmo digno dela? Sendo isto assim, Catilina, não podendo aqui viver com ânimo socegado, duvidas ir-te para alguma terra e entregar à fugida uma vida salvada de muitos castigos justos e merecidos? Já que assim — dizes tu — propõe isso ao Senado. E se esta ordem resolver que vás para o desterro, prometes obedecer-lhe? Não proporia tal, por desdizer de meus costumes, mas ainda assim o farei, para que saibas o que eles julgam de ti. Sai já de Roma, Catilina, livra de temor a República; se esperas por este preceito, parte já para o desterro. Pois que, Catilina, que atendes? que consideras no silêncio dos circunstantes? Sofrem, calam-se; para que esperas que falem com autoridade aqueles que bem te dão a conhecer a sua vontade calando? Se eu dissesse semelhantes coisas a este óptimo mancebo Públio Séxtio, ou ao meritíssimo Marco Marcelo já o Senado a mim cônsul me faria violência, e com razão me poria as mãos; mas quanto a ti, Catilina, quando se acomodam, aprovam; quando sofrem, determinam; quando calam, clamam; nem só estes, cuja autoridade amas e vidas desprezas, mas também aqueles honradíssimos cavaleiros romanos e os outros cidadãos de valor que rodeiam o Senado, cujo concurso pouco há que pudeste ver, conhecer sua vontade, e ouvir suas palavras, cujas mãos e armas há muito que mal posso conter, que vão sobre ti, fácil me é persuadi-los te acompanhem até as portas, como a quem deixa o que há muito deseja destruir.

Cícero prevê os ódios contra si.
9. Mas para que falo eu? para que te contenhas? para que te emendes? para que cuides em fugir? para que tragas ao pensamento algum desterro? Oxalá te metessem tal na cabeça os deuses imortais! Ainda que vejo que, se aterrado com estas minhas vozes, te resolveres a desterrar-te, quanta tempestade de ódio mio virá sobre mim por causa da fresca memoria das tuas maldades, se não for agora, ao menos para o futuro; mas eu o estimo muito, contanto que a calamidade seja particular e fique salva a República do perigo. Mas não há que pretender te façam abalo teus vícios, que te amedrontem os castigos das leis, que cedas às calamidades da República; nem tu és sujeito de qualidade a quem o pejo desvia da lorpeza, dos perigos o temor, ou da insolência a razão. Portanto, como já disse repetidas vezes, vai-te daqui; e se, como dizes, porque sou teu inimigo me queres exasperar, caminha direito para o desterro; grande tempestade de censuras e malquerenças tenho que sofrer, se por mandado do cônsul fores desterrado; mas eu os sofrerei. Porém se não queres concorrer para o meu crédito e glória, sai com essa enorme quadrilha de perversos; parte para Mânlio, subleva cidadãos perversos, separa-te dos bons, peleja contra a pátria, regozija-te com essa ímpia quadrilha, de modo que não pareça te desterro para os estranhos, mas que os teus te convidam à sua companhia. Mas para que te convido eu, sabendo que já mandaste os homens que te esperam armados na Praça Aurélia; labendo que com Mânlio tens aprazado dia certo; e que remeteste adiante aquela águia de prata a que levantaste altar em tua casa, a qual creio te há-de ser funesta a ti e a todos os teus. Como poderás agora, indo a essas mortandades, carecer muito tempo daquela a quem costumavas venerar, de cujos altares passaste muitas vezes essa ímpia mão direita para homicídios de cidadãos?

Catilina que vá junto dos seus amigos.
10. Irás enfim algum dia para onde há muito te arrebata essa desenfreada e louca ambição, o oue te não dá pena, mas gosto excessivo; pois para esse desvario te gerou a natureza, adestrou a vontade e guardou a fortuna; nunca tu desejaste não digo já ócio, mas nem ainda guerra, senão iníqua, agrega" do um exercito de gente perdida e desesperada de toda a fortuna e esperança. Que alegria não será ali a tua? quão escessivo o prazer? com que júbilo não folgarás loucamente, quando nessa tua aluvião de gente não vires um só homem de bem? Para semelhante modo de vida se encaminharam aqueles teus laboriosos exercícios, que se contam, de jazeres para executar e manter adultérios e abominações; velar não só para armar traições ao sono dos maridos, mas também aos cabedais dos ociosos. Terás onde ostentar aquele teu ilustre sofrimento de fome, frio e penúria de tudo, com que brevemente te verás consumido. Tanto como isto aproveitei, quando te exclui do consulado, para que antes perseguisse a Repúblicadesterrado, do que a vexasse cônsul, e para que o que iniquamente empreendeste mais se chamasse latrocínio do que guerra.

Cícero não teme o ódio ou os perigos e cuida da salvação da pátria.
11. Agora, Padres Conscritos, para desterrar c repelir de mim uma quasi justa queixa da pátria, concedei toda a atenção ao que vos vou dizer, e o imprimi bem em vossos ânimos e memória. Se a pá-tria, pois, (que amo mais do que a vida) se toda a Itália e toda a República me dissessem: Que fazes, Marco Túlio? consentes se vá embora aquele que sabes ser inimigo, aquele que vês há-de-ser o general de uma iminente guerra, a quem sabes o esperam por seu capitão os arraiais inimigos, o autor desta protér-via, o príncipe dos conjurados, o sublevador dos servos, o arruinador das cidades, parecendo deste modo não que o lançaste fora da cidade, mas que o mandaste vir contra ela? Por que não o mandaras antes prender, matar e punir com o último suplício? Que é que te impede? Porventura o costume dos maiores? Não sucedeu poucas vezes castigarem os particulares COm pena de morte a cidadões perversos. Porventura as leis que estabelecem o castigo de cidadões roma-nos? Nunca nesta cidade lograram foro de cidadãos os que se rebelaram contra a República. Temes acaso o ódio da posteridade? Notável agradecimento dás ao povo romano, pois não sendo conhecido senão pelos teus predicados pessoais, sem nenhuma recomendação de antepassados, te elevou tão velozmente por todos os graus de honra ao supremo governo, se por atenção a ódio ou temor de algum perigo fazes pouco caso do bem dos teus concidadãos. E se algum temor tens de ódio, não é mais para temer que aborreçam a cobardia e protervia, do que a severidade e valor? Porventura quando a guerra assolar a Itália, quando as cidades forem vexadas, e arderem os edifícios, parece-te que não arderas tu então no incêndio do ódio?

Os motivos pelos quais Cícero não reputa acertada a condenação à morte de Catilina.
12. A estas justíssimas razões da República e daqueles cidadãos que sentem o mesmo, responderei eu em poucas palavras. Se eu, Padres Conscritos, tivesse por mais acertado condenar à morte a Catilina, não concedera a este gladiador uma só hora de vida. Porque se os outros heróis e nobilíssimos cidadãos se não contaminaram, mas honraram com o sangue de Saturnino, dos Gracos e de Flaco, por certo não teria eu de recear que, morto este parricida de cidadãos me resultassem daqui ódios para a posteridade; e ainda que os visse iminentes sobre mim, sempre assentei reputar por glória malquerenças resultadas de obras de valor. Contudo, há alguns nesta ordem que ou não vêem o que está para vir, ou se o vêem, dissimulam; os quais fomentaram as esperanças de Catilina com brandas sentenças; e, não dando crédito à conjuração, a arreigaram à nascença; cuja autoridade, seguindo outros muitos não só perversos, mas ignorantes, diriam se eu o castigasse, que obrara com tirania e despotismo. Agora porém entendo que quando ele chegar aos arraiais de Mânlio, para onde caminha, não haverá ninguém tão insensato que não conheça estar feita a conjuração, ninguém tão ímprobo que o não confesse. Mas morrendo ele só, creio que só por um pouco se poderá reprimir esta ruína da República, e não acabar inteiramente. Se der consigo daqui fora, levando de companhia os seus e, agredando de toda parte os desgarrados, os levar para o mesmo lugar, extinguir-se-á não só esta enorme peste da República, mas a mesma semente e geração de todos os perversos.

Peroração. Invocação a Júpiter.
13. Muito tempo há, Padres Conscritos, que andamos metidos nestes perigos de conjurações e traições; mas não sei por que causa os frutos de todas as maldades e insolências brotaram em tempo do meu consulado. Se porém de tão grande corrupção for morto só este, entendo que só por um pouco tempo íicaremos livres de cuidado e temor, e durará o pe-rigo e ficará reconcentrado nas veias e entranhas da Kepública. Assim como os enfermos de doença grave, que padecem frio e febre, bebendo água fria, ao princípio parecem ficar aliviados, mas depois se sentem muito mais aflitos, assim esta enfermidade da República, se a aliviarmos com o castigo deste, ficando vivos os mais, se agravará com maior veemência. Portanto, Padres Conscritos, retirem-se os perversos, separem-se dos bons, juntem-se a uma parte; enfim, como já disse muitas vezes, dividam-se de nós com o muro; cessem de armar traições ao cônsul em sua casa, de cercar a morada do pretor de Roma, de rondar com armas o Senado, de juntar feixes e archotes para abrasar esta corte, enfim traga cada um escrito no rosto o que sente da República. Eu vos prometo, Padres Conscritos, que tanta será em mim a diligência, tanta em vós a autoridade, tanto nos cavaleiros romanos o valor, tanta em todos os bons a concórdia, que com a retirada de Catilina tudo vejais manifesto, ilustrado, suprimido, vingado. Com estes prognósticos e sumo proveito da República parte já Catilina, com essa tua pestilencial quadrilha de protervos, que se agregaram com todo o gênero de maldades e parricidios para essa ímpia e execranda guerra. Então, Júpiter Stator, que aqui foste colocado por Rómulo com os mesmos auspícios com que fundou esta cidade, e a que com verdade chamamos Stator desta corte e Império, o apartarás e a seus sócios de teus altares e templos, dos edifícios da cidade e seus mu-muros, das vidas e bens dos cidadãos, e a todos os inimigos dos bons, a todos os adversários da pátria, a todos os ladrões da Itália, juntos entre sí com o vínculo de seus delitos e abominável sociedade, vivos e mortos os castigarás com eternos suplícios.
Tradução do Padre Antônio Joaquim. Fonte: Atena Editora, 1938.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Ser escravo no Brasil


A escravidão no Brasil promoveu um certo desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção. A escravidão foi garantida por um Estado e por uma ideologia que, além de legitimar a escravidão, sujeitava o escravo a sua condição de escravo. Este devia encontrar consolo em Deus, depositar as esperanças de dias melhores nos céus. Quem aceitasse a escravidão como destino seria recompensado com o Paraíso, quem se revoltasse seria condenado às Chamas Eternas. Ao pregar o conformismo, ao eternizar a escravidão, o cristianismo foi utilizado como um eficiente mecanismo de controle social.

Enquanto os sacerdotes batizavam os negros nas areias da África, com um pouco de água e sal, os guardiães marcavam a ferro quente os escravos, nas coxas, nos braços e nas costas.

A violência começava na própria África quando, caçado como um animal, o cativo é vendido como escravo e enviado numa viagem sem retorno ao Brasil. Desembarcado, posto a engordar para recuperar um pouco de seu peso e aumentar seu preço, o escravo é obrigado, através da violência, a se adaptar a sua nova situação. A violência no Brasil começa na própria forma de extração compulsória de trabalho.

... Cada açoite do homem branco significava um degrau a mais no caminho do céu. A submissão total do corpo significava a libertação total da alma.

Orelhas cortadas por escutarem conversas dos senhores, belos rostos de escravas marcados com ferro quente, pelos ciúmes que Senhora da Casa Grande tinha das relações extramatrimoniais de seu marido, açoites de escravos até a morte por não terem alcançado a produção desejada pelos fazendeiros, um padre que mandou matar sua escrava introduzindo um pau no ânus da pobre mulher...Por que tanta violência?

Naquela época considerava-se que uma das maneiras mais eficazes de eliminar a sífilis de um homem branco, era manter relações sexuais com uma negra virgem. Acreditava-se que a doença passava para a mulher ficando o homem branco livre deste flagelo...

... Os próprios suicídios, condenados pela Igreja, foram apresentados durante muito tempo como uma prova efetiva, como demonstração de fraqueza espiritual dos negros. `Negros ingratos` era a resposta dos senhores. Estes reclamavam que os suicidas faziam perder o capital investido. Com a destruição do corpo, se atingia o amo.
Escravidão no Brasil – Enrique Peregalli – Editora Global.

CAFÉ - Portinari

CAFÉ
(1935)
Óleo sobre tela
Museu Nacional de Belas Artes,
Rio de Janeiro (Brasil)

Ao Transpor para as telas as preocupações com questões sociais brasileiras do seu tempo, o artista tornou-se o pintor mais discutido do país. Café recebeu a segunda menção honrosa do Instituto Carnegie, de Pittisburg, nos Estados Unidos.

Suas deformações expressionistas provocaram muitas críticas. Chamado por muitos de `o pintor dos pés grandes`, Portinari ousou ao retratar os trabalhadores com os pés enormes e disformes. Em Retalhos da Minha Vida de Infância, ele descreve os pés dos trabalhadores como detentores de histórias,
`pés sofridos com muitos e muitos quilômetros de marcha.
Pés que só os santos têm.
Pés que inspiram piedade e respeito.
Agarrados ao solo, eram como alicerces,
Muitas vezes suportavam apenas um corpo franzino e doente. Pés cheios de nós que expressavam alguma coisa de força, terríveis e pacientes`.
A partir de CAFÉ, passou a retratar, também, os morros e favelas cariocas, o que estimulou sua tendência muralista.
Pinacoteca Caras

terça-feira, 6 de março de 2012

Malcolm X: da infância ao ingresso na Nação do Islã

Foto: © Estate of Malcolm X
Sílvio Anaz

Malcolm X nasceu como Malcolm Little em 19 de maio de 1925 na cidade de Omaha, no Nebraska (EUA). Seu pai, Earl Little, era pastor da Igreja Batista e tinha sido um entusiasta seguidor do ativista negro Marcus Garvey, fundador da Associação Universal para o Progresso Negro. Malcolm era o quarto de oito filhos. Ainda quando era bebê, sua família teve que se mudar às pressas para Wiscosin após a casa onde morava ter sido incendiada por uma organização racista chamada Legião Negra, provavelmente em represália aos sermões que o pai de Malcolm dava na igreja defendendo os direitos civis da população negra.

Após três anos em Wiscosin, eles seguiram para uma fazenda em Michigan, rodeada por uma vizinhança branca e racista que exigia que eles fossem para uma região onde só morassem negros. Earl decidiu ficar e mais uma vez a casa dos Little foi incendiada. O pai de Malcolm não desistiu, mas acabou morto em setembro de 1931. Seu corpo foi encontrado mutilado numa estrada de ferro onde teria sido atropelado por uma composição. A polícia considerou suicídio, mas é mais provável que ele tenha sido vítima de um crime racial.

Malcolm tinha seis anos de idade quando perdeu o pai, e sua mãe, Louise Little, teve imensas dificuldades para evitar que os filhos passassem fome, muitas vezes tendo que cozinhar plantas e ervas que catava nas ruas para servir de alimento para eles. Após sete anos tentando manter os filhos, ela não aguentou e teve um colapso mental. Internada numa instituição psiquiátrica, ela permaneceu lá durante 26 anos. Malcolm e seus irmãos foram encaminhados a lares adotivos e centros juvenis mantidos pelo Estado. Quando cursava a oitava série, um dos seus professores disse a ele que era melhor Malcolm aprender o ofício de carpinteiro do que tentar ser um advogado. Foi a deixa para o já adolescente rebelde se mandar para a casa de uma irmã mais velha em Boston.

Após passar um tempo vivendo de pequenos trabalhos, ele conseguiu um emprego no trem que ligava Boston a Nova York. No tempo que passava em Nova York começou a frequentar o bairro do Harlem e a conviver com os criminosos locais. Logo, Malcolm tornou-se conhecido tanto nas ruas de Roxbury, bairro onde sua irmã morava em Boston, como nas do Harlem, ao mostrar seu jeito durão e liderar gangues de ladrões e traficantes de drogas. Por usar um alisante que tornava seu cabelo vermelho, ele ficou conhecido como "Red"

Em janeiro de 1946, Malcolm acabou preso acusado de assaltos a residências em Boston. Ele foi condenado a dez anos de prisão. Foi nesse período que ele começou a se tornar Malcolm X. Um de seus irmãos, que também estava cumprindo pena na mesma penitenciária, havia aderido à organização Nação do Islã, um movimento que combinava elementos do Islamismo com ideias do nacionalismo negro, e que era liderado por Elijah Muhammad. Ele convenceu Malcolm a seguir seus passos, e o jovem parou de fumar, apostar e comer carne de porco, entre outros mandamentos preconizados pela organização. Suas horas de ócio na prisão foram preenchidas por leituras na biblioteca num processo autodidata que desenvolveu seus conhecimentos e sua capacidade para debater. Seguindo o costume da Nação do Islã, ele também trocou seu sobrenome - segundo a organização, os nomes de família que os negros tinham na América eram originários dos brancos que os escravizaram. No lugar de "Little", Malcolm adotou o "X".

Quando saiu da prisão em agosto de 1952, Malcolm X era um jovem debatedor tão talentoso e carismático que se tornou ministro assistente do Templo da Nação do Islã em Detroit. Dois anos depois ele já era ministro do Templo no Harlem, em Nova York. Mas àquela altura ele era mais do que um ministro num templo, ele tinha se tornado o porta-voz da Nação do Islã nos Estados Unidos e viajava constantemente pelo país atraindo milhares de novos adeptos para a organização. Em dez anos como uma das mais importantes vozes da Nação do Islã ele fez o movimento saltar de cinco centenas de membros para mais de 30 mil.

Discurso raivoso

No começo dos anos 60, as tensões raciais cresceram nos Estados Unidos, e Malcolm X inflamou seu discurso na mesma proporção. Em 1962, a polícia invadiu um Templo da Nação do Islã em Los Angeles, o que resultou na morte de um dos ativistas, e em seis feridos, sendo que um deles ficou paralítico. Malcolm X reagiu com fúria e convocou protestos da comunidade negra que resultaram em conflitos com policiais, prisões e feridos. Para ele, alguém que agredisse um negro merecia ser mandado para o cemitério. Esse tipo de discurso chamou a atenção do FBI, que infiltrou agentes na Nação do Islã. Alheio ou não à vigilância dos órgãos de segurança, o fato é que, do púlpito de seu Templo no Harlem, ele continuou a pregar usando um discurso raivoso contra a população branca. Para ele, havia uma ligação entre a cor da pele negra e o Islamismo, assim como havia uma entre a cor branca e o Cristianismo, o que tornava o homem branco seu inimigo racial e religioso. Um grave engano que ele só entenderia durante sua peregrinação a Meca alguns anos depois. http://pessoas.hsw.uol.com.br

Malcolm X

Malcolm X foi um popular e polêmico líder do movimento negro nos Estados Unidos, mas vários aspectos de sua vida e de sua luta política continuam nebulosos. Até mesmo o seu assassinato ainda é envolto em mistério e ninguém descobriu quem de fato o tramou. Essas dúvidas e a suspeita de que muito do que se conhece sobre Malcolm X é fruto daquilo que os órgãos de segurança quiseram que fosse divulgado levou a Universidade de Columbia, de Nova York, a criar um projeto ("The Malcolm X Project at Columbia University") para estudar a vida e a importância do ativista.

Filho de um pastor que foi provavelmente assassinado por brancos racistas, Malcolm X tornou-se muçulmano enquanto cumpria pena por roubo na prisão e, durante boa parte de sua militância, pregou a segregação entre negros e brancos e atitudes radicais e violentas, incluindo a luta armada contra a população branca nos Estados Unidos. Suas propostas se opunham ao movimento pacífico e integracionista de Martin Luther King Jr., o mais importante líder na luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos nos anos 1960.

Malcolm X conviveu com o racismo e a violência dos brancos contra os negros desde a infância, o que fez sua família fugir de cidade em cidade e, mesmo assim, não evitou que seu pai acabasse morto e sua mãe internada por conta de um colapso mental. No final da adolescência, ele aderiu à vida criminosa o que lhe rendeu uma pena de dez anos de prisão. Foi nesse período que conheceu a Nação do Islã, uma organização de negros muçulmanos que propunha que brancos e negros vivessem em países separados e associava o racismo ao Cristianismo. Ao sair da cadeia, com um discurso agressivo e uma personalidade carismática, ele tornou-se rapidamente um dos expoentes da organização e em pouco tempo virou seu porta-voz.

Mas quando resolveu peregrinar para Meca, na Arábia Saudita, para realmente tornar-se um muçulmano, ele viu de perto que o Islamismo não pregava a separação entre brancos e negros, pelo contrário. De volta aos Estados Unidos resolveu desmascarar o discurso racista e segregacionista da Nação do Islã e adotou as ideias da esquerda internacional pregando que o socialismo era a verdadeira saída para a opressão e a pobreza da população negra na América. Muitos atribuem o seu assassinato, durante um discurso no Harlem, a um plano da Nação do Islã para eliminá-lo, e apesar de um dos assassinos ser membro da organização as investigações não produziram nenhuma evidência que mostre o envolvimento da Nação do Islã com o caso.

Black Power e Panteras Negras

O discurso político de Malcolm X, que bradava o orgulho de ser negro e não descartava o uso da violência na luta pelos direitos civis da população negra, inspirou o movimento Black Power e abriu o caminho para o surgimento do Partido dos Panteras Negras. O Black Power foi um movimento filosófico que defendeu o orgulho racial de ser negro e incentivou a população negra a obter controle das instituições que afetavam o seu cotidiano. A frase "black power" (poder negro) foi usada pela primeira vez em 1966 por Stokely Carmichael, líder do Comitê Estudantil pela Não-Violência (SNCC, na sigla em inglês). O "black power" era exercido de diferentes maneiras, como em atos de desobediência civil, no estabelecimento de negócios com proprietários negros, na pressão sobre escolas e universidades para implantarem programas de estudos da cultura negra e apoiando políticos negros nas eleições. Um dos filhotes do Black Power foi o Partido dos Panteras Negras para Auto-Defesa, uma agremiação política revolucionária fundada em 1966 por Huey Newton e Bobby Seale. A proposta original do partido era a formação de milícias de negros nos guetos das grandes cidades para proteger a população da violência policial. Seu projeto político marxista propunha armar toda a população negra na América e libertar todos os prisioneiros negros e exigia o pagamento de uma indenização para compensar os séculos de exploração de todos os negros pelos brancos. Os Panteras Negras envolveram-se em vários conflitos com a polícia e foram acusados de vários ataques violentos na Califórnia, Nova York e Chicago.
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O mundo no tempo das pestes

O mundo no tempo das pestes

Ao longo da História, as epidemias provocaram mais mortes do que todas as guerras. A descoberta dos antibióticos diminuiu esse risco até a chegada da Aids, que ainda desafia os remédios

Lúcia Helena de Oliveira e Regina Prado
Nos países industrializados, os problemas cardíacos e o câncer formam uma dupla campeã de causa de mortalidade, devido aos hábitos e, ironicamente, à longevidade conquistada pelo homem moderno. Pois essas doenças degenerativas precisam de um tempo maior para se desenvolverem. E, até o início deste século, as pessoas costumavam morrer antes desse prazo, infectadas por parasitos de toda espécie. Contudo, apesar de provocarem um menor número de vítimas hoje em dia, as doenças infecciosas continuam a atemorizar, talvez por serem as únicas transmissíveis de uma pessoa para outra. A compreensão das infecções começou a avançar para valer em 1348, quando estourou a chamada Peste Negra na Europa. Foi uma dura lição: em apenas dois anos, morreu de peste um quarto da população do continente, estimada em 102 milhões de habitantes. Naqueles tempos, acreditava-se que até o olhar de um doente podia contaminar alguém.

Esta, ao menos, era a convicção dos mais céticos. Porque, para a maioria das pessoas, uma epidemia — ou seja, o surto de uma doença infecciosa — era um castigo divino, que vinha diretamente do céu ou, quem sabe, do inferno.Por isso, no auge da epidemia de peste, o papa Clemente VI conclamou os fiéis de toda parte a pedir clemência em Roma. “Acredita-se que 1,2 milhão de peregrinos tenham atendido ao pedido”, informa o epidemiologista Afonso Dinis Costa Passos, professor da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto, interior do Estado. “Mas, no meio do caminho, nove em cada dez pessoas caíram mortos. Quem chegou em Roma, por sua vez, não viu o papa, que preferiu ficar encarcerado, com medo de se transformar em mais uma vítima.” Fugir literalmente das doenças era a única terapia eficiente no passado: o escritor italiano Giovanni Boccaccio (1313-1375), em um dos contos de seu célebre Decamerão, relatou que sete donzelas e três rapazes se refugiaram em uma casa de campo, para se prevenir da peste em Florença; ali ficaram, durante mais de mil e uma noites, inventando histórias para passar o tempo.

Entre os séculos XIV e XVIII ocorreram nada menos que dez pandemias, ou seja, a doença se espalhou pelo mundo inteiro. Ao primeiro sinal da peste nas cidades, os ricos escapavam para o campo e eram, geralmente seguidos pelos médicos, que precisavam de pacientes endinheirados para pagar por seus serviços. “A doença, em uma etapa inicial, era transmitida pelos ratos, infectados pelo bacilo Yersinia pestis”, explica Passos. Em Veneza, aliás, por volta de 1350, as pessoas já desconfiavam do papel sinistro dos roedores. Daí, quando um navio chegava do Oriente, os passageiros ficavam retidos na embarcação durante quarenta dias, por causa da possibilidade de os porões esconderem ratos clandestinos. Passado esse período, se não havia sinal da peste, o capitão hasteava uma bandeira branca na proa: estava criada a quarentena, conhecida até hoje. Baixo e calvo, o epidemiologista tem mania de organização; por isso, redigiu de maneira clara as formas de contaminação de diversas doenças — “antes de cursar Medicina, queria ser jornalista”.

Segundo Passos, o bacilo da peste, ao infectar o organismo humano, se aloja nas células dos gânglios linfáticos que, aproximadamente, dois dias mais tarde ficam inflamadas, formando ínguas ou bubões — eis a razão do nome peste bubônica. “Mas, em uma segunda fase da moléstia, as bactérias escapam pelas secreções do nariz. Então, torna-se possível a transmissão entre pessoas”, descreve o médico, com a fala mansa. “Havia lógica, portanto, no movimento de fuga das cidades: a aglomeração urbana oferecia mais riscos do que a vida no campo." Ao observar que a proximidade tornava a contaminação viável, o francês Charles Delorme (1584-1678), médico de Luis XIII, defendeu o uso de vestimentas especiais, durante uma epidemia de peste em Marselha. Ele criou, assim, o primeiro uniforme de médico, nada parecido, aliás, com o tradicional avental branco: o modelo escuro exibia uma máscara na forma de bico, que continha substâncias aromáticas.

“Na época, prevalecia a corrente miasmática, ou seja, acreditava-se que as doenças eram como seres malcheirosos, que se incorporavam em uma pessoa através do ar”, conta o médico Emerson Elias Mehry, professor da Universidade de Campinas. Miasma, por sinal, é o odor de animais e plantas em putrefação. Barbudo, com olhos azuis brilhantes, Mehry divide o seu dia-a-dia entre organizar programas de saúde pública e estudar a história da Medicina, sobre a qual escreveu diversos trabalhos. “O que conhecemos como clínica médica surgiu há apenas cerca de 200 anos. Até então, os tratamentos eram quase sessões de exorcismo”, diz ele. De fato, os médicos jogavam baforadas de fumaça, produzida pela queima de tabaco, para expulsar a peste de seus pacientes. E, se o doente morria, os coveiros fumavam cachimbo, na hora de enterrar o corpo. Mesmo com toda essa suposta proteção, os médicos preferiam manter distância e lancetavam os bubões dos doentes com facas que podiam medir até 1,80 metro. Graças à habilidade com as lâminas, eles na maior parte das vezes acumulavam as funções de cirurgião e barbeiro.

Só em 1890, o pesquisador suíço Alexandre Yersin (1863-1943) e o japonês Shibasaburo Kitasato (1856-1931) descobriram, em Hong Kong, o bacilo causador da peste. Na realidade, o Yersinia pestis não surgiu de repente, isto é, já existia muito antes das epidemias medievais. Há indícios de que a maioria dos agentes infecciosos conhecidos hoje convivem com o homem desde a Pré-história. Por incrível que pareça, apesar dos danos que provocam à nossa vida, esses microorganismos são os maiores derrotados na batalha pela sobrevivência. Pois os parasitos bem-adaptados ao longo da evolução não matam seus hospedeiros, numa atitude suicida, como fazem os infecciosos. Por sinal, é provável que alguns destes tenham, primeiro, infectado bichos; mas, quando o homem passou a domesticar animais, esses microorganismos passaram por mutações genéticas, a fim de aproveitar a oportunidade de parasitar outra espécie — a humana. Estudos na área da Genética mostram que o vírus do sarampo, por exemplo, é descendente direto do vírus da raiva nos cães. Já o vírus da gripe tem um parente próximo, que prefere infectar os porcos. A varíola, por sua vez, seria similar a uma moléstia típica das vacas.

