
Revista CULT
Sérgio Costa Fotos: Rogerio Ferrari
Mesmo muito antes da Revolução Francesa, as primeiras reflexões sistemáticas sobre o funcionamento das sociedades já haviam mostrado que a boa vida em comum requer a combinação, em proporções adequadas, de três ingredientes básicos: igualdade, liberdade e solidariedade. Pouca gente duvida, hoje, da imprescindibilidade desses três ingredientes. Apesar disso, as duras disputas em torno da definição do que significa cada um desses termos e, sobretudo, em que proporção cada um deles deve ser incorporado à vida comum marcam a história e a política desde muitos séculos.
Com a divisão da Alemanha no pós-guerra, formas radicalmente distintas de resolver a equação entre igualdade, liberdade e fraternidade passaram a conviver numa proximidade geográfica desconcertante. O Muro de Berlim materializava, precisamente, as tensões que essa proximidade comportava. Agora, 20 anos depois de seu desaparecimento, ocorrido em 9 de novembro de 1989, cabe indagar o que aconteceu com as interpretações antes opostas. Em que medida a adesão à democracia liberal mudou ou mesmo silenciou a crítica ao capitalismo? O que aconteceu desde então?
As duas Alemanhas
A República Democrática Alemã (RDA), ou Alemanha Oriental, em seus 51 anos de existência (1949-1990), apostou numa concepção substantiva de igualdade que implicava condições materiais de vida similares para todos os cidadãos. Em um sentido correlato, a liberdade era definida como liberdade da necessidade. Ou seja, ninguém deveria estar submetido a privações ou constrangimentos materiais que o impedissem de gozar a vida plenamente. A liberdade individual, como se conhece no liberalismo, não era prioridade e se encontrava, antes, submetida aos interesses coletivos. A solidariedade, por sua vez, ganhou a forma da solidariedade estatizada, de sorte que toda a vida associativa, fosse nos clubes de jovens, fosse num clube de caça, era intermediada e regulada pelo Estado.
Independentemente dos erros e acertos pessoais de seus diversos governantes e das condições políticas que cercavam sua existência (o peso do stalinismo, a Guerra Fria etc.), a RDA, ao estatizar todas as esferas da vida, minou as bases da vitalidade e da criatividade sociais. A vida comum, fora dos pouquíssimos espaços não controlados pelo Estado ou vigiados pelos “espiões informais” do governo, era um enorme teatro burocrático. O trabalho, a política, o lazer, a visita ao médico ou à escola, a vida de vizinhança ou o baile de formatura eram todos eles parte de um enredo burocrático único. A circulação de informações nesse sistema totalizante fazia, por exemplo, com que a escolha dos amigos com quem se sentava à mesa do bar no fim de semana ou com quem se compartilhava o drama de um amor malsucedido pudesse ter consequências imediatas para a obtenção de uma promoção na fábrica coletiva ou uma vaga na universidade pública para o filho.
A República Federal da Alemanha (RFA), ou Alemanha Ocidental, por sua vez, fez do desejo de superar o passado nazista sua razão de ser como Estado-nação. Assim, tanto os laços simbólicos aos quais se recorreu para criar a comunidade nacional imaginada quanto as próprias instituições do Estado de direito buscaram proteger o país de uma nova ameaça totalitária. Nesse contexto, a igualdade buscada era a igualdade no direito à liberdade, a liberdade para a vivência plena da própria diferença. Tudo que lembrasse homogeneização e supressão da liberdade individual em nome do povo ou do Estado foi evitado e condenado.
O Estado de bem-estar organizou a solidariedade distributiva no âmbito de programas de tributação dos ricos e benefícios sociais para os pobres, compensando, de alguma forma, o agravamento das desigualdades sociais que o capitalismo sempre produz. Contudo, a solidariedade social, em seu sentido amplo, isto é, como redes de cooperação e associação entre os diferentes grupos da sociedade, era atividade livre de qualquer controle e intervenção do Estado. Isso permitiu o florescimento de uma sociedade civil vibrante e dinâmica, capaz de produzir inovações e transformações sociais de enorme importância. Mencione-se, a título de exemplo, o vigoroso movimento de mulheres, o movimento ambientalista ou o desafio da heteronormalidade por meio da legitimação de formas múltiplas e diversas de sexualidade e de vida em família.
