sexta-feira, 28 de agosto de 2009

A Lei de Terras de 1850


A Lei de Terras de 1850
e a reafirmação do poder básico do Estado sobre a terra

José Luiz Cavalcante
Introdução

O século XIX inicia-se marcado pelas transformações do sistema capitalista mundial, que aos poucos deixava de se basear numa economia comercial e avançava para uma economia industrial. Esse processo vai apresentar modificações no cenário das relações socioeconômicas em vários países, trazendo novas práticas para a obtenção de lucros.

As nações industrializadas, como a Inglaterra e a França, buscavam matérias-primas, fonte de energia para suas indústrias e mercado consumidor para seus produtos fabricados. A expansão dos mercados e o desenvolvimento do capitalismo resultaram em alterações nas relações políticas e econômicas dos países industrializados, pois estes começaram a impor aos países pobres condições para se adequarem ao sistema. Podemos tomar como exemplo as pressões feitas pela Inglaterra para o fim do monopólio comercial que alguns países possuíam em suas colônias.

Nesse sentido, várias discussões geradas pelas modificações econômicas e comerciais entraram na pauta mundial. Entre elas, a questão da terra. Segundo Emilia Viotti da Costa, as transformações na economia mundial provocaram uma reavaliação da política da terra, e em diferentes países foram decretadas leis em torno desta questão. No século XIX, a terra passou a ser incorporada à economia comercial, mudando a relação do proprietário com este bem.

A terra, nessa nova perspectiva, deveria transformar-se em uma valiosa mercadoria, capaz de gerar lucro, tanto por seu caráter específico quanto por sua capacidade de gerar outros bens. Procurava-se atribuir à terra um caráter mais comercial e não apenas um status social, como era característico da economia dos engenhos do Brasil colonial.

Esse assunto no Brasil seria alvo de inúmeros debates, pois o país havia herdado do período colonial uma situação extremamente confusa sobre a questão das terras, o que acarretaria a criação da Lei 601 de 1850, chamada Lei de Terra de 1850.

Na primeira metade do século XIX, a presença da industrialização ainda era um pouco tímida, a economia brasileira baseava-se num sistema agrário arcaico, dependente da exportação de um produto primário – o café – e baseado no trabalho escravo. O tráfico negreiro, devido às pressões internacionais contrárias a esta prática, estava vivendo seu fim gradativo; até que, em 1850, a Lei Eusébio de Queirós aboliu definitivamente o tráfico do cenário nacional. Tornava-se necessário, então, pensar na substituição do trabalho escravo. Este seria um dos argumentos utilizados nos debates que girariam em torno das novas formas de distribuição da terra no Brasil.

Portanto, havia uma necessidade de ordenação jurídica, pois era necessário revalidar as concessões de sesmaria e legitimar a posse, prática que crescia desordenada no final período colonial. Junto dessas preocupações havia uma outra, conseqüência da escassez do braço escravo.

Apesar de não serem primordiais, as polêmicas sobre as mudanças na forma da aquisição da terra e a substituição da mão-de-obra escrava estarão relacionadas nas formulações das políticas sobre a terra, pelo menos no Brasil, pois de ambas dependiam o desenvolvimento econômico.

Formulações de políticas em torno da terra

Quando se iniciou a ocupação em território brasileiro, umas das medidas tomadas para a distribuição de terras foi a adoção do regime de sesmarias, que perdurou por todo o período colonial. No final do século XVIII, disseminava a aquisição da terra por posse.

A origem do posseiro remonta-se ao início do período colonial, porém sua maior representatividade será no século XVIII. No entanto, foi durante o período que vai de “1822 até 1850, [que] a posse se tornou a única forma de aquisição de domínio sobre as terras, ainda que apenas de fato, e é por isso que na história da apropriação territorial esse período ficou conhecido como a ‘fase áurea do posseiro’”.[*1]

As concessões de sesmarias eram feitas, devendo os sesmeiros cumprir determinadas obrigações; entre elas a de comprometer-se a cultivar a terra. Entretanto, muitos sesmeiros não cumpriram com esse acordo, e esse precedente possibilitou o surgimento do posseiro, que passou a ocupar e a cultivar as terras improdutivas.

