domingo, 21 de agosto de 2011

Neoliberalismo e reforma trabalhista


José Dari Krein
O tema da reforma sindical e trabalhista está na agenda brasileira desde o processo de redemocratização, com o surgimento do "novo sindicalismo", mas com significados distintos em cada momento histórico, dependendo dos interesses em jogo e da correlação de forças entre os agentes sociais. Apesar das transformações ocorridas, elementos centrais da estrutura sindical herdada nos anos 1930-1940 permanecem em vigor, especialmente a unicidade sindical e as contribuições sindicais compulsórias. Essa premissa significa assumir uma posição no debate acadêmico, pois alguns autores consideram que esses aspectos são apenas formais, de modo que não caberia mais falar em corporativismo. A unicidade já não vigoraria na prática, de modo que preferem falar em modelo legislado-pluralista (CARDOSO, 1997; 2001; NORONHA, 1999). Mas a questão fica mais embaralhada a partir dos anos 1990, pois certas bandeiras são apropriadas pelos neoliberais e a elas é dado um novo significado, tais como a defesa da liberdade e da autonomia sindicais e da valorização da contratação coletiva. Além disso, especialmente após 1994, a ênfase da reforma é dada à questão trabalhista, sob a hegemonia de um discurso liberalizante e conservador, em que ela é traduzida na proposta de flexibilização dos direitos como condição para superar os problemas existentes no mercado de trabalho brasileiro.

Essa é a temática do livro de Andréia Galvão, Neoliberalismo e reforma trabalhista no Brasil1, constituindo-se em uma referência para quem quer compreender a evolução do debate sobre o tema, bem como as mudanças na regulação do trabalho e as estratégias adotadas pelos agentes sociais. Independentemente da concordância ou não com as posições adotadas pela autora, é uma referência por apresentar um texto bem fundamentado, com consistência teórica e com uma ampla base empírica (documentos, resoluções, intervenções em debates públicos e na imprensa etc.). Contém um excepcional levantamento de informações e de posições acadêmicas dos agentes sociais sobre todas as iniciativas e debates englobando o tema da reforma sindical e trabalhista entre 1990 e 2002, especialmente em relação às alterações da estrutura sindical, da normatização da relação de emprego e do papel do Estado na sociedade e na regulação do trabalho. Apesar de a pesquisa ir até 2002, é um estudo que traz muitos elementos para compreender as dificuldades para a realização de uma reforma da estrutura sindical no Brasil, contribuindo para entender as razões que levaram à fracassada iniciativa de o Fórum Nacional do Trabalho, no governo Lula, de viabilizar uma reforma sindical no Brasil. Aliás, uma das questões que a autora propõe-se a discutir é exatamente as razões que deixaram a reforma sindical em segundo plano.

Além da quantidade e do rigor das informações que ajudam a compreender a evolução das iniciativas, o livro traz como contribuição à reflexão uma análise dos diferentes interesses e orientações dos principais agentes sociais (de empregadores e trabalhadores) em cada conjuntura concreta, evidenciando a complexidade de um "processo constituído de múltiplos pólos aglutinadores" (BOITO Jr., 2007, p. 17.). Nesse sentido, evidencia como o posicionamento dos agentes foi alterando-se nos movimentos conjunturais, em função das correlações de força. O texto mostra, ainda, como o neoliberalismo influencia não só o mundo do trabalho (desemprego, precarização, perda de direitos, adversidades à ação coletiva, mobilizações), mas também o posicionamento das entidades de representação dos trabalhadores.

Uma das principais teses do livro é que a conformação da regulação do trabalho e as mudanças no discurso e/ou na prática dos agentes sociais têm relação com os projetos (inclusive sindical) em disputa na sociedade, dada pela correlação de força entre capital e trabalho e entre frações de classe. Assim, no primeiro plano, a autora explica, especialmente quando se consolida a hegemonia neoliberal, uma agenda mais conservadora na discussão da reforma trabalhista, deixando em segundo plano a questão da reforma sindical. Ou seja, a agenda da flexibilização2 das relações de trabalho, a partir do Plano Real (1994), pautará as principais iniciativas no campo legislativo e mesmo na normatização autônoma entre capital e trabalho, por meio das negociações coletivas. "[...] A reforma trabalhista não constitui uma demanda nova, nem é prerrogativa dos neoliberais: a definição dos contornos da reforma trabalhista varia conforme o agente social considerado o contexto em questão" (GALVÃO, 2007, p. 101).

Assim, a partir principalmente de Boito Jr. (1999) e Saes (2001), a autora destaca que a consolidação do liberalismo não é meramente fruto do poder do dinheiro e da mídia, mas constitui-se como um projeto que foi impulsionado pela burguesia - com destacado papel da indústria paulista na sua consagração - e encontra respaldo junto a uma parcela de trabalhadores e de organizações sindicais. Por exemplo, o discurso da privatização e da reforma do Estado encontra respaldo em parte da sociedade, dada a baixa qualidade do serviço público, assim como a visão de que a flexibilização - que significa reduzir o custo do trabalho eliminando direitos e proteção social - pode contribuir para a geração de ocupações e acabar com "privilégios" existentes nos setores mais organizados, especialmente nas estatais e no serviço público. Esse ponto de vista é respaldado academicamente por Pastore (1994), que, utilizando como referência Reginaldo Moraes (2001), compreende o neoliberalismo como uma ideologia e um conjunto de políticas que tendem a fragilizar o Estado e a fortalecer o mercado como instrumento de organização da vida em sociedade. Mas é curioso notar que o discurso do "Estado mínimo" não é praticado em relação à imposição das reformas liberalizantes e nem para reprimir os movimentos de contestação. Muitas das reformas só se viabilizaram pelo poder dessa instituição chamada "Estado". Portanto, a ideologia neoliberal, ao convencer e atrair parte dos trabalhadores, contribui também para neutralizar as ações de resistências, apesar da existência destas, como é indicado no livro. Essa análise sobre o neoliberalismo, que constitui o tema do capítulo 1, assim como em toda a referência teórica do livro, está respaldada em uma vasta bibliografia de autores de tradição marxista.

Como destacado acima, ao mesmo tempo a autora analisa como o neoliberalismo influencia as estratégias dos diferentes agentes sociais. Por exemplo, "[...] há uma disputa permanente pelo significado e pelo alcance da lei do contrato. A lei é vista ora como espaço de resistência, ora como instrumento de controle; o contrato, como reino da liberdade e como fonte de prejuízo. Como sugerimos anteriormente, a luta de classes faz com que as classes em disputa se apoderem dos discursos de oponentes, atribuindo-lhe novos conteúdos em conjunturas distintas" (GALVÃO, 2007, p. 196).

Ao falar em conjunturas distintas, a autora destaca dois períodos distintos, antes e depois do Plano Real. No capítulo 2, analisa as iniciativas e os projetos de mudanças discutidos entre 1990 e 1995, quando houve um amplo debate com a criação de fóruns e a elaboração de propostas por parte de diferentes agentes sociais, especialmente no momento da constituição do Fórum Nacional de Relações de Trabalho e Contrato Coletivo de Trabalho e discute as razões de por que mesmo projetos tímidos - pois, na sua avaliação, não colocavam em questão o cerne da estrutura corporativista que é a unicidade sindical - não apresentam efetividade. Em síntese, destaca duas razões principais para isso:

1) em primeiro lugar, apesar de um aparente (e falso) consenso sobre a necessidade de realizar uma reforma sindical e trabalhista, as posições dos agentes apresentavam grandes diferenças de projetos entre si. No campo social do trabalho, somente a Central Geral dos Trabalhadores (CGT), das instituições analisadas, tinha uma clara posição pela manutenção do sistema corporativo. As duas outras centrais (Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Força Sindical (FS)) tinham uma posição de defesa da liberdade e da autonomia sindicais e do fim das contribuições compulsórias. Mas a autora procura evidenciar as contradições (1) no próprio discurso - especialmente na discussão das propostas apresentadas pelos governantes - em diferentes conjunturas e (2) entre a prática e o discurso, em que táticas equivocadas acabam fortalecendo a estrutura oficial. Além disso, destaca a falta de consenso no interior das centrais, especialmente na CUT, que tem tendências internas constituídas. Assim, o leitor encontra uma análise crítica sobre a CUT, especialmente direcionada para a sua corrente majoritária;

2) em segundo lugar, há uma progressiva acomodação e resignação dos líderes dos trabalhadores à estrutura oficial.

No campo do capital, as posições são hesitantes e também contraditórias em relação à reforma da estrutura sindical. O discurso da liberdade sindical e do fim das contribuições é defendido somente por algumas lideranças da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), especialmente dos setores mais estruturados economicamente. Mas não há registro nem de pressão sistemática nem de apresentação de um projeto de reforma sindical. O que há de consensual no setor patronal é a necessidade de uma reforma em que prevaleça o negociado sobre o legislado, de flexibilização dos direitos trabalhistas, de posição contra qualquer "engessamento das normas de proteção ao trabalho" (idem, p. 174). Assim, a reforma pretendida é a trabalhista, em que a relação de emprego possa ser adaptada à lógica de competitividade das empresas.

A partir do Plano Real torna-se hegemônica essa visão empresarial. No capítulo 3, há uma descrição e uma análise das principais medidas adotadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso, que ocorreram com a perspectiva de promover uma flexibilização das relações de trabalho, de reduzir a proteção social e de redefinir o papel do Estado na regulação do trabalho. É o período de consolidação do neoliberalismo no Brasil. A análise, como dito anteriormente, compreende o posicionamento dos agentes sociais, em que predominam novamente movimentos ambíguos. No campo social do trabalho, destaca a posição histórica da Força Sindical pelo seu pragmatismo, em geral apoiando reformas de flexibilização, mas às vezes desenvolvendo ações conjuntas com outras centrais contra o desemprego ou contra a substituição do tempo de serviço pelo de contribuição na reforma da Previdência Social. Em relação à CUT, a autora destaca as suas ambigüidades: por um lado, por exemplo, reconhece as iniciativas de resistência ao neoliberalismo, empreendidas no período; por outro lado, na sua visão, uma estratégia de ação propositiva no final a conduz a uma posição que privilegia a negociação institucional em detrimento das mobilizações na base. Também leva a uma redução do escopo das demandas "realistas" para aquilo que é possível ser negociado no âmbito permitido pelo contexto (ou seja, no marco aceitável pelo capital). Isso levou a CUT a aceitar, na opinião da autora, algumas medidas flexibilizadoras, apesar de manter um discurso crítico à flexibilização.

No capítulo 4, a autora enumera e discute as propostas em debate entre 1995 e 2002 na estrutura sindical, mostrando que o ímpeto pela reforma foi perdendo espaço entre os agentes sociais. Ao explicar a perenidade da estrutura oficial, Galvão destaca os seguintes fatores. Em primeiro lugar, o setor empresarial não demonstra interesse em reformar essa estrutura. Em segundo lugar, cresce a resistência contra a reforma, materializada na contraposição às propostas apresentadas pelo governo (reforma sindical de 1998 (Proposta de Emenda Constitucional n. 623) e a prevalência do negociado sobre o legislado). Com isso ganha força o argumento de que a estrutura oficial atende a "interesses materiais dos sindicatos" ao garantir condições de sua sobrevivência (idem, p. 327), em um contexto de ataque aos direitos e à organização coletiva dos trabalhadores. Assim, a autora identifica, mesmo nos grupos mais à esquerda, a prevalência de uma posição contrária a qualquer reforma, sob a justificativa de que o contexto econômico e político é desfavorável aos trabalhadores. Como o movimento sindical não apresenta nenhuma proposta de reforma fica em uma posição defensiva contra a ofensiva do governo de desarticular os direitos e as instituições públicas na área do trabalho. Portanto, cresce uma posição de defesa das salvaguardas garantidas pela estrutura atual, pois ao menos ela garante o funcionamento do sindicato. A autora também deixa entender que os trabalhadores não perceberam que a estrutura oficial pode cumprir um importante papel na dominação de classe, o que dificulta qualquer mudança. Diríamos que a autora também destaca o papel que a estrutura oficial desempenha na dominação de classe, contribuindo para a flexibilização das relações de trabalho na medida em que possibilita a sobrevivência de lideranças comprometidas com o capital e favoráveis ao seu projeto de reforma trabalhista.