A Alemanha reunificada
Do ponto de vista do direito internacional, a reunificação das Alemanhas representou uma anexação da RDA pela RFA. A anexação foi consentida tanto pela própria RDA quanto pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, Estados Unidos, Inglaterra, França e União Soviética. A anexação implicou a extensão da área territorial de vigência da constituição da RFA para o território da RDA e a transformação dos estados e municípios da RDA em novos estados e municípios da RFA. A unificação levou não só a economia da RDA, baseada em fazendas coletivas pouco produtivas e plantas industriais da década de 1930, à desgraça. Também muitas biografias pessoais e familiares moldadas para atender às necessidades de uma economia e uma sociedade que já não existiam mais se viram privadas de sua razão de ser.
A perda de referências produziu reações regressivas, como a xenofobia, mas também bem-humoradas, como a Ostalgie. A palavra, que junta leste (Ost) com nostalgia (Nostalgie), nomeia a atitude autoirônica de cultuar e colecionar os produtos e as lembranças da RDA. Ainda hoje lojas descoladas de Berlin-Mitte oferecem esses ícones do passado a preço de ouro como parte de um estilo que tem o seu charme.
A anexação da RDA pela RFA, contudo, não levou as ideias de igualdade, liberdade e solidariedade vigentes na RFA a se estender, imediatamente, por todo o território unificado. Tampouco implica que tenham se mantido inalteradas desde então. Na verdade, essas concepções são, ainda hoje, objeto de negociações permanentes no âmbito da política e do cotidiano no país, refletindo, naturalmente, mudanças observadas fora da Alemanha, como a intensificação da globalização ou a integração europeia.
Menciono, a seguir, alguns temas discutidos com enorme interesse na Alemanha hoje, que exemplificam como distintas interpretações da vida comum se apresentam e se confrontam publicamente.
Os grandes temas da agenda hoje
A crise financeira dos dois últimos anos levou à necessidade de controle estatal sobre a economia para o centro da agenda política na Alemanha. A euforia com os poderes autorreguladores do capitalismo que se seguiu à queda do Muro apresenta, no momento, um claro retrocesso. Há consenso entre as diferentes forças políticas de que é necessário que o Estado controle a economia. As divergências articulam-se em torno do quanto e do como.
Os argumentos usados para a defesa de formas mais ou menos estritas de controle nos interessam aqui. Eles questionam o sentido mesmo da produção e do comércio de mercadorias e serviços, denunciando como operadores financeiros irresponsáveis teriam transformado o mercado financeiro internacional num cassino de poucos milionários e economias inteiras falidas. Seria necessário, por isso, que o Estado reativasse seus controles tributando, redistribuindo e fazendo valer o sentido social da produção de riquezas.
O que essas discussões parecem mostrar é que, 20 anos depois da queda do Muro, a crítica ao capitalismo continua viva, ou, quem sabe seria mais justo afirmar, foi redescoberta. A novidade é seu alcance: a crítica não visa mais à superação do capitalismo, mas a seu controle e à sua subordinação aos interesses da sociedade.
Nesse debate, saltam aos olhos os confrontos entre distintas concepções de igualdade. Para os liberais, como aqueles representados pelo partido que agora está assumindo o poder ao lado dos democratas cristãos, os controles estatais sobre a economia devem ser mínimos. Afinal, só mesmo o mercado livre de controle e amarras poderia garantir a plena vigência da igualdade de oportunidades e do princípio meritocrático. O partido das esquerdas, derivado em parte do partido socialista único da RDA, defende uma intervenção muito mais ampla do Estado sobre a economia. O sentido é controlar a especulação financeira e promover uma ampla redistribuição de sorte a garantir o igual direito a uma vida digna, entendida como o suprimento pelo Estado das necessidades fundamentais de todos, independentemente de méritos pessoais.
Privacidade
Outro tema discutido com fervor atualmente é o acesso do Estado a informações pessoais, como a troca de e-mails ou as movimentações bancárias. Desde os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, a pressão pelo controle estatal da privacidade cresceu enormemente. A disputa dá-se em torno de diferentes formas de engenharia social e, indiretamente, diferentes concepções de liberdade. Enquanto, por exemplo, os democratas cristãos mais conservadores argumentam que a renúncia a parte da proteção da privacidade significa mais segurança contra o terrorismo e, por decorrência, mais liberdade, verdes e liberais afirmam exatamente o contrário. Para esses, só a proteção à privacidade garante segurança e liberdade. Conforme entendem, a liberdade individual supõe o conhecimento e o consentimento pessoal de cada informação privada a que o Estado tem acesso. Ademais, acreditam que o armazenamento de informações pessoais, mesmo que seja feito pelo Estado, faz crescer o risco de mau uso das informações, aumentando a insegurança individual.