Mas, pior do que a passagem do bicho para o homem — que pode levar milhares de anos — é a contaminação de um ser humano por outro ser humano, que costuma ser imediata. Uma prova disso é a expansão dos povos mediterrâ-neos que, de acordo com os historiadores, coincidiu com uma série de registros de epidemias. Por volta do ano 500 a.C., esses povos aprenderam a navegar. Antes, cada cidade, isolada, tinha doenças locais, às quais as pessoas estavam adaptadas de alguma maneira. Elas, até então, se deslocavam por terra. Ou seja, se um viajante adoecia no caminho, tinha grande probabilidade de morrer antes de terminar o trajeto. No entanto, com a velocidade das travessias por mar, em que se percorriam cerca de 100 quilômetros por dia com a ajuda do vento, era possível um doente chegar vivo ao destino — e transmitir a moléstia.

Muito mais tarde, no século XII, por exemplo, a lepra chegou ao Ocidente, no rastro das Cruzadas. Segundo as famosas tábuas de Hamurabi, rei da Babilônia, datadas do século XVIII a.C, a doença existia em sua época, quando desfigurava seus súditos. De fato, o bacilo de Hansen, causador do mal — descoberto apenas em 1873 —, provoca lesões da pele, arrasando com suas terminações nervosas. A aparência das vítimas era assustadora. Por isso, os europeus, espantados com a suposta nova doença, resolveram segregá-las em asilos, os lazaretos, assim chamados porque os primeiros deles surgiram na Ilha de San Lazzaro, perto de Veneza. No século XVIII, somavam-se cerca de 19000 lazaretos na Europa, sempre fora dos portões das cidades.

Eram verdadeiras prisões: bastava uma denúncia e o paciente era obrigado a se apresentar a médicos ou sacerdotes. Uma vez diagnosticada a pretensa lepra, ele recebia um uniforme e uma matraca, que servia para avisar os outros da sua presença, nas raras vezes em que saísse do lazareto, onde estava condenado a passar o resto de seus dias. Freqüentemente, porém, o diagnóstico era um terrível engano. Quando, em 1860, o médico francês Paul Broca examinou os crânios de um antigo cemitério de leprosos, grande parte das lesões encontradas eram sifilíticas. Por esse mesmo motivo, aliás, em 1626, Luís XIII ordenou o fechamento de todos os lazaretos franceses — consta que, quando seus dois médicos particulares resolveram inspecionar um desses locais, não encontraram um leproso sequer.

“Preferimos chamar a doença de hanseníase, para evitar a lembrança desse estigma do passado”, informa o pediatra Wagner Augusto Costa, diretor do Centro de Vigilância Epidemiológica de São Paulo. A hanseníase ainda reúne cerca de 15 milhões de vítimas no mundo inteiro. “Mas, por sorte, elas contam com bons remédios, especialmente se o problema for diagnosticado em fase inicial, ou seja, quando a pele perde a sensibilidade ao calor”, diz o médico. Confundida com essa doença, pelas feridas que provoca, a sífilis — infecção transmitida sexualmente, que podia ser fatal até a descoberta da penicilina, há sessenta anos —, irrompeu na Europa quando os conquistadores voltaram da América.

Os primeiros casos aconteceram em Barcelona, em 1493, por isso o mal ficou conhecido como “doença espanhola”. Poucos anos depois, surgia na França e, quando apareceram casos na Alemanha, citavam a “doença francesa”. Como os europeus costumavam viajar para o Oriente, em 1496 já se encontravam sifilíticos na Ásia. O médico alemão Johannes Widmann (1440-1553) reconheceu que as pessoas se contaminavam pelo sexo — uma dedução fantástica, considerando os recursos da época. Em países como a França e a Alemanha, os banhos públicos mistos foram terminantemente proibidos. Mas isso não resolveu o problema das epidemias, já que os marinheiros, na volta de suas viagens, continuavam espalhando a doença.

Como a sífilis, outras doenças fizeram longas trajetórias, acompanhando o homem em suas conquistas. Com isso, pode-se dizer que uma das maiores marcas da Idade Moderna foi a eclosão simultânea de diversas epidemias. Estima-se, por exemplo, que entre os séculos XVI e XVII, na Inglaterra, nove em cada dez mortes eram por doenças infecciosas. Pois, nessa época, ali existiam ao mesmo tempo epidemias de sarampo, cólera, varíola, peste bubônica, sífilis, lepra e tuberculose — era mesmo difícil sair imune. É claro que uma doença surge quando um parasito, para se reproduzir, precisa destruir as células do organismo em que se hospeda — estrago que se reflete nos sintomas da moléstia.

Por sua vez, corre-se o risco de epidemias, se o microorganismo vândalo pega carona no organismo de um viajante — isto faz sentido. Mas, muitas pessoas podem se indagar como, depois de atravessar tantas epidemias, o homem conseguiu sobreviver até a década de 40 deste século, quando se testaram pela primeira vez as drogas antibióticas, capazes de curar todas as infecções, menos as produzidas por vírus. Uma coisa é certa: a cada surto de determinada infecção, os sobreviventes tendem a adquirir anticorpos específicos contra o parasito responsável, surgindo gerações de pessoas cada vez mais resistentes. Além disso, muitas vezes, uma bactéria compete com outra — e, nessa briga, o homem pode sair ganhando.

Durante muito tempo, os cientistas buscaram explicações para o final das reincidências de peste bubônica. Estudos recentes sugerem que as epidemias de tuberculose no século XVIII serviram para imunizar as pessoas contra a peste. Ou seja, os anticorpos que o organismo cria para combater o bacilo de Koch, responsável pela doença pulmonar, eram versáteis o bastante para atacar também a outra bactéria. Mas a tuberculose, embora grave, matava com menos freqüência do que a peste. Esta, infelizmente, teve um substituto à altura: naquele século, eclodiram inúmeros casos de tifo na Inglaterra. Dali, o mal partiu para a América, incluindo o Brasil. Dores de cabeça insuportáveis e febres altíssimas eram queixas comuns nas prisões inglesas.

Transmitido pelo piolho, o tifo resulta diretamente da falta de higiene. A situação piorou quando os soldados de Napoleão, em sua retirada da Rússia, entre 1813 e 1814, espalharam a doença por toda a Europa. Aliás, as guerras facilitam o aparecimento de certas epidemias, como a do tifo. Por sorte, logo em seguida, o estudo das doenças passou por duas verdadeiras revoluções. Isso porque, apesar de as bactérias terem sido descobertas em 1674 pelo microscopista holandês Van Leeuwenhoek, apenas no século XIX o químico e microbiologista francês Louis Pasteur conseguiu provar que os microorganismos são capazes de provocar doenças.“Só então, com o avanço da Bacteriologia, os médicos começam a combater efetivamente as moléstias”, opina Emerson Mehry, da Unicamp. “Antes, determinada doença era encarada como uma série de sintomas, com uma ordem de entrada em cena que, conforme o caso, podia até ser bem conhecida dos médicos”, explica o estudioso da história. “Eles esperavam ou provocavam um por um dos sintomas, de modo que, se passasse o último deles, a doença teria igualmente passado.

”Outro passo importante foi a investigação, realizada em 1842, pelo médico inglês Edwin Chadwick: ele mostrou a relação entre a presença de doenças e as péssimas condições de moradia, a falta de esgotos, a ausência de água limpa, erros na remoção e no tratamento do lixo. “É óbvio que sempre existiram pessoas vivendo em condições precárias”, esclarece Mehry. “Na Idade Média, na falta de agasalhos, muitos camponeses dormiam juntos para se aquecer. Mas, então, ninguém atinava que a proximidade ajudaria a disparar epidemias.” Na opinião do pesquisador, as pessoas só passam a prestar atenção na doença quando ela, de alguma maneira, atrapalha quem está no poder. “No início do século passado, existia um interesse do governo inglês em estabelecer medidas sanitárias, porque se observava que operários saudáveis trabalhavam melhor nas indústrias recém-criadas”, exemplifica. “Do mesmo modo, no início deste século, os médicos e os governantes brasileiros declararam guerra contra a febre amarela Isso porque a economia do país se baseava na exportação de produtos agrícolas e a notícia de uma epidemia em São Paulo impedia que certos países permitissem a emigração de camponeses.”Em 1918, enquanto os brasileiros penavam com a febre amarela, uma gripe violenta matava milhares de pessoas na Espanha. Logo, a gripe espanhola, como ficou conhecida, se transformou em uma pandemia. Em países em desenvolvimento a doença chegou a matar metade da população.Na a Alemanha, naquele ano, uma em cada quatro mortes era causada pela gripe, que provavelmente se originou na China. “É como se existissem várias versões do vírus da gripe”, define o infectiologista Vicente Amato Neto, superintendente do Hospital das Clínicas de São Paulo.

“Teoricamente, sempre há a possibilidade de um vírus desses surpreender o sistema imunológico das pessoas, causando uma epidemia.” Mas, na sua opinião, com os recursos da Medicina moderna, dificilmente haverá tantas mortes como no passado: em um tempo relativamente curto, os laboratórios conseguem identificar detalhes de um agente infeccioso, indicando as melhores armas, nas prateleiras das farmácias, para combatê-lo. “De modo geral, a ciência conhece os meios de controlar a maioria das infecções. O que falta, às vezes, é força de vontade para aplicar algumas medidas sanitárias. Além disso, no Brasil temos o problema da fome, que enfraquece o organismo, aumentando o poder devastador de qualquer doença.”No que diz respeito ao estômago, este é um planeta enfraquecido: dos 5,2 bilhões de habitantes, 3 bilhões são subnutridos, ou seja, trinta a cinqüenta vezes mais sujeitas a morrer por causa de uma infecção. Amato só desanima quando o assunto é Aids : “Trata-se de uma infecção com características muito especiais,” garante.

“Por mais que o governo desenvolva meios de controle, como o exame do sangue doado em bancos, não se pode garantir que as pessoas estejam levando a sério os cuidados a respeito da própria vida sexual. Além disso, no caso dos drogados, um dos principais grupos de risco, eles parecem não ouvir ninguém.” Segundo a Organização Mundial da Saúde, 75% das pessoas infectadas pelo vírus da Aids são heterossexuais. “Em um país com tradição machista, como o Brasil, as coisas ficam mais difíceis. A troca constante de parceiros é encarada com naturalidade. Se continuar nesse ritmo, a Aids matará mais pessoas do que as pestes do passado”, afirma. Seu colega de consultório, o infectiologista David Éverson Uip é mais otimista: “Acho absurdo que o número de casos continue aumentando”, diz, num tom francamente espantado. “O simples uso da camisinha pode evitar a epidemia.”

Revista Superinteressante

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Saúde e Doença na Idade Média: entre o castigo e a redenção

"A extração da pedra da loucura" (1485), do pintor italiano Hieronymus Bosch (1450-1516), retrata a concepção medieval que supunha a loucura como uma pedra no cérebro. Bosch, na sua imaginação, no momento da extração da doença, coloca no lugar da dureza da pedra a delicadeza de uma flor. A imagem que se tinha da loucura era de algo místico, desconhecido, considerado o lugar imaginário da passagem da vida à morte.

Ma Idade Média, o espetáculo da doença e da morte atingia a todos. Para lubridiar a morte, evitava-se o contato, a proximidade, o toque e, ao mesmo tempo, buscava-se neutralizar com perfumes e com máscaras os odores que corrompiam o ar. Por isso, os médicos que cuidavam de doentes com a peste negra usavam máscara como uma forma de proteção. O formato de um bico de pássaro era para distanciar ainda mais o contato com o ar pestilento.


O Navio dos Loucos, pintura de Hieronymus Bosch (1450 - 1516), apresenta, de forma alegórica, a devassidão e a profanidade presentes em todos os grupos sociais da Idade Média, incluindo o Clero, como se pode ver na imagem onde são retratados uma freira e um frade franciscanos que se encontram tão distraídos, tentando fincar os dente num pedaço de pão pendurado por um fio, que nem reparam que um ladrão tenta roubar o pouco que lhes resta. Na imagem, mais uma vez, a morte é representada pela caveira na árvore. (Fonte: www.wikipedia.org - em junho de 2010)


Carlos Batistella
Com a queda do Império Romano e a ascensão do regime feudal, por volta do ano 476 d.C., evidenciaram-se o declínio da cultura urbana e a decadência da organização e das práticas de saúde pública. As instalações sanitárias tanto na sede como nas províncias do antigo Império foram destruídas ou arruinaram-se pela falta de manutenção e reparos (Rosen, 1994).

Enquanto no Ocidente a desmantelação da máquina do governo e o declínio econômico fazia o Império agonizar; no Oriente, em Bizâncio (hoje Istambul, Turquia), onde as invasões bárbaras não chegaram a ameaçar, foram mantidas várias das conquistas do mundo clássico e a herança da tradição médica greco-romana.

A Idade Média (500-1500 d.C.) foi marcada pelo sofrimento impingido pelas inúmeras pestilências e epidemias à população. A expansão e o fortalecimento da Igreja são traços marcantes desse período.

O cristianismo afirmava a existência de uma conexão fundamental entre a doença e o pecado. Como este mundo representava apenas uma passagem para purificação da alma, as doenças passaram a ser entendidas como castigo de Deus, expiação dos pecados ou possessão do demônio. Conseqüência desta visão, as práticas de cura deixaram de ser realizadas por médicos e passaram a ser atribuição de religiosos. No lugar de recomendações dietéticas, exercícios, chás, repousos e outras medidas terapêuticas da medicina clássica, são recomendadas rezas, penitências, invocações de santos, exorcismos, unções e outros procedimentos para purificação da alma, uma vez que o corpo físico, apesar de albergá-la, não tinha a mesma importância. Como eram poucos os recursos para deter o avanço das doenças, a interpretação cristã oferecia conforto espiritual, e morrer equivalia à libertação (Rosen, 1994).

A difusão da igreja católica e de sua visão tornou marginal qualquer explicação racional que pretendesse aprofundar o conhecimento a partir da observação da natureza. As ciências, e especialmente a medicina, eram consideradas blasfêmias diante do evangelho. A especulação científica era, portanto, desnecessária (Scliar, 2002). Assim, o desenvolvimento da medicina só teve continuidade entre os árabes e judeus, onde a tradição de Hipócrates e Galeno de Pérgamo foi acrescida de importantes estudos em farmacologia e cirurgia. Destacam-se nesse período Avicena (980-1037) e Averróes (1126-1198).

O medo das doenças era constante nos burgos medievais. Dentre as inúmeras epidemias que aterrorizavam as populações (varíola, difteria, sarampo, influenza, ergotismo, tuberculose, escabiose, erisipela etc), a lepra e a peste bubônica foram, sem dúvida, aquelas de maior importância e preocupação.

Caso emblemático, a lepra era tida como manifestação evidente da impureza diante de Deus, e seus portadores deveriam ser condenados ao isolamento, conforme descrição bíblica. Considerados mortos, rezava-se uma missa de corpo presente antes do mesmo seguirem para o leprosário. Aqueles que vagassem pelas estradas deveriam usar vestes características e fazer soar uma matraca para advertir a outros de sua perigosa ameaça. Todo estigma e as conseqüências de seu diagnóstico fizeram da lepra a doença mais temida nesse período (Rosen, 1994; Scliar, 2002).

A peste bubônica, por sua vez, marcou o início e o ocaso da Idade Média. Causada por uma bactéria, Pasteurella pestis, transmitida pela pulga de ratos, a doença foi responsável pela morte de cerca de ¼ da população européia em 1347. Dentre as principais causas apontadas estavam as viagens marítimas e o aumento da população urbana, que, somados aos conflitos militares, aos intensos movimentos migratórios, à miséria, à promiscuidade e à falta de higiene nos burgos medievais, tornaram o final deste período histórico digno da expressão muitas vezes evocada para descrevê-la: a idade das trevas.

Ainda que limitadas, algumas ações de saúde pública foram desenvolvidas na intenção de sanear as cidades medievais. A aglomeração crescente da população – que chegava trazendo hábitos da vida rural, como a criação de animais (porcos, gansos, patos) –, o acúmulo de excrementos nas ruas sem pavimentação, a poluição das fontes de água, a ausência de esgotamento e as péssimas condições de higiene, produziam um quadro aterrador. Buscou-se então garantir o suprimento de água aos moradores para beber e cozinhar; pedia-se que não fossem lançados animais mortos ou refugos na corrente do rio; proibiase a lavagem de peles e o despejo de resíduos dos tintureiros nas águas que serviam à comunidade.

Somente no final da Idade Média é que, pouco a pouco, foram sendo criados códigos sanitários visando normatizar a localização de chiqueiros, matadouros, o despejo de restos, o recolhimento do lixo, a pavimentação das ruas e a canalização de dejetos para poços cobertos (Rosen, 1994). Ainda assim, é preciso lembrar que os hábitos culturais dos habitantes tornavam boa parte das medidas inócuas.

Também na Idade Média é que surgem os primeiros hospitais. Originados da igreja, nas ordens monásticas, inicialmente estavam destinados a acolher os pobres e doentes. Para Foucault (1982a: 99-100),

Antes do século XVIII, o hospital era essencialmente uma instituição de assistência aos pobres. Instituição de assistência, como também de separação e exclusão. O pobre como pobre tem necessidade de assistência e, como doente, portador de doença e de possível contágio, é perigoso. Por estas razões, o hospital deve estar presente tanto para recolhê-lo quanto para proteger os outros do perigo que ele encarna. O personagem ideal do hospital, até o século XVIII, não é o doente que é preciso curar, mas o pobre que está morrendo. É alguém que deve ser assistido material e espiritualmente, alguém a quem se deve dar os últimos cuidados e o último sacramento. (...) E o pessoal hospitalar não era fundamentalmente destinado a realizar a cura do doente, mas a conseguir sua própria salvação.
Outra importante contribuição deste período foi a instituição da prática da quarentena para deter a propagação das doenças. A êxito da experiência do isolamento de leprosos – embora proposta por razões religiosas – reforçou a idéia de sua utilização para outras doenças comunicáveis. Diante da epidemia da peste, em meio a outras práticas baseadas na compreensão miasmática e no misticismo (como uso de perfumes, fogueiras purificadoras etc), a retirada das pessoas da convivência e a sua observação até a garantia de que não estivessem doentes já apontavam uma preocupação com a natureza contagiosa de algumas doenças.

Surgida em 1348 em Veneza, principal porto de comércio com o Oriente, a quarentena consistia na notificação de casos suspeitos às autoridades e no isolamento e observação rigorosa de pessoas suspeitas, embarcações e mercadorias por quarenta dias, em uma ilha situada na laguna. Posteriormente, outros locais foram designados com a finalidade de promover a reclusão quarentenária.

Como síntese desse período, parece-nos importante lembrar que, embora a natureza comunicável de algumas doenças fosse cada vez mais nítida - como a lepra e a peste –, a teoria miasmática ainda persistia como modelo explicativo. Ou seja, não havia evidência do elemento comunicável que não aqueles já sugeridos por Hipócrates: uma alteração atmosférica, onde águas estagnadas e matéria orgânica em decomposição corrompiam o ar. Naturalmente que, sob o poder da igreja, foram desautorizadas todas as iniciativas de avanço no conhecimento das causas das doenças e até mesmo de sugestão de qualquer explicação que estivesse além da fé. Aqueles que insistissem enfrentariam os tribunais da Inquisição.
FIOCRUZ

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Carlos Lacerda - A ira sagrada de um polemista



A vida de Carlos Lacerda, um radical ambicioso e brilhante, capaz de derrubar governos

CECILIA PRADA

Em tempos como estes, em que diariamente sucedem-se palpites e vaticínios sobre o destino da mídia escrita, em que a denominada “grande imprensa” – também chamada de “quarto poder” – cotidianamente é acusada de incentivar golpes de Estado e conspirar contra o governo, talvez seja salutar tirar das prateleiras do passado uma figura de jornalista que passou à história como polemista singular, impulsivo, intempestivo e ambicioso, capaz de derrubar governos e estabelecer nos bastidores uma rede de intrigas da qual ele próprio acabou vítima – Carlos Frederico Werneck de Lacerda (1914-1977), glorificado por uns, demonizado por outros. Porque, diga-se o que se disser dele, não incidiu, pelo menos, na abominação estabelecida na Bíblia para os que são “mornos” e devem ser cuspidos da boca do Senhor.

Se o nome ou nomes que recebemos ao nascer não são escolhidos ao acaso, mas obedecem a editos transcendentais das estrelas – como dizem os adeptos da astrologia –, os que foram dados ao menino nascido no Rio de Janeiro em 30 de abril de 1914 e registrado em Vassouras (RJ) resultaram de imposição mais clara da vontade dos familiares, os quais eram políticos e comunistas. Seu avô paterno, Sebastião Eurico de Lacerda, foi ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas de 1897 a 1898, no governo de Prudente de Morais, e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) de 1912 a 1925. Os nomes escolhidos para o rebento foram “Carlos” (Marx) e “Frederico” (Engels) porque seu pai, o jornalista e político Maurício de Lacerda, participou de várias revoluções, foi membro da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e acusado de envolvimento na intentona comunista de 1935 – nessa ocasião o jovem Carlos, que desde cedo e até 25 anos seguiu a linha política da família, também teve de se esconder em uma chácara durante algum tempo. Seus tios, Fernando e Paulo de Lacerda, foram líderes do Partido Comunista Brasileiro, então chamado Partido Comunista do Brasil (PCB).

Carlos Frederico, porém, proclamaria sempre que era um grande entusiasta e defensor da democracia e da liberdade de expressão. E somente por volta de 1939 foi que rompeu com os correligionários comunistas, pois então teria percebido que sua doutrina levaria a uma ditadura pior que as outras, porque muito mais organizada e, portanto, muito mais difícil de derrubar.

Sabemos, porém, que sempre que ocorrem súbitas mudanças de opinião política não prevalecem argumentos meramente ideológicos, principalmente quando se trata de personalidades ativas na vida pública. Como se deu então essa passagem, em Carlos Lacerda, do ativismo comunista à posição, mantida até o fim da vida, de aderência total aos princípios conservadores e direitistas, dos quais foi o maior porta-voz e articulador?

Um episódio está ligado a essa “conversão”: o rompimento foi consolidado com a publicação, na revista “Observador Econômico e Financeiro”, de um artigo de sua autoria encomendado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), no qual contava a história do comunismo no Brasil e afirmava ao final que, graças ao Estado Novo, o PCB havia sido desbaratado e seus líderes, presos. Em consequência, os comunistas acusaram-no de traidor, contrariando sua versão, segundo a qual o próprio comitê central do partido o autorizara a escrever o artigo, já que, se não o fizesse, a incumbência caberia a “um jornalista ferrenhamente anticomunista”.

Detalhes da punição dada a Lacerda pelo “Partidão” circularam no Rio de Janeiro: o “traidor” teria levado uma surra dos companheiros, antes de ser expulso. Aliás, durante sua agitada existência foram várias as surras que recebeu, devido a excessos verbais, dos inimigos do momento – que poderiam, principalmente no caso de políticos, repentinamente se transformar em “amigos”, e vice-versa. E quando se envolveu na campanha pela deposição de Getúlio Vargas, em 1954, o revide dos atingidos por ele chegou mesmo ao famoso atentado da Rua Tonelero, um episódio que teve a capacidade de mudar a história do país.

Nos anos 1940, Carlos Lacerda teria outra “conversão” – ao catolicismo, levado por Alceu Amoroso Lima e Gustavo Corção. A intelectualidade brasileira ecoava a orientação política do Vaticano de Pio XI, que visava a uma aproximação com os setores dominantes da sociedade, com o recrudescimento da intolerância contra os demais credos e contra o marxismo-comunismo.

Mergulhando na história política do país no período de 1930 a 1964, vemos agora, com o distanciamento de meio século, uma característica primordial da época: na esquerda ou na direita, em todas as correntes ideológicas foi constante o desejo, mal dissimulado em uns, explícito em outros, de um governo forte, ditatorial, personalista, sob o pretexto de se dar ao povo brasileiro – diziam políticos de todo naipe – “democracia, justiça e melhores condições de vida”. Da revolução de Vargas ao estabelecimento efetivo da ditadura militar em 1964 – que duraria 21 anos –, nosso país tornou-se palco de conflito contínuo entre facções aparentemente opostas, mas na realidade muito semelhantes, calcadas abertamente nos regimes totalitários que infestavam o planeta, do nazismo-fascismo ao comunismo soviético.

Se o sonho de governar rasgando a Constituição e dissolvendo o Congresso teve dois momentos explícitos – o Estado Novo e o golpe de 1964 –, ele germinou também amplamente na mente de outras figuras que passaram à história, intelectuais, políticos, governantes: de Luís Carlos Prestes (na intentona de 1935) a Plínio Salgado (com sua tentativa de golpe integralista em 1938), de Jânio Quadros a João Goulart – e inclusive a Carlos Lacerda, que visava chegar à presidência da República. Juscelino Kubitschek constituiu, nesse particular, exceção absoluta – fez sempre questão de governar com a Constituição na mão.

Carisma

Muito culto, dotado de grande inteligência e de um extraordinário poder de expressão verbal e escrita, atraente fisicamente, Lacerda tinha tudo para se tornar um líder político desde a juventude. Nas fileiras comunistas opôs-se sempre a Vargas e manteve-se coerente nessa posição, fazendo da luta contra seus seguidores – explícitos ou embuçados – uma linha constante, através dos anos. Esteve por trás, inegavelmente, das várias conspirações que visaram depor Getúlio e, depois de seu suicídio, perseguiu incansavelmente os que seriam seus continuadores, de Juscelino Kubitschek a Jânio Quadros e João Goulart.

A carreira política de Lacerda, no entanto, tornou-se mais uma consequência de sua intensa e incansável trajetória como jornalista. Ele tem sido comparado, pela audácia das posições que assumia e pelo vigor do que escrevia, com outro jornalista político, Cipriano Barata, do século 19. Como aconteceu com a maioria dos profissionais da imprensa, atravessou, na mocidade, um período em que não tinha mais onde escrever – os donos de jornais temiam sua veemência imprudente, que poderia metê-los em grandes encrencas.

Foi assim que em 1947, após ter sido demitido do “Correio da Manhã” por ter feito mira em suas críticas em um amigo de Paulo Bittencourt, dono desse diário carioca, resolveu fundar seu próprio jornal, levando consigo o título da coluna que lhe dera fama, “Tribuna da Imprensa”. Teve ajuda financeira tanto do Banco de Crédito Real de Minas Gerais como de senhoras da sociedade que eram suas fãs inveteradas – uma de suas paixões, plenamente correspondida, foi pela atriz Maria Fernanda, filha da poeta Cecília Meireles. Outra, como nos conta seu principal biógrafo, John W. Foster Dulles, foi a atriz americana Shirley MacLaine.

De 1949 a 1960 Lacerda transformou a “Tribuna da Imprensa” em púlpito de pregação contra corrupções e negociatas generalizadas e contra todos os seus desafetos, isto é, os que não pensassem como ele. Era insaciável e obcecado nos ataques, como disse o jornalista Hélio Fernandes em entrevista concedida em 1977 a Sebastião Nery: “Seus inimigos que ficassem atentos, [Lacerda] acertaria as contas com os comunistas, com quem sentasse na cadeira de presidente da República, com generais, empresários que viviam de subsídios do governo e com os adversários, de modo geral. De seu alcance não fugiriam nem os udenistas [membros da União Democrática Nacional (UDN), partido ao qual o próprio Lacerda era ligado] que contrariassem suas ideias e posições”.

Outro jornalista famoso de sua época, Murilo Melo Filho, da revista “Manchete”, diria dele: “Nunca vi uma pessoa tão extremada e tão apaixonada pela vida. Tudo nele era grande: as qualidades e os defeitos. Idealista, ele tinha o entusiasmo próprio da juventude. Ficava tão absorvido com o trabalho na ‘Tribuna’ que às vezes nem sequer ia para casa. Dormia na redação, em cima de mesas forradas com jornais”.

Campanhas e crises

O fato de ter jornal próprio possibilitou a Lacerda manter longas e acérrimas campanhas contra o alvo da vez, que às vezes era até mais de um. Esbravejava com a ira sagrada de um Danton contra os assuntos mais comezinhos, como o desperdício do dinheiro público que constituía a compra de um casal de girafas para o Zoo do Rio de Janeiro.

Ficou famosa a campanha que moveu contra um rival de jornalismo, Samuel Wainer, proprietário do “Última Hora”, ligado ao grande inimigo, Getúlio Vargas – acusava-o de só ter podido criar e manter seu jornal devido a um financiamento ilícito obtido por favor do presidente, no Banco do Brasil. Foi tido como “permanentemente oposicionista” ao governo e realmente desestabilizou com sua oratória e seus artigos três governos, o de Vargas, o de Jânio Quadros e o de João Goulart.

Seus inimigos o apelidaram de “O Corvo” e “O Demolidor” – a maioria de seus contemporâneos, como o veterano jornalista Villas-Bôas Corrêa, vê nele qualidades de coragem e ousadia, mas lamenta os defeitos de seu radicalismo cego. Ele seria “muito bom para destruir, mas na hora de construir....” – o que não é exatamente verdade, pois Lacerda, que foi o primeiro governador do estado da Guanabara (1960-65), mostrou nesse cargo capacidade de ótimo administrador e empreendedor, enfrentando questões relacionadas à qualidade de vida da cidade multiproblemática que era o Rio de Janeiro da época, onde não havia nem mesmo um sistema racional de distribuição de água à população ou infraestrutura viária adequada ao trânsito.

Contra Getúlio

Como comunista militante, o jovem Lacerda planejou, em janeiro de 1931, incentivar marchas de desempregados no Rio de Janeiro e em Santos (SP), durante as quais ocorreriam ataques a casas comerciais. Essa espécie de “conspiração”, descoberta e desbaratada pela polícia, foi noticiada até no “The New York Times”. Embora desligado dos comunistas alguns anos mais tarde, ainda durante o Estado Novo assumiu como sua causa principal a derrubada de Vargas e dos movimentos políticos trabalhistas.

Nos anos 1950, já filiado à UDN, batalhou pela não eleição de Vargas e foi certamente a pessoa mais ativa em continuar a atacá-lo após a volta dele ao poder – englobando em seu ódio todos os políticos que considerava como continuadores do “varguismo” – até Juscelino Kubitschek. Lacerda conservou e cultivou sua atitude de violenta rejeição a JK – que passou à história como conciliador, eficiente e democrata, sendo conhecido pelo carisma pessoal que possuía e que fazia dos inimigos amigos.

Com o dono da “Tribuna da Imprensa” isso não foi possível. Como diz um dos biógrafos de JK, Claudio Bojunga, a única pessoa que Juscelino temia era Lacerda – o presidente confessava mesmo que ele era a primeira pessoa em quem pensava, a cada manhã. O jornalista moveu-lhe campanha cerrada, empenhado em não deixar que assumisse, depois de eleito, o cargo de presidente. Chegou mesmo a chamá-lo, em um artigo, de “cafajeste máximo” – tentava desmoralizá-lo, porque sabia que não poderia nunca vencê-lo nas urnas. No entanto, muitos anos mais tarde, quando Juscelino – que fora por ele incluído, com Jango, em sua Frente Ampla para a Redemocratização do País – morreu, Lacerda não hesitou em dizer: “A qualidade mestra de JK era a tolerância, a compreensão, o respeito à inteligência. Que sua morte sirva para restabelecer essas virtudes no Brasil”.

Em agosto de 1953, Lacerda fundou no Rio de Janeiro o Clube da Lanterna, que, congregando diversos parlamentares, principalmente udenistas, tinha por objetivo combater o governo Vargas. Tornou-se presidente de honra da nova entidade e apertou o cerco contra Getúlio, que já lutava para se defender da acusação de governar “em um mar de lama”. A situação agravou-se repentinamente no dia 5 de agosto de 1954, quando Lacerda foi vítima de um atentado, na porta de sua casa, na Rua Tonelero – que causou a morte do major da aeronáutica Rubens Vaz, que o escoltava. Ferido apenas no pé, ainda no pronto-socorro o jornalista atribuía o crime ao governo. Com o envolvimento provado no atentado do chefe da guarda presidencial, Gregório Fortunato, e até do irmão de Getúlio, Bejo Vargas, um manifesto de 30 militares exigiu no dia 23 de agosto, com o apoio maciço da aeronáutica, a renúncia do presidente – que preferiu suicidar-se, na madrugada de 24 de agosto.

A grande comoção popular causada pelo suicídio de Vargas, com ações contra a “Tribuna da Imprensa” e outros jornais antigetulistas, obrigou Lacerda a sair do Rio de Janeiro e esconder-se durante breve tempo. Em janeiro de 1955, já publicava um artigo defendendo abertamente a intervenção militar, preconizando que o governo fosse entregue a “mãos fortes” e conclamando à “união das forças democráticas”, que, a seu ver, encontravam-se ameaçadas com a possibilidade de vitória de Kubitschek. Dali por diante, até o golpe ditatorial de 1964, ele manteria uma aliança com os militares, tomando parte na organização de pequenos movimentos de revolta, como os episódios de Jacareacanga, no Pará, e Aragarças, em Goiás.

A renúncia de Quadros

Durante esses anos todos Lacerda deu prosseguimento à sua própria carreira política, nas fileiras da UDN. Foi eleito deputado federal e posteriormente governador do estado da Guanabara. Apoiara Jânio Quadros na campanha à presidência, mas indispôs-se com ele devido à atitude personalista, fazendo alvo de sua crítica a política externa, que incluía a aproximação com Cuba. Exatamente sete anos após o suicídio de Vargas, em agosto de 1961, Jânio inesperadamente renunciava, depois de oito meses de governo – o motivo imediato desse gesto fora um pronunciamento feito na véspera pela televisão por Lacerda, no qual o jornalista atacava o presidente por ter dado uma condecoração a Che Guevara e denunciava que ele estaria preparando “um golpe de gabinete” e propondo “uma reforma por decreto e com o fechamento do Congresso”.

Conforme é relatado no livro 1961 – Que as Armas Não Falem, de Paulo Markun e Duda Hamilton, o governador da Guanabara chegara a Brasília no dia 18 de agosto para conferenciar com o presidente – dizia-se que ia em busca de empréstimo para seu jornal, que estava em sérias dificuldades. Hospedara-se no próprio Palácio da Alvorada e mantivera conversas particulares com Jânio e com o ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta – a quem fora encaminhado pelo próprio presidente. Quando voltou ao Alvorada, no entanto, Lacerda foi recebido apenas pelo mordomo, com um detalhe: estava com a valise do governador na mão, despedindo-o. Furioso, ao voltar para o Rio de Janeiro Lacerda lançaria seu ataque a Jânio – com o resultado que se sabe.

Seu fervor “revolucionário” recrudesceu durante o agitado e curto período do governo Jango – o inimigo da vez. Lacerda apoiou plenamente o golpe militar de 1964 e muito batalhou para torná-lo eficiente: tinha a certeza de que seria escolhido por seus amigos militares para governar o Brasil. Quando isso não aconteceu, virou a casaca e passou a defender a formação de uma Frente Ampla (foi procurar seus inimigos figadais de outrora) para a derrubada da ditadura. Em 1968, porém, foi preso e pouco depois cassado – vítima da própria serpente ditatorial que nutrira. Após uma semana em greve de fome, conseguiu ser libertado por estar com a saúde debilitada, sob risco, segundo relatou em suas memórias, de entrar em coma diabético. Em 30 de dezembro teve os direitos políticos suspensos por dez anos.

No início de 1969 viajou para a Europa e, em maio, seguiu para a África como enviado especial de “O Estado de S. Paulo” e do “Jornal da Tarde”. De volta ao Brasil, dedicou-se às atividades empresariais, nas companhias Crédito Novo Rio e Construtora Novo Rio, e editoriais, na Nova Fronteira e na Nova Aguilar, todas de sua propriedade. Sob o pseudônimo de Júlio Tavares, colaborou ainda em “O Estado de S. Paulo” e no “Jornal do Brasil”. Faleceu no Rio de Janeiro em 21 de maio de 1977.
Revista Problemas Brasileiros - SESC

Diploma de brancura



Petrônio Domingues
Professor Doutor – Departamento de História – Centro de Educação e Ciências Humanas – Universidade Federal de Sergipe – UFS – 49100-000 – São Cristóvão – SE – Brasil. E-mail: pjdomingues@yahoo.com.br

DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil (1917-1945). Trad. Claudia Sant'Ana Martins. São Paulo: Editora Unesp, 2006. 400p.

Por que estudar as relações raciais brasileiras a partir da educação? O que ocorreu com o negro no sistema educacional brasileiro nas primeiras décadas do século XX? De que maneira o fator racial determinou o sucesso ou o fracasso escolar das crianças e jovens de cor? As políticas públicas educacionais influenciaram ou foram influenciadas pelas idéias do racismo científico daquela conjuntura histórica? Como as políticas de expansão e reforma do sistema escolar articularam os marcadores raça, classe, gênero e nação? Não são perguntas fáceis de serem respondidas, mas é em torno delas e de outras questões correlatas o tema do livro Diploma de brancura: política social e racial no Brasil (1917-1945), de Jerry Dávila.

Nascido em Porto Rico, Dávila é historiador, professor associado da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte. Já foi professor visitante na Universidade de São Paulo (USP) e na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. O livro é fruto da sua tese de doutorado, defendida na Brown University, sob a orientação de Thomas Skidmore. Em 2003, foi publicado nos Estados Unidos e, agora, traduzido no Brasil. A proposta de Dávila é investigar a relação entre raça e políticas públicas na área educacional no Brasil entre o período da Primeira República e a Era Vargas (1917-1945). Para tal empreendimento, consultou uma ampla (e diversificada) quantidade de fontes: decretos, regulamentos, programas oficiais de ensino, censos demográficos, relatórios, jornais da grande imprensa, da imprensa negra paulista, revistas, boletins, memorialistas, cartas, depoimentos, fotografias, etc.

A idéia é demonstrar que educadores, intelectuais, cientistas sociais, médicos tinham a expectativa de que a criação de uma escola universal poderia embranquecer a nação, livrando o Brasil do que eles caracterizaram como a degeneração de sua população. Implementando políticas públicas tanto influenciados pelas matrizes intelectuais e científicas exógenas – sobretudo a eugenia1 – quanto pelas leituras endógenas dos problemas do povo brasileiro, os condutores da educação brasileira acreditavam que a maior parte dos brasileiros, pobres e/ou pessoas de cor, estavam subjugados à degeneração – condição adquirida por meio da falta de cultura, saúde e ambiente, o que comprometia a vitalidade da nação. Também acreditavam na capacidade de mobilizar ciência, técnica, política estatal para "curar" essa população, transformando-a em cidadãos-modelo. Para tanto, era necessário embranquecê-la, fosse em sua cultura, higiene, comportamento e, eventualmente, na cor da pele.

As políticas públicas educacionais – conduzidas ou compactuadas por intelectuais como Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Fernando de Azevedo, Antônio Carneiro Leão e Edgar Roquette Pinto – tiveram um sentido duplo. Se, por um lado, criaram novas oportunidades no sistema escolar público como um todo, beneficiando alguns segmentos da população historicamente excluídos; por outro, reforçaram uma imagem negativa desses mesmos segmentos. Alunos pobres e de cor foram estigmatizados de doentes, problemáticos e de limitados quanto ao potencial intelectual e cultural. Dávila examina de que maneira a educação pública foi expandida e reformada tendo em vista a reprodução das desigualdades raciais e sociais. Especificamente, "sugeri que o conceito de mérito usado para distribuir ou restringir recompensas educacionais foi fundado em uma gama de julgamentos subjetivos em que se embutia uma percepção da inferioridade de alunos pobres e de cor" (p. 13).

A obra está dividida em seis capítulos. O primeiro mostra como uma elite intelectual brasileira, formada por médicos, cientistas e cientistas sociais, acreditava que a partir da educação pública poder-se-ia solucionar os problemas raciais da nação. O segundo evidencia o entrelaçamento de raça, nacionalismo, ciência e Estado nas agências de obtenção e interpretação estatísticas criadas após 1930. O terceiro capítulo revela que, embora as políticas estatais tivessem ampliado as oportunidades educacionais na rede de ensino público, elas não beneficiaram os afrodescendentes na mesma proporção. As políticas de seleção e treinamento dos professores eram norteadas pelas questões como raça, classe e gênero. Baseando-se em fotografias tiradas com 35 anos de diferença, o autor percebe uma mudança "drástica" no tipo de pessoa que podia se tornar professor no Rio de Janeiro. Em 1911, uma foto mostrava um grupo de professoras afrodescendentes na escola vocacional Orsina da Fonseca. Já uma outra foto mostrava apenas professores formandos brancos, no baile de formatura de 1946 da antiga Escola Normal, que em 1932 se tornou o Instituto de Educação. Talvez por isso Dávila intitulou esse capítulo com uma interrogação: "O que aconteceu com os professores de cor do Rio?". Não precisa acabar de lê-lo para saber que houve um gradual branqueamento do quadro de professores do Rio de Janeiro. Não só lá, mas também do quadro discente da escola de formação de professores. O quarto capítulo pauta a principal reforma do sistema escolar carioca, comandada por Anísio Teixeira, entre 1931 e 1935. Já o capítulo seguinte aborda a reforma de Anísio Teixeira na década posterior ao seu afastamento do sistema escolar pelos adversários católicos conservadores. Apesar das divergências no que diz respeito às políticas educacionais, as elites – tanto a progressista como a conservadora – continuavam concebendo raça, ciência e nação de modo similar. O quinto e último capítulo indica como a educação secundária qualificava um grupo reduzido de pessoas cujos sonhos de ascensão social eram permeados pelos valores da brancura. Um estudo de caso da escola considerada modelo, o Colégio Pedro II, exemplifica bem esse processo.

Desde o compositor Heitor Villa-Lobos, o autor de livros didáticos de história Jonathas Serrano, o antropólogo Arthur Ramos, o psicólogo infantil Manoel Lourenço Filho até o ministro da Educação e Saúde do governo Vargas, Gustavo Capanema, defendiam a idéia da superioridade da "raça branca", não numa perspectiva biológica, mas cultural – ou, sendo mais preciso, de acordo com a "metáfora" da época: o passado do Brasil seria negro, o presente mestiço e o futuro branco, inexoravelmente. Heitor Villa-Lobos – que iniciou sua carreira no ensino musical no sistema escolar do Rio de Janeiro em 1933 –, por exemplo, associava negritude à rebelião, aos maus hábitos e aos problemas de hereditariedade, já brancura, relacionava ao progresso, à beleza e à virtude.

Dávila adverte que seu escopo não foi julgar as idéias desses e outros educadores, como Afrânio Peixoto, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, mas entender como as idéias orientaram suas práticas políticas e reverberaram nas instituições que eles criaram ou reformaram. Dotados da "incumbência de forjar um Brasil mais europeu e presos a um senso de modernidade vinculado à brancura, esses educadores construíram escolas em que quase toda ação e prática estabelecia normas racializadas e concedia ou negava recompensas com base nelas" (p. 25). A brancura simbolizava as virtudes desejadas de saúde, cultura, ciência e modernidade.

Por sinal, o título da obra, Diploma da brancura, não foi escolhido pelo autor aleatoriamente. Ele se inspirou numa reportagem da revista Veja de dezembro de 2000, que mostrava a possibilidade de as pessoas serem vistas como brancas apesar da cor de sua pele. Na avaliação de Dávila, esse imaginário racial expressa bem o que a educação pública significava para os líderes do movimento pela expansão e reforma escolar no período entre as duas guerras mundiais: a educação seria um valioso pólo difusor de saúde e cultura básicas, permitindo que todos, independentemente de sua cor, fossem alçados a condição de brancos.

Retomando a pergunta que abre essa resenha, por que estudar as relações raciais brasileiras a partir da educação? Segundo Dávila, o sistema educacional foi uma das principais áreas sobre as quais os especialistas da questão racial no Brasil atuaram e se engajaram para a construção de uma nação social e culturalmente branca. Como a educação é um universo de políticas públicas, revela as maneiras pelas quais esses especialistas traduziram suas idéias em práticas sociais. Mais do que isso. A educação pública fornece subsídios históricos para se pensar os padrões de desigualdades raciais no Brasil e, simultaneamente, entender uma das características mais significativas das relações de raça e nação: a ambivalência. Embora a raça fosse um marcador diacrítico que podia selar a sorte educacional de centenas de milhares de pessoas de cor no Rio de Janeiro, e milhões no Brasil, ela normalmente ficava travestida num discurso médico e científico-social mais amplo sobre a degeneração. A conclusão básica do autor é: intelectuais e gestores públicos impingiram seus valores de raça e lugar social nas políticas educacionais do país, mas o fizeram sem declararem ou, antes, a partir de uma retórica médica, científica, técnica, meritocrática. Essas políticas não pareciam, superficialmente, prejudicar nenhum indivíduo ou grupo. Como conseqüência, "essas políticas não só colocavam novos obstáculos no caminho da integração social e racial no Brasil como deixavam apenas pálidos sinais de seus efeitos, limitando a capacidade dos afro-brasileiros de desafiarem sua justiça inerente" (p. 22).

Ao ler Diploma de Brancura, observa-se que a mensagem da obra é desconcertante: o sistema escolar da Primeira República a Era Vargas foi influenciado por questões de raça, classe e gênero, em todos os seus níveis: do currículo à seleção de alunos, distribuição e promoção; testes e medidas; seleção e treinamento de professores; programas de saúde e higiene (p. 363). Embora houvesse controvérsia sobre a suposta degeneração do negro e mestiço e da possibilidade de aperfeiçoamento eugênico da raça, havia consenso acerca do significado e o valor da brancura. Intelectuais, políticos e gestores públicos confiavam no futuro branco do Brasil e no papel estratégico da educação nesse processo. Isso significa dizer que o sistema educacional brasileiro era racista e excluía os negros deliberadamente? Se for para adotar como parâmetro o conceito de racismo dos Estados Unidos – cuja característica básica é a segregação e hostilidade raciais –, Dávila conclui que a resposta seria negativa. Todavia, ele não tem dúvida que o sistema escolar daquele período foi refratário à inclusão racial, limitou as oportunidades educacionais de crianças e jovens de cor e legitimou as desigualdades sociais entre pessoas brancas e negras no Brasil.

O livro padece de alguns problemas. A despeito de o subtítulo informar que a área de abrangência da pesquisa é "Brasil" e o autor fazer alusão, aqui e acolá, a alguns Estados, o recorte espacial fica notadamente circunscrito ao Rio de Janeiro. Quanto ao uso das fontes, Dávila incorre em um ou outro deslize. Para reforçar a "pista" de que alguns professores de fenótipos mais escuros no Rio de Janeiro se viam como afrodescendentes, ele lança mão de uma fonte atinente à experiência histórica do negro em Campinas, em São Paulo (p. 157). Isto volta a acontecer alhures. Para patentear o desaparecimento gradual dos professores de cor, novamente no Rio de Janeiro, ele apresenta o discurso do líder negro de Pelotas/RS, Miguel Barros, no Congresso Afro-Brasileiro de Recife em 1934, denunciando a situação dos afro-gaúchos (p. 160). Outro problema da pesquisa diz respeito à ausência ou, antes, a não explicitação do referencial teórico-metodológico. Embora hoje seja consenso de que é de fundamental importância o conhecimento histórico ser produzido a partir de uma relação dialógica entre as categorias analíticas e as fontes, os conceitos e as evidências, a teoria e a empiria, o autor não revela quais são os pressupostos teórico-metodológicos de sua prática historiográfica. Aliás, essa característica não é uma exclusividade de Dávila; vários outros historiadores brasilianistas costumam dar muita (ou total) importância para a interpretação das fontes documentais e obliteram a discussão das questões epistemológicas.

Com efeito, esses problemas não chegam a comprometer a qualidade da obra. Num momento em que o debate sobre a questão racial no sistema educacional brasileiro é candente, a publicação de Diploma de brancura é bem oportuna. A partir dessa obra, não é mais possível negar que as políticas públicas educacionais desfavoreceram a população negra no período do pós-Abolição, produzindo (e reproduzindo) distorções raciais crassas. Como o papel da história não é conhecer o passado com uma perspectiva meramente contemplativa, é escusado dizer que são necessárias medidas compensatórias concretas no presente para corrigir essas distorções.

NOTA

1 O termo "eugenia" – eu: boa; genus: geração – foi criado em 1883 pelo cientista britânico Francis Galton. Noção popular por toda a Europa e América no período entreguerras, a eugenia foi uma tentativa de "aperfeiçoar" a população humana por meio do aprimoramento de traços hereditários. Uma eugenia "pesada", baseada na eliminação do acervo reprodutivo de indivíduos que possuíam traços indesejados por meio da esterilização ou do genocídio, foi implementada na Alemanha nazista, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Grande parte da América Latina assimilou uma eugenia "leve", que preconizava "que o cuidado pré e neonatal, a saúde e a higiene pública, além de uma preocupação com a psicologia, a cultura geral e a forma física melhorariam gradualmente a adequação eugênica de uma população" (p. 31).
Revista História - UNESP