quarta-feira, 28 de julho de 2010

Escrever o poder. Os autos de vassalagem e a vulgarização da escrita entre as elites africanas Ndembu*


Escrever o poder. Os autos de vassalagem e a vulgarização da escrita entre as elites africanas Ndembu*

Catarina Madeira Santos
Centro de História de Além-Mar, Universidade Nova de Lisboa
Pos-doutorado associado do Ceaf - Centre d´études africaines - EHESS

Para a historiografia é ponto assente que as sociedades africanas ditas tradicionais, e distanciadas da influência do islamismo, se definem como sociedades da oralidade, uma vez que nunca usaram a escrita e se organizaram à margem das implicações dessa cultura. A ausência de fontes escritas africanas remeteria, assim para uma eficiente articulação entre a documentação de origem colonial e a recolha, no terreno, da tradição oral, sem deixar de recorrer aos contributos concertados da arqueologia e da antropologia.

O objectivo geral deste texto é precisamente o de questionar a dicotomia estabelecida, e aceite, entre sociedades com escrita e sociedades sem escrita, a que costumam andar ligados dois outros conceitos dicotómicos, já muito explorados e discutidos por várias escolas de historiadores e antropólogos o de sociedades com Estado e sociedades sem Estado. Para isso, partirei da análise do caso específico de um conjunto de formações políticas africanas de pequena dimensão, os Ndembu ou Dembos, que se encontravam localizadas no Norte de Angola, ao longo da linha do rio Kwanza, provavelmente desde antes do século XVII. Sem abandonarem a sua estrutura política e social original, mantiveram um contacto secular com estados que dispunham de estruturas políticas e burocráticas estabelecidas sobre a escrita: as autoridades coloniais portuguesas (sedeadas em Luanda) e, por imitação destas, o Reino do Congo, com quem os Ndembu mantinham uma antiga dependência política. A sua história está documentada desde o século XVII até ao século XX, permitindo-nos acompanhar as etapas em que se estruturou o processo que conduziu à apropriação da escrita, assim como a forma como viria a resultar, numa fase mais adiantada, a configuração de um fenómeno singular: a utilização da escrita em contextos puramente africanos, quer dizer, na relação entre poderes africanos e à volta de assuntos locais (v.g. linhagens1) a par de uma certa "aprendizagem do Estado burocrático", visível num desenvolvimento original de um aparelho político, em que ao lado do tradicional conselho dos macotas e de instituições não políticas, como as linhagens, se impuseram estruturas directamente decalcadas da administração colonial (os secretários e os Arquivos de Estado). O processo colonial e de colonização em África, normalmente associado pela historiografia ao tráfico de escravos e também ao mundo atlântico oferece dimensões que, embora possam e devam ser referidas a essa grande matriz, divergem dela e configuram fenómenos sócio-culturais a que convém reconhecer alguma autonomia, quer dizer, fenómenos cuja história, na longa duração, se passa a definir mais em relação às razões africanas do que em relação ao contexto exterior onde têm origem. O(s) uso(s) da escrita, como se verá, não estão apenas dependentes das relações que se estabelecem com o poder colonial, pelo contrário, progressivamente (e isto ao longo do século XIX), a escrita começa a participar do corpus de saberes das elites Ndembu, não como dado exterior mas como dado interior, e interage com esse mesmo corpus. Só assim se percebe que se chegue a uma formulação tão inesperada como a de "carta com feitiço", quando a própria escrita se transforma em sagrado, numa associação que revela a inscrição da escrita que vem de fora num contexto especificamente africano.2

O que tem interesse fazer ressaltar neste estudo de caso é a possibilidade de reconstituir o processo pelo qual os Ndembu entraram em contacto com a cultura escrita para, a partir daí, perceber uma contiguidade histórica entre oralidade e escrita, atestando assim que uma análise a partir de esquemas excessivamente bipolares e, portanto, claramente empobrecedores, (maxime sociedades com escrita/sociedades sem escrita, ou ainda a idéia de que a escrita é uma técnica neutral cujos efeitos nas várias sociedades serão sempre os mesmos3) nem sempre dá cobertura à "realidade" que está diante dos olhos do historiador. Talvez por isso mesmo, porque as rotinas historiográficas acabam por conduzir, mais ou menos inconscientemente, para direcções conhecidas e sancionadas pela "autoridade das academias", o caso específico dos Ndembu, e da sua relação com a escrita, tenha sido sucessivamente escamoteado, eu diria até, "tornado invisível", por aqueles que, ao compulsaram códices e documentação avulsa, onde o uso da escrita pelos africanos estava presente, e bem à vista, não reconheceram aí um objecto de estudo de corpo inteiro, autónomo daqueles que eram, e de alguma maneira continuam a ser, os grandes temas canónicos.

O fenómeno colonial nesta África sub-sahariana e sobretudo para períodos em que a colonização formal não está em curso, dificilmente pode ser vinculado a um só padrão de relação. Os níveis de interferência entre sociedades africanas e sociedade colonial são extremamente espartilhados e múltiplos, desde logo porque a própria colonização, maioritariamente assente nas franjas litorais, embora com intromissões continentais através dos caminhos e das feiras que alimentavam o tráfico, só episodicamente se constituiu como força hegemónica e homogeneizadora, no plano territorial. A possibilidade da produção de re-arranjos, e formas de bricolage ideológico-cultural, que não devem ser confundidos com mestiçagens e crioulidades, afinal a possibilidade da ocorrência de múltiplas e mutuas apropriações foi condição para a construção da relação colonial.

Quanto aos Ndembu, de facto, eles procederam a uma recepção/utilização do sistema alfabético europeu, o que lhes permitiu organizar "Arquivos de Estado" (e a designação é dada pelos próprios) onde foram guardados, ao longo de quatro séculos, documentos escritos resultado da troca de correspondência entre os chefes africanos e as autoridades portuguesas coloniais e também entre as próprias elites políticas africanas. Trata-se portanto de um corpus documental composto por alguns dos arquivos dos Estados Ndembu, cujos autores são indivíduos identificados, detentores de autoridade, com objectivos de acção política datada. Isso permite, do ponto de vista da pesquisa, ultrapassar o carácter altamente normativo e idealizado das tradições orais que costuma estar na base dos estudos sobre estas sociedades. O processo a que me refiro é de uma enorme complexidade e foi objecto de um projecto de investigação a que me entreguei com a minha colega Ana Paula Tavares durante alguns anos.4 Irei, aqui, procurar descrever alguns aspectos desse processo, e tentar, ao mesmo tempo, fundamentar a ideia de que é pela via do poder que a escrita se vulgariza entre os africanos, pelo que será ao nível da própria organização política africana que a escrita revela implicações mais originais. A investigação que entretanto desenvolvi sobre a política de inspiração iluminista em Angola – com um amplo investimento nos arquivos de Lisboa e Luanda – enriqueceu estas problemáticas. Revelou a ampla presença da escrita dos Ndembu, mas também de alguns dos sobas do planalto de Benguela, nas chancelarias coloniais e a maneira como esta aprendizagem da escrita pelos africanos permitiu a circulação eficaz de informação política e administrativa, entre burocracias africanas e coloniais (nos seus vários níveis, do periférico, ao mais central), e como se estabeleceram rotas burocráticas com recurso a uma retórica conhecida e reconhecida pelos dois lados, para assim garantir a comunicação e estabelecer relações de poder através da escrita. Neste artigo desenvolverei três ideias fundamentais:

1 - O primeiro contacto africano com a escrita apreende-a como expressão do poder do outro, isto é, dos portugueses. A escrita subjaz ao próprio auto de vassalagem, visto como objecto formal e simbólico de poder que institui uma relação de subordinação do estado africano vassalo perante o governo estabelecido em Luanda.

2 - Uma segunda fase tem a ver com a própria prática da vassalidade e permite que a escrita/símbolo se revele aos africanos como instrumento ou tecnologia intelectual, ideologicamente manipulável em função dos interesses dos sujeitos que estão habilitados a usá-la. É aqui que se situa a integração intelectual da escrita e, com ela, se localiza uma certa aprendizagem da organização burocrática do poder político, em articulação com as instituições africanas. O uso deliberado da escrita, pelo lado africano, como instrumento de comunicação com o poder colonial, e entre elites africanas, produz-se através da apreensão de fórmulas e da lenta sedimentação de rotas burocráticas, com vista a produzir efeitos na sociedade colonial e no interior das sociedades locais.

3 - Numa terceira etapa a que este processo conduz, a escrita é de novo convertida ao estatuto de insígnia de poder, mas agora dentro da lógica do sistema político africano, cujas estruturas se encontram definitivamente vinculadas à escrita. De símbolo do poder do outro (poder colonial), a escrita converte-se em símbolo do poder dos Ndembu (do poder africano).

1.

A primeira forma da escrita com que os estados Ndembu tomaram contacto foi a do poder. Poder é escrita e escrita é poder. Desde o final do século XVI (o primeiro exemplo data de 1582), a afirmação da soberania portuguesa, a partir do governo central de Luanda e perante os potentados africanos estabelecidos, socorreu-se do instrumento jurídico, já amplamente experimentado nas relações com os Estados asiáticos, que são os tratados de vassalagem.5

Os chefes africanos, que se tornavam vassalos do rei de Portugal, submetiam-se a um acto solene e público que tinha a sua expressão mais formal na produção de um documento escrito. A fixação deste acto legal era indispensável. A conclusão de um tratado de vassalagem assumia uma dupla forma: um acto oral e um acto escrito. O acordo celebrava-se na presença de duas pessoas com poderes de soberania próprios ou delegados: o rei de Portugal, representado pelo seu governador em Angola ou outra autoridade portuguesa com poderes competentes (caso dos capitães mores dos presídios, ou os chefes dos concelhos ou distritos, divisões administrativas de carácter mais amplo), e o rei ou chefe africano. No momento das negociações e fixação das condições do tratado, a autoridade africana podia ser representada por uma embaixada, mas o tratado em si mesmo só ganhava força legal com a assinatura aposta pelo próprio rei africano e a execução por este dos actos simbólicos inerentes. Nesta cerimónia o documento escrito, previamente preparado – o auto de vassalagem propriamente dito – era lido em voz alta. Por outro lado, os actos ou gestos simbólicos de legitimação ligados à celebração do contrato, "a encomenda e a investidura" (cuja origem radicava na Europa medieval, se bem que neste contexto o seu sentido primeiro sofresse uma necessária reelaboração) eram articulados com cerimónias gestuais de origem africana. Assim, no ritual da encomenda o cerimonial europeu passou a ser substituído por um conjunto de atitudes procedentes dos costumes locais. A genuflexão do rei vassalo, no momento em que pronunciava o juramento, foi substituída por uma expressão local de sujeição e agradecimento os sobas batiam as palmas, pondo as mãos na terra e depois no peito, enquanto juravam ser leais vassalos ao rei de Portugal. À encomenda seguia-se a investidura do vassalo, que se designou em Angola desde o século XVII por undamento, a qual, por seu turno, se subdividia em dois actos: a cerimónia do peso, directamente extraída da tradição africana e durante a qual o vassalo era coberto de pemba, simbolizando com isso a instalação legítima no seu território tradicional; e por fim a chamada cerimónia do vestir.

O contrato de vassalagem, documento escrito, continha, por sua vez, um catálogo de direitos e obrigações a cumprir por ambas as partes. Em troca de paz e protecção, os Ndembu juravam fidelidade ao rei de Portugal, o que pressupunha cumprir e respeitar as leis do governo; pagar os impostos (o dízimo); auxiliar o governo na guerra com forças militares; abrir os caminhos e permitir o livre-trânsito ao comércio; receber os empregados públicos, civis, eclesiásticos, judiciais e militares; não acoitar foragidos e viver em paz com os seus povos.

A escrita começou, portanto, por ser o meio utilizado pela Coroa portuguesa para os contactos oficiais com os chefes africanos. Os sobas ou ndembu avassalados encontravam no registo escrito a legitimação do seu poder pelas autoridades coloniais e ganhavam consciência da necessidade de guardar essa documentação como símbolo da relação estabelecida. O registo em papel salvaguardava assim para o exterior aquilo que era válido oralmente nas relações puramente africanas. Desta forma, os africanos, mesmo antes de saberem ler e escrever e de reconhecerem à escrita a função de instrumento de comunicação, foram compelidos a considerar o carácter vinculativo, fixo e perene do que é gravado sobre o papel. Antes de ser instrumento de comunicação, a escrita foi utilizada e apreendida como um símbolo do poder político europeu.

A escrita é apreendida como símbolo antes de ser entendida como instrumento intelectual. O seu aparecimento é instantâneo, não resulta de uma aprendizagem laboriosa, quer dizer de um processo intelectual. Há um momento em que o processo de incorporação da escrita está em suspensão, permanece inacabado, para só depois ser finalizado, quando a escrita/símbolo abre lugar à escrita/como processo intelectual. E o primeiro passo não conduz necessariamente ao segundo. O processo pode permanecer inacabado, preso à função simbólica, que é também sociológica, dispensando a função intelectual. Essa hipótese de "suspensão", ou de cristalização da "importação da escrita já constituída" não será exclusiva dos Ndembu, e a prova-lo está a narrativa que Lévi-Strauss faz em Tristes Tropiques,6 depois retomada por Jacques Derrida, do chefe Índio dos Nambikwara que, observando como o antropólogo usa o papel para nele gravar as aranhas da escrita, não hesita em imitá-lo, garatujando no papel branco mensagens indecifráveis, mas que, simbolicamente, lhe permitiam um distanciamento em relação ao seu povo e uma equiparação a quem chegava de fora: "il a immédiatement compris son rôle de signe, et la supériorité sociale qu'elle confère".7

A modalidade do estabelecimento de tratados de vassalagem como forma de domínio, pelo menos nominal sobre os poderes africanos do interior angolano teve lugar desde o século XVII até à década de 20 do século XX. O mesmo aconteceu com as fórmulas contidas nesses autos de vassalagem. Elas são entre si muito iguais, extremamente repetitivas e regulares ao longo do tempo. Esta continuidade textual e institucional exigiu um exercício intenso da cultura da vassalidade e contribuiu de forma decisiva para uma vulgarização de todo o vocabulário jurídico-político de raiz feudo-vassálica e da própria escrita como forma de exercício do poder. É o próprio estatuto político-jurídico de vassalo que exige aos Ndembu a introdução de uma estrutura burocrática que lhes permita sustentar esse mesmo estatuto.8

2.

Assim, o segundo ponto desta comunicação tem a ver com a prática da vassalidade, em si. A escrita passa a estar associada à cultura política que os próprios tratados trazem consigo e assim se explica que a documentação dos arquivos de Estado dos Ndembu, trocada entre estes e o Governador de Angola ou os poderes administrativos intermédios trate, na sua grande maioria, questões relativas às relações de vassalagem.9 A correspondência serve para garantir o cumprimento dos termos do contrato. Trata-se afinal de uma prática da vassalidade a exigir o recurso à escrita por forma a resolver assuntos com ela relacionados, assegurar a harmonia dos poderes e garantir uma certa paz diplomática, conduzida pelas regras da amizade política, com base nessa mesma vassalidade. Exemplo disso é a renovação dos autos e respectivos juramentos de fidelidade, no momento de eleição de novos Ndembu; a confirmação e repetição das cerimónias de homenagem e undamento; o pagamento dos dízimos, ou ainda o provimento regrado dos canais diplomáticos através da troca de embaixadas, e embaixadores, presentes ou simples cartas de etiqueta.

De acordo com o estipulado nos tratados de vassalagem, à maneira de etiqueta de corte e sempre que um novo governador chegava a Luanda, os diferentes sobas eram obrigados a enviar-lhe uma embaixada, de forma a confirmar a sua fidelidade junto do novo representante do rei de Portugal. Estas cerimónias, em que se confirmava o undamento, constituíam ocasião para troca de presentes e sedimentação de alianças. O não cumprimento do protocolo originava tensões, trocas de correspondência, pedindo explicações, dando justificações, e, em última instância, podia conduzir à dissolução do laço de vassalagem e até à guerra.10 A circulação entre Luanda, os presídios e os potentados africanos, por meio de embaixadas, onde seguiam grandes comitivas (com cerca de meia centena de pessoas), e embaixadores, gerava um verdadeiro corrupio. Com as embaixadas, nos seus vaivéns, circulava a escrita, as regras da burocracia, maneiras de dizer, fórmulas.11

Na sequência dos tratados estabelecidos e em cumprimento dos termos implícitos aos contratos, começa então a circular outro tipo de documentos escritos, abrindo assim novos campos à intervenção da escrita, cuja produção decorre directamente da relação de vassalagem accionada: é o caso dos recibos, livranças ou cartas de dívida que visam o pagamento do imposto (dízimo), exigido aos sobas vassalos; ou ainda cartas que definem estratégias de aliança com o fim fazer a guerra aos inimigos comuns dos Ndembu e dos portugueses.

O estatuto de vassalo implica ainda nova produção escrita na medida em que supõe o enquadramento dos Ndembu dentro da malha administrativa e jurisdicional portuguesa, de que os presídios eram a sede. Os Ndembu integravam-se em divisões jurisdicionais onde se fazia justiça, e se procedia aos registos de propriedade de terras, à redacção de testamentos etc. Verifica-se o recurso à justiça portuguesa para resolver questões que se geravam entre os próprios Ndembu e que tradicionalmente eram julgados sob a forma de mucanos, isto é, como decisões judiciais oralmente pronunciadas pelas autoridades africanas.12 A recepção do direito português no quadro das instituições africanas, a aprendizagem secular de procedimentos burocráticos, ainda que muitas vezes restringida a fórmulas articuladas com as práticas implícitas às instituições do parentesco, são condição necessária para que uma retórica da colonização, assente em rotas burocráticas, se vá estabelecendo e revelando num uso continuado, para estar a funcionar em pleno na primeira década do século XIX, de tal forma que pode ser invocada pelo governo de Luanda, como uma dado adquirido, na gramática das relações. Sem querer sobrecarregar o texto com exemplos documentais, não posso deixar de propor uma carta em que se dá conta dessa aprendizagem antiga :

Em 1811 um requerimento do Dembo Caboco Cabilo merece do Governador de Angola, em exercício uma chamada de atenção para os trâmites do protocolo e as regras da escrita:

falta de atenção com que escrevetes [sic] ao capitao-mor como se mostra da sobre carta que lhe dirigistes faltando com aquele tratamento civilidade e subordinação com que todos os Dembos e Souvas tem escrito aos seus capitães mores chamando-os de vossa merce mostrando-lhes o maior respeito, parece que sendo esse estilo muito antigo e louvável devia ser por vós praticado em prova da vossa obediência e bondade de animo […].13

Há uma questão de cronologia, mas também de geografia, a ter em conta. Na zona dos Ambundos, e em especial no caso dos Dembos, dada a antiguidade das relações entre culturas europeia e africana, não surpreende que logo em 1767, se encontre um requerimento envolvendo dois africanos.14 Porém, à medida que se avança para o final do século, não só esse fenómeno se intensifica como se alarga aos sobas do planalto de Benguela, em especial o Bailundo. Ainda numa província tão remota como Quilengues, as representações dos africanos junto do capitão-mor, tendo em vista a reposição de situações julgadas injustas ou incorrectas, ocorrem diariamente: "...quase todos os dias havia representações de negros ....".15 E é verdade. Pouco sentido faz debitar aqui as listas de requerimentos que fui coleccionando, mas faz sentido sublinhar que essa catadupa, essa "febre" da burocracia está lá.

3.

A apreensão africana de uma relação entre escrita e Estado garantida pelos tratados de vassalagem parece não ter desencadeado de imediato, situações de conflito entre o sistema das linhagens e as concepções de burocracia e de organização política implícitas ao sistema colonial. Estas relações de vassalagem não chegavam de facto a perturbar os fundamentos da organização política interna dos Ndembu, e ao mesmo tempo, funcionavam como instâncias de legitimação dinâmica do poder africano. O próprio vocabulário político-jurídico de raiz feudo-vassálica passou a ser utilizado na definição das relações entre os Estados africanos, enquanto o estatuto de vassalo veio a revestir-se, paradoxalmente, de uma ambiguidade que se revelava igualmente conveniente aos portugueses e aos africanos e, em algumas circunstancias, altamente interessante para os próprios Ndembu. Os enunciados (a forma que assume a ideia) diferem em relação à enunciação (a idéia ou compromisso político que o enunciado refere), mas o reconhecimento mútuo da sua (do enunciado) validade garante a hipótese de negociação. A verdade é que, durante décadas de colonização, há uma retórica comum que se vai estabelecendo de parte a parte, e quando ela é quebrada ou desrespeitada, a comunicação deixa de se estabelecer.

Ao invocarem o seu estatuto de vassalos, os sobas conservam no entanto uma autonomia política capaz de manter-se na sombra, desde que não faça intervir os poderes tutelares. Pode assim entender-se que no final do século XIX, e numa conjuntura latente de conflito, os Ndembu façam recurso a uma dupla vassalidade, invocando uma antiga ligação de tipo vassálico ao reino do Congo, para se oporem a certas pretensões de Luanda. Mais interessante ainda é verificar de que forma as hierarquias da vassalagem vêm acrescentar-se às hierarquias africanas. O uso repetitivo da cultura da vassalagem origina a sua validação e revitalização fora do contexto original, isto é, fora das relações com o poder colonial, e acaba por lhe conferir novos significados e efeitos, desta vez no contexto africano endógeno onde, como já referiu Joseph Miller, uma qualquer definição de estruturas de tipo estatal exige a consideração de aspectos de sociedade ditos "não políticos".16 É assim que o tema da vassalidade aparece, na documentação interna, em perfeita articulação com um discurso da oralidade onde sobressaem as hierarquias tradicionais: a hierarquia determinada pela senioridade; ou a indicação das relações de parentesco como metáforas das relações políticas etc.

Ora é esta estratégia das vassalidades que vai permitir aos africanos articular o vocabulário político africano da oralidade e o vocabulário político colonial da palavra escrita. Ela é também o reflexo da interferência entre duas formas de entender e exercer o poder. A grande originalidade da história das instituições políticas Ndembu, na construção dos seus estados e nas relações entre estados africanos, consistirá, assim, no facto de lhe introduzirem estruturas burocráticas baseadas em registos e em instruções escritas. E será desta forma que, no aparelho de estado tradicional – identificado com o ndembu ou soba e seus macotas – passa a impor-se, desde o século XVII, a figura exemplar e reveladora do secretário. A sua presença é central em todo o processo de aprendizagem da escrita do poder. A ele se reconhece uma posição hierárquica equivalente à das dignidades tradicionais e cabem-lhe os contornos de figura chave no desenvolvimento das relações diplomáticas com as autoridades portuguesas. Configura-se assim, nas estruturas Ndembu, um quadro que admite e exige até a emergência de novos estatutos. Remeto para uma hipótese levantada num trabalho anterior onde se aventa a hipótese de em certas alturas o posto de secretário poder constituir uma forma de estatuto de poder à margem das estruturas do parentesco, como o eram outras profissões, de que são exemplo os caçadores.17 O secretário passa, de facto, a estar representado em momentos politicamente prestigiados (assinatura de tratados de paz, embaixadas dirigidas ao Governador em Luanda) ao dos grandes dignitários de corte, os macotas.

Foi na sequência de tudo isto que cada uma destas chefias Ndembu veio a criar chancelarias que passaram a funcionar como repositórios da memória política e onde encontramos, ao lado dos tratados e outros documentos ligados à presença colonial, correspondência vária produzida a propósito da própria política interna das chefias dos Ndembu.

Através da escrita, assim, os africanos apreendem a organização do Estado, identificado com o Arquivo e com os próprios materiais da escrita (secretaria, e respectivo aparato). Não só existe, portanto, uma escrita de Estado, como a escrita acaba por ser o próprio Estado. Não é por acaso que nos documentos gravados pelos secretários, em nome dos Ndembu, nos topamos com a palavra "trastesalio".18 "Trastesalio" não tem significado no português ou no kimbundu, corresponde a um neologismo e equivale a uma forma usada pelos Ndembu para definir as coisas do Estado. Os arquivos dos Ndembu ganham de tal forma o estatuto de insígnias de poder que, em períodos de guerra, os arquivos figuram entre os primeiros objectos de confisco.

Ao longo de todo o século XIX e já no período de confronto com uma política colonial de campanhas militares, depois da Conferência de Berlim (1884/85), os próprios temas de política africana aparecem tratados nas cartas inter-Ndembu, em questões, por exemplo, de eleição de novos Ndembu; renovação das cerimónias da vassalagem; processos de sucessão entre Ndembu ligadas a disputas entre linhagens; informações acerca da origem de títulos políticos e respectiva legitimidade; discussões sobre insígnias de estado; envio de embaixadas etc.

A escrita constitui-se, definitivamente, como um elemento de inovação política que actua ao nível das estruturas estatais Ndembu, sabendo acrescentar-se às formas de organização e legitimação já existentes, aprendendo a coexistir com elas e (apreendendo) sofrendo até as mesmas formas de transformação.

* Este texto corresponde à comunicação feita ao Annual Meeting of the Society for Spanish and Portuguese Historical Studies (SSPHS), 2000, University of New York , "Escrever o poder. Os autos de vassalagem e a vulgarização da escrita entre os africanos (Angola, séculos XVII-XX)", retomada em 2003, no International Symposium, Angola on the Move: Transport Routes, Communications and History, Centre for Modern Oriental Studies, Berlim.
1 Cf. SANTOS, Catarina Madeira e TAVARES, Ana Paula Tavares. Africae Monumenta. A apropriação da escrita pelos africanos. Arquivo Caculo Cacahenda, Lisboa, IICT, 2002, p. 20 e ss.
2 SANTOS, Catarina Madeira e TAVARES, Ana Paula. Africae Monumenta, p. 20; nesta mesma publicação ver o documento número 195, referente correspondência entre D. Sebastião Agombe, Dembo Quilumbo Quiacongo e o Dembo Caculo Cazenga (29 de Fevereiro de 1913).
3 Sobre este último aspecto vide tudo o que se tem escrito na área dos New Literacy Studies, em especial STREET, B. Literacy in Theory and Practice. Cambridge: CUP, 1984; STREET, B. "Literacy practices and literacy myths." In SALJO, R. (Ed.) The Written Word: Studies in Literate Thought and Action, Springer-Verlag Press, 59-72, 1988; STREET, B. Social Literacies. London: Longman, 1995; STREET, B. "Literacy Events and Literacy Practices". In MARTIN-JONES, M. & JONES, K. (Ed.) Multilingual Literacies: Comparative Perspectives on Research and Practice, Amsterdam: John Benjamin's, 17-29, 2000; STREET, B. (ed). Literacy and Development: ethnographic perspectives, Routledge, London, 2001. O trabalho de Street se iniciou com a formulação da noção de multiple literacies e que faz a distinção entre o "modelo autónomo" e o "modelo ideológico" da literacia e ainda entre o que são acontecimentos e práticas da literacia. Esta escola critica uma perspectiva, muitas vezes adoptada, que parte do pressuposto de que a capacidade de ler e escrever em si mesma – autonomamente – terá sempre o mesmo tipo de efeitos quando transplantada de um determinado contexto (sociedade) para outros contextos (ou sociedades) onde estão presentes práticas sociais e cognitivas específicas e portanto diferentes. Numa perspectiva mais tradicional, veicula-se a ideia de que a introdução da literacia em certas camadas populacionais terá como efeito o enaltecer de capacidades cognitivas, a promoção de oportunidades económicas, fazendo aí crescer melhores cidadãos, em comparação com as circunstancias anteriores marcada pela iliteracia. É a esta perspectiva que Street chama um modelo autónomo de literacia. De alguma maneira os trabalhos de Jack Goody, com toda a importância que se lhe deve reconhecer, nomeadamente por reconhecer na escrita e à escrita o estatuto de objecto no campo historiográfico, remetem um pouco para esta ideia de que a escrita em si e por si produz certos efeitos sociais (GOODY, Jack, 1988. Domesticação do pensamento selvagem. Lisboa: Editorial Presença; GOODY, Jack, 1994, Entre L'Oralité et L'écriture, Paris, P.U.F.). Quer dizer, independentemente dos contextos, os seus efeitos seriam similares, uma vez que a literacia arrastaria consigo um processo neutral e universalmente válido de transformação e, de alguma maneira de aproximação ao cânone ocidental e ocidentalizante. O modelo de análise proposto pelos New Literacy Studies sugere que, na pratica, a literacia varia de um contexto para outro e assim também os seus efeitos nos diferentes contextos em que ocorre. Critica o tal "modelo autónomo" denunciando como ele decorre do facto de se proceder a uma projecção simplista das concepções ocidentais para outras culturas. Em alternativa aponta o "modelo ideológico" de literacia, onde se oferece uma perspectiva mais cultural e também mais fina, no sentido de mais apurada das práticas que lhe andam associadas e onde se trazem à luz as variabilidades contextuais. Afinal a escrita em si mesma uma prática social e não um mero instrumento técnico ou neutral e como tal inscreve-se em, e relaciona-se com, concepções de saber e identidade. A literacia é um saber social em permanente interacção com o corpus de saberes de que cada sociedade dispõe e a que faz recurso (sobre este último ponto vide GEE, Social Linguistics: Ideology in Discourses. London: Falmer Press, 1991; GEE, 'The New Literacy Studies; form "socially situated" to the work of the social', In: BARTON, D., HAMILTON, M. and IVANIC, R. Situated Literacies: reading and writing in context. London: Routledge, 2000, pp. 180-196; e também BARTON, D., HAMILTON, M. e IVANIC, R., Situated Literacies: reading and writing in context. London: Routledge, 2000). Numa outra perspectiva, que procura fazer uma etnologia das escritas do quotidiano, e em especial um inquérito etnográfico das praticas da escrita dos ciganos - uma comunidade sem escrita, no mundo da escrita – (WILLIAMS, Patrik, "L'Ecriture entre l'oral et l'écrit. Six Scènes de la vie tsigane en France », In FABRE, Daniel. Par écrit. Ethnologie des écritures quotidiennes. Paris : Éditions de la Maison des Sciences de l'Homme, pp. 60-82.) procura mostrar-se a impossibilidade de conservar leituras excessivamente binárias entre oral e escrito. Na verdade, os dois modos de expressão antes de se oporem coexistem e em alguns casos entram em concorrência ou mesmo em relação de complementaridade. A relação que mantêm não é unívoca e, por vezes, é mesmo de uma singular subtileza a que é preciso estar atento e saber avaliar.
4 SANTOS, Catarina Madeira e TAVARES, Ana Paula. Africae Monumenta, 2002.
5 Para Angola, vide HEINTZE, Beatriz. Luso-african feudalism in Angola? The vassal treaties of the 16th to the 18th century. Separata da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra, Instituto de História Económica e Social, 1980; para o Estado Português da Índia, vide SALDANHA, António Vasconcelos. Iustum Imperium. Dos tratados como fundamento do Império dos portugueses no Oriente. Estudo de História do Direito Internacional e do Direito Português. Lisboa, Fundação Oriente, 1997.
6 LÉVI-STRAUSS, 2005 (1959): Tristes Tropiques, Paris: Plon, 2005 (1955), pp. 347-360
7 DERRIDA, Jacques. De la grammatologie, Paris: les Éditions Minuit, 2002, p.185.
8 As práticas da escrita começam por andar ligadas às relações de poder e têm, portanto, um carácter oficial e público. As questões privadas aparecem sobretudo ao longo do século XIX.
9 Poderia apontar aqui variadíssimos exemplos. Para evidenciar a profundidade histórica destes fenómenos cito um exemplo do século XVII (Capítulos do juramento que prometeu guardar o Duque de Hoando, D. António Afonso, Arraial do alojamento do rei do Congo, 11 de Janeiro de 1666, Arquivos de Angola, vol.I, nº1, 1933, s.p.) e um outro do final do século XVIII, Carta do Governador Manuel de Almeida Vasconcelos para Dom João Manuel Silvestre, nomeado Gombe Amuquiama Samba Aquine, 26 de Novembro de 1791, AHU, Cód. 1628, fl. 108. Sobre a circulação dos sobas vassalos em direcção a Luanda, já no início do século XIX, Carta do governador António Saldanha da Gama para o capitão-mor de Cambambe, 31 de Março de 1809, AHNA, Cód. 3018, fl.6.
10 Sobre prática da vassalidade e as embaixadas enviadas a Luanda vide SANTOS, Catarina Madeira. Um governo polido para Angola: reconfigurar dispositivos de domínio (1750-c.1800), Tese de doutoramento, 2005, e em especial o sub-capítulo "Comunicação africana, rotas burocráticas e burocracias africanas".
11 Sobre as múltiplas interferências entre direito colonial e direitos "africanos/consuetudinários", em Angola, e os processos de mútua apropriação e recriação (quer dizer, a maneira como o mundo jurídico africano importa e usa o vocabulário feudo-vassálico, e a maneira como o mundo jurídico colonial apropria e usa o vocabulário jurídico consuetudinário dos Ndembu ou outros, e não esqueçamos que o Governador de Angola era, também, juiz de mucanos, isto é, julgava as causa "indígenas" segundo o direito local...) vide SANTOS, Catarina Madeira. "Entre deux droits: les Lumières en Angola (1750-v.1800). Annales HSS, 60e–nº 4, juillet-aôut, p. 817-848; e idem.
12 Arquivo Histórico Nacional de Angola, Luanda, cod. 240, f. 82v, Luanda, 5 de Outubro de 1811.
13 Carta de D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho para D. Paulo Sebastião Francisco, Cheque Dembo Caculo Cacahenda, 19 de Setembro de 1767, Arquivo Histórico Militar, 2ª divisão, 2º secção, Cx.1, nº4.
14 Arquivo Histórico Nacional de Angola, Cód. 442, fl. 220 v . Oficio para o general do Estado de 21 de Março de 1802. Podem-se ainda coligir dezenas de exemplos: "(...) dois requerimentos que me [Governador] fizeram os macotas do soba Ndambo Aquioza (...)",Carta para o regente de Ambaca, 24 de Setembro de 1808, Arquivo Histórico Nacional de Angola, Cód. 91, fl. 103. As respostas do Governador dirigidas aos presídios citam e descrevem variadíssimos tipos de requerimento: requerimento do Dembo Mutemo Aquiguengo, D. Agostinho Manuel Silvestre, contra o capitão-mor de Encoge, acusando-o de se intrometer no conhecimento das ouvidas que se passavam entre os seus filhos, 13 de Janeiro de 1813, Arquivo Histórico Nacional de Angola, códice 92, fl.12; requerimento do soba Casse Candala, Cristóvão André, para ser restituído à sua antiga posse, 7 de Fevereiro de 1814, Ibidem, fl. 15; Requerimento do soba Ndambi Aquiosa, D. Tomás Diogo, mais o termo de ouvida dos macotas do estado, feito pelo capitão-mor, em que declaravam que queriam no Estado um outro soba que fora undado pelo seu antecessor, 8 de Fevereiro de 1814, Ibidem, fl. 15v; Requerimento do reino do Dongo, contra o cabo de esquadra, 28 de Fevereiro de 1817, Arquivo Histórico Nacional de Angola, códice. 92, fl. 18; Requerimento de pretos calçados, para serem isentos do serviço nas obras reais, 12 de Novembro de 1816, Ibidem, fl. 12v. Um exemplo de negociação através da burocracia encontra-se na Carta para o soba Quingue, Dom Sebastião Potentado do Bailundo, transcrito para a Caixa 53 do Arquivo Histórico Ultramarino, 1769, Biblioteca Nacional de Lisboa, códice. 8573, fl. 40v-41v.
15 MILLER, Joseph. Poder Político e Parentesco. Os antigos estados mbundu em Angola, tradução de Maria da Conceição Neto, Luanda: Arquivo Histórico Nacional de Angola, Ministério da Cultura,1995, p. 55 e ss.
16 SANTOS, Catarina Madeira e TAVARES, Ana Paula, Africae Monumenta, 2002, p. 440. A analogia com outras profissões é sugerida pela leitura de Miller que afirma para o caso dos caçadores, que estes se entendiam e tinham importância para além dos limites das estruturas de parentesco, Cf. MILLER, Joseph, Poder político e parentesco, p. 51, 52.
17 Referência em documentação presentemente em estudo e que será publicada proximamente no volume II dos Africae Monumenta.
Revista de História - USP

Guerra à pobreza: EUA, 1964*


Cecília Azevedo
Depto. de História - UFF/RJ


Introdução

Depois de viver a experiência de ser um vice de certo modo rejeitado, Lyndon B. Johnson assumiu a presidência assombrado pelo mito criado em torno de Kennedy, depois de seu dramático assassinato. Johnson não dispunha do carisma transbordante de JFK, mas não lhe faltavam experiência e, especialmente, ambições políticas. LBJ pretendia nada menos do que firmar seu nome como um dos maiores presidentes da história dos Estados Unidos, nivelando-se a seu ídolo político maior, Franklin Roosevelt.

Como não se interessava tanto por política exterior, Johnson idealizou um ousado programa no âmbito doméstico, cujo nome é bastante revelador de suas pretensões: Grande Sociedade1.

Num discurso proferido em maio de 1964, em Michigan, onde outrora Kennedy fizera seu famoso discurso lançando os Corpos da Paz2 num apelo ao ativismo estudantil, Johnson apresentou o objetivo central de seu programa de governo como sendo nada menos do que estender a liberdade e a abundância, de modo a incluir todos os seus compatriotas no sonho americano. O argumento do presidente era o de que, diante da crescente prosperidade econômica que o país vivia, impunha-se à consciência nacional atacar a pobreza e a injustiça racial, obstáculos à igualdade de oportunidades e à melhoria das condições de vida de todos os cidadãos. As áreas da saúde e da educação, com ênfase na educação infantil e na qualificação para o trabalho, foram eleitas como primordiais, ao mesmo tempo em que se contemplava também a necessidade de aprimorar a qualidade de vida. Segundo o presidente, a Grande Sociedade que vislumbrava deveria promover "não só as necessidades do corpo e as demandas do comércio, mas o desejo por beleza e a fome por um sentido comunitário"3, aspirações que remetiam não só a uma tradição política de longa data, mas às demandas de toda uma geração insatisfeita com o individualismo e o consumismo que se afiguravam como sinônimo de americanismo.

A Grande Sociedade trilhou, portanto, um duplo caminho: o dos direitos civis e o do combate à pobreza, consubstanciado no programa que foi significativamente batizado de "Guerra à Pobreza", lançado com toda pompa em janeiro de 1964. Na ocasião o presidente afirmou que seu objetivo era quebrar o ciclo da pobreza que, segundo seus dados, atingia 35 milhões de americanos. Segundo suas palavras, lançava o programa

Porque é justo, porque é sábio, e porque, pela primeira vez em nossa história, é possível vencer a pobreza (...) Infelizmente, muitos Americanos vivem no limite da esperança - alguns por sua pobreza, e outros por sua cor, e muitos mais por causa de ambos. Nossa tarefa é ajudar a substituir o desespero por oportunidade. Essa administração, aqui e agora, declara incondicional guerra à pobreza na América. Eu conclamo este Congresso e todos os Americanos a se unirem a mim neste esforço.. Nosso objetivo não é somente aliviar os sintomas da pobreza, mas curá-los e, acima de tudo, previni-la.4

É sabido que no imaginário político norte-americano, guerra relaciona-se à regeneração e redenção, enfim, ao célebre sentido de missão, que acompanha a idéia dos Estados Unidos serem portadores de um destino especial no mundo. Tal visão remonta aos primórdios da colonização pelos peregrinos religiosos, mas o uso abundante da metáfora da guerra no discurso político em tempos recentes, aludindo a crises internas, tem reiterado a mitologia da guerra, ao mesmo tempo em que, em alguns casos, provocou o efeito, talvez imprevisto, de ampliar o repúdio à guerra em termos efetivos, como ocorreu no período da Depressão5. Roosevelt, que chegara a pedir ao Congresso "um poder tão grande quanto o que lhe seria dado se, de fato, os EUA fossem invadidos por inimigos" 6, poderes excepcionais que permitissem ao Executivo promover uma guerra contra a Depressão, acabou por enfrentar, até o episódio de Pearl Harbor, forte resistência da opinião pública para entrar na guerra contra o Eixo.

No caso de Johnson, para seu desgosto, sua imagem acabou associada, não à NASA, de cuja criação foi mentor quando parlamentar, ou à Legislação dos Direitos Civis (Civil Rights Act, de 1964 e o Voting Act, de 1965) aprovada em seu governo e, muito menos, à Guerra à Pobreza, ao Medicare ou ao Medicaid, mas sim à malfadada Guerra do Vietnã. Em suas memórias, o ex-presidente faz um lamento, que pode nos parecer muito familiar:

Eu tentei fazer possível a toda criança, independente da cor, crescer numa boa casa, tomar um café da manhã consistente, frequentar uma escola decente e conseguir um emprego bom e estável. Eu pedi tão pouco em retorno, apenas um pequeno obrigado. Apenas um pequeno reconhecimento. Só isso. Mas veja o que consegui no lugar disso. Revoltas em 175 cidades. Saques. Incêndios. Tiros.... Jovens aos milhares saindo das universidades, marchando pelas ruas, cantando aquela terrível cantiga sobre quantas crianças eu tinha matado naquele dia... (Hey, hey, hey, LBJ, how many kids you killed today?)... Isso arruinou tudo.7

A limitada Guerra à Pobreza pretendida pelos liberais se viu confrontada nos anos 60 pelos movimentos levados a cabo e as utopias políticas nutridas por grupos muito diferenciados, raramente afinados na radicalização de suas críticas e demandas. Intelectuais de esquerda, hippies, nacionalistas negros, estudantes, pacifistas, feministas pretenderam liberar-se não só da opressão promovida pelo sistema econômico, como também da violência psíquica que lhe era associada. Declararam guerra ao racismo, mas também ao moralismo conservador, ao "complexo industrial militar", enfim, ao que identificaram como as bases da própria América. Mas, se ao final o antagonismo com os programas da Guerra à Pobreza foi incontornável, a princípio, pelos menos alguns desses intelectuais e ativistas procuraram ocupar espaços e conceder aos programas da Guerra à Pobreza com que se envolveram um conteúdo político mais consistente.

As várias faces da Guerra

Apesar de sua preocupação em afirmar um caminho próprio, Johnson na verdade procurou levar adiante inúmeros programas concebidos, porém não efetivados por Kennedy, além de contar em sua Guerra à Pobreza com o apoio de vários "Kennedy boys ", entre eles Richard Goodwin e Sargent Shriver, o cunhado de Kennedy que depois de montar os Corpos da Paz, reduto do idealismo liberal, foi incumbido de conduzir a criação do Office of Economic Opportunities.

Embora o OEO tenha seja aqui particularizado pelo seu caráter experimental e impacto político, é preciso deixar claro que seu orçamento representou apenas entre 10% a 20% do conjunto de investimentos do governo Johnson no combate à pobreza. Mas o OEO se diferenciava pelo fato de focar nos jovens e no princípio de reabilitação e não meramente no alívio da pobreza, conforme anunciava Johnson no discurso citado.

Cinco meses depois do seu discurso em Michigan, Lyndon Johnson assinou o Economic Opportunity Act, aprovado pelo Congresso praticamente sem alterações em relação ao projeto enviado. A votação na Câmara, no entanto, revela que os programas não foram aprovados amplamente, muito pelo contrário. Foram 226 votos a favor e 185 contra. Apenas 22, dos 167 Republicanos deram voto favorável. Mesmo assim, ela demonstra a extrema habilidade política do Presidente. Johnson procurou alardear seus intentos o mais amplamente possível de modo a garantir apoio da opinião pública e de organizações voltadas para os direitos civis que pudessem pressionar os congressistas.

Na direção do OEO, Shriver procurou imprimir a mesma marca de ousadia que o distinguiu nos Corpos da Paz. Influenciado pela doutrina social católica e trazendo em sua bagagem projetos educacionais voltados para integração racial, perseguiu uma configuração ampla para a agência, enfatizando a criação de empregos e a ação de base nas comunidades pobres, sustentada nas teorias de desenvolvimento comunitário. O importante para Shriver era evitar ações pontuais e fragmentadas cujo efeito de longo prazo fosse pouco significativo. Conforme muitos críticos acabaram por apontar, Shriver fracassou nesse intento, e a Grande Sociedade, apesar de suas promessas grandiosas, não alcançou os propósitos anunciados em sua elevada retórica, no que também não se diferenciou da Nova Fronteira8, programa de governo de Kennedy, cuja perspectiva voluntarista e cruzadista recuperava o já mencionado sentido de missão nacional.

Mas deve-se reconhecer em Johnson o esforço por cumprir parte da agenda doméstica que Kennedy esboçara, mas que deixara de implementar em parte por conta do bloqueio no Congresso. A ampla gama de programas aprovados no âmbito da Grande Sociedade impressiona. Dos direitos civis ao Medicaid, da assistência previdenciária ao treinamento profissional, do planejamento urbano ao controle da poluição, nada parecia escapar ao furor reformista e legislativo de Johnson, que nisso não poderia de fato ser herdeiro mais fiel de Roosevelt, tendo sido ele inclusive, nos anos 30, diretor da NYA, a National Youth Administration, agência dedicada a integrar jovens desempregados, ajudando-os a terminar estudos e adquirir treinamento profissional. A ofensiva legislativa de Johnson acabou por se mostrar bastante exitosa - de 200 projetos enviados ao Congresso até 1966, 181 foram aprovados.

Johnson permaneceu fiel ao New Deal em termos de sua visão do Estado como ator providencial, fiador de oportunidades econômicas, responsável por restringir excessos das grandes corporações e garantir condições dignas de sobrevivência para os trabalhadores, a partir do uso dos instrumentos jurídicos, fiscais e tributários para estimular a economia9. Johnson assumiu ardorosamente a aliança entre liberalismo e ativismo governamental que o New Deal cimentara. Mas após o final da segunda guerra, as contradições com o grande capital diminuíram. Como outros jovens liberais reformistas deste período, Johnson acabou por adotar uma versão do keynesianismo em que o consenso, e não o conflito, era enfatizado, tendo em vista um cenário econômico de crescimento constante. Essa perspectiva seria também uma das principais razões, segundo seus críticos, para os resultados tão decepcionantes da Grande Sociedade, que trabalhava com a hipótese equivocada de que o direcionamento do Estado para a redenção dos pobres não seria sentida como sacrifício ou perda pelos demais segmentos da sociedade. Schulman10 chama atenção para o fato de que a percepção da classe média branca foi a de que a Grande Sociedade beneficiava basicamente os negros que, apesar disso, desenvolviam uma disposição crescentemente violenta expressa nos riots que se multiplicavam nas grandes cidades do norte na segunda metade da década de 60.

De fato, a Guerra à Pobreza e o movimento pelos direitos civis estiveram intimamente associados e, em grande parte, os negros foram especialmente beneficiados pelos programas governamentais mais importantes como o Medicaid e o Medicare que, ao lado de conceder cobertura médica a idosos e deficientes, estendia sua ação a famílias onde as mulheres eram as únicas provedoras; o Head Start, voltado para o atendimento pré-escolar de crianças carentes; o Job Corps, que dedicava-se ao treinamento de jovens das periferias urbanas com formação escolar incompleta; o programa de requalificação de desempregados; o Legal Services, destinado a ampliar o acesso ao sistema jurídico; o Model Cities, que concentrava esforços no desenvolvimento urbano de áreas empobrecidas; o Food Stamps, programa de distribuição de alimentos e, especialmente, os programas de ação comunitária (CAPs), que tanto desconforto causaram em inúmeras municipalidades, perseguindo seu objetivo de fomentar, no jargão do OEO, "the maximum feasible participation", ou seja, o maior envolvimento, a maior participação possível dos integrantes das comunidades carentes na concepção e gestão dos programas financiados pelo governo federal.

Inspirados no bem-sucedido programa federal de combate à delinqüência juvenil dirigido por David Hackett, os CAPs deveriam perseguir três objetivos: coordenar os programas federais, estaduais e locais de assistência; oferecer novos serviços aos pobres e, finalmente, promover mudanças institucionais em favor dos pobres. David Hackett e seus assessores, convidados por Shriver para integrar a força tarefa responsável pela proposição do OEO Act, concederam aos referidos programas um conteúdo mais idealista e radicalizado. Hackett e seu grupo identificavam nas instituições existentes - escolas, polícia, serviços de assistência, organizações de caridade - uma tendência ao paternalismo e mesmo à manipulação e controle inescrupulosos dos desfavorecidos. Na sua visão, tais instituições corresponderiam a burocracias opressoras, desinteressadas em qualquer mudança que pudesse afetar os poderes constituídos. Preocupados com a resistência dessas estruturas de poder local à promoção de reformas efetivas, habilidosamente esse grupo sugeriu a inclusão da recomendação da "maximum feasible participation " no artigo 202 do OEO Act, que pareceu inocente e não chamou qualquer atenção no Congresso ou em outros setores do Executivo11.

Em muitas ocasiões, no entanto, essa disposição legal serviu para o OEO condicionar a concessão de recursos à existência de efetiva representação da comunidade alvo nos programas de municipalidades que tentavam apenas captar recursos federais em prol do engrandecimento político os respectivos prefeitos. Para sintetizar, segundo esses ideólogos mais radicais do OEO, a Guerra à Pobreza só poderia se viabilizar se os pobres efetivamente adquirissem poder. Motivar os pobres a "quebrar o ciclo da pobreza", em sua concepção, equivalia a mobilizá-los, ativá-los politicamente.

Vejamos agora a visão da pobreza e as estratégias para seu combate que constituíram a perspectiva liberal dominante.

As várias faces da Pobreza

No início de 1963 um artigo intitulado Our Invisible Poor, assinado por Dwight MacDonald, foi publicado no jornal The New Yorker, trazendo um balanço da produção acadêmica recente sobre a pobreza. Desde a década anterior vários estudos vinham questionando o que se assumia ser um mito: a natural tendência à distribuição da renda nos EUA. John Kenneth Galbraith, Robert J. Lampman, Michael Harrington, entre outros, apontavam a existência de sérios desequilíbrios, responsáveis pela existência e crescimento de uma massa de miseráveis no país. Inequívocas também eram as estatísticas que demonstravam, ao contrário do que supunha o senso comum, que o gap que separava os negros dos brancos em termos de renda não vinha diminuindo desde o final da segunda guerra. Um número desproporcional de negros integrava o contingente de mão-de-obra desqualificada, de desempregados, de pobres. O artigo e os principais livros nele citados ganharam repercussão nos círculos oficiais do governo Kennedy, que começou a alimentar, a partir do seu reconhecimento, um programa federal destinado a combater o mal social da pobreza12. Até a Depressão e as inéditas medidas do New Deal, especialmente o advento do Social Security Act, a assistência aos pobres esteve fundamentalmente a cargo dos governos locais e dos programas filantrópicos privados, mormente ligados a instituições religiosas. Mas pode-se dizer que os programas de assistência e os serviços públicos prestados pelo Estado a partir do New Deal em muitos casos não tinham como objetivo beneficiar particularmente os pobres. A educação pública e os auxílios concedidos a idosos e deficientes, independente da renda, podem servir como exemplo. Os programas iniciados pela Guerra à Pobreza estabelecem, neste sentido, um novo marco.

Emblemático também é o fato da pobreza passar a ser pensada em termos culturais. Discussões dos cientistas sociais sobre uma suposta "cultura da pobreza" invadiram os círculos governamentais, influenciando sobremaneira a ação de inúmeras agências. A concepção predominante era a de que pobres não seriam apenas os desprovidos de recursos, conhecimentos e oportunidades de trabalho, mas aqueles cujo perfil cultural, transmitido através das gerações, distinguia-se pela instabilidade familiar, traduzida nos altos índices de divórcio, gravidez na adolescência, filhos ilegítimos, experiências traumáticas na infância, baixa auto-estima, baixa escolaridade, baixo nível de participação eleitoral ou política, características percebidas como indesejáveis ou desviantes em relação a um padrão "estável". Dessa forma, considerou-se que o objetivo da Guerra à Pobreza não era atingir apenas indivíduos, mas também as instituições, públicas e privadas, atacando o círculo vicioso da pobreza.

Mesmo admitindo a natureza social da pobreza, as políticas compensatórias então imaginadas pelo governo federal objetivavam tão somente dotar os indivíduos com recursos materiais e intelectuais que os capacitassem a se inserir ou reinserir no mercado. Portanto, não se cogitava em qualquer intervenção sistêmica ou macro-econômica voltada para corrigir processos de acumulação e distribuição de renda. O sistema enquanto tal não estava em causa. A pobreza corresponderia apenas a uma disfunção, passível de ser corrigida sem provocar qualquer desequilíbrio no sistema. Aliás seu combate serviria para reequilibrá-lo.

Mas é importante sublinhar que a associação da pobreza à falta de dedicação ao trabalho, a esforço individual insuficiente, nuclear no imaginário puritano, era deslocada, deixando-se de culpar o pobre, enquanto indivíduo, por sua pobreza. Para muitos americanos este novo paradigma causou grande impacto, como se pode depreender das palavras de um voluntário do VISTA - Volunteers in Service To America - versão doméstica dos Corpos da Paz, que arregimentou jovens de classe média para atuar em programas de ação comunitária. Assim recorda Karen Bolte:

"Ensinaram-me quando criança que se uma pessoa neste país trabalhasse arduamente, conseguiria ir adiante. E aqui estava uma família que tinha trabalhado arduamente durante toda vida e não tinha nada, e realmente não por culpa delas, mas porque este era o modo pelo qual o sistema funcionava." 13

Além disso, num contexto de extrema efervescência na luta pelos direitos civis, houve também a possibilidade de articular pobreza à discriminação racial e à falta de poder político dos desfavorecidos, especialmente os negros.

Dessa forma, seria possível pensar a associação da Guerra à Pobreza aos direitos civis, não como uma descaracterização ou um esvaziamento da luta de classes, como pensavam alguns intelectuais de esquerda. Nos anos 60, qualquer movimento ou política pública que desconsiderasse a questão racial deixaria de fazer sentido, da mesma forma que o movimento pelos direitos civis não pôde deixar de se encaminhar para a questão da pobreza, como pretendeu o próprio Martin Luther King nos seus últimos momentos. A articulação entre pobreza e discriminação racial representou uma exigência histórica inescapável que, antes de descaracterizar, foi o que concedeu alguma coerência à Guerra à Pobreza. Vejamos agora o que a historiografia nos diz a respeito desse tema.

Dos juízos da historiografia ao julgamento político: visualizando uma cultura política ativista

Tal qual Johnson, a Grande Sociedade e a Guerra à Pobreza herdaram as críticas feitas ao New Deal, tanto pela historiografia de esquerda, que assinalou suas insuficiências ou mesmo o propósito conservador da pauta reformista Democrata, quanto de direita, que chegou a denunciar aspectos socializantes no programa.

No primeiro caso, enfatiza-se que a Guerra à Pobreza não pretendeu atacar a perversa distribuição de renda, nem efetivamente enfrentar as estruturas de poder local que impediam que os recursos chegassem efetivamente aos pobres. Portanto, as estruturas sociais e de poder ficaram, ao final, absolutamente intocadas. Partindo deste ponto, com o qual não deixo de concordar, alguns chegam a condenar o sistema de cobertura social como um todo, argumentando por exemplo, que quem se benefia do Medicaid desde sua criação não são os pobres e sim a corporação médica e o cartel de hospitais14.

No que tange aos efeitos na sociedade, o caminho se bifurca. Por um lado, há quem defenda que Johnson teria na verdade tentado evitar o debate e a mobilização em torno de seus programas, uma vez que era guiado pelo que se chamou de liberalismo gerencial, que privilegiava a tecnocracia do aparelho de Estado em detrimento dos canais democráticos de participação. Por outro, afirma-se que os programas se anteciparam à ascenção das massas e seu efeito desestabilizador, incentivando, porém mantendo sob controle as manifestações populares. De todo modo, segundo tais críticos, os elevados objetivos da Guerra à Pobreza enunciados pelo governo não seriam factíveis, mesmo que tivessem sido efetivamente pretendidos.

Cabe, nesse panorama geral, singularizar duas análises que chamaram particularmente minha atenção.

A primeira é a de Ira Katznelson, cujo título é a pergunta "Foi a Grande Sociedade uma oportunidade perdida?"15 O título remete a uma avaliação feita por alguns contemporâneos que participaram da formulação do programa e que no final da década de 60 acabaram decepcionados com seus resultados. Para esses liberais, a administração Johnson perdera uma imensa oportunidade de instituir mudanças sociais de caráter mais profundo, como um sólido programa de ampliação do emprego e medidas de recuperação da renda. Para aprofundar o programa, Johnson teria que aumentar investimento num ritmo muito maior, o que foi impossibilitado pela guerra do Vietnã16.

Katznelson acaba por glosar esse diagnóstico para adiantar sua tese de que a oportunidade de alcançar ou aprofundar reformas social-democratas havia sido perdida não nos anos 60, mas duas décadas antes, quando o movimento sindical reorganizou-se, deixou de lado sua combatividade, esterilizando seu potencial de questionamento do sistema. Para o autor, a Grande Sociedade teria tido um duplo efeito: ao mesmo tempo em que, do mesmo modo que o New Deal, alargou a base social do Partido Democrata, incorporando importante contingente de afro-americanos, antes fiéis ao Partido de Lincoln, contraiu a base trabalhista do partido, isolando os pobres sem emprego dos trabalhadores pobres. O resultado final teria sido a fragmentação do Partido Democrata e da própria coalizão política que viabilizara a espetacular vitória legislativa de Johnson. Sua conclusão, um tanto desconcertante e incompreensível, é a de que no momento mesmo em que reformas mostravam-se mais vigorosas, os limites para sua continuação no futuro se fechavam.

Outra obra muito conceituada sobre este processo é a de Allen Matusow17. Bastante minuciosa, a análise acaba por concluir que o epitáfio da Guerra à Pobreza deveria ser "Declarada, mas nunca efetivada".

No entanto, é interessante que Matusow atribua o título "Guerra à Pobreza II: A Estranha História da Ação Comunitária" ao capítulo dedicado a analisar os CAPs e inicie afirmando que Johnson não soube avaliar sua potencial ameaça aos ideais de harmonia social e consenso que perseguia. Segundo ele, o presidente não teria pressentido a possibilidade de infiltração dos programas por radicais desejosos por instrumentalizá-los para mudança social. Ao final, Matusow conclui que os programas de ação comunitária seriam a exceção que confirmaria a regra em relação ao caráter conservador da Grande Sociedade.

É importante recuperar alguns pontos de sua análise. Ao tratar dos princípios que nortearam os CAPs e os principais casos onde o conflito de perspectiva entre prefeitos e OEO se tornou mais flagrante, Matusow afirma que pelo menos até agosto de 1965 predominou na agência a perspectiva de Hackett, assumida formalmente nos Manuais e outros materiais produzidos e distribuídos pela agência. As diretrizes oficializadas nestes textos seriam: identificar as comunidades com maior concentração de pobres; autorizar os residentes a escolher, preferencialmente através do voto direto, representantes para compor conselhos que deveriam não apenas influenciar, mas participar da gestão dos CAPs. Os manuais chegavam a indicar formas para se alcançar a ativação e fortalecimento político dos pobres, recomendando, por exemplo, a utilização de assistentes sociais treinados no sentido de fomentar a criação de organizações locais autônomas. Matusow menciona que o OEO permitiu inclusive o uso de 15% do orçamento para realização de projetos piloto dessa natureza. Um deles, realizado na Syracuse University sob a direção de Saul Alinsky, celebrizado por constituir associações de moradores em várias favelas negras, formou ativistas comunitários que passaram a fomentar na cidade o alistamento eleitoral e a constituição de associações de inquilinos, atemorizando o prefeito que pretendia reeleger-se.

Outros casos de enfrentamento entre ativistas e políticos locais em função da participação dos pobres e negros, mencionados por Matusow, podem ilustrar a tentativa de setores mais radicais de interpretar a seu modo e tomar para si as iniciativas na Guerra à Pobreza, num contexto de intenso conflito racial. Em São Francisco, depois da ocorrência de riots de grande repercussão nacional, o prefeito capitulou em sua intenção de instrumentalizar o CAP local, entregue aos representantes das áreas a serem beneficiadas. Em um dos distritos, Wilfred Ussery, diretor nacional do CORE - Congress of Racial Equality - uma das mais importantes e radicais organizações pelos direitos civis do país - utilizou as verbas recebidas do OEO para organizar associações de moradores independentes, cujo discurso racial causou alvoroço. Cartas denunciando que o OEO estava fomentando a ideologia black power com verbas federais foram enviadas ao FBI e ao próprio Presidente Johnson. O programa foi investigado e dissolvido em 1967.

Em Nova York, o programa Mobilization for Youth, dirigido por cientistas e assistentes sociais, foi considerado modelar por Matusow quanto ao objetivo de pressionar por mudanças institucionais no interesse dos pobres. Greves de inquilinos e ocupações de prédios do Welfare Department foram algumas das ocorrências que levaram o prefeito e jornais da cidade a denunciar que "subversivos esquerdistas" controlavam o programa.

Por fim, mereceram destaque na avaliação de Matusow os êxitos do Head Start e do Legal Services. Os programas de educação infantil do Head Start que fomentaram a participação dos pais alcançaram conseguiram produzir maior sensibilidade no sentido das necessidades educacionais e médicas especiais das crianças pobres. No segundo caso, o OEO objetivava que os 2.000 advogados trabalhando nas comunidades pobres movessem causas clamando por tratamento igualitário para os pobres nas instituições públicas e privadas. Suas ações efetivamente pressionaram autoridades responsáveis pelas áreas de habitação, saúde, assistência social e segurança. O Estado da Califórnia, por exemplo, foi obrigado a restabelecer a assistência médica a cerca de 1,5 milhão de pessoas qualificadas como pobres ou idosas.

Mas, conforme já mencionado, o balanço de Matusow é negativo. Em sua avaliação, ainda que os programas de ação comunitária tivessem conseguido perdurar, só teriam gerado melhores serviços para os pobres, serviços esses que permitiriam que apenas poucos escapassem da pobreza. Soluções para a pobreza passariam não pela oferta de serviços ou pela ação local. Numa verdadeira guerra à pobreza as ações levadas a efeito nesse âmbito tão restrito seriam pouco significativas.

Em relação às análises de Matusow e Katznelson é importante considerar, em primeiro lugar, que são irrefutáveis seus argumentos de que, ao longo do processo, os conflitos de interesse no interior do Partido Democrata e do OEO, provocaram o recuo de Shriver, que inverteu a conduta da agência em atendimento às exigências que prefeitos e outros atores políticos dirigiram ao Presidente, fazendo com que os defensores da "maximum feasible participation" deixassem a agência.

Em relação a Katznelson, no entanto, é impossível concordar com sua sentença de que os movimentos sociais daqueles anos 60 já estavam fadados ao fracasso em função de fatores externos a sua própria dinâmica. Ao conceder ao movimento sindical tal grau de determinação sobre o restante da vida social, Katznelson parece trabalhar com um sentido de classe social já bastante questionado por deixar de lado a luta social que se desenrola fora do mundo do trabalho. Se pensarmos que a classe e a consciência de classe se constituem na própria dinâmica da luta social, é possível entender a ação de negros, mulheres e outros ativistas nos EUA nos anos 60 não como um desvio da luta de classes, mas como uma configuração que a luta de classes assumiu naquele contexto. Diante disso, seria possível inverter a tese de que o radicalismo dos anos 60 teria contribuído para o derrocada definitiva da chamada ordem do New Deal. Mais adequado talvez seja perceber a continuidade entre os dois períodos em termos da afirmação e expressão de uma cultura política reformista e ativista.

No caso de Matusow, me parece que se deve dar maior valor às vivências dos atores concretos que se envolveram nos variados programas. Experiências tão marcantes quanto a participação na construção e na direção de programas que integrantes de inúmeras comunidades pobres viveram, recuperadas em seu próprio texto. Se esses programas de fato não propiciaram alterações na estrutura social, promoveram mudanças importantes em termos da autoestima e da afirmação de um novo sentido de cidadania para muitos integrantes de comunidades marginalizados do ponto de vista social, econômico e político. É o que se depreende de declarações como a de Unita Blackwell, que trabalhou num projeto de assistência a crianças pobres no Mississippi, cuja direção foi assumida pelos próprios pais. Suas palavras são significativas: " (...) se você não tem um mínimo de saúde e educação e participa de algum modo, de forma a sentir que você governa a si mesmo, você continuará na pobreza para sempre"18.

No meu entendimento, os pobres e ativistas negros e brancos que ocuparam as trincheiras da Guerra à Pobreza sem dúvida lutaram para atingir seus objetivos, entre eles o de garantir e conquistar novos direitos políticos e sociais. Nesse sentido, a guerra não foi apenas declarada, mas efetivada. Um guerra que assumiu claramente a feição de luta de classes, mesmo que tenha se dado através e por dentro da própria institucionalidade existente, pretendendo uma mudança substancial em sua lógica de funcionamento. Buscava-se assim atribuir novos sentidos a elementos chaves do sistema, no sentido de sua democratização e universalização. A criação da National Welfare Rights Organization em 1965 pode servir como exemplo. Neste caso o que se pretendeu foi eliminar o estigma associado ao welfare, que gradativamente foi sendo assimilado pela sociedade como direito. Parece plausível considerar o sistema de proteção social como constituinte de movimentos coletivos que alguns autores qualificam como "Revolução de Direitos"19 que se traduziu na ampliação das oportunidades de vocalizar demandas questionadoras da ordem vigente.

No caso em questão, há que se valorizar a penetração no aparelho de Estado de uma cultura política republicana20 vinculada à idéia de que era necessário transferir poder e não apenas recursos para que os segmentos desfavorecidos pudessem transformar suas comunidades. Abriu-se portanto uma brecha para proposições mais radicais no sentido de inclusão dos pobres pela política, uma brecha ativista que gerou intensos ataques aos Programas de Ação Comunitária no âmbito da Guerra à Pobreza.

Ilustrativo neste sentido foi o manifesto produzido pelo Encontro Nacional de Prefeitos, Republicanos e Democratas, realizado em 1965, que pedia ao presidente que controlasse "os agressivos e radicais agentes comunitários"21. Um desses prefeitos chegou a dizer que tais agentes estariam fomentando a luta de classes imaginada por Marx. A partir daí, muitos prefeitos se rebelaram, alterando ou restringindo os programas federais em suas jurisdições22. Estavam convencidos de que as ações afirmativas - que focalizavam não a oportunidade, ou seja, o ponto de partida, mas os resultados - representavam uma radicalização inaceitável dos programas da Guerra à Pobreza

Na década de 80 os princípios fundantes do New Deal foram declarados esgotados pela Reagan economics, especialmente a idéia de que o Estado deveria ser o principal agente da prosperidade econômica e da distribuição de renda. Os partidos também aparentemente perderam o poder atrativo que antes exerciam23. Os Republicanos, que desde então dedicam-se a atacar o Welfare24, mencionam sempre a Great Society como marco, procurando demonstrar que os investimentos de Johnson para combater a pobreza só criaram mais pobreza, dependência e desesperança. A Great Society, associada aos valores da contracultura, teria produzido, segundo eles, um verdadeiro desastre, sendo responsável por virtualmente todos os problemas existentes 30 anos depois: pobreza, regulamentações excessivas, aumento da presença perniciosa do Estado, taxações elevadas. Insistem na necessidade de alterar esse curso, recuperando o que para eles seria o verdadeiro rumo, a tradição da civilização americana: criar alternativas baseadas em trabalho, responsabilidade individual e caridade privada25.

Em termos de historiografia, Charles Murray pode ser considerado um expoente desta corrente26. Murray usa dados estatísticos para demonstrar que mesmo os programas mais bem avaliados da Grande Sociedade como o Head Start e o Job Corps beneficiaram apenas os que, em última instância, já chegavam estimulados aos programas, não produzindo qualquer efeito significativo no sentido de reduzir os índices de criminalidade, de desemprego e gravidez na adolescência. Seu efeito teria sido apenas agigantar a burocracia. Murray chegou a referendar uma retumbante declaração de um membro do governo Bush responsabilizando as reformas dos anos 60 pelos distúrbios raciais ocorridos em Los Angeles em 1992. Para Murray a solução para os problemas dos segmentos mais empobrecidos, deveria ser fundamentalmente o fortalecimento do núcleo familiar.

Não há como não lembrar das denúncias de Michael Moore no seu fantástico Tiros em Columbine quando apresenta os resultados dessa mudança de rumos nos programas originalmente concebidos para ajudar combater a pobreza entre grupos especialmente vulneráveis como o de mulheres chefes de família. Seguindo a filosofia Republicana, o sistema, como bem ilustra o caso tratado no filme, acaba por impor sub empregos aos pobres. De uma perspectiva compensatória de Welfare, voltado para a produção e distribuição de serviços extra-mercado, passou-se para um modelo claramente residual que aponta para a retomada dos canais "naturais" de satisfação de necessidades, quais sejam, o esforço individual e o mercado.

Contrariando os argumentos dos Republicanos, inúmeros estudos indicam uma clara correlação entre investimento governamental e declínio dos índices sociais como desemprego, delinquência, etc. Em 1960 - 22% dos americanos viviam abaixo da linha de pobreza oficial. No final do governo Johnson, em 1969, esse índice caiu para 13%. A mortalidade infantil caiu de 26 por 1000, em 1963, para 10 por 1000, em 1983. Mesmo que a melhoria desses índices possa ser atribuída a outros fatores, muitos autores admitem que a Grande Sociedade representou, apesar de tudo, talvez o último momento em que se realçou a utilização do poder do Estado para mitigar as perversidades criadas pelo mercado, abrindo brechas para o idealismo social em detrimento da auto-proteção, que hoje se traduz em isolamento social, falta de contato entre classes e grupos étnicos.

Quando menos, a Guerra à Pobreza nos deixou questões ainda relevantes, inclusive para a sociedade brasileira. O programa Fome Zero, no governo Lula, como o Comunidade Solidária no governo Fernando Henrique, não conseguiram equacionar os imensos desequilíbrios e a dívida social histórica com os milhões de brasileiros que vivem na pobreza. Questões de fundo técnico e político provavelmente continuarão a nos desafiar por muito tempo. O que seria mais eficaz, políticas compensatórias, ações afirmativas ou políticas universalizantes? Como mobilizar a sociedade, como produzir a energia social necessária para pressionar o governo a não abdicar do equacionamento das questões sociais? Como enfrentar conflitos de interesse e, acima de tudo, respaldar um programa que implica em redistribuição de recursos?

Mas do ponto de vista puramente teórico, que é o mais confortável, podemos concluir que aquilo que emerge do discurso político como ideologia dominante não equivale à expressão de um consenso, mas apenas a um resultado provisório do conflito entre diferentes posicionamentos. Dessa forma, culturas políticas minoritárias, as heterodoxias, os chamados "desvios", uma vez vencidos, têm sempre a possibilidade de ressurgir. Por causa disso, devemos evitar sentenças simplificadoras e continuar acreditando que o futuro não está predeterminado.

Referências Bibliográficas

ANDREW III, John A. Lyndon Johnson and Great Society, Ivan R. Dee, Chicago, 1998 (The American Ways Series).

FRASER, Steve e GERSTLE, Gary. The rise and fall of the New Deal Order. Princeton, Princeton Univ. Press, 1989

JORDAN, Barbara C. and ROSTOW, Espeth D. (eds.). The Great Society: A Twenty-Year Critique. Austin: Lyndon Johnson Library, 1986.

LEVITAN, Sar A. The Great Society's Poor Law: a new approach to poverty. Baltimore: The Johns Hopkins Press, 1969.

MATUSOW, Allen J. The Unravelling of América: A History of Liberalism in the 1960's. New York, Harper & Row, 1984.

ROBERTSON, James Oliver. American Myth, American Reality. Hill & Wang, New York, 1994

SCHULMAN, Buce J. Lyndon B. Johnson and American Liberalism. A Brief Biography with Documents. Boston/New York: Bedford Books of St. Martin Press, 1995.

SOIHET, Raquel, BICALHO, Maria Fernanda e GOUVEA, Maria de Fátima (orgs). Culturas Políticas: Ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro, Mauad, 2005.

Taking Sides Clashing views on Controversial Issues in American History (Vol II) Larry Madaras & James M. SoRelle (eds). Guilford, Connecticut,The Dushkin Publishing Group, 1995

WATTENBERG, Martin P. The Decline of American Political Parties, 1952-1996. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1998

* Esta é uma versão modificada do trabalho apresentado sob o mesmo título no Simpósio Cultura e Política nas Américas que teve lugar no XXII Simpósio Nacional de História, em João Pessoa, em julho 2003.
1 Faz parte da tradição política nos EUA, que, na ocasião da acitação da nomeação pelo partido, o candidato lance um slogan sintetizando as bandeiras da campanha.
2 Agência governamental criada em 1961 com objetivo de enviar voluntários ao então chamado Terceiro Mundo para execução de projetos de assistência comunitária nos campos da educação, saúde e desenvolvimento agrícola. Os Corpos da Paz são uma das instituições mais consagradas pela opinião pública norte-americana, encarnando, numa versão liberal e secular, o fervor moral puritano. Ver. AZEVEDO, Cecília. Em nome da América: os Corpos da Paz no Brasil. São Paulo, Edusp (no prelo).
3 Discurso proferido na University of Michigan, 22/5/64.
4 JOHNSON, L. B. Annual Message to the Congress on the State of the Union, 1964.
5 Tratei mais particularmente deste assunto em "O sentido de missão no imaginário político norte-americano". In: Revista de História Regional. Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa, vol. 3, n.2, 1998, p. 77-90 e "A santificação pelas obras: experiências do protestantismo nos EUA". In: Revista Tempo. Universidade Federal Fluminense, Departamento de História, vol. 6, n.11. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001. Entre as principais referências norte-americanas estão BURNS, Edward McNall. The American Idea of Mission: Concepts of National Purpose and Destiny. New Jersey: Rutgers University Press, 1957; ROBERTSON, James Oliver. American Myth, American Reality. New York: Hill & Wang, 1994; BELLAH, Robert. The Broken Covenant: American Civil Religion in time of Trial. Chicago: The University of Chicago Press, 1984.
6 Franklin Delano Roosevelt, primeiro discurso de posse, Março de 1933.
7 Apud ANDREW III, John A. Lyndon Johnson and Great Society. Chicago: Ivan R. Dee, 1998 (The American Ways Series), p. 195. [ Links ]
8 Empenhado em recuperar a ofensiva na luta contra o comunismo, Kennedy procurou envolve-la na aura heróica da conquista do Oeste. Dessa forma, a ação dos EUA no mundo adquiria sustentação mítica ao ser configurada como um contínuo processo de desbravamento de fronteiras, no qual a auto-preservação e o avanço da civilização estavam em jogo. Tratava-se, pois, de um imperativo moral, de uma missão diante da qual os norte-americanos não deviam recuar.
9 Sobre a relação entre o governo Roosevelt e os sindicatos ver LIMONCIC, Flávio. Os inventores do New Deal: a construção do sistema norte-americano de relações de trabalho nos anos 1930. In: Transit Circle -Revista Brasileira de Estudos Americanos, vol 2, nova série. Rio de Janeiro: UFF, Contra Capa 2003, p. 44-69.
10 SCHULMAN, Buce J. Lyndon B. Johnson and American Liberalism. A Brief Biography with Documents. Boston/New York: Bedford Books of St. Martin Press, 1995.
11 Ver LEVITAN, Sar A. The Great Society's Poor Law: a new approach to poverty. Baltimore: The Johns Hopkins Press, 1969, p.312. Agradeço a André Luiz Campos Vieira a gentileza de me brindar com este livro, que resulta de susbstancial avaliação dos programas conduzidos pela OEO pelo Center Manpower Policy Studies da George Washington University após o final do governo Johnson, mas antes ainda da extinção do OEO em 1974.
12 Op. Cit. p.13.
13 "America's War on Poverty", documentário, 1995. Henry Hampton Collection, Washington University, Special Collections, http://library.wustl.edu/units/spec/ filmandmedia/hampton/awop. html.
14 MATUSOW, Allen J. In: JORDAN, Barbara C. and ROSTOW, Espeth D. (eds.). The Great Society: A Twenty-Year Critique. Austin: Lyndon Johnson Library, 1986.
15 In: FRASER, Steve e GERSTLE, Gary. The rise and fall of the New Deal Order. Princeton: Princeton Univ. Press, 1989.
16 Certamente não se pode responsabilizar apenas o Vietnã pelas dificuldades da Grande Sociedade. Katznelson por exemplo menciona que houve uma considerável mudança em termos da composição do orçamento federal na era Johnson. Mesmo durante a guerra, o orçamento militar declinou em termos relativos, enquanto as despesas com seguro social e programas de assistência duplicaram, passando de US$ 61 bilhoes na segunda metade da década. Entre 65 e 67 , descontando a inflação, o crescimento foi espetacular: 15% . A guerra não deixou de ter impacto, porém, este se limitou a reduzir o crescimento dos investimentos na área social para 10%.
17 MATUSOW, Allen J. The Unravelling of America: A History of Liberalism in the 1960's. New York: Harper & Row, 1984.
18 "America's War on Poverty", documentário, 1995, Henry Hampton Collection, Washington University, Special Collections, http: //library.wustl.edu/units/spec/filmandmedia/ hampton/aworp. html
19 VIANNA, Maria Lúcia Teixeira Werneck. A americanização (perversa) da seguridade social no Brasil: Estratégias de bem-estar e políticas públicas. Rio de Janeiro, Revan: UCAM, IUPERJ, 1998.
20 V. FLORENZANO, Modesto. República (na segunda metade do século XVIII - história) e Republicanismo (na segunda metade do século XX - historiografia). In: SOIHET, Rachel, BICALHO, Maria Fernanda e GOUVEA, Maria de Fátima (orgs). Culturas Políticas: Ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 45-66. Florenzano recupera, na historiografia norte-americana, autores como Bernard Baylyn e John Pocock que ressaltavam a participação política como única maneira de garantir a manutenção da irtude e da liberdade dos cidadãos frente à corrupção política. O mesmo se poderia dizer de: ARENDT, Hannah. Crises da República: São Paulo, Ed. Perspectiva, 1973.
21 É bom lembrar que o SDS - Students for a Democratic Society - importante organização da New Left, patrocinava naquele momento programas de desenvolvimento comunitário nos guetos dos grandes cidades do norte, além das famosas Brigadas de Verão, constituídas por estudantes brancos, que se dirigiam para o sul de modo a reforçar e dar mais visibilidade à luta pelos direitos civis.
22 O corte de benefícios a mães solteiras que tivessem novos filhos ou a indivíduos sem trabalho pode ser citado como um exemplo de critério restritivo.
23 V. WATTENBERG, Martin P. The Decline of American Political Parties, 1952-1996. Cambridge: Massachusetts, Harvard University Press, 1998.
24 Este foi mote da última campanha de vários candidatos Republicanos, como a do texano Clark Simmons, extremamente truculenta neste sentido.
25 Ao assumir a presidência, George Bush apresentou um projeto com vistas a habilitar igrejas para receber créditos públicos para financiar seus projetos filantrópicos, o que, para muitos atenta contra o princípio da separação entre Igreja e Estado. Neste segundo mandato, a previdência é seu alvo principal.
26 V. MURRAY, Charles. Losing Ground: American Social Policy, 1950-1960. Basic Books, 1984; MURRAY, Charles "The Legacy of the 60's". In: Commentary , July, 1992, republicado em: MADARAS, Larry & SORELLE, James M. (eds). Taking Sides Clashing views on Controversial Issues in American History (Vol II). Guilford: Connecticut,The Dushkin Publishing Group, 1995, pp 306-315.
Revista de História - USP

terça-feira, 27 de julho de 2010

Pré-Urbanismo - Revolução Industrial

Londres - Revolução Industrial
A cidade de Londres durante a Revolução Industrial. Mostra as péssimas condições de vida da população. É possível ver a superpopulação, comum no período, bem como a insalubridade a que eram submetidas as pessoas. Os porões, comuns na época, podem ser vistos à direita. Fonte: BENÉVOLO, 1999.

Cottonopolis
"Cottonopolis" (cidade do algodão) é o nome dado à cidade de Manchester, na Inglaterra. Ele reflete o fato dessa cidade ser considerada o centro internacional da produção de artigos derivados do algodão. A imagem mostra a paisagem dominada pelas fábricas.
Gravura feita por Edward Goodall (1795-1870).Fonte: Wikipedia.
Over London by Rail
Gravura de Gustave Doré - 1870
Fonte: Wikipedia.

http://www.urbanidades.arq.br

A luz da Revolução Francesa na escola

Matemático preconizava uma Educação que contribuísse para a liberdade de pensamento
Marcio Ferrari (Marcio Ferrari)



CONDORCET. Foto: Bettmann/Corbis


Menos de três anos depois da tomada da Bastilha, em 14 de julho de 1789, data oficial do triunfo da Revolução Francesa, a Assembleia Nacional, que havia sido investida de poderes constituintes, recebeu um projeto de organização geral da instrução pública elaborado pelo marquês de Condorcet (1743-1794). Um dos líderes ideológicos da revolução, o matemático e filósofo ocupava uma cadeira de deputado pela cidade de Paris (leia a biografia no quadro abaixo). Seu projeto, apresentado na ocasião, era uma tradução para o campo educacional dos ideais iluministas que nortearam o processo de revolução (saiba quais são no último quadro).

Assim como a data simboliza o fim do absolutismo e a vitória da democracia, tanto quanto a substituição da aristocracia pela burguesia no poder político e econômico, o projeto de Condorcet - embora não tenha sido aprovado pela assembleia - construiu o arcabouço de uma nova Educação. "A Revolução Francesa materializava, por intermédio dele, a criação do modelo da escola do Estado-Nação: única, pública, gratuita, laica e universal", diz Carlota Boto, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

Na concepção do marquês, a instrução era não só do Estado como também uma condição básica para o seu funcionamento. "O projeto de Condorcet tem um claro compromisso com a meta de uma sociedade democrática", prossegue Carlota Boto. "Ele entendia que de nada adiantava declarar um povo como portador de direitos - e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão era a marca da revolução - se cada um dos indivíduos não pudesse desfrutar deles."

Inclusão de todos, independentemente do sexo

Condorcet tinha uma concepção de sociedade democrática muito avançada, que incluía todas as pessoas, sem exceção. Ele foi um dos pioneiros na defesa de um ensino igual para homens e mulheres e também do voto feminino, que a maioria dos revolucionários não aceitava. Em discursos e escritos, argumentava contra a discriminação a protestantes e judeus e pregava o fim da escravidão e o direito de cidadania dos negros.

Educação, dizia Condorcet, era uma questão política. Por isso a ênfase no papel do Estado, assunto da primeira das Cinco Memórias sobre a Instrução Pública, versão em livro do projeto apresentado à Assembleia Nacional. Seria responsabilidade do poder público zelar para que a "desigualdade que nasce da diferença entre os espíritos" não se tornasse, na prática, um motivo de distribuição desigual de direitos. A Educação, segundo Condorcet, deveria ser para todos e oferecer a a possibilidade de desenvolvimento dos talentos individuais. A sociedade justa seria baseada no mérito de cada um.

Um ensino que contribuísse para a liberdade de pensamento e a emancipação dos cidadãos não poderia estar subordinado aos dogmas da religião. Era pré-condição de sua existência que fosse totalmente laico. Diferentemente de alguns correligionários, Condorcet tampouco acreditava que a escola tivesse o papel de difundir civismo e amor à pátria. Ele via nisso um perigo de doutrinação e adoção não racional de princípios. "Mesmo sob a mais perfeita das Constituições, um povo ignorante é um povo escravo", dizia.

Biografia

Gênio dos cálculos e político engajado

Marie-Jean-Antoine-Nicolas de Caritat, o marquês de Condorcet, nasceu em 1743 em Ribemont, Aisne, norte da França. Seu talento para a matemática chamou a atenção quando era adolescente. Condorcet publicou um tratado sobre cálculo integral e desenvolveu um método de contagem de votos utilizado até hoje. Em 1774, integrou a equipe de conselheiros econômicos de Luís XVI. Eleito em 1781 para a Assembleia Nacional, redigiu o projeto para a instrução pública e um esboço de Constituição. Não foram adotados, mas se tornaram modelos para democracias do futuro. Com a radicalização política ocorrida na sequência da Revolução Francesa, Condorcet foi acusado de traição por ter criticado um novo projeto constitucional. Perseguido, escondeu-se por oito meses na casa de uma amiga, onde escreveu Esboço de um Quadro Histórico dos Progressos do Espírito Humano. Descoberto, foi levado à prisão em 1794, onde morreu misteriosamente dois dias depois.

Educação em graus e baseada em estatísticas

Outros projetos para a instrução pública apresentados à Assembleia Constituinte defendiam diferentes currículos para diferentes alunos, tendo em conta o meio social e o provável futuro profissional deles. No "antigo regime", seguindo uma tradição de séculos, a Educação formal dava aos ricos os meios de ilustração do espírito, reservando aos pobres o aprendizado dos ofícios artesanais.

Condorcet, ao contrário, dava à Matemática e à Ciência um peso especial e defendia que fossem aprendidas por todos. "Que cem homens medíocres façam versos, cultivem a literatura e a língua, daí não resulta nada para ninguém; mas que vinte se divirtam fazendo experiências e observações, eles provavelmente acrescentarão alguma coisa à massa dos conhecimentos", escreveu o pensador.

Condorcet planejou uma escolarização em graus. Cada cidade teria uma escola de primeiro grau de quatro anos. Num primeiro momento, o segundo grau ficaria a cargo de instituições em regiões-polo, que centralizariam o atendimento. Já os poucos cursos superiores estariam nos centros mais populosos. Conforme os professores se formassem e se criasse um bom contingente, novas escolas seriam abertas, ampliando a oferta em cada nível.

"A ideia era promover a progressiva inclusão das gerações ao mundo do conhecimento", diz Carlota Boto, da USP. "Condorcet chegava inclusive a estabelecer cálculos para saber quantas crianças provavelmente chegariam a galgar todos os degraus da instrução."

Os caminhos de Condorcet

Unidos pela fé... no conhecimento




ENSINO ESCLARECIDO


Pintada nas telas da época, a luz da razão inspirou Condorcet
Foto: ReproduçãoCondorcet foi um dos últimos iluministas, o grupo de pensadores franceses que acreditava, acima de tudo, no poder do conhecimento. A origem do termo iluminismo se refere justamente às "luzes" da razão que tirariam o homem dos domínios da superstição e da ignorância. Grande parte dos filósofos iluministas, Condorcet inclusive, esteve envolvida no projeto da Enciclopédia (que continha ilustrações como esta, à esquerda) organizada por Denis Diderot (1713-1784) e Jean D’Alembert (1717-1783) e que contou também com a colaboração do suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Ele e Condorcet foram os principais pensadores da Educação do período. Nos Estados Unidos, os fundadores da nação adotaram ideias muito semelhantes. Um deles, Benjamin Franklin (1706-1790), foi correspondente do marquês, com quem compartilhava o interesse pelas ciências.

A divisão de funções na época da industrialização na Europa preocupava Condorcet, que via a Educação como um remédio para a estupidez que a repetição de tarefas poderia gerar. A ideia era a da fé no progresso do espírito humano. "Ele acreditava que o presente tende a ser melhor do que o passado", diz Carlota Boto, da USP. "Os iluministas chamavam isso de perfectibilidade, e a Educação era a grande estratégia para alcançá-la."
Quer saber mais?

BIBLIOGRAFIA
A Escola do Homem Novo, Carlota Boto, 207 págs., Ed. Unesp, tel. (11) 3242-7171 (edição esgotada)
Cinco Memórias sobre a Instrução Pública, Condorcet, 264 págs., Ed. Unesp, 39 reais
Ilustração e História, Maria das Graças de Souza, 250 págs., Discurso Editorial/Fapesp, tel. (11) 3814-5383 (edição esgotada)
Origens da Educação Pública, Eliane Marta Teixeira Lopes, 152 págs., Ed. Argumentum, tel. (31) 3212-4197, 30 reais

Revista Nova Escola

Declaração dos direitos da mulher e da cidadã - 1791

Olympe de Gouges

(França, Setembro de 1791)


Este documento foi proposto à Assembléia Nacional da França, durante a Revolução Francesa (1789-1799). Marie Gouze (1748-1793), a autora, era filha de um açougueiro do Sul da França, e adotou o nome de Olympe de Gouges para assinar seus planfletos e petições em uma grande variedade de frentes de luta, incluindo a escravidão, em que lutou para sua extirpação. Batalhadora, em 1791 ela propõe uma Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã para igualar-se à outra do homem, aprovada pela Assembléia Nacional. Girondina, ela se opõe abertamente a Robespierre e acaba por ser guilhotinada em 1793, condenada como contra revolucionária e denunciada como uma mulher "desnaturada".

PREÂMBULO

Mães, filhas, irmãs, mulheres representantes da nação reivindicam constituir-se em uma assembléia nacional. Considerando que a ignorância, o menosprezo e a ofensa aos direitos da mulher são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção no governo, resolvem expor em uma declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados da mulher. Assim, que esta declaração possa lembrar sempre, a todos os membros do corpo social seus direitos e seus deveres; que, para gozar de confiança, ao ser comparado com o fim de toda e qualquer instituição política, os atos de poder de homens e de mulheres devem ser inteiramente respeitados; e, que, para serem fundamentadas, doravante, em princípios simples e incontestáveis, as reivindicações das cidadãs devem sempre respeitar a constituição, os bons costumes e o bem estar geral.

Em conseqüência, o sexo que é superior em beleza, como em coragem, em meio aos sofrimentos maternais, reconhece e declara, em presença, e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos da mulher e da cidadã:

Artigo 1º

A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem. As distinções sociais só podem ser baseadas no interesse comum.

Artigo 2º

O objeto de toda associação política é a conservação dos direitos imprescritíveis da mulher e do homem Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e, sobretudo, a resistência à opressão.

Artigo 3º

O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação, que é a união da mulher e do homem nenhum organismo, nenhum indivíduo, pode exercer autoridade que não provenha expressamente deles.

Artigo 4º

A liberdade e a justiça consistem em restituir tudo aquilo que pertence a outros, assim, o único limite ao exercício dos direitos naturais da mulher, isto é, a perpétua tirania do homem, deve ser reformado pelas leis da natureza e da razão.

Artigo 5º

As leis da natureza e da razão proíbem todas as ações nocivas à sociedade. Tudo aquilo que não é proibido pelas leis sábias e divinas não pode ser impedido e ninguém pode ser constrangido a fazer aquilo que elas não ordenam.

Artigo 6º

A lei deve ser a expressão da vontade geral. Todas as cidadãs e cidadãos devem concorrer pessoalmente ou com seus representantes para sua formação; ela deve ser igual para todos.
Todas as cidadãs e cidadãos, sendo iguais aos olhos da lei devem ser igualmente admitidos a todas as dignidades, postos e empregos públicos, segundo as suas capacidades e sem outra distinção a não ser suas virtudes e seus talentos.

Artigo 7º

Dela não se exclui nenhuma mulher. Esta é acusada., presa e detida nos casos estabelecidos pela lei. As mulheres obedecem, como os homens, a esta lei rigorosa.

Artigo 8º

A lei só deve estabelecer penas estritamente e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada às mulheres.

Artigo 9º

Sobre qualquer mulher declarada culpada a lei exerce todo o seu rigor.

Artigo 10

Ninguém deve ser molestado por suas opiniões, mesmo de princípio. A mulher tem o direito de subir ao patíbulo, deve ter também o de subir ao pódio desde que as suas manifestações não perturbem a ordem pública estabelecida pela lei.

Artigo 11

A livre comunicação de pensamentos e de opiniões é um dos direitos mais preciosos da mulher, já que essa liberdade assegura a legitimidade dos pais em relação aos filhos. Toda cidadã pode então dizer livremente: "Sou a mãe de um filho seu", sem que um preconceito bárbaro a force a esconder a verdade; sob pena de responder pelo abuso dessa liberdade nos casos estabelecidos pela lei.

Artigo 12

É necessário garantir principalmente os direitos da mulher e da cidadã; essa garantia deve ser instituída em favor de todos e não só daqueles às quais é assegurada.

Artigo 13

Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração, as contribuições da mulher e do homem serão iguais; ela participa de todos os trabalhos ingratos, de todas as fadigas, deve então participar também da distribuição dos postos, dos empregos, dos cargos, das dignidades e da indústria.

Artigo 14

As cidadãs e os cidadãos têm o direito de constatar por si próprios ou por seus representantes a necessidade da contribuição pública. As cidadãs só podem aderir a ela com a aceitação de uma divisão igual, não só nos bens, mas também na administração pública, e determinar a quantia, o tributável, a cobrança e a duração do imposto.

Artigo 15

O conjunto de mulheres igualadas aos homens para a taxação tem o mesmo direito de pedir contas da sua administração a todo agente público.

Artigo 16

Toda sociedade em que a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição. A Constituição é nula se a maioria dos indivíduos que compõem a nação não cooperou na sua redação.

Artigo 17

As propriedades são de todos os sexos juntos ou separados; para cada um deles elas têm direito inviolável e sagrado. Ninguém pode ser privado delas como verdadeiro patrimônio da natureza, a não ser quando a necessidade pública, legalmente constatada o exija de modo evidente e com a condição de uma justa e preliminar indenização.

CONCLUSÃO

Mulher, desperta. A força da razão se faz escutar em todo o Universo. Reconhece teus direitos. O poderoso império da natureza não está mais envolto de preconceitos, de fanatismos, de superstições e de mentiras. A bandeira da verdade dissipou todas as nuvens da ignorância e da usurpação. O homem escravo multiplicou suas forças e teve necessidade de recorrer às tuas, para romper os seus ferros. Tornando-se livre, tornou-se injusto em relação à sua companheira.


FORMULÁRIO PARA UM CONTRATO SOCIAL ENTRE HOMEM e MULHER


Nós, __________ e ________ movidos por nosso próprio desejo, unimo-nos por toda nossa vida e pela duração de nossas inclinações mútuas sob as seguintes condições: Pretendemos e queremos fazer nossa uma propriedade comum saudável, reservando o direito de dividi-la em favor de nossos filhos e daqueles por quem tenhamos um amor especial, mutuamente reconhecendo que nossos bens pertencem diretamente a nossos filhos, de não importa que leito eles provenham (legítimos ou não)e que todos, sem distinção, têm o direito de ter o nome dos pais e das mães que os reconhecerem, e nós impomos a nós mesmos a obrigação de subscrever a lei que pune qualquer rejeição de filhos do seu próprio sangue (recusando o reconhecimento do filho ilegítimo). Da mesma forma nós nos obrigamos, em caso de separação, a dividir nossa fortuna, igualmente, e de separar a porção que a lei designa para nossos filhos. Em caso de união perfeita, aquele que morrer primeiro deixa metade de sua propriedade em favor dos filhos; e se não tiver filhos, o sobrevivente herdará, por direito, a menos que o que morreu tenha disposto sobre sua metade da propriedade comum em favor de alguém que julgar apropriado. (Ela, então, deve defender seu contrato contra as inevitáveis objeções dos "hipócritas, pretensos modestos, do clero e todo e qualquer infernal grupo").
USP