Nesse sentido, a autora manifesta claramente no livro sua posição favorável à liberdade sindical, inclusive debatendo com quem defende a unicidade. Como bem destaca Armando Boito Jr., no "Prefácio", a obra traz a boa polêmica sem fazer "concessão à diplomacia acadêmica" (BOITO JR., 2007, p. 17). O leitor encontrará um texto posicionado e bem fundamentado, herdeira de uma literatura crítica à estrutura sindical corporativa, especialmente do princípio da unicidade sindical, buscando em todo momento verificar o jogo de interesses e os projetos em disputa pelos diferentes agentes sociais.

Mas algumas questões suscitadas no livro continuam em debate. Apesar da importante contribuição da autora, a discussão as resistências a reformas profundas na estrutura sindical ainda consumirá muita tinta, especialmente com a progressiva perda de adeptos, em todas as correntes sindicais, da defesa de sua reformulação. O dissenso a respeito do caráter da reforma parece aprofundar-se. Por exemplo, como garantir a sustentação financeira das entidades sindicais em um mercado de trabalho segmentado e heterogêneo, especialmente em setores mais frágeis economicamente? Quais as possibilidades de organização sindical em um país continental e com uma classe trabalhadora absolutamente heterogênea, em que se aprofunda a fragmentação e deixa de fora da base de representação das atuais instituições sindicais a maioria dos trabalhadores? Na mesma direção, qual o papel do Estado na regulação do trabalho, dadas as especificidades do mercado de trabalho brasileiro? Também há a necessidade de continuar a análise sobre o significado das diferentes estratégias sindicais no período do neoliberalismo, assim como não se apresenta como questão a análise das experiências de organização fora da estrutura sindical oficial. Enfim, está em aberto o debate sobre a natureza da crise do sindicalismo brasileiro a partir dos anos 1990, como parte de uma crise mais geral da esquerda e das formas clássicas de organização. Talvez não seja apenas uma questão ideológica, pois a fragilização e a perda de capacidade de mobilização é um fenômeno generalizado, inclusive nos agrupamentos considerados mais à esquerda do sindicalismo.

Por último, mais importante que concordar com as posições é reconhecer o mérito do trabalho acadêmico, que o livro tem de sobra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOITO JR., A. 1999. Política neoliberal e sindicalismo no Brasil. São Paulo : Xamã
_____. 2007. Prefácio. In : GALVÃO, A. Neoliberalismo e reforma trabalhista no Brasil. Rio de Janeiro : Revan.
CARDOSO, A. 1997. O sindicalismo corporativo não é mais o mesmo. Novos Estudos, São Paulo, n. 48, p. 97-119, jul.
_____. 2001. Direito do trabalho e relações de classe no Brasil contemporâneo. Artigo apresentado no XXV Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, realizado entre 16 e 20 de outubro, em Caxambu (Minas Gerais). Digit.
KREIN, J. D. 2007. As tendências recentes na relação de emprego no Brasil : 1990-2005. Campinas. Tese (Doutorado em Economia Social e do Trabalho). Universidade Estadual de Campinas.
MORAES, R. 2001. Neoliberalismo : de onde vem, para onde vai ? São Paulo : Senac.
NORONHA, E. 1999. Entre a lei e a arbitrariedade : mercados e relações de trabalho no Brasil. São Paulo : LTr.
PASTORE, J. 1994. A flexibilidade do trabalho. São Paulo : LTr.
SAES, D. 2001. República do capital. São Paulo : Boitempo.

José Dari Krein (dari@eco.unicamp.br) é Doutor em Economia Social e do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor do Instituto de Economia da mesma instituição.
1 O livro é uma versão revisada de sua tese de doutoramento, defendida em 2003, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
2 Em concordância com a autora, pode-se verificar que houve mais uma agenda de flexibilização do que de desregulamentação, pois a análise do conjunto das iniciativas mostra que foi a introduzido uma série de medidas que amplia o caráter flexível da relação de emprego no Brasil, tais como o Programa de Participação nos Lucros e Resultados (PLR), o banco de horas, novas formas de contratação, comissões de conciliação prévias etc. É mais e não menos lei. O problema é o conteúdo dessa legislação. É verdade que houve supressão de direitos, especialmente na reforma da Previdência Social e na reforma administrativa (para servidores públicos). Mas também é um fato que, apesar da extensa legislação, nunca constituímos no país uma regulação pública do trabalho (KREIN, 2007).

Revista de Sociologia e Política

O capitão Zé Lagoa

Rosil Cavalcanti: compositor de 'Sebastiana'


As semelhanças não são poucas. Nasceram em regiões dominadas pela cultura da cana-de-açúcar e pela colonização negra. Quando adultos, foram casados, mas não tiveram filhos. E as coincidências não se restringem à vida. Em anos diferentes, morreram de infarto no mesmo dia e mês. Como se vê, Rosil Cavalcanti (1915 – 1968) e Jackson do Pandeiro (1919 – 1982) tiveram uma relação que vai muito além de 'Sebastiana'. Muito antes de ser proclamado o rei do ritmo, Jackson já convivia com o talento musical de Rosil.

De família tradicional na política de Pernambuco, Rosil de Assis Cavalcanti trabalhou toda vida como funcionário público. Seu primo de segundo grau, Joaquim Francisco chegou a ser governador do estado. Em 1943, com pouco mais de 20 anos, outro parente de Rosil assumiu a prefeitura da cidade de Macaparana, que continua sob influência da família. Maviael Cavalcanti (DEM) é o atual prefeito da cidade. Mas a paixão de Rosil era outra.

Em João Pessoa, no ano de 1947, Rosil deu seus primeiros passos no rádio, participando em programas noturnos na Rádio Tabajara. Nesta ocasião, formou a dupla caipira ‘Café com Leite’ com Jack, rapaz que mais tarde seria famoso como Jackson do Pandeiro. O nome do grupo fazia alusão à aparência dos dois. Jackson, cafuzo de pele escura, era o café. Rosil, branco, o leite. Tocando emboladas, a dupla alcançou um grande sucesso, garantido também pelas tiradas cômicas que faziam os ouvintes darem gargalhadas no auditório.

Quando a dupla se desfez, Jackson levou debaixo do braço várias músicas de Rosil. Uma delas seria o grande destaque do carnaval de 1953. Era o coco 'Sebastiana', originalmente lançado em um disco pelo selo Copacabana e posteriormente regravado por Gal Costa. Por sua vez, Rosil ganhou destaque dez anos depois com o programa ‘Forró de Zé Lagoa’, que teve grande repercussão em Campina Grande.

Apresentado diariamente na Rádio Borborema, em ondas médias e tropicais, a atração era uma mescla de notícias com brincadeiras, onde Rosil encenava o papel do capitão Zé Lagoa e contracenava com os soldados Jaca Mole e Jaca Dura. Entre uma piada e outra, muitos repentistas e cantores passaram por lá, como Genival Lacerda, Zé Calixto, Marinês e Abdias.

Mas, mesmo antes de Sebastiana, Rosil já havia composto uma música gravada comercialmente. Apresentada à cantora Dilú Melo, a canção se chama ‘Meu Cariri’ e foi interpretada por Ademilde Fonseca e Marinês, na sua versão mais famosa. Porém, Rosil não guardava boas recordações de sua estreia nas vitrolas. Apesar de ter composto sozinho música e letra, os créditos do disco apontavam Dilú como parceira de Rosil. Mas não faltariam oportunidades futuras para o devido reconhecimento.

Ao todo, Rosil teve mais de vinte músicas gravadas por Jackson do Pandeiro, como 'Cabo Tenório', 'Lei da Compensação', 'Quadro Negro', 'Forró na Gafieira' e 'Na Base da Chinela'. Feita em parceria com o rei do ritmo, esta última foi regravada posteriormente por Elba Ramalho. Na voz de Marinês destacam-se Saudade de Campina Grande e Aquarela Nordestina, que foi também interpretada por Luiz Gonzaga/ Rosil teve ainda canções gravadas pelo Trio Nordestino, Zé Calixto, Genival Lacerda, Anastácia, Ary Lobo, entre muitos outros que deram sua contribuição para inscrever definitvamente o nome de Rosil na história da música popular nordestina.
Revista de História da Biblioteca Nacional

A maçonaria no século XXI

Da mais importante instituição do ideário moderno à consolidação das atividades solidárias: as transformações das lojas maçônicas ao longo dos séculos
Um banquete maçônico, na França, em 1840 / Fonte: Wikimedia-cc


A chegada da Maçonaria ao Brasil, no final do século XVIII, pode ser entendida como um dos sinais do processo de modernização do país. A instituição foi o mais importante espaço de divulgação do ideário moderno (mesmo que mesclado com um mais tradicional) e conseguiu atrair uma parcela significativa da elite para dialogar, à sua maneira, com os ideais iluministas emergentes no período.

A atividade maçônica formou, a partir do início do século XIX, uma rede de lojas por todo o território brasileiro e organizou o que, provavelmente, foi a primeira atuação política articulada (nacional e internacionalmente) de uma instituição civil de que temos notícia no nosso país. Funcionava como uma espécie de arena para discussões voltadas ao processo de modernização, a Independência, a abdicação de Dom Pedro I, o abolicionismo, a questão religiosa, a separação da Igreja do Estado, o movimento republicano e outros assuntos menos comentados.

O ambiente maçônico é um lugar que privilegia discussões filosóficas, atividades filantrópicas, debates sobre a realidade sócio-econômica e cultural. Ao mesmo tempo, a maçonaria é uma instituição secreta, iniciática e, consequentemente, aristocrática, na qual só participam homens (pelo menos no “movimento maçônico regular”), alfabetizados, sem defeitos físicos, maiores de idade e com nível de renda suficiente para assumirem os custos da filiação à instituição; instituição na qual a hierarquia está presente em todos os seus procedimentos, desde a estratificação em graus de iniciação, até os vários níveis de luto quando da morte de seus integrantes.

Ao longo do século XX o adensamento da sociedade civil e a consequente emergência de novos atores no espaço público fizeram com que a maçonaria perdesse aquele protagonismo identificado no século XIX. Mesmo assim a organização está presente em todas as capitais e principais cidades do país. Além disso, estima-se que somente o Grande Oriente do Brasil (GOB), uma das federações maçônicas brasileiras, abrigue em torno de 100 mil maçons, nas suas mais de 2.200 lojas. A taxa de crescimento do número dessas lojas girou em torno de 10% nos últimos dez anos. A maçonaria, portanto, não está se desintegrando, continua em expansão.

Podemos verificar na solidariedade maçônica um conjunto de atividades que procura apoiar, auxiliar, defender e acompanhar maçons e não-maçons em situações adversas, contingentes ou permanentes. Essas ações que, quase sempre, se desenvolveram por meio das próprias lojas, já se viabilizam a partir de organizações civis criadas especificamente para estes fins.

A maçonaria também tem participado intensamente de várias campanhas, entre elas, contra o trabalho infantil e contra as drogas. Tais campanhas são encaminhadas conjuntamente com órgãos estatais (como as prefeituras, Polícia Federal, Ministério do Trabalho), instituições internacionais (como a OIT e a Unesco) e várias outras organizações da sociedade civil.

Outro tipo de ação solidária que também pode ser observada no universo maçônico é aquela que socorre imediatamente cidadãos que se encontram em situação de extrema dificuldade de sobrevivência e envolve arrecadação de alimentos, remédios, roupas, cobertores, como é o caso das campanhas de ajuda aos flagelados da seca no Nordeste e aquelas campanhas que se solidarizam com vítimas de outras catástrofes naturais (cheias, epidemias, desabamentos etc.).

Muitas ações maçônicas passam despercebidas, não somente pelo fato da instituição primar por certa discrição, mas também porque no imaginário sobre a Ordem sempre se destacaram outros aspectos que giram em torno dos seus segredos rituais, da proibição da participação das mulheres, do seu anticlericalismo, da sua suposta onipresença nos espaços de decisão política e muitas outras representações que foram se fixando ao longo dos tempos e que construíram, muitas vezes, uma imagem distorcida da maçonaria. A pesquisa social, no entanto, tem feito muito pouco para compreender esse tipo de ação da instituição que vem desempenhando um papel importante na formação da nossa cultura associativa, na nossa tradição assistencial e no nosso modelo de voluntariado. Podemos considerar, pelo menos, quatro hipóteses para esse desinteresse: a) a maçonaria se manteve muito fechada ao diálogo com a academia; b) a instituição, de fato, perdeu importância com a expansão do associativismo em geral; c) a maçonaria foi identificada com a ditadura militar em função do seu apoio explícito à contrarrevolução de 64; d) o estudo sobre elites não é o forte da pesquisa social brasileira.

O percurso da maçonaria não é linear ao longo da história. Nos três séculos de sua existência, viveu muitos momentos de glória, bem como situações extremamente difíceis. Perseguiu e foi perseguida. Em todos esses momentos, os maçons reinventaram suas próprias tradições para continuar seu caminho. Resta saber se essa força e capacidade continuarão a caracterizar a instituição neste século que se inicia.

José Rodorval Ramalho é professor de Ciências Sociais na Universidade Federal de Sergipe e autor de “Novae sed Antiquae: tradição e modernidade na maçonaria brasileira” (Ed.Ex-libris, 2008).
Revista de História da Biblioteca Nacional

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Notícias História Viva


20 anos depois, ex-repúblicas soviéticas se blindam contra o comunismo
Sem norte de Moscou, ideologia que inspirou revoluções da Ásia à Ámerica Latina entrou em declínio

No dia 1º de agosto de 1991, o famoso monumento a Karl Marx, que se eleva sobre o centro da cidade de Moscou, apareceu com os seguintes dizeres pintados em tinta vermelha: "Proletários do mundo, perdoem-me!"

Era uma irônica alusão ao chamado aos trabalhadores contido no "Manifesto do Partido Comunista", publicado em 1848 na Alemanha por Marx e Friedrich Engels.

A ideia de comunismo concebida originalmente pelos intelectuais europeus encontrou abrigo espiritual na Rússia - que se tornou "a pátria do proletariado mundial".

Os comunistas que viviam na "casa da revolução mundial" se orgulhavam de seu papel na história e no cenário geopolítico.

Vinte anos após o colapso do maior país comunista do mundo, o Partido Comunista permanece um dos mais influentes do país.

Em números de parlamentares, só fica atrás do partido Rússia Unida, dos últimos ocupantes do Kremlin, Dmitri Medvedev e Vladimir Putin.

Mas a maioria dos analistas está de acordo com a opinião de que o partido não tem futuro político na Rússia.

Os filiados do PC de hoje pertencem a um setor determinado, mas em envelhecimento, da população. Se tudo continuar como está, os simpatizantes da sigla tendem a desaparecer.

A maioria dos simpatizantes da oposição na Rússia é nacionalista ou a favor de ideias ocidentais.

Existe, sim, muita nostalgia na Rússia pela antiga União Soviética, mas não da igualdade indiscriminada, das filas e da doutrinação política: os cidadãos sentem falta do tempo em que a União Soviética era uma nação poderosa, respeitada e temida em todo o globo.

Muitos especialistas crêem que os comunistas poderiam ter retomado o poder nos anos 1990, quando a Rússia se encontrava em meio à turbulência política, se tivessem um líder carismático líder.

Entretanto, a firme liderança de Genady Ziuganov assegurou o estabelecimento do capitalismo e de um sistema de democratização na Rússia.

Os eventos históricos que se desenrolaram na "casa da revolução" determinaram o destino do comunismo no resto do mundo.

Europa e Ásia Central

Nos países que conformavam as ex-repúblicas sob a batuta de Moscou, o que há de comum é a tentativa de evitar a influência da ideologia comunista.

A única ex-república soviética a manter o comunista é a Moldávia. Seu ex-presidente entre 2001 e 2009, Vladimir Voronin, foi o primeiro chefe de Estado comunista democraticamente eleito após a dissolução do bloco soviético.

Mas mesmo seus seguidores não são comunistas linha-dura no sentido tradicional: não desejam o retorno à vida soviética. Parte dos ativos do país foi privatizada e a melhor definição da estrutura sócio-econômica do país é capitalismo com um toque pós-soviético.

O país que mais preservou os valores e o estilo de vida soviéticos é Belarus, a "linha de montagem" do antigo bloco comunista.

A liberalização econômica e a ruptura dos antigos laços econômicos atingiram duramente o país, que não possuía recursos naturais.

Durante a 2ª Guerra Mundial, o país amargou a ocupação nazista, insuflando uma desconfiança em relação à influência ocidental na psique nacional.

Mesmo assim, o comunismo tem desvanecido e o presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko - que chegou ao poder impulsionado por esse sentimento antiocidental - nunca invocou as ideias de Marx e Lênin.

A ideologia predominante é a do paternalismo estatal com liderança carismática e ditatorial.

Nos países da Ásia Central, que combinam capitalismo, autoritarismo secular e o uso oportunista de certos elementos islâmicos, os governos mantêm laços mais próximos com Moscou que com os países ocidentais - mas isso é porque a Rússia não os incomoda com questionamentos a respeito de direitos humanos.

Na Ucrânia, nos países do Cáucaso e nos Bálticos, o comunismo já não é digno de menção. As disputas políticas continuam nesses países, mas por forças inteiramente distintas.

No Leste Europeu, onde comunismo foi implantado força, a ocupação e a humilhação nacional, a maioria das populações nunca apoiou a ideologia.

A União Soviética provia os recursos para os seus "satélites" e permitia, neles, um grau de liberdade mais que em seu próprio solo. Mesmo assim, as tentativas de se livrar do jugo de Moscou só foram suprimidas com a intervenção do Exército Vermelho na ex-Alemanha Oriental, a Hungria e a ex-Tchecoslováquia.

Há partidos pós-comunismo em todos os países do antigo Pacto de Varsóvia, que advogam uma plataforma de esquerda moderada e europeia. Esses partidos têm tido espaço na Polônia, Hungria, Romênia, Eslováquia e Bulgária, mas não há possibilidade de voltar ao sistema político socialista de outrora.

China e Ásia

Se a revolução russa já não tinha grande relação com os ideais da ideologia marxista, a chinesa certamente não tinha. A China nunca teve um proletariado capaz de receber desempenhar a função histórica que lhe cabia segundo Marx.

Mao Tse Tung chegou ao poder em 1949 vindo da classe camponesa. Considerava-se líder de um "vilarejo global" em uma luta contra a "cidade global" e nunca escondeu sua rejeição à civilização urbana.

O seguidor de Mao no Camboja, Pol Pot, levou os ensinamentos de seu mestre à ação lógica, dizimando a população urbana do país.

Mao combinava a ideologia marxista com um nacionalismo chinês e um despotismo asiático, exemplificados pela coletivização e a obediência. O indivíduo era um coágulo no sistema e todo interesse material era substituído por um profundo sentimento de conformidade.

No Vietnã, o vizinho mais próximo da China, o caminho do comunismo foi semelhante.

A Mongólia foi o único país a estabelecer o socialismo ao estilo soviético antes da 2ª Guerra Mundial. Depois da queda da União Soviética, o país rejeitou o modelo e embarcou em um caminho de reformas de mercado e democracia multipartidária.

Hoje, a Coreia do Norte é o único bastião do comunismo stalinista. O país vive imerso em um sistema onde o mercado é inexistente e a ideia de coletividade é tão forte que os indivíduos são proibidos de cobrir as janelas com cortinas.

A doutrina oficial norte-coreana não se baseia nos princípios marxistas-leninistas, mas no espírito de autoconfiança. Na prática, isso se traduziu no desejo de Kim Il Sung e seu sucessor, Kim Jong Il, de se manter seu domínio sem se submeter a ninguém.

África e América Latina

Na África, a realidade social não poderia ser mais diferente dos cenários elaborados por Marx e Engles, que se debruçaram sobre os problemas das sociedades industriais.

Em parte, a aproximação dos países africanos com a URSS foi motivada pela rejeição ao imperialismo histórico das potências europeias.

Aos líderes anticolonialistas africanos também apetecia a ideia de modernizar seus países através de ditaduras. Eles sabiam pouco sobre as ideias de Marx e Lênin, mas entenderam que bastava dizer a palavra mágica - "socialismo" - para estar na lista dos receptores de armas e recursos da União Soviética.

Isto gerou todo tipo de confusão. Quando a Etiópia e a Somália entraram em guerra, por exemplo, ambos os países se consideravam socialistas. Levou tempo até Moscou decidir quem apoiar: a Etiópia.

Na América Latina, de forma semelhante ao que ocorreu na África, o apoio da URSS foi usado na Guerra Fria contra outra potência vista como imperialista - os Estados Unidos.

Mas muitas revoluções latino-americanas não foram diretamente inspiradas pelo marxismo. A Cubana começou como uma insurreição contra a autoridade vigente.

Fidel Castro era popular em Moscou tanto quanto Yuri Gagarin, o primeiro homem no espaço. O líder cubano da "ilha da liberdade" mostrava que o comunismo poderia ser jovem, cheio de vida e democrático.

Ao longo dos anos, Cuba perdeu a vitalidade e passou a ser um país governado por uma geração de octogenários. É possível que se torne o país a martelar o último prego no caixão do comunismo global. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.
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Guerras da Memória e do Tempo
Ex-aliado de Lampião diz que Maria Bonita tinha ciúme e fazia intriga

Desde Os Sertões, de Euclides da Cunha, publicado em 1902, incontáveis romances, peças teatrais, estudos universitários, músicas e filmes foram feitos aqui e no exterior sobre o massacre de Canudos, em 1897. Teses sociológicas, antropológicas e geológicas defendidas por Euclides caíram ao longo do tempo, mas a versão do escritor sobre a barbárie cometida pelos militares contra os seguidores do líder sertanejo Antônio Conselheiro prevaleceu nas novas obras de acadêmicos e artistas. O poder da palavra do intelectual, somado à força secular das narrativas populares, venceu até mesmo a máquina de reescrever a história da ditadura Vargas.

No começo de 1941, a ditadura do Estado Novo decidiu recontar a história do massacre, para derrubar a versão mais conhecida do episódio. Euclides escreveu que a atuação do Exército na Bahia foi criminosa e campanhas militares apresentaram uma série de estratégias e táticas erradas de guerra. O escritor afirmou que Canudos foi um refluxo no tempo.

A ditadura Vargas encarregou o tenente José de Macedo Braga, do Rio de Janeiro, então capital federal, de revirar arquivos do Exército e buscar informações no Nordeste para mostrar uma história diferente da narrada por Euclides. O tenente tinha por missão revelar que os chefes militares não foram humilhados e os jagunços de Conselheiro eram meros bandidos.

O Estado encontrou nos arquivos do Exército anotações do tenente Braga no decorrer da missão de reescrever a história. Ninguém pode acusar o tenente de não ter se esforçado na empreitada. Ele recolheu documentos, leu relatórios e datilografou depoimentos manuscritos de testemunhas.