Num primeiro momento, o posseiro, na figura do pequeno lavrador, surgia como uma grande ameaça ao regime de sesmaria. Todavia, ao longo dos anos, este passou a se figurar no grande fazendeiro, fazendo assim com que muitos sesmeiros assumissem o papel de posseiros.

Para a organização política do país, essa situação gerou um caos, pois se perdia o controle da distribuição de terra, fato que motivou inúmeros debates. O primeiro personagem a levantar esse questionamento foi José Bonifácio de Andrada e Silva. Bonifácio foi um dos primeiros a apresentarem um projeto para revalidação das concessões de sesmaria e para a regularização das posses. Segundo ele, não era possível apenas terminar com o regime de sesmarias, sem antes criar políticas para normalizar as terras.

Em 1821, José Bonifácio considerava fundamental uma nova legislação sobre a sesmaria. Afirmava que as terras concedidas por sesmaria, mas não cultivadas, deveriam retornar ao patrimônio nacional, deixando-se aos donos meia légua quadrada, quando muito, sob a condição de logo cultivá-las. Defendia também a regularização das terras adquiridas por posse dizendo que seus donos deveriam perdê-las caso não as cultivassem dentro de um prazo fixo determinado, com exceção dos terrenos cultivados com mais de 400 braças para estender a sua cultura. Além disso, incluía uma política de venda de terras e a proibição de novas doações, a não ser em caso específicos. Em seu projeto, José Bonifácio propunha também beneficiar os europeus pobres, os índios, os mulatos e os negros forros. Porém, esse projeto jamais saiu do papel.

As propostas de José Bonifácio feriam claramente os interesses dos sesmeiros ou grandes posseiros, pois os obrigavam a cultivar as suas respectivas terras, bem como os proibiam de adquirir novas extensões através da tradicional política de doação ou apropriação de terras. Tratava-se de um projeto de intervenção pública na distribuição de terras e, portanto, limitava o poder dos senhores e possuidores de terras, que estariam submetidos aos interesses mais gerais da coroa. Suas propostas não foram levadas adiante, pois Bonifácio teve de se afastar da política junto com todos os integrantes do partido brasileiro.

Somente com a resolução de 17 de julho de 1822 é que foi suspensa a concessão de sesmarias pelo então príncipe regente D. Pedro. Nesse momento, o posseiro passa a ter uma importância social, pois a resolução o reconhecia como parte integrante no desenvolvimento da agricultura, e muitos viam no regime de sesmaria o responsável pela miséria e pelo atraso da agricultura do país. Não se permitiam novas concessões de sesmaria, nem se admitiam as novas posses, porém reconheciam aquelas ocorridas antes da resolução.

Apesar da resolução, os problemas relacionados ao controle da aquisição de terras não foram resolvidos, pois novas concessões continuavam a ser efetuadas e o número de posseiros crescia sem controle algum.

Passados sete anos da criação do projeto de Bonifácio, surgia no cenário outro personagem, o padre Diogo Feijó, responsável por outro projeto sobre a questão da terra. Com sua proposta, pretendia democratizar o acesso à terra e também lidar com a questão da defesa do direito de propriedade, para que fosse possível deter ou pelo menos minimizar os efeitos da concentração fundiária.

Feijó pretendia legitimar as posses dos sesmeiros, porém era necessário que estes as detivessem por um período superior a dez anos e que estas não apresentassem contradição com a apresentação do título valioso (comprimento da medição e demarcação a área a ter sido cultivada). Os sesmeiros estavam obrigados a aproveitar suas terras ou vendê-las, caso não as cultivassem dentro de um prazo de cinco anos. No projeto de Feijó, o parcelamento das terras devia basear-se na unidade familiar; em outras palavras, era a consolidação de pequenas unidades familiares, que aumentavam à medida que crescia o número de seus componentes, incluindo aí os escravos. Os que se beneficiaram com o projeto de Feijó eram todos cidadãos emancipados.