Nas discussões em torno das políticas de imigração, questão igualmente central na agenda política da Alemanha hoje, são sobretudo os sentidos da solidariedade que estão em debate.
Imigração
A RDA e a RFA apresentam histórias de imigração bastante distintas. Na RDA, os imigrantes não passaram de um número reduzido e eram originários fundamentalmente de países socialistas como Polônia, Moçambique e Vietnã. Eram tratados como trabalhadores temporários que não deviam constituir família no país. Imigrantes que ficassem grávidas podiam escolher entre abortar ou retornar a seu país de origem.
Na RFA, os imigrantes também chegaram como trabalhadores convidados, mas logo conquistaram o direito de trazer suas famílias. Independentemente de viverem no lado leste ou oeste da Alemanha, imigrantes e seus descendentes, apesar de constituírem quase 10% da população e já viverem, em alguns casos, há mais de 40 anos no país, não são vistos como membros da nação. Jovens de extrema direita declararam partes do território da antiga RDA como áreas livres de estrangeiros, usando da agressão e da perseguição para garantir seus objetivos. Outros setores conservadores entendem que imigrantes vivem em sociedades paralelas e que, portanto, não deveriam ser beneficiários da solidariedade institucional promovida pelo Estado.
A questão é complexa, na medida em que faltam, no debate, soluções que gerem ao mesmo tempo possibilidades e laços de pertença para os imigrantes sem assimilá-los na comunidade nacional imaginada. Além disso, as muitas posições envolvidas fazem embaralhar os campos progressistas e conservadores, tornando o debate político difícil e impenetrável.
Assim, por exemplo, muitos grupos gays e feministas, ao denunciar o sexismo ou a homofobia, sobretudo de imigrantes de origem turca ou árabe, contribuem para a estigmatização de minorias étnicas. Os grupos estigmatizados, por sua vez, contra-atacam valendo-se de ainda mais sexismo e mais homofobia. Desse modo, legitimam as reservas dos grupos conservadores, realimentando o ciclo da rejeição mútua.
Muitas Alemanhas
As duas Alemanhas, enquanto existiram, representaram, emblematicamente, dois modelos distintos de interpretar e combinar igualdade, liberdade e solidariedade. De alguma forma, as posições representadas pelas duas Alemanhas estão presentes ainda hoje no debate político. Não obstante, concorrem com uma variedade de outras posições e possibilidades. Desse ponto de vista, a Alemanha são muitas. Há uma Alemanha social-democrata, uma Alemanha neoliberal, uma Alemanha de muçulmanas que falam várias línguas, mas que nunca mostraram seu rosto em público. Não há mais, como havia há 20 anos, barreiras físicas dividindo essas muitas Alemanhas. Parece, contudo, que elas nunca foram tão alheias umas às outras.
Revista Cult
Evidências arqueológicas reforçam a teoria, baseada em estudos de DNA, de que o Homo sapiens surgiu no leste da África há quase 200 mil anos e migrou para os outros continentes
Equipe Planeta
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De alguns milhares a 6 bilhões Recentes descobertas arqueológicas confirmam estudos genéticos segundo os quais toda a nossa raça se origina de um pequeno grupo de humanos que viviam há 80 mil anos no leste da África. Com idade entre 33 mil e 39 mil anos, o crânio Hofmeyr (à esquerda), da África do Sul, é muito parecido com o de seus contemporâneos europeus. |
As modernas análises por DNA já confirmaram: todos nós descendemos de alguns milhares de africanos – entre 2 mil e 6 mil, provavelmente – que viveram há 80 mil anos e partiram de seu lar na África Oriental numa única onda migratória, terminando por povoar todos os outros continentes. Segundo esses estudos, a migração foi rápida – nossos antepassados chegaram à Ásia 60 mil anos atrás, e a Europa foi ocupada há 40 mil anos. Mas, para diversos especialistas, esses dados ainda não eram convincentes. Eles alegavam falhas na datação e nas premissas que originaram os estudos. Sua exigência era simples: evidências arqueológicas que endossassem as descobertas feitas via DNA.
Com o tempo, essas evidências estão surgindo – algumas novas, outras antes esquecidas e agora revisitadas. E o painel que estão compondo revela uma extraordinária aventura: a de uma raça – o Homo sapiens – que, de repente, saiu de sua terra-mãe para conquistar um planeta.
O primeiro indício arqueológico a confirmar a tese dos estudos de DNA foi a pesquisa realizada em 1992 por Paul Mellars, professor da Universidade de Cambridge e uma das maiores autoridades do mundo em rotas de migração utilizadas pelo homem primitivo, a partir de um ovo de avestruz de cerca de 35 mil anos encontrado na Índia. As gravações inscritas na casca do ovo eram muito semelhantes às de uma peça ocre de aproximadamente 75 mil anos de idade descoberta na África do Sul, a dez mil quilômetros de distância. A semelhança de outros objetos da mesma época encontrados na Índia e no Sri Lanka – pontas de flechas, pás de pedra primitivas e pequenas contas feitas de carapaça de avestruz – com os produzidos por africanos 40 mil anos antes reforçaram a idéia de Mellars de que havia ligação entre as duas populações.
DURANTE UM BOM tempo essa linha de pesquisa não foi aprofundada, talvez porque a tese de Mellars tenha sido divulgada apenas em publicações arqueológicas indianas, cuja importância era desconsiderada no Ocidente. Quinze anos depois, porém, surgiram novidades a partir da pesquisa feita por uma equipe internacional liderada pelo paleontólogo Alan Morris, da Universidade da Cidade do Cabo, a respeito do crânio Hofmeyr.
Considerado antes uma relíquia sem grande valor, esse crânio humano havia sido encontrado em 1952 perto da cidade sul-africana de Hofmeyr, durante as obras para a construção de uma represa. Como nenhuma matéria orgânica restara na peça, ela não havia sido submetida a uma datação por carbono-14 – e, assim, tornara- se uma simples curiosidade no escritório de Morris, onde ser via como peso para papéis.
Um antigo colega de Morris, Frederick Grine, da Universidade Estadual de Nova York, mudou esse estado de coisas. Grine sugeriu a Morris que se fizesse a datação dos grãos de areia alojados na cavidade que havia abrigado o cérebro, e a idéia deu certo: especialistas atribuíram à relíquia uma idade entre 33 mil e 39 mil anos. Isso colocava o crânio dentro de um período – entre 75 mil e 20 mil anos atrás – que originou o menor número de descobertas de restos humanos na África, enquanto homens anatomicamente modernos despontavam na Ásia e na Europa.
Expansão rápida A disseminação do Homo sapiens pela Terra se deu a partir de uma única onda migratória, que em apenas 10 mil anos levou a raça até a Austrália. Depois, a migração avançou para o norte. | ||
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O passo seguinte foi dado pela paleoantropóloga Katerina Harvati, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária em Leipzig, na Alemanha. Ela submeteu o crânio a medições tridimensionais a fim de compará- lo com amostras de ossos modernos europeus, asiáticos e bosquímanos sul-africanos, além de crânios de humanos da Idade da Pedra e do homem de Neandertal. Resultado: o crânio de Hofmeyr era muito parecido com os dos primeiros humanos modernos europeus, os mais distantes em termos geográficos.
Essa semelhança indica que, há uns 35 mil anos, os humanos modernos sul-africanos e europeus partilhavam um ancestral comum muito recente, provavelmente membro de um povo da África Oriental que migrara entre 50 mil e 60 mil anos atrás.
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As semelhanças nas gravações da pedra sul-africana (esquerda), feitas há 75 mil anos, e as da casca de ovo indiana (direita), de 35 mil anos atrás, indicam que os responsáveis por elas tinham as mesmas origens. |
Uma das rotas desses viajantes levou ao sul, mas outra seguiu na direção nordeste, envolvendo inclusive uma travessia de mar – no Estreito de Bab-al-Mandeb, que separa o Iêmen, no sul da Península Arábica, de Djibuti, no nordeste da África. Depois da travessia, os migrantes seguiram a linha do litoral, chegando à Índia e rumando depois para a Indonésia e a Austrália, onde chegaram há cerca de 50 mil anos. Essa teoria é reforçada por esqueletos com idade entre 45 mil e 50 mil anos encontrados no sul da Austrália e na ilha de Bornéu.
O estímulo para a criatividade Quem tinha mais chances de sobreviver nessas condições diferenciadas? Aqueles com maior capacidade cerebral, que podiam criar novas idéias, ferramentas, armas, invenções e artes. Esse estímulo forçado à criatividade dado pela natureza foi um fatorchave na ascensão do Homo sapiens a rei da Terra. |
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Durante a última Era do Gelo, os antigos europeus tiveram tempo e recursos para desenvolver suas habilidades artísticas, como demonstram as pinturas rupestres encontradas em cavernas do continente. |
CURIOSAMENTE, NOSSOS antepassados não aproveitaram o vale do rio Nilo para chegar à costa do Mediterrâneo. Em vez disso, conforme estudos de DNA publicados em 2007 na revista Science, eles a atingiram entre 40 mil e 50 mil anos atrás, após passar pela Península Arábica, pelo Oriente Médio (onde parte deles seguiu rumo norte, dividindo-se entre a Europa Oriental e a China) e a partir daí na direção oeste, chegando à Europa pela atual Turquia e ao litoral norte da África através da Península do Sinai.
Todas essas rotas migratórias colocaram nossos antepassados em contato com as mais diversas condições ambientais – diferenças geográficas, climáticas, de fauna e de flora, por exemplo – e, em particular, com outras espécies humanas, estabelecidas naquelas regiões havia milhares de anos. Eles superaram todos os obstáculos e adaptaram-se a esses ecossistemas variados.
Descobertas recentes na Rússia e na Ucrânia, por exemplo, mostram que o Homo sapiens foi mais capaz de enfrentar climas rigorosos do que o homem de Neandertal. Os pesquisadores encontraram ali o mais antigo sinal de arte decorativa – um rosto semi-acabado gravado na presa de marfim de um mamute, datado em 45 mil anos. Os vestígios do homem de Neandertal na área vão até 115 mil anos atrás, com o início da Era do Gelo; depois disso, esse povo partiu para o sul e nunca mais voltou. Resistindo ao clima severo daquelas terras, o Homo sapiens já mostrava que vinha para ficar.
A pergunta que surge daí é inevitável: o que tornou nossos ancestrais aptos a – de repente, em termos arqueológicos – espalhar-se pelos continentes e conquistar o planeta? Só para relembrar, o crânio mais antigo de um Homo sapiens, encontrado em Omo (Etiópia), tem cerca de 195 mil anos de idade. O que, depois de uns 115 mil anos, lhes permitiu tomar a África e, em seguida, o mundo?
É bem provável que uma grande mudança tenha ocorrido então. Diversos pesquisadores falam de uma “explosão de criatividade”, um aumento na capacidade de processamento cerebral suficiente para permitir ao Homo sapiens a criação da primeira linguagem complexa, de novas estruturas sociais, de maneiras mais eficientes de produzir ferramentas, de padrões diferentes de arte – enfim, dos elementos que compõem uma cultura mais avançada. Arqueólogos também falam de indícios de que objetos eram transportados por longas distâncias, o que leva à suspeita de que já havia alguma forma rudimentar de economia, na qual itens como adornos, alimentos e ferramentas eram trocados.
Outro fator indicativo de que alguma coisa extraordinária aconteceu no cérebro do Homo sapiens foi a descoberta de esqueletos de homens anatomicamente modernos nas cavernas de Skhul e Qafzeh, em Israel, datados entre 90 mil e 100 mil anos. Nos dois locais foram encontrados itens com ocre e adornos, uma evidência de que ali se faziam ritos funerários com oferendas para os mortos. Tais características de uma consciência mais elevada, porém, não foram suficientes para fazer esses ancestrais se fixarem ali de vez: os restos de homens de Neandertal encontrados em camadas do solo mais antigas e mais recentes mostram que aquela passagem do Homo sapiens pelo Oriente Próximo foi efêmera.
A migração seguinte, entretanto, já não abriu mais espaços para os rivais. Em alguns milhares de anos, os homens de Neandertal – que ocuparam a Europa por pelo menos 300 mil anos – foram totalmente substituídos por nossos ancestrais. Em todos os outros lugares onde houve competição, a superioridade cerebral do Homo sapiens prevaleceu. O passo seguinte, e inevitável, veio na medida da ambição da raça: o próprio planeta.
A história segundo o DNA A genética ofereceu um novo caminho para se estudar a história humana: o DNA, ou, mais precisamente, o cromossomo masculino (o “Y”), e a mitocôndria, a parte da célula que responde pela produção de energia. Como ambos não sofrem a mistura de genes do pai e da mãe durante a fecundação, as mutações que apresentam servem como verdadeiros “códigos de identificação” dos diversos povos. Ao migrar para outro ambiente, um povo passa a acumular em seu código genético mutações diferentes daquelas pessoas que permaneceram no mesmo local. Depois de alguns milhares de anos, os migrantes dão origem a novas populações. Os geneticistas concluíram que a humanidade nasceu na África porque em nenhum outro continente há tanta diversidade genética. Já os europeus são os caçulas: têm “apenas” 40 mil anos de idade, ante 80 mil dos africanos e 50 mil dos asiáticos. |
Revista Planeta
Nos tempos do Japão feudal, os samurais defendiam seus territórios com a própria vida se preciso fosse. A partir do século 17, eles aos poucos foram desaparecendo. Mas seu inflexível código de honra e impecável conduta até hoje influenciam o povo japonês
Fabíola Musarra
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Muito retratada em livros, pinturas e superproduções cinematográficas, a imagem do samurai chegou ao século 21 envolta em uma aura mítica e por vezes até romântica. Uma imagem, no entanto, bem distante da realidade vivida por esses guerreiros na época do Japão feudal. Filmes, como O Último Samurai (dirigido por Edward Zwick e estrelado por Tom Cruise e Ken Watanabe), e a dificuldade do mundo ocidental em compreender a complexa cultura e tradições japonesas contribuem para formar uma visão estereotipada desses bravos combatentes: enquanto uns acham que eles são personagens legendários, outros sustentam que são fanáticos sedentos de sangue. Heróis? Bandidos? Admirados? Temidos? Afinal, quem são e como viveram esses lendários combatentes do antigo Japão?
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Ao contrário do que a ficção retrata, não havia nada de romântico na vida dos samurais. Eles surgiram como um produto das circunstâncias históricas do Japão, de uma longa evolução social e política que culminou nos séculos 17 e 18. Com extensão territorial limitada e dividido em feudos, o pequeno arquipélago era um campo de constantes batalhas pela posse de terras nos séculos 10 e 11. Essas disputas medievais e a necessidade de defender as propriedades do daymiô (senhor feudal) e, no século 13, as próprias fronteiras do país ameaçado pelos mongóis, favoreceram o aparecimento dos samurais. Essa classe social guerreira mudaria para sempre a trajetória do Japão, ajudando a unificar o país e a fazer dele uma nação.
A origem dos samurais, na realidade, remonta aos séculos 4 a.C. e 3 a.C., quando começaram a surgir elites armadas nos grupos tribais que formaram pequenas entidades sociais. Esses grupos foram se convertendo, um a um, em grandes clãs submetidos às autoridades provinciais do império. A relação conflituosa entre esses clãs abriu portas para a formação de milícias que deveriam proteger os interesses dos vários senhores feudais, e os do próprio império. Os membros dessas elites guerreiras eram conhecidos como bushi, termo que significa "aquele que serve" e que com o tempo acabou se tornando sinônimo de guerreiro.
A ascensão dos samurais como uma classe social começou no período Heian (nome da então capital do país, a atual Kyoto), com a derrota do governo aristocrático Taira, na Guerra Genpei, no fim do século 12, quando o clã de Minamoto no Yoritomo vence o conflito e recebe o título de xogum: um título de distinção militar concedido pelo imperador, equivalente a comandante do exército.
A partir daí, e ao longo de mais de 400 anos, o imperador era o legítimo governante, mas era o xogum quem governava de fato o Japão. Quem era agraciado pelo imperador com esse título tinha autoridade civil, militar, diplomática e judiciária. Vale lembrar que durante todo esse período o Japão teve três xogunatos. O primeiro foi o estabelecido em 1192 por Minamoto no Yoritomo, conhecido como xogunato Kamakura. Já o segundo é conhecido como Ashikaga e foi fundado em 1338 por Ashikaga Takauji, enquanto o terceiro foi o de Tokugawa Ieyasu.
Em 1600, Tokugawa venceu a batalha Sekigahara, na província de Mino, tida (não sem razão) como uma das maiores de todas: em apenas seis horas de confronto, morreram em torno de 35 mil homens só do lado derrotado. Mas o massacre durou três dias e foi uma verdadeira carnificina, especialmente se for considerado que naquela época as lutas aconteciam olho no olho, homem contra homem, espada contra espada. Pouco a pouco, Tokugawa ia vencendo os clãs rivais. Como recompensa, o imperador lhe concedeu o título de xogum.
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As principais armas dos samurais eram a katana, uma espada curva, que somente era usada com outra espada: a wakizashi, uma arma mais curta com a lâmina mais larga. As duas espadas juntas são referidas como daí-shô, cujo uso era um privilégio exclusivo deles |
Tokugawa, então, passou a ser o senhor absoluto do Japão, dando início ao período Edo (1603-1868), assim chamado numa referência ao nome da cidade de onde ele tomava as decisões políticas (a atual Tóquio). Ao assumir, tornou hereditário o xogunato, criando assim a dinastia dos Tokugawa. Por sua vez, o imperador viveu na antiga capital, Heian. Esse foi um longo período que contribuiu para configurar a imagem estereotipada do país: sedutoras gueixas, casas de chá, imponentes lutadores de sumô e arrogantes samurais.
Como consequência de o xogunato tornar-se hereditário, desde o berço a criança nascida em uma família de samurai era educada em um regime de autodisciplina e de exercícios contínuos. Em geral, o treinamento das artes marciais começava por volta dos 5 anos. Os filhos de famílias ricas (a riqueza era medida em unidades de arroz, okoku) frequentavam academias, onde aprendiam literatura, artes e habilidades militares. O tipo e a frequência dos treinamentos de um samurai dependiam da riqueza de sua família. Nas de menor poder aquisitivo, os filhos eram enviados às escolas dos vilarejos para receber instrução básica e o seu treinamento normalmente era feito pelos pais, tios ou irmãos mais velhos.
A sociedade feudal japonesa Na sociedade japonesa do século 16, os samurais formavam uma casta a serviço da alta nobreza, os daymiô, que exerciam o poder por meio de uma rede de ligações pessoais e familiares. Ao lado de sua família mais direta, os daymiô ocupavam o topo da hierarquia feudal. Abaixo deles, vinham os fudai (aquelas famílias que sempre estiveram a serviço daquela família principal) e, finalmente, os vassalos, que muitas vezes haviam sido antigos senhores que, derrotados, haviam jurado fidelidade, a fim de manter sua propriedade. Por conta dessa estrutura, a rede de fidelidade dos "súditos" se ampliava e o poder do daymiô se fortalecia. Paralelamente a essa organização política, havia outra que inicialmente era estritamente militar e representava os samurais. Exímios praticantes de artes marciais e dotados de total controle sobre seu corpo e sua mente, os samurais, com o tempo, foram se tornando tão poderosos que ultrapassaram os limites dos feudos e acumularam influência política e militar. Existiam muitas categorias de samurais. Abaixo deles, havia ossotsu (as tropas de infantaria), que, por sua vez, eram divididos em outras categorias. Exceto os de mais alto escalão, todos eles zelavam pelas propriedades do daymiô. Também de todos eles era esperado que respondessem de imediato ao chamado de guerra do seu senhor e que estivessem sempre prontos a combater, apresentando o seu equipamento em conformidade com a sua posição e a sua riqueza. Na base da pirâmide estavam os ashigaru, que
eram a maioria dos combatentes. Eles eram os
arqueiros da infantaria, mosqueteiros e lanceiros e,
algumas vezes, mensageiros, porta-bandeiras, criados.
Por muito tempo, essa categoria representou a porta de
acesso à classe dos samurais.
Essa hierarquia social prevaleceu durante todo o
período Edo, no qual aparentemente nada mudou,
mas a prolongada paz desses anos acabou modificando
radicalmente a natureza dos samurais. Como não existiam
mais guerras, eles não tinham razão para lutar. Agora,
suas habilidades marciais só podiam ser testemunhadas
em duelos particulares.
Diante das novas condições, os samurais começaram a
ampliar sua formação intelectual e técnica e a integrar-se
na sociedade civil, na qual executavam tarefas educativas
ou administrativas. Administravam, especialmente, as
propriedades do daymiô a quem serviam, durante o longo
tempo em que ele era obrigado a permanecer na corte
do xogum, praticamente recluso.
Anos mais tarde, a burguesia em ascensão (chonin)
foi capturar o prestígio social que os samurais continuavam
a ter no país, num processo que poderia ser classificado
como uma fusão e que foi de fundamental importância para
a expansão e sobrevivência dos valores dos samurais na
sociedade japonesa até os dias atuais.
Independentemente de ser rica ou pobre, a criança ganhava uma katana (espada longa semelhante a um sabre) de madeira em uma cerimônia formal, rito que se repetiria na adolescência, desta vez com uma espada de verdade. A katana era uma das principais armas dos samurais - acreditavam que ela carregava a alma do guerreiro, devendo portanto ser muito bem cuidada e não ser exposta sem uma razão. Seu uso pelos civis havia sido proibido por um decreto de 1590. Portá-la era um privilégio dos guerreiros. Aprendizados à parte, o garoto, antes e acima de tudo, era educado para servir. Servir com lealdade ao seu senhor, a quem daria a vida se preciso fosse.
Desse modo, os samurais cresciam imbuídos do princípio da restituição do débito. A lealdade e a honra também eram levadas muito a sério por eles: lutavam até a morte para proteger a propriedade de seu senhor ou praticavam o harakiri (cortar o ventre com sua própria espada), caso o desonrassem. Da luta às relações sociais, todas as normas de vida e de conduta às quais o samurai tinha de se submeter estavam previstas no bushidô (o termo vem de bushi, guerreiro, e de do, caminho, e significa caminho do guerreiro), um inflexível código que colocava a honra acima de tudo.
Embora já estivesse definido no século 8, o bushidô somente foi instituído no século 17 e alcançou sua própria perfeição com a difusão dos princípios do confucionismo. O código tinha como meta aperfeiçoar o caráter por meio de rígidas regras de disciplina e comportamento e incluía a divulgação de vários princípios: gi (a atitude do justo),yu (habilidade), rei (o comportamento justo), makoto (sinceridade), meiyo (honra e glória) e chigi (lealdade).
Escrito por Taira Shigésuké, sábio confuciano e militar japonês da segunda metade do século 17, o texto de abertura do bushidô dá uma boa ideia do que era a vida de um samurai: "A primeira preocupação de quem pretende tornar-se guerreiro é ter a morte sempre presente no seu espírito, dia e noite, desde a manhã do primeiro dia do ano até à noite do Ano- Novo." Traduzindo: viver é estar preparado para a morte, é saber morrer - um samurai não podia praticar o harakiri nem morrer de qualquer jeito.
Ao contrário, se tivesse de morrer, ele não deveria resistir. Logo cedo, o jovem aprendia a se desapegar dos bens materiais e a desprezar a dor e a morte. Por isso, tinha de morrer com honra, sem demonstrar qualquer sinal de sofrimento até cair inerte, suportando a dor sem fraquejar. Contam que a morte dele deveria ser igual a de uma da carpa que, no momento que está para ser trucidada sobre a mesa, simplesmente se rende à morte sem a menor resistência.
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O harakiri, suicídio ritual A honra era tão importante para os samurais que era bastante
comum eles se suicidarem em face de um fracasso, ou se
tivessem violado o bushidô. Esse ato vinculado à honra
acabou se tornando um ritual, tomando a forma do
seppuku (também conhecido por sua expressão
mais popular, harakiri), que nada mais era do
que o modo de o samurai restaurar a honra do
seu daymiô e de sua família e cumprir a sua
obrigação de lealdade, ainda que tivesse
falhado como guerreiro.
Antes de cometer o seppuku, o guerreiro se
vestia com roupa apropriada. Depois, se ajoelhava
enquanto lhe entregavam uma faca embrulhada em
papel (posteriormente, foi substituída por um leque).
Com ela, o samurai cortava seu ventre da esquerda
para a direita, finalizando com outro corte para cima. Este
ritual, porém, não era um ato solitário: poucos samurais
acabavam sentindo na pele a dolorosa e lenta morte por
desentranhamento, pois outro samurai ficava em pé
atrás do suicida e o decapitava logo após o harakiri,
evitando que qualquer dor fosse sentida.
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Não era só. Havia ainda a vingança. Mais que uma obrigação, ela era um dever do guerreiro. Se a honra de seu senhor fosse manchada ou se ele fosse morto, o samurai era obrigado a encontrar e matar os responsáveis. Um dos mais famosos contos sobre a vingança dos samurais é "Os 47 Ronin" (samurais sem um senhor para servir). Sob o governo Tsunayoshi, o quinto xogum Tokugawa (1646-1709), o senhor de Asano, foi condenado a praticar o harakiri instigado por um alto funcionário do xogum, chamado Kira. O código ético dos samurais previa que ele teria de ser vingado pelos seus homens. Comandados pelo oficial Oishi, os 47 ronin juraram vingança.
Por algum tempo, parecia que nada ia acontecer. Oishi levava uma vida depravada e os ronin pareciam ter esquecido o juramento, o que lhes custou o desprezo do povo. Mas foi exatamente esse falso esquecimento que fez com que Kira baixasse a guarda. Dois anos depois, em uma noite de inverno, o grupo invadiu o seu castelo e o assassinou. Presos, os ronin foram condenados a praticar o harakiri. O motivo da pena não foi porque eles cumpriram o seu dever de vingança, pois isso era o esperado, mas porque atacaram o castelo secretamente, o que era tido como uma desonra.
A longa trajetória dos samurais se estendeu até 1876, quando o uso das espadas foi proibido e a classe samurai, extinta. Apesar disso, o espírito desses incansáveis guerreiros, cujo estilo de vida aliava conduta irrepreensível, árduo treinamento e aperfeiçoamento constante, sobreviveu. Até hoje, os valores e as virtudes dos samurais fazem parte da identidade nacional do Japão. Ou melhor, ultrapassaram as fronteiras do país e as barreiras do tempo, e ainda agora o carisma desses míticos heróis continua encantando o mundo.
informações
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Revista Planeta