A17 de fevereiro de 1941, Braga escreveu um roteiro de arquivos para quem dispusesse fazer novos livros. "A campanha de Canudos, no ano de 1897, (...) infelizmente ainda não foi escrita como devia ser", destacou. "É preciso dizer a verdade. "Os Sertões", de Euclides da Cunha, e a "Guerra de Canudos", de Macedo Soares, são obras-primas da literatura, porém, sem os dados oficiais, como deve ser escrita uma história militar."

O tenente escreveu que era preciso pedir autos de processos das comarcas de Queimadas, Juazeiro, Monte Santo e Bonfim, listas de médicos, documentos do 6.º Batalhão de Artilharia e até do manicômio de Salvador. Na avaliação dele, esses documentos e os papéis do Exército garantiriam uma "obra notável, inédita e incomparável".

Ao passo em que se enfurnava nos documentos que lhe eram enviados, o tenente foi perdendo o entusiasmo. Em anotações posteriores, ele demonstrou ter perdido a crença em poder cumprir a missão de apresentar uma nova história.

Versão. Um documento de 1.º de março de 1941 expõe o desânimo e a surpresa do militar com testemunhos que coincidem com a versão de Euclides. Trata-se de relatório com depoimentos das "jagunças" Maria Lina e Maria do Carmo. O tenente faz uma observação na abertura do documento datilografado: "É triste, mas é verdade, o coronel Antonio Moreira Cesar, depois de morto, foi devorado pelos urubus!!!" Euclides já tinha deixado claro o fim do comandante da terceira campanha: Moreira Cesar, ao se aproximar do arraial, disse que pretendia almoçar em Canudos. O coronel virou comida das aves.

O depoimento de Maria Lina é um retrato da guerra. "Perguntada se assistiu aos últimos combates e se sabe responder alguma coisa em relação àquele desastre, inclusive à morte do coronel Moreira Cesar, respondeu que assistiu todo o combate travado em Canudos. Morreu muita gente nessa ocasião de parte a parte, sendo, porém, enterrados somente os adeptos de Antônio Conselheiro, ficando insepultos, no meio do campo, os soldados das forças legais."

A "jagunça" Maria do Carmo confirma as palavras de Maria Lina. "Perguntada o que sabe em relação ao último combate travado entre as forças legais e os jagunços de Antônio Conselheiro, respondeu que assistiu de longe a todo o combate. Verificou também a fuga das forças do governo e a resistência dos jagunços, ficando no campo grande número de mortos e feridos de ambas as partes. Disse mais: Conselheiro só mandava enterrar os seus adeptos, deixando insepultos todos os militares, que foram devorados pelos urubus."

A visão de Euclides da guerra - a repressão desmedida a brasileiros com poucas armas e muita fé - foi usada por historiadores e poetas regionais para contar histórias de muitos conflitos, como os descritos neste caderno: Caldeirão, uma pequena Canudos; Barbudos, uma Canudos no Sul; Encantado, a volta de Canudos; Santa Dica, um Conselheiro de saias; e outros capítulos apagados da história.

Guerra contra Lampião. Os nomes de Lampião, Maria Bonita e Corisco estão nas placas dos cibercafés, pizzarias e serviços de mototáxi abertos no atual momento de euforia no comércio popular do Nordeste. Setenta anos depois de erguerem bacamartes e punhais, os sobreviventes do Cangaço, no limite do esgotamento físico, travam agora, juntamente com pesquisadores e artistas conhecidos ou desconhecidos, uma luta para manter na história as marcas da barbárie. É na luta para se manter em pé que os cangaceiros e mesmo seus algozes se assemelham a outros mortais.

Em uma casa coberta de telha, em Delmiro Gouveia, sertão alagoano, vive a agricultora Aristéia Soares de Lima, 87 anos, possivelmente a última cangaceira. Com vestido longo roxo, usado sempre durante as visitas, a mulher miúda se esforça para conversar. Ela se recupera de um problema nas articulações, que a levou ficar internada por uma semana.

A ex-cangaceira busca uma posição na cama em que consiga conversar sem sofrer. Numa trégua do corpo, começa a falar da prisão, em Delmiro Gouveia. Foi pouco antes da volante (tropa) do tenente João Bezerra chegar à cidade carregando a cabeça de Lampião, morto no massacre de Angicos, em 1938. Conta que a qualquer movimento na rua tentava enxergar o que passava do lado de fora por uma pequena abertura na parede. Mas, naquele dia, preferiu ficar agachada na cela, em silêncio. "Eu não quis ver", diz Aristéia, com dificuldades. Só viu, depois, a euforia dos "macacos" - como eram chamados as volantes - e a surpresa dos moradores com o feito do tenente João Bezerra.

Aristéia intercala uma frase com um movimento de mãos ou de rosto expressando dor. Ela demonstra vontade de falar sobre o Cangaço. Sobreviveu porque se entregou à polícia. Foi logo depois do fuzilamento do marido, Catingueira. Antes de morrer, ele pediu a Moreno, chefe do grupo, que tirasse a mulher do Cangaço. Pelas leis dos bandos liderados por Lampião, mulher não podia sair ou ficar solteira. Era morta para não contar à polícia detalhes das estratégias do grupo. Moreno cumpriu a promessa e levou Aristéia para a cidade, onde ela procurou a polícia. Quando estava presa, soube da decapitação da irmã, Eleonora, também cangaceira. "Só arrancavam a cabeça para provar que mataram cangaceiro e ganhar comenda", diz Aristéia.

O filho e a nora de Aristéia, Pedro Soares e Damaris, exibem orgulhosos um brinco que ela recebeu de Cruzeiro, um temido cangaceiro. Aristéia não aceitou ficar com Cruzeiro, mesmo depois da morte de Catingueira. Ela lembra do dia em que o marido morreu. "Corremos quando começou o tiroteio. Na hora, a gente estava lavando os panos dos meninos. Saímos baleados", diz. "Enterraram Catingueira na caatinga." Ela estava grávida de oito meses. O filho, José, morreu tempos depois, em 1964, num assalto.

Temor. Um dia, conta, ouviu um policial dizer que nunca teve medo de Lampião. "Não tinha medo. Só corria à légua", ironiza. Aristéia discorda que Maria Bonita tenha sido a mulher mais bonita do cangaço. "A mulher mais bonita era a Durvinha", diz - e fecha e abre os olhos como se tivesse sentido uma fisgada. Dos homens, ela afirma que Virgínio, cunhado de Lampião, "ganhava a parada". "Ele era provado mesmo", conta. Ela assegura que a "peste" da polícia matou o cangaceiro Português já detido. O Português tinha se rendido em Mata Grande. "Foi só chegar e descer do carro para ser morto", lembra. "Como ele matou o pai de um soldado, o soldado matou Português."

Em suas lembranças, ela reclama que "a cangaceira Quitéria era o capeta" e fazia intriga contra Cristina, mulher de Português. "Dizem eles que Cristina "sartava" a cerca com Jetirana. Dizem eles, eu não vi. Só pode ter sido a Quitéria quem falou. Quitéria era danada por Português. O marido de Quitéria era Pedra Roxa. Pedra Roxa vivia doente, se entregou e pronto. Em pouco tempo também morreu."

Após a prisão, Aristéia teve mais sete filhos. A carteira de trabalho, expedida em 1972, nunca recebeu um carimbo. Teve problemas até mesmo para se alistar nos mutirões formados nas secas por causa da artrite. O problema tem impedido Aristéia de assistir ao Jornal Nacional e às missas, seus programas preferidos na TV.

Sentada na cama, busca uma posição em que possa sentir menos dor. Põe as duas mãos no rosto. Depois, leva a mão direita para baixo do braço esquerdo. Quase não há mais carne para conter o atrito dos ossos. Puxa algo da memória para desmentir alguma afirmação do filho Pedro. "Ôxe!" Solta uma piada, faz uma brincadeira. Não tem mais movimento nas faces para rir das histórias dos cangaceiros que "sartavam a cerca", dos casos de amor e traição. "Frouxos", diz, com voz firme, referindo-se aos policiais.

Do outro lado do município mora Antônio Vieira, 97 anos, sargento da reserva da Polícia Militar de Alagoas. A farda está impecável, como se tivesse de ser usada a qualquer hora. Na roupa está o registro do tipo sanguíneo: A+.

Antes de começar a entrevista, Vieira demonstra incômodo, como se sentisse falta de algo. A filha Edileuza vai até o quarto do pai e volta com um revólver 38. Ela explica que o pai só dorme e conversa com a arma ao lado. Agora, sim, com a arma na mão, ele fala do combate do extermínio de Lampião, em 28 de julho de 1938.

Segurando firme a arma, Vieira olha compenetrado para a câmera. Parece mirar um inimigo que agora não passa de uma criatura apenas de sua memória. "Lampião recebeu um tiro no peito e caiu. Maria Bonita caiu pertinho dele", conta. "Não posso dizer que matei Lampião. Ninguém pode dizer. Não dava para saber, era muita gente atirando."

Do Cangaço ao seringal. Um dos homens de Lampião que escaparam do cerco de Angicos foi Manoel Dantas Loiola, o Candeeiro. Aos 94 anos, ele vive em Buíque, sertão pernambucano. Vestindo camisa comprida, conta sua história, sentado num sofá da sala de uma casa simples. Reclama de Maria Bonita. "Ela não gostava da minha aproximação de Lampião", relata. "Só vivia fazendo intriga. Mas o chefe confiava em mim."

Após o cangaço, Candeeiro foi para a Amazônia trabalhar em seringais e só voltou mais tarde para o sertão. "Nunca esqueci aquele dia em Angicos. Passei muito tempo sem contar essa história", diz. "Lampião foi alertado que a volante estava na região, mas não deu importância." A fuga de Candeeiro do acampamento de Angicos foi uma das maiores proezas da região. Faz calor no sertão. Um dos filhos do ex-cangaceiro diz, baixo, que o pai jamais tira a camisa comprida. Ela esconde as marcas de bala de Angicos no braço esquerdo.
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Flagrantes da resistência às Ditaduras
O Cavaleiro da Esperança - Vida de Luís Carlos Prestes, obra de Jorge Amado, e as Memórias, de Gregório Bezerra - que estão de volta às livrarias brasileiras - recortam a história política do País

Paulo Sérgio Pinheiro - O Estado de S.Paulo

O Cavaleiro da Esperança - Vida de Luís Carlos Prestes, de Jorge Amado, foi publicado em 1942, na época do Estado Novo, e Memórias, de Gregório Bezerra, em 1979, durante a vigência da ditadura militar no Brasil. O problema com a leitura de O Cavaleiro... é haver tantos Prestes na sua longeva biografia que sempre existe o risco de lermos o livro pelos Prestes que virão depois. Quanto a Amado, Mario Vargas Llosa disse, certa vez, que o escritor baiano era uma espécie de Dorian Gray, que se transformava em cada livro, fazendo verdadeiras festas sensuais e literárias. Até em O Cavaleiro... ele mantém a marca registrada de seus romances, colocando no livro pitadas de música, dança, macumba - e mulheres. As que acompanhavam a Coluna Prestes eram chamadas vivandeiras, às vezes "amor no rastro dos homens""; outras, Anitas Garibaldi redivivas "Nas noites de parada, quando a Coluna se estendia pelas pradarias, como um rio de homens (?) nessas noites, sensual e lânguida, a mulata Onça se rebolava no maxixe dengoso. Dançava para os soldados a dança mais nacional e mais tentadora e mais lasciva", escreve Amado à página 121. E, na sequência, na 122: "Tia Maria, preta velha e de olhos brilhantes, que morreu dramaticamente, entre tortura (?) e nua diante das metralhadoras revolucionárias, invocava os deuses negros das macumbas".

Divulgação
Prestes (em primeiro plano) e Bezzera (de terno escuro), em 1945, num comício do PCB, no Recife

Em O Cavaleiro... como um underpainting, debaixo da pintura, Amado demarca-se no campo ideológico e político brasileiro e ajusta-se aos cânones do realismo-socialista, em voga em Moscou. Acerta contas com escritores como Coelho Neto; ataca os modernistas paulistas como um "movimento ligado aos oligarcas"; execra os integralistas e simpatizantes, como o "donzelo" Octavio de Faria. Exalta os "tenentes" da década dos 1920, como Juarez Távora, "puro, honesto (...) seu coração de gigante bom não acreditando na maldade humana", Juracy Magalhães, Eduardo Gomes, Cordeiro de Farias, futuros generais da ditadura de 1964.

Na mais pura vertente do culto da personalidade stalinista, Amado proclama que "todo o povo do Brasil (...) fez o milagre de heroísmo que é Luís Carlos Prestes, P no peito dos negros, no coração dos soldados da Coluna, luz no coração dos homens, operários. Marítimos, camponeses, poetas, sambistas, tenentes e capitães, romancistas e sábios. Luz no coração dos homens, das mulheres também, estrela da esperança. Um povo escravo precisando do seu Herói". Mas o constrangedor viés autoritário stalinista de O Cavaleiro... não foi em vão: Amado recebeu com justiça o Prêmio Stalin, em 1951.

Em O Cavaleiro..., os eventos-chave são a Coluna Prestes, a insurreição de 1935 e a repressão do Estado Novo. Na chochíssima história da Primeira República, a Coluna Prestes foi um evento estelar: entre 1926 e 1927, durante um ano e quatro meses os 1.500 e no final 800 revoltosos percorrem cerca de 25.000 quilômetros, obrigando o governo brasileiro a lançar mão de forças locais e recursos não convencionais, como Lampião e os cangaceiros. Quase três vezes mais longa que a Longa Marcha de Mao Tsé-tung em menos de um ano, num terreno mais acidentado, mas que termina por implantar um governo no Norte da China. A Coluna termina exilada na... Bolívia - e se dispersa. Em maio de 1930, Prestes contatado para liderar a revolução conclama um "governo de todos os trabalhadores baseados nos conselhos de trabalhadores da cidade e do campo, soldados e marinheiros". E em 1935, ele já no Partido Comunista do Brasil, PCB, subestimando a união das forças armadas e o fortalecimento do Estado depois da revolução de 1930, lança a revolta militar comunista no Rio, sem qualquer articulação popular - todos fragorosamente derrotados e barbaramente reprimidos.

Pela primeira vez na obra de um ficcionista foi escancarada com precisão a repressão brutal e bestial, ainda sob a democracia em 1935, bem antes do Estado Novo, que sofreram Prestes, sua mulher Olga Benário - importante quadro da Internacional Comunista, o Komintern, deportada grávida por Vargas para a Alemanha para ter morte certa, como judia e comunista que era, num campo de extermínio -, seus companheiros da revolta de 1935, e os agentes do Komintern enviados ao Rio. O Cavaleiro... foi crucial para a mobilização internacional para libertar a filha de Prestes e de Olga, Anita Leocádia, com 14 meses, presa com sua mãe em Barnimstrasse. O escritor André Malraux, engajado na causa, posou em Paris ao lado de D. Leocádia, a indômita mãe de Prestes.

O golpismo tenentista se conjugou com a estratégia oportunista do Komintern de apoiar uma revolução no Brasil porque correspondia a uma visão militarizada da insurreição nos países considerados "semicoloniais". Se Prestes fora capaz de todos os feitos decantados por Jorge Amado, sem o programa e as ideias comunistas, o que não faria armado do marxismo soviético! A insurreição de 1935 foi o reencontro dos revoltosos das rebeliões dos anos 1920, refratários à revolução de 1930, com o glacê da retórica messiânica do Komintern. Em 1935, Prestes se vale da insurreição militar pretendendo que fosse como a revolução russa de 1917.

Confluência. Uma outra perspectiva sobre a mesma conjuntura está nas Memórias, de Gregório Bezerra, que cobrem o período de 1900 a 1979, desde a infância do incansável combatente, em Pernambuco, seus primeiros anos de militância sindical na década de 1910 e no PCB. Nos 83 anos de sua vida, Bezerra sofreu tortura e prisões desde o começo de sua militância. Ficou preso dez anos, entre 1935 e 1945, por participação na revolta comunista do Recife e depois outros cinco, entre 1964 e 1969, período em que foi torturado e arrastado pelas ruas do Recife, amarrado em cordas, até ser trocado pelo embaixador americano. Não antes de divulgar documento em que condena o sequestro que possibilitou sua libertação.

A confluência de Prestes com Gregório - e com Amado - se dá também no breve período de legalidade do PCB em que Bezerra e o escritor baiano foram deputados e o Cavaleiro, senador na Constituinte de 1946.

As Memórias de Gregório Bezerra têm valor inestimável como visão de dentro da revolução de 1935 sobre a atuação dos comunistas no breve período da legalidade. E ainda mais rara sobre as atividades dos comunistas na clandestinidade, entre 1948 e 1964.

Em 13 de janeiro de 1948, o então deputado Gregório Bezerra foi escolhido para apresentar as despedidas do grupo na última sessão do congresso a que os parlamentares comunistas compareceram. O registro eleitoral do partido fora cancelado em maio de 1947 e os parlamentares comunistas tiveram cassados seus mandatos. A história da anulação do PCB é muito bem reconstituída por Gregório. Foi uma chicana jurídica promovida pelo governo, no novo contexto da guerra fria, dissimulando uma política de repressão popular em curso. A orquestração do fechamento do PCB, como bem mostra Bezerra, pode ser detectada desde o início do governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1950).

As Memórias são uma narrativa tensa, precisa. O heroísmo irrompe menos da personalidade de Gregório que dos feitos em si mesmos. A edição é bem cuidada, como a que traz O Cavaleiro..., com fotos raras, anexos e cronologia. Índice onomástico referido às páginas e aparato crítico de notas, além das originais, teriam ajudado a melhor compreender o contexto em que os livros foram escritos. De qualquer modo, essas reedições são muito bem-vindas. O Cavaleiro da Esperança e as Memórias permitem rever a atuação dos comunistas em toda a República, tanto da rara perspectiva de Gregório, autêntico militante popular, de participante da rebelião de 1935 até a clandestinidade nos anos 1960, em contraste com a do gaúcho Prestes, militar, herói da Coluna e dirigente comunista - ambos, dignos opositores da ditadura de 1964.

O desafio maior diante desses dois livros incontornáveis na história do Brasil é entender as decisões políticas que Gregório e Prestes tomaram, separando-as das admiráveis qualidades pessoais deles. Compare-se apenas as vidas de Gregório e de Prestes com aquelas dos generais - antigos "tenentes", colegas do Cavaleiro da Esperança - que promoveram, de 1964 a 1985, o terrorismo de Estado e os crimes contra a humanidade praticados pela ditadura militar no País.

PAULO SÉRGIO PINHEIRO É PESQUISADOR ASSOCIADO DO NÚCLEO DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA, DA USP, E AUTOR DE ESTRATÉGIAS DA ILUSÃO. A REVOLUÇÃO MUNDIAL E O BRASIL, 1922-1935 (COMPANHIA DAS LETRAS, 1992). FOI SECRETÁRIO DE ESTADO DE DIREITOS HUMANOS NO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
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"... No dia 17 de Abril de 1996, no estado brasileiro do Pará, perto de uma povoação chamada Eldorado dos Carajás (Eldorado: como pode ser sarcástico o destino de certas palavras…), 155 soldados da polícia militarizada, armados de espingardas e metralhadoras, abriram fogo contra uma manifestação de camponeses que bloqueavam a estrada em acção de protesto pelo atraso dos procedimentos legais de expropriação de terras, como parte do esboço ou simulacro de uma suposta reforma agrária na qual, entre avanços mínimos e dramáticos recuos, se gastaram já cinqüenta anos, sem que alguma vez tivesse sido dada suficiente satisfação aos gravíssimos problemas de subsistência (seria mais rigoroso dizer sobrevivência) dos trabalhadores do campo. Naquele dia, no chão de Eldorado dos Carajás ficaram 19 mortos, além de umas quantas dezenas de pessoas feridas. ...

Estado brasileiro matou 556 civis em 32 conflitos esquecidos do século 20
Reportagem do Estado resgata revoltas populares sem ideologia nem tutela de partidos políticos ou de instituições religiosas

Tropas legais fuzilaram ou causaram a morte de pelo menos 556 civis e tiveram 100 baixas ao reprimir 32 revoltas desconhecidas ou simplesmente esquecidas no Brasil ao longo do século 20. Os episódios mostram a paranoia do Estado brasileiro em usar seu poder de fogo para conter beatos barbudos, rezadeiras, descontentes com a política econômica ou pequenos agricultores em busca de terra, e tomar partido de latifundiários e grileiros nas brigas com posseiros.

Foram revoltas populares sem ideologia ou tutela de partidos políticos e instituições militares ou religiosas. Neste caderno, essas revoltas não são chamadas de guerras pelo grau do confronto de forças e sim pelo poderio de fogo da repressão e pelas marcas deixadas nos lugares onde ocorreram. O que ficou são traumas de guerra - e é assim que, do Norte ao Sul do País, testemunhas e protagonistas referem-se ao episódio do qual participaram. A máquina policial do Estado nunca olhou o tempo histórico para tratar revoltosos dos sertões. A fúria da repressão foi igual em momentos de exceção ou de democracia.

A elaboração do mapa das revoltas e as reportagens deste caderno tiveram como ponto de partida a consulta a coleções de inquéritos criminais, das Secretarias de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, Paraná, Pará, Pernambuco e Minas Gerais - Estados sempre citados nos estudos sobre conflitos rurais, da década de 1930 aos anos 1960. O levantamento das revoltas se baseou ainda nos dados dos Departamentos de Ordem Política e Social (Dops) dos Estados e das atas do Conselho de Segurança Nacional (CSN) e dos relatórios do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), relativos aos anos 1970 e 1980, guardados no Arquivo Nacional. Pesquisas complementares foram feitas em centros culturais e cartórios criminais e cíveis.

Investigação. Foram consultados ainda diários de famílias, cartas, atas de compra e venda de terras, livretos mimeografados, papéis de paróquias, telegramas, cartões postais, boletins policiais, denúncias de comarcas, bilhetes de rebeldes, dados de hospitais e cemitérios, documentos de prefeituras, gravações, recortes de jornais regionais, álbuns particulares de fotos, arquivos privados de agentes policiais e das Forças Armadas. Para localizar testemunhas e participantes dos conflitos, recorreu-se até a cadastros de fregueses de compra a fiado no comércio.

Uma viagem aos cenários das revoltas genuínas da terra põe em debate a versão de que a população civil dos sertões assistiu calada a duas ditaduras do período republicano - os regimes Vargas e militar. Embora sem conexão, esses conflitos revelam, em sua soma, a face de inconformismo dos brasileiros, que vivem em rincões tão distantes e isolados que parecem integrar outra nação.

A pobreza, a falta de alternativas de renda e a confiança em beatos messiânicos são características de boa parte das revoltas e elos com movimentos como Canudos e Pedra do Reino, no Nordeste. E em cada revolta o Estado via Antônio Conselheiro, líder de Canudos.

A pesquisa não contabilizou mortes em conflitos que ganharam destaque nacional e são sempre lembrados por entidades não-governamentais, como o que resultou no assassinato do líder seringueiro Chico Mendes, em 1988, no Acre, o de Corumbiara, em Rondônia (1995), e Eldorado do Carajás, no Pará (1996) - apoiados pelo Movimento dos Sem-Terra - , além de outros mais antigos, como a Guerra do Contestado, em Santa Catarina (1912-1916) e Revoltas da Vacina (1904) e da Chibata (1910), no Rio. Ficaram ainda de fora mortes causadas por repressão em greves nas grandes cidades.
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O herói negro em seu labirinto


O herói negro em seu labirinto
Dois livros publicados revisitam a acidentada trajetória de João Cândido Felisberto, personagem central da Revolta da Chibata, ocorrida em 1910 para[br]encerrar os maus-tratos então vigentes na Marinha

Lilia Moritz Schwarcz - O Estado de S.Paulo
Muitas vezes a realidade acaba por se mostrar bem mais criativa do que a própria imaginação. Se são muitos os exemplos retirados da história, arrisco aqui mais um: o caso de João Cândido Felisberto. Marinheiro de formação, filho de ex-escravos, participou da Revolta da Chibata de 1910, transformando-se em líder do movimento, quando ganhou a alcunha de Almirante Negro. A história dessa insurreição popular, até hoje pouco contada entre nós, faz parte da lógica dos vários levantes que assolaram a, assim chamada, República Velha, que nasceu prometendo a igualdade, mas acabou entregando a exclusão social. Se a princípio a República foi saudada como um movimento cidadão, e de distribuição equânime de direitos - afastado de vez o fantasma da escravidão -, já o cotidiano se mostrou muito distinto. A Reforma do Prefeito Pereira Passos transformou o Rio de Janeiro em um cartão-postal do novo Brasil moderno, mas tratou de expulsar boa parte da população pobre para os arredores da cidade: os subúrbios cariocas, cada vez mais apinhados de gente e carentes de infraestrutura ou das benesses do progresso. Exemplo de insatisfação podem ser encontrados nas palavras de uma série de intelectuais, coetâneos, como Lima Barreto ou Euclides da Cunha - descontentes com "a República que não foi". Termômetro aquecido são as inúmeras revoltas que estouram nesse momento, anunciando críticas de toda sorte: Canudos (1897-1900) a Revolta da Armada (1902-3), a Revolta da Vacina (1904), Contestado (1912), e finalmente a Revolta da Chibata.

O estopim do movimento era claro e guardava uma lógica simbólica das mais perversas. No dia 16 de novembro de 1910, uma série de embarcações nacionais e estrangeiras aportam na Baía de Guanabara para saudar a posse do novo presidente da República: o marechal Hermes da Fonseca. A eleição havia sido tensa, uma vez que o militar acabara derrotando o candidato mais popular, Rui Barbosa, que representava, nesse momento, o projeto civilista. Já Hermes corporificava a volta do Exército ao poder, e foi logo recebido com grandes doses de desconfiança. Assim, se em parte dos navios reinava um ambiente de congratulação, em um deles - o encouraçado Minas Gerais, o maior navio de guerra brasileiro - o clima era em tudo distinto. Na madrugada daquele dia, a tripulação fora obrigada a presenciar os castigos infligidos ao marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes - 250 chibatadas - e seu recolhimento à prisão, sem direito a tratamento médico. Seu delito fora ferir à navalha o cabo Valdemar Rodrigues Menezes, que o acusara de levar ao navio duas garrafas de cachaça.

A chibata é punição herdada da marinha portuguesa, mas no Brasil ganhou carga das mais pesadas. Com a introdução da escravidão em todo o território nacional, tal castigo passou a fazer parte do código punitivo e das sensibilidades locais, sendo, com frequência aplicado em locais públicos, para assim servir de humilhação, execração coletiva e exemplo geral. A escravidão acabara em maio de 1888, mas a sevícia continuava impune na Marinha, e amparada pelo corpo da lei, que arrogava a ela o poder de "quebrar o mau gênio" dos rebeldes. E foi naquele dia que, reunidos em torno das beliches de seus quartos, os marinheiros do Minas Gerais, decidiram que os maus-tratos iriam acabar. O marujo João Cândido tinha então 30 anos, e se tornaria o chefe de uma revolta que lhe custaria caro, mesmo passados os tempo da República Velha, do Estado Novo, do Populismo e do Regime Militar. Morreria aos 89 anos, nos idos de 1969, guardando a pecha de "sujeito perigoso", por mais que tentasse se esconder num insignificante anonimato de carregador nas docas da Praça XV.

Na verdade, a vida de João Cândido mais parece uma saga, a lembrar da sorte de tantos brasileiros de origem humilde e, ainda mais, estigmatizados por sua cor negra. Nascido numa propriedade rural, localizada na fronteira entre Brasil e Argentina, passa a primeira infância ao lado do pai, o qual, depois de liberto, atua como tropeiro na lida com o gado. Com 14 anos recém-feitos é levado para a Marinha, onde faz carreira. Boa parte de seus colegas era formada por negros e pobres, como ele, e acostumados à labuta pesada e regrada. A marinha era o destino da escória; considerada uma espécie de castigo para jovens indisciplinados, que ingressavam mais cedo, e por meio dela, na disciplina militar. O fato é que com 20 anos, nosso personagem já se destaca como instrutor de aprendizes marinheiros, viaja por toda a costa brasileira, assim como empreende algumas rotas internacionais. Numa delas, em missão especial na Inglaterra, assiste à montagem e entrega do Minas Gerais: um navio de manejo difícil e sofisticado; especialmente encomendado pela marinha brasileira.

Várias são as "bagagens" que traz no retorno dessas viagens. Da Amazônia importaria uma tuberculose renitente, que se manifestaria em vários momentos da sua vida. Da Inglaterra carregaria a experiência dos movimentos sociais, dos sindicatos, e a primeira consciência da luta de classes. A Marinha, a essas alturas, e depois da Revolta da Armada, havia sido relegada ao abandono absoluto e praticamente, desde a Guerra do Paraguai que terminara em 1870, pouco se investia no reaparelhamento da frota. Por outro lado, o processo de recrutamento era feito de maneira coercitiva, sendo boa parte de seus elementos analfabetos e alistados à força pela polícia.

Assim, o cenário da revolta ia se delineando. No entanto, entre a sua realidade e a projeção que se criou em torno dela o hiato é grande. O motivo imediato foi a chibata, e o objetivo único a proibição de seu uso. O lema era curto e grosso: "Abaixo a chibata." Eventos ganham, porém, significados e proporções inesperados, dependendo do contexto em que se estabelecem. Apesar de durante a eclosão do levante terem ocorrido raros bombardeios e poucas mortes, a repercussão foi imensa. A Revolta logo virou pretexto para a repressão generalizada e, apesar da primeira promessa de anistia, o destino dos rebelados seria diverso, e a própria cidade viveria em estado de sítio.

É em torno desse episódio dramático e de seu protagonista central que se debruçam duas oportunas publicações recentes: um livro de não ficção, João Cândido, resultado de pesquisa criteriosa empreendida pelo jornalista Fernando Granato; e outro de ficção, João Cândido - O Almirante Negro, escrito por Alcy Cheuiche, autor de mais de 20 novelas, boa parte de conteúdo histórico. Granato acompanha o Almirante Negro até sua morte. Já Cheuiche escolhe terminar sua narrativa no momento em que João Cândido ganha a liberdade. A opção faz com que o leitor tenha sensações distintas ao término dos dois livros: se o romance passa a impressão de uma certa redenção e a merecida liberdade; já a história pregressa se mostrou distinta, e a obra do jornalista revela-se avessa a qualquer happy end.

João Cândido veria muitos colegas amotinados morrerem assassinados; seria preso na Ilha das Cobras e escaparia com vida de uma cela em que 16 companheiros seus morreram asfixiados pelo calor e pelo efeito do cloro espalhado pelo chão; permaneceria internado no Hospital de Alienados (um verdadeiro paraíso quando comparado ao inferno da prisão); para ser libertado em 1912: tuberculoso, magro e pobre. Mesmo assim, volta ao mar, primeiro como carregador nas docas e depois atuando novamente na marinha. No entanto, sempre reconhecido, perde sistematicamente os empregos que consegue. Casa-se duas vezes, e na segunda conhece novo inferno, dessa vez domiciliar: sua mulher e filha colocam fim às suas vidas ateando fogo em suas vestes.

A despeito de tantos acidentes graves de percurso, o Almirante Negro, continuaria trabalhando na Praça XV, onde levava cestos cheios de peixe para o mercado. Distante da política, resiste a tentativas de assédio, como as que empreendem participantes do movimento integralista, já nos anos 1960. É só em 1968 que presta depoimento ao Museu da Imagem e do Som, e sua história passa a ser mais conhecida. Orgulhoso, relata os tempos gloriosos da Revolta, seus anos de penúria, as mazelas domésticas e a tuberculose que insiste em o visitar de tempos em tempos. Mas não seria ela que lhe tiraria a vida, mas sim um câncer fulminante no intestino.

Nos anos 1970, João Bosco e Aldir Blanc, inspirados pela vida de João Cândido escrevem O Mestre-Sala dos Mares; música que se tornaria célebre na voz de Elis Regina. Mas o regime tratou de censurar a primeira versão da canção, que tratava de tema vetado pelas Forças Armadas. Para driblar a proibição, entraram na letra mulatas, baleias e polacas, desavisadas, mas o refrão passou impune: ''Salve, o navegante negro, que tem por monumento as pedras pisadas no cais. Mas faz tanto tempo." E foi só recentemente, em 2008, que Lula sancionou a anistia póstuma do marinheiro, após proposta feita pela então senadora Marina Silva; datada originalmente de 2002.

São muitas as personagens de nossa história que continuam esquecidas, proibidas ou mal lembradas. O Almirante Negro, que morreu no anonimato da Praça XV e negando ser quem era, tem agora sua vida romanceada e devidamente documentada. Termino como comecei. O destino de João Cândido foi tão imaginoso, que seu relato, por si só, já vale muitos romances, tantas narrativas e mais pesquisas. Estamos só começando e "nem faz tanto tempo ..."

LILIA MORITZ SCHWARCZ É PROFESSORA TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA DA USP E AUTORA, ENTRE OUTROS, DE O SOL DO BRASIL: NICOLAS-ANTOINE TAUNAY E AS DESVENTURAS DOS ARTISTAS FRANCESES NA CORTE DE D. JOÃO (COMPANHIA DAS LETRAS)
Jornal O Estadão

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Ideologia e literatura


Redigido, em chinês, para ser lido em duas palestras, o texto a seguir, de autoria do Prêmio Nobel de 2000 - que o cedeu com exclusividade ao 'Estado' -, reflete sobre os embates entre a arte da escrita e a política

Gao Xingjian - O Estado de S.Paulo

No decorrer do século 20 foram muito comuns as ocorrências nas quais a literatura foi contida, controlada, dirigida e até produzida e julgada pela ideologia. Isso não se aplicou apenas à criação literária: a história e a crítica da literatura também apresentaram muitas vezes a marca da ideologia. Poderíamos dizer que a ideologia foi o mal do século - contra o qual foi difícil imunizar-se - e, para os autores sortudos o bastante para escapar dessa doença do período, isso significou que seus escritos foram preservados, continuando merecedores de leitura em épocas posteriores.

Para que uma teoria ou ensinamento consista numa ideologia é preciso que haja uma estrutura conceitual filosófica somada à representação de uma visão de mundo que tenha como base valores correspondentes. Entre as ideologias, o marxismo sem dúvida teve a estrutura mais perfeita e a influência de maior alcance, causando um impacto profundo em gerações de intelectuais. Nem é preciso dizer que esse foi o pilar intelectual oficial dos antigos Estados comunistas, mas, durante algum tempo, foi também a principal tendência dos círculos intelectuais de esquerda de todo o mundo. Liberalismo e nacionalismo também puderam ser transformados em ideologias, e se tornaram o pensamento e os valores promovidos por partidos políticos e nações. E, no mundo intelectual - que inclui sem dúvida os domínios da literatura e da arte -, modernismo, pós-modernismo e até o chamado pós-colonialismo tinham o potencial de serem transformados em determinados juízos de valor e até em dogmas inflexíveis.

As ideologias foram inicialmente construídas com o objetivo de explicar o mundo, e também de estabelecer sistemas de valores para a sociedade humana que servissem como base razoável para as autoridades do Estado e as estruturas sociais. Se pensamos na filosofia como algo confinado ao pensamento metafísico, então a ideologia está ligada a juízos de valor a respeito da estrutura e dos muitos tipos de vantagens na sociedade. A literatura, por sua vez, é a articulação livre dos sentimentos e pensamentos dos seres humanos, transcendendo essencialmente a utilidade prática, e quando os autores seguem esta ou aquela tendência ideológica de pensamento, eles perdem sua independência de pensamento. Infelizmente, foi assim que, nos tempos modernos, a literatura perdeu com frequência sua autonomia de pensamento. Foi assim que, nos tempos modernos, a literatura muitas vezes perdeu sua autonomia e se tornou um acessório da ideologia: a literatura do século 20 deixou para trás muitas lições para todos nós.

A substituição da religião pela ideologia foi outro ato de estupidez do século 20. Sob a bandeira do racionalismo, e fazendo uso de dogmas utópicos que mudariam o mundo, um grande número de revoluções incitou a violência que trouxe consigo a loucura em massa - às vezes de alcance nacional - responsável por desastres de uma escala sem precedentes na história humana. A literatura que foi trazida para a estrutura conceitual da ideologia, promovendo a violência e a guerra, criando a idolatria a heróis e líderes e incitando ao sacrifício parece agora ter virtualmente desaparecido, mas prossegue o apelo para que a literatura se envolva ativamente. Tratar a literatura como uma ferramenta de transformação da sociedade a equipara ao exercício de pregação da ética, exceto pelo fato de a ética ter sido agora substituída pelo politicamente correto. A literatura do presente não é capaz de se libertar das amarras da ideologia com tanta facilidade, e aquilo que conhecemos como envolvimento significa o envolvimento na política real. Essa noção de literatura ainda prevalece no mundo intelectual contemporâneo.

Hoje em dia é bastante comum que os intelectuais debatam a política, mas, a não ser que a pessoa se envolva pessoalmente com a política, esse debate não costuma ser mais do que um discurso vazio de impacto mínimo na situação política e na sociedade. Além disso, a política real de hoje é a política dos partidos e, a não ser que os intelectuais se filiem a um partido político e se tornem políticos profissionais, será difícil que façam alguma diferença. Para um escritor comprometido com a literatura e ansioso por influenciar a política, a situação é duplamente difícil, e esse é o estranho dilema que a literatura enfrenta ao se envolver na política. Entretanto, a política não está preocupada com esse dilema enfrentado pelos autores, nem com a ideologia de qualquer teoria política. Caso venha à tona um conflito entre este ou aquele ismo e os interesses reais da política partidária, o partido acabará descartando a teoria, ou então os teóricos farão as revisões e reinterpretações apropriadas de acordo com as exigências da política real, o que leva a mudanças constantes naquilo que é conhecido como politicamente correto.

O autor patético - estou me referindo aqui ao autor que usa a literatura para servir à política - está preso à biga de guerra da política, não mais no controle de si mesmo, brandindo uma bandeira e gritando, mas ele perdeu a própria voz e, é claro, não deixará como legado obras que valham a pena serem lidas. Ainda mais trágico é o fato de propriedade e vida terem sido enviadas ao túmulo, destino de muitos autores revolucionários que sacrificaram a literatura em nome da revolução sob a política centralizada do comunismo. A história não chegou ao fim e, igualmente, o futuro da literatura que serve à política nos sistemas democráticos não é necessariamente maravilhoso. Além disso, a literatura não é como uma mídia e não pode ser o objeto de uma cobertura diária, e cada facção política que conte com sua própria mídia de massas para apresentar de maneira satisfatória suas visões políticas não espera que a literatura tenha algum efeito. Se a literatura participa da política, ela serve no máximo como floreio decorativo da política partidária.

Basicamente, a ideologia estabelece uma teoria para a política real, mas a teoria não determina o lucro, nem o prejuízo nem o poder comparativo real que controlam a política. Invariavelmente, a política é mais uma questão de dinâmica do que de ideologia, e pode estar correta num dia e equivocada no dia seguinte, mantendo-se sempre politicamente correta. O autor que adere a uma ideologia, ou, poderíamos dizer, que acredita num determinado ismo, descobrirá na verdade seus ideais repetidamente abandonados pela política, mas sua frustração e sensação de perda não serão fruto de erros ou defeitos na ideologia. Em vez de tentar revisar uma determinada ideologia, seria mais fácil simplesmente entregar-se ao serviço da política, sendo este o inevitável resultado do envolvimento da literatura na política. Esse tipo de literatura, é claro, perde a independência e a autonomia que são inerentes à literatura, e pertence somente ao âmbito da política partidária.

O autor - estou me referindo aqui aos autores e poetas comprometidos com a criação literária, e não com as opiniões de comentaristas políticos e colunistas de jornais que pertencem a uma profissão diferente - se vê hoje numa posição em que se torna difícil ganhar a vida. A resistência ao alinhamento político e a recusa em se curvar aos modismos e ao gosto das massas gerados pelo mercado, perseverando em vez disso na escrita literária, são coisas que devem emanar inicialmente de uma necessidade interna que exija expressão. De fato essa é na verdade a intenção original da literatura, e poderíamos dizer que assim tem sido desde a antiguidade até o presente, tanto no Oriente quanto no Ocidente. Esse tipo de literatura que transcende a ideologia e a política e transcende o benefício prático consiste num testemunho das condições existenciais da humanidade e da natureza humana.

Na época globalizada atual, os ganhos econômicos reais substituíram concretamente a ideologia ou, dito de outra forma, a ideologia tornou-se hoje um discurso vazio e antiquado, na melhor das hipóteses nada além de um cartaz enganoso no palco político, e por isso não há problema em chamar o presente de era pós-ideológica. A literatura contemporânea teve a sorte de escapar das amarras da ideologia e, se ignorar os modismos gerados pelo mercado e ousar enfrentar os genuínos problemas humanos do presente, então a literatura será salva. O que esse tipo de literatura espera do autor é a sinceridade, ou seja, que ele não evite os muitos problemas reais que afligem a sociedade humana, e é essa literatura sincera e verdadeira que os leitores de hoje desejam.

Purificação. O fim da ideologia não é o fim da literatura, e o fim da ideologia não é o fim do pensamento. O colapso de um século de utopias deveria ter ocorrido há muito tempo, e agora o empobrecimento espiritual tenta seduzir a literatura aos gritos. De fato, a literatura é incapaz de salvar o mundo, o autor não é um salvador e, além disso, o que ele precisa fazer é se livrar de tal papel imaginário, voltando a ser um indivíduo autêntico e frágil para que seja possível ter uma consciência lúcida do mundo humano.

A literatura pode ser apenas a voz do autor individual, mas, quando retratada como representante do povo ou porta-voz da nação, essa voz será certamente falsa, rouca e cansada. Da mesma maneira, o autor não é a encarnação da verdade e da dignidade, e suas fraquezas e defeitos pessoais são de fato tão grandes quanto os das pessoas comuns; aquilo que o diferencia é simplesmente o fato de ele poder purificar-se com a escrita da literatura. Além disso, o autor não é um juiz, não decide a respeito daquilo que é certo ou errado nem julga aquilo que é moral ou justo. Ele certamente não é uma espécie de super-homem e não pode substituir a Deus, mas deve-se reconhecer que o mal de época da inflação ilimitada do ego, assim como a ideologia, foi a grande febre durante algum tempo. Se o autor de hoje for capaz de abolir tais delírios pessoais, adotando uma atitude normal, observando com um olhar inteligente as muitas manifestações da vida no universo ao mesmo tempo em que disseca e analisa friamente seu próprio eu caótico, a obra produzida por sua pena será digna de leitura e releitura.

O autor é um observador da sociedade e da natureza humana. Uma vez que ele descarte o benefício prático, ponha de lado os potenciais obstáculos psicológicos e tenha um claro entendimento de si mesmo, suas observações serão incisivas e meticulosas e, sem que nenhum assunto consista num tabu, ele poderá expor e apresentar de maneira penetrante a verdadeira situação da vida humana. A literatura não se satisfaz em documentar pessoas e eventos reais, e a capacidade do autor de sondar a vida e a natureza humana deriva de suas experiências de vida. Mas ainda mais importante é a capacidade inata do autor tanto de sondar as mais distantes profundezas quanto de usar meios estéticos para relatar linguisticamente as percepções que foram despertadas ao seu redor.

O motivo pelo qual o depoimento da existência humana deixado pelo autor se mantém vívido e poderoso com o passar do tempo não se deve inteiramente à habilidade linguística, estando mais associado ao sentimento estético que o autor concede a seus personagens. Esses sentimentos não correspondem diretamente a simples juízos éticos de certo e errado, consistindo em sentimentos humanos transpostos para os personagens. É claro que esses derivam também da atitude do autor diante de seus personagens, e são precisamente esses sentimentos estéticos que fazem com que os personagens ganhem vida.

Tragédia ou comédia, ou tragédia e comédia e todas as demais emoções e desejos humanos podem ser manifestados de maneira estética. Triste ou divertido, absurdo ou hilário, nobre ou cômico são qualidades concedidas pelo autor, e essa estética intimamente associada às emoções é incomparavelmente mais rica do que a cognição racional. É isso que diferencia a literatura da filosofia. A literatura não é um acessório da ideologia e, apesar de não se propor a comentar a filosofia, ela às vezes chega a entendimentos semelhantes. Enquanto a filosofia toma por base a especulação racional pura, o conhecimento conquistado na literatura está sempre associado à sensualidade e às emoções.

Literatura e filosofia chegam cada qual a um entendimento do mundo e dos seres humanos recorrendo a meios diferentes, mas não cabe debater se uma seria superior à outra. Tanto racionalidade quanto sensualidade são caminhos necessários para a compreensão do ser humano. A literatura pode instigar nas pessoas uma reflexão profunda porque pode revelar o estranhamento e a ansiedade, a busca e a perda de rumo na vida humana com tamanha incisividade, podendo manifestar plenamente os detalhes minuciosos da natureza humana. Essa propensão a inquietar e despertar transcende o politicamente correto e os ensinamentos éticos, sendo muito superior a qualquer coisa que a análise semântica pós-moderna e os jogos de palavras possam oferecer. Mesmo que as experiências de vida do autor por trás da linguagem da literatura sejam transformadas em pensamento, este ainda terá de ser infundido com os sentimentos e percepções do autor ou dos personagens, e situações específicas na obra também precisam ser incluídas, o que faz delas mais do que a pura formulação e definição de conceitos racionais.

Há dois tipos de pensadores: um deles é o filósofo, que se apoia na especulação metafísica racional; o outro é o autor, que se vale das imagens literárias. O primeiro tipo pode ser encontrado nos grandes pensadores da Grécia Antiga, e o último pode ser encontrado nos autores das tragédias e comédias gregas da mesma época. Cada qual recorreu a métodos diferentes para proporcionar às gerações futuras o conhecimento a respeito da situação existencial humana (os dilemas, com frequência) e da natureza humana. Na Europa, durante a Idade Média, quando a escolástica sufocou o pensamento, foi do poeta Dante o entendimento do mundo e das pessoas que se revelou superior. Além disso, Shakespeare foi sem dúvida o maior pensador de sua época e, igualmente, Goethe e Kant foram brilhantes.

Hoje a maré do pensamento pós-moderno parece ter passado e, diante dessa vertiginosa época de empobrecimento espiritual, acho que as pessoas devem buscar inspiração na literatura. A crise financeira e econômica mundial projetou pela primeira vez os economistas ao palco na qualidade de pensadores, enquanto a filosofia se mantém em silêncio. Que rumo a humanidade está seguindo? Serão os seres humanos capazes de prever o futuro, ou será que um novo conjunto de utopias será estabelecido? Ou será que as cartas serão novamente embaralhadas para mais uma rodada de jogos semânticos? Seja qual for a resposta, a literatura pode sem dúvida proporcionar até certo ponto um relato da sociedade na qual as pessoas se veem envolvidas hoje.

É claro que a literatura não se resume a replicar a realidade. A literatura realista foi uma das grandes correntes literárias, e do fim do século 19 até o início do século 20 surgiram grandes números de autores talentosos e muitas obras de notável permanência. Os escritos modernistas do século 20 se voltaram para o mundo do inconsciente das pessoas, abrindo outra área para a literatura. A racionalidade não poderia oferecer respostas para o absurdo da sociedade moderna nem para as questões relacionadas ao significado da existência, e a filosofia tinha igualmente se afastado dos temas tradicionais. Sob os auspícios da ideologia, a literatura que reproduzia a realidade social se transformou em propaganda revolucionária. Sob as condições sociais atuais, será a literatura ainda capaz de refletir a realidade social? É claro que sim: trata-se apenas de uma questão de descartar os ismos, libertar-se da estrutura conceitual e dos dogmas da ideologia, afastar a pregação do politicamente correto, retornar às percepções genuínas do autor e narrar com a voz firme e independente do indivíduo. Mesmo que essa voz seja extremamente fraca ou que desagrade ao ouvinte, trata-se da verdadeira voz de uma pessoa, e isso tem valor enquanto literatura.

Independência espiritual. A literatura é a afirmação que um homem faz de sua própria existência. Apesar de o frágil indivíduo não contar com o poder de mudar o mundo, ele pode manifestar suas opiniões sempre que desejar. É relevante que o autor tenha de fato pensamentos próprios a expor, e que não se limite a meramente repetir as afirmações amplamente difundidas pelas autoridades e pela mídia. A independência espiritual do indivíduo é a própria substância da literatura, e responde pela independência e autonomia da literatura. A literatura não se associa ao poder político nem depende do mercado, consistindo num domínio de liberdade espiritual para os humanos. Apesar de não ser sagrada, ela pode ser protegida dos avanços de outros interesses, e constitui uma parte do pouco orgulho que o ser humano pode ter de si.

O homem existe em meio a todo tipo de restrição na sociedade, e a liberdade não é um direito concedido ao nascer. Um preço deve ser pago, há condições, e ela nunca veio de graça. Mas a liberdade espiritual pertence ao indivíduo, embora seja necessário que o indivíduo a escolha, e a independência e a autonomia da literatura são algo que o autor deve escolher. A liberdade espiritual enobrece os seres humanos, e consiste também num atributo da literatura.

A literatura é o despertar da consciência do indivíduo no sentido de que o autor se arma com esse conhecimento intuitivo quando observa o mundo humano ao mesmo tempo em que analisa a si mesmo. Ele infunde seu entendimento lúcido na sua obra. O entendimento único de um indivíduo em relação ao mundo é inegavelmente o desafio que a existência da entidade individual faz ao seu ambiente existencial. Portanto, o entendimento conquistado numa obra literária sempre traz a marca do autor individual. É precisamente cada uma dessas histórias individuais que faz da literatura algo interessantíssimo e insubstituível. Enquanto a especulação da filosofia se apoia no abstrato, a literatura promove um retorno à vida, às percepções das pessoas vivas e às emoções. Em outras palavras, a literatura começa em lugares que são inalcançáveis para a filosofia, e o tipo de entendimento proporcionado por ela não pode ser substituído pela filosofia.

Quando a filosofia clássica se imbuiu de conceitos e racionalidade para construir um sistema de especulação que proporcionasse ao mundo um exemplo perfeito, tudo aquilo que não pôde ser perfeitamente explicado foi deixado nas mãos de Deus. Entretanto, não há limites para aquilo que a literatura pode dizer, e ela não se apressa em se propor a definir uma certa visão de mundo. Além disso, ela sempre mantém a mente aberta e preenche a consciência das pessoas com pensamentos e infinitas emoções. Por confrontar a vida em suas infinitas variações, a literatura não termina com a morte do protagonista ou do autor, e nem com a conclusão de uma obra.

Cada autor apresenta uma visão única, mas ele não usa essa visão única para substituir os demais autores. Não é como na filosofia, na qual a crítica é a premissa para o estabelecimento de uma teoria que com frequência é promovida como única verdade correta e definitiva. Apesar de a filosofia pós-moderna defender a ambiguidade e até a eliminação do sentido, ela é independentemente disso estabelecida com base na premissa da morte de todas as filosofias predecessoras. A literatura não exclui e não abre para si um caminho por meio da crítica; em vez disso, o que ocorre é que cada pessoa apresenta o próprio discurso, coisa que possibilita uma variedade infinita.

A literatura não faz da crítica social sua missão, e não usa uma visão de mundo pré-fabricada nem um sistema de valores nela alicerçado para julgar a sociedade. Os depoimentos da literatura se valem da estética. A estética emana primariamente da natureza humana, estando intimamente associada à incorporação das influências culturais que se deu no decorrer de um extenso período da história humana. Além disso, ela transcende os tipos de linguagem, e pode ser traduzida e comunicada para todo o mundo. As emoções evocadas pela estética infundida numa obra pelo autor são poderosas, e podem encontrar eco em leitores de diferentes nacionalidades e de diferentes épocas, o que confere à literatura uma riqueza espiritual que deve ser desfrutada por toda a humanidade. Portanto, a estética que um autor infunde numa obra literária pode ser considerada um juízo definitivo que transcende os benefícios práticos, o certo e o errado, o bem e o mal, além dos costumes sociais e a época. Enquanto a obra circular pelo mundo, as pessoas continuarão a lê-la, e as sensações estéticas evocadas por esse testemunho literário transcenderão a história, sobrevivendo por muito tempo.

Estritamente falando, a era não tem significado para a literatura, apesar de cada obra de cada autor trazer até certo ponto a marca de seu tempo. Separar a literatura em diferentes períodos e diferentes ismos é tarefa dos historiadores da literatura, mas nada tem a ver com as criações do autor. O modernismo do século 20 passou a existir após o surgimento de certo número de obras que foram reunidas pelos críticos literários: essas foram classificadas em tal categoria e teorias foram estabelecidas. Isso ajudou a pesquisa literária, mas pouco teve a ver com a criação dos autores. De fato, houve autores que se gabaram de serem modernistas, mas somente depois que seus predecessores e as obras representativas tinham se tornado publicamente conhecidas, familiares, e assim a reunião sob esse rótulo criou uma tendência. O valor literário de uma obra nada tem a ver com rótulos, dependendo em vez disso do entendimento único e da apresentação estética do autor e da obra.

A modernidade foi extrapolada a partir de obras muito diferentes criadas por certo número de autores modernos, e portanto era grande a probabilidade de ela ser transformada em dogma. De fato, a modernidade que se tornou um símbolo da época após a reunião de alguns autores extraordinários e obras notáveis numa mesma categoria tinha na segunda metade do século 20 sido transformada num dogma estético ossificado. Para esse dogma era essencial a subversão, e assim foi criado um modelo para a subversão dos estilos predecessores, e a negação da negação foi vista como o princípio universal que ativava a história, tornando-se a estratégia básica do pós-modernismo. Em última análise, as origens disso estão no marxismo que foi formado pela dialética hegeliana. Quando o marxismo foi apresentado à literatura e à estética, continuar a revolução na literatura e na arte tornou-se a maneira por meio da qual a história da literatura e da arte era escrita.

Privada do rico conteúdo da natureza e das emoções humanas, a estética pós-moderna se transformou em retórica e papo furado e, com a análise semântica substituindo a estética, filosofia e literatura se transformaram em jogos linguísticos, o que levou a um desaparecimento natural do significado. Essa estratégia pós-moderna de subversão não era nem mesmo voltada contra a sociedade, e os problemas da sobrevivência e existência humana desapareceram em meio à linguagem vazia, de modo que restaram apenas símbolos vazios de uma era sem autores e desprovida de obras literárias.

A literatura se vale da linguagem, mas a linguagem da pena do autor é muito diferente dos objetivos de pesquisa de gramáticos e linguistas - e pouco tem a ver com eles. A gramática e a análise e descrição das estruturas e funções gramaticais se preocupam com o extrato mais baixo da linguagem e, independentemente disso, essas podem ser a chave de um aprendizado infinito, assim como é o caso de qualquer disciplina. Mas a gramática é muito distante da literatura. A linguagem da literatura transmite o pensamento, as emoções e o espírito dos seres humanos, e também a rica herança literária da humanidade que ela incorpora. Os autores de cada era simplesmente almejam criar novas formas de expressão e, ao fazê-lo, enriquecem a linguagem. Nesse sentido, o autor é criador e inovador na linguagem do seu povo.

Permanência. Para o autor, a literatura não se constitui em significantes, e sim em vibrantes vozes humanas que contêm cada emoção e desejo humano. Quando o autor escreve, essas vozes ganham vida no seu coração e na sua consciência. A linguagem da literatura pode ser lida em voz alta e também interpretada; ela é dinâmica e pode ganhar vida no palco para ressoar forte entre leitores e espectadores. Aquilo que o autor cria é uma linguagem que reverbera com o som - e não a linguagem à qual se referem ou podem se referir os pesquisadores linguísticos. O autor não se contenta com a linguagem empregada em obras anteriores; ele está sempre explorando novas formas de expressão para transmitir percepções recém-descobertas, e sua busca em meio ao potencial expressivo da linguagem não chegou ao fim. Esse tipo de busca não subverte os feitos de seus predecessores; é empreendido sobre os alicerces das expressões existentes.

Os sinais da época pós-moderna anunciando a morte do autor ficaram provavelmente no passado, assim com as revoluções literárias fracassaram em exterminar os autores, tendo elas mesmas se acabado. O autor e a literatura permanecem, e a história não chegou ao fim. Entretanto, o problema é simplesmente determinar como a literatura vai lidar com as condições e dilemas existenciais do homem moderno em relação à literatura. Terá o autor a coragem de apresentar a verdadeira situação do homem? Será que ele vai encontrar uma forma mais precisa de expressão literária?

O autor é o criador de gêneros literários e da linguagem literária. A literatura não é um relato dos fatos, e essa é a grande diferença entre a literatura e o registro da história. As percepções do autor, o gênero, o método de expressão e o estilo da linguagem são características que se desenvolvem simultaneamente, e todo autor realizado terá preferência por certos gêneros e estilos. Além disso, as associações e a imaginação também são infundidas numa obra. Em cada gênero, da poesia aos ensaios em prosa, da ficção ao drama, o autor ainda pode fazer descobertas, e não há padrões ossificados. As percepções estéticas que o autor deseja transmitir não podem ser dissociadas de uma forma literária específica, e uma estética que tenha como base a forma pura consiste num pensamento vazio e desprovido de sentido, sendo também assim o sentido poético da literatura.

Nesta época em que a política a tudo permeia e a lei do lucro mergulha o mundo na incalculável ganância humana, onde podemos encontrar a poesia? A beleza se tornou gradualmente uma memória distante. O homem - não estou me referindo ao conceito humanista do homem, e sim aos díspares indivíduos da sociedade que nunca antes se viram tão fragilizados ao confrontar a solidão que é a existência humana -, este indivíduo solitário, não carece de poder de pensamento: seu questionamento do significado da existência é hoje mais perspicaz do que em todos os momentos anteriores, e ele enxerga a liberdade como uma necessidade urgente. É preciso dizer que em nenhum período anterior um número tão grande de pessoas se dedicou à escrita. Nesta época de empobrecimento espiritual, a literatura se tornou algo a que as pessoas podem recorrer. Existe a esperança de que um traço de vida possa ser preservado, e isto até certo ponto mostra que a literatura não pereceu. Quanto à dúvida de quando haverá outro renascimento literário, isso só pode depender do acaso histórico, e a literatura, como o destino, é determinada por eventos díspares e ocasionais. / TRADUÇÃO A PARTIR DO INGLÊS DE AUGUSTO CALIL
Jornal O Estadão