Os projetos de Bonifácio e Feijó visavam estimular a imigração. A preocupação de ambos era conter os abusos de sesmeiros e dos grandes posseiros, que incorporavam extensas glebas de terras, mas não as cultivavam.

Em 1835, quando Feijó foi eleito o único regente, as questões sobre as terras ficaram em segundo plano, devido às diversas conturbações sociais: revolta dos Cabanos (Pará), dos Balaios (Maranhão) e agitações da Praieira (Pernambuco).

Ainda assim, algumas medidas foram colocadas em prática. Em 1838, a Câmara indicou uma comissão encarregada de fazer um levantamento das terras devolutas. Em julho de 1842, o Governo Imperial solicitou à Seção dos Negócios do Império do Conselho de Estado que formulasse modificações e critérios para a obtenção de terras no Brasil. A proposta visava regularizar as concessões de sesmaria e a política de colonização.

Os autores do projeto de lei – Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Cesário de Miranda Ribeiro – juntaram as duas questões. O principal objetivo desse projeto era promover a imigração de trabalhadores pobres, em razão da insuficiência de trabalho escravo. Visava também proibir novas concessões de terras, bem como reconhecia todas as posses tomadas depois da resolução de 1822.

Apresentado em 1843 para a apreciação dos deputados do império, com algumas modificações, o projeto apresentava o seguinte:

Regularização da propriedade territorial:

- Revalidar as sesmarias caídas em comisso (ou seja, que não cumpriram as condições de doação);
- Legitimar as posses de período superior a um ano e um dia e que não ultrapassem meia légua quadrada no terreno de cultura e duas léguas nos campos de criação;
- Registrar e demarcar as posses num prazo de seis meses. Após esse prazo, aplicar multa e, caso após seis anos, não tivessem sido demarcadas nem registradas, seriam incorporadas ao Estado.
Atribuições do Estado:

- Imposto territorial anual, cultivados ou não;
- Taxa de revalidação das sesmarias e legitimação das posses;
- Promoção, pelo governo imperial, da venda de terras devolutas, em porções nunca inferiores a um ¼ de légua quadrada e reserva de terras para a colonização indígena e construção naval;
- Proibição de novas concessões de sesmaria, somente terras na faixa de 30 léguas da fronteiras;
- Proibição de novas posses.
Colonização Estrangeira:

- Os recursos, assim como os impostos arrecadados nas vendas de terras, serviriam para financiar a vinda de “colonos livres”.[*2]
Esse projeto foi aprovado na Câmara, apesar de contrariar alguns deputados, pois não foi aplicado, ficando esquecido durante sete anos, enquanto o gabinete ministerial esteve nas mãos dos liberais. Somente quando os conservadores assumem novamente é que são retomadas essas discussões, que seriam embrionárias para a promulgação da Lei 601, de 1850.

A LEI DE TERRA DE 1850

O ano da criação da Lei de Terra coincide com o da Lei Eusébio de Queirós, que determinava a proibição do tráfico de escravos em território brasileiro. É importante destacar que essa lei não causou impacto imediato na disponibilidade da mão-de-obra cativa, pois entre 1840 e 1850 entraram no país cerca 500.000 escravos,[*3] e as culturas tradicionais (cana-de-açúcar, algodão e tabaco) da região norte do país viviam seu momento de decadência, ocasionando a liberação de seus cativos para o centro-sul do país, onde a economia efervescia, gerando um tráfico interprovincial.

O fim do tráfico permitiu a existência de investimentos em outras atividades econômicas (bancos, ferrovias, etc.), contribuindo para a adaptação da sociedade brasileira às exigências do capitalismo. Portanto era necessário que o escravo deixasse de ser uma mercadoria rentável e que a terra assumisse esse papel o mais breve possível.

A substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre deveria ser realizada de forma gradativa, porém a grande preocupação era a respeito de quem financiaria a vinda de trabalhadores imigrantes para assumir as lavouras. Entre tantas discussões, levantou-se a possibilidade de que a venda de terras propiciaria subsídios para custear a aquisição de mão-de-obra.

A Lei de Terra de 1850 teve seu diferencial em alguns aspectos em relação ao projeto apresentando em 1843, apesar de ainda apresentar dois de seus grandes problemas: a regularização territorial e a imigração. A partir da criação dessa lei, a terra só poderia ser adquirida através da compra, não sendo permitidas novas concessões de sesmaria, tampouco a ocupação por posse, com exceção das terras localizadas a dez léguas do limite do território. Seria permitida a venda de todas as terras devolutas. Eram consideradas terras devolutas todas aquelas que não estavam sob os cuidados do poder público em todas as suas instâncias (nacional, provincial ou municipal) e aquelas que não pertenciam a nenhum particular, sejam estas concedidas por sesmarias ou ocupadas por posse.

No período colonial, o termo “terra devoluta” era empregado para designar a terra cujo concessionário não cumpria as condições impostas para sua utilização, o que ocasionava a sua devolução para quem a concedeu: a Coroa. Com o tempo, esse termo passou a ter o significado de vago.

Esses dois significados são confundidos na lei, pois todas as terras não ocupadas ou não cultivadas (condição do concessionário) deveriam ser tratadas como terras devolutas e, portanto, pertencentes ao patrimônio nacional.

No caso da posse, seriam regularizadas todas as terras cultivadas ou com algum princípio de cultura e que constituíssem a morada habitual do posseiro. Era também necessário demarcar e medir suas terras, em prazo a ser fixado. No caso de não cumprimento dessas determinações, a legitimação da posse não seria efetuada. O posseiro apenas recebia o título da posse, porém não se tornava o proprietário. Se houvesse posses localizadas no interior ou nas limitações de alguma sesmaria, seria reconhecido como proprietário aquele que realizou as benfeitorias.

A lei não só proibia a posse como também declarava que “os simples roçados, queimas de mato ou campos, levantamento de ranchos ou outros atos de semelhante natureza” não eram considerados como tal.[*4]

No que diz respeito à imigração, a lei determinava a permissão de venda de terras aos estrangeiros e, caso houvesse interesse, estes poderiam se naturalizar. Mas, como se sabe, as terras eram vendidas por um preço relativamente alto, dificultando a aquisição por parte dos colonos.

Antes da promulgação da Lei de Terras, os lotes eram cedidos gratuitamente aos colonos, que se instalavam por conta própria, por conta do governo ou por conta das companhias de colonização. Após essa lei, em regra, o governo cedia gratuitamente as terras às companhias que, por sua vez, as revendiam aos imigrantes em condições lucrativas.[*5] Estabelece ainda ao Estado o direito de reservar terras para a colonização indígena, para a fundação de povoamentos, para aberturas de estradas, para a fundação de estabelecimentos públicos e para a construção naval. Tratava-se de um aparato para assegurar o controle da terra pelo poder público.

Em pouco mais de vinte artigos, a Lei de Terra de 1850 tentou corrigir os erros cometidos pelo Brasil durante o período colonial (nas concessões de sesmarias) e início da independência até sua promulgação (o crescimento do número de posseiros) e, dentro das possibilidades, promover a imigração a fim de substituir o trabalho escravo. A Lei de Terra de 1850 é significativa no que se refere à ocupação da terra no Brasil, pois a partir dela a terra deixou de ser apenas um privilégio e passou a ser encarada como uma mercadoria capaz de gerar lucros.

O REGULAMENTO DE 1854

Após quatro anos de sua promulgação, a Lei de Terra seria regulamentada e executada através do decreto 1318, de 30 de janeiro de 1854.

O regulamento determinava que a partir de um prazo a ser fixado, todos os possuidores deveriam registrar suas terras. Para realizar esse registro, deveriam procurar a paróquia onde se localizavam suas terras.

Utilizando-se dos registros paroquiais de terra – a Igreja era vista como um meio de divulgação, pois estava presente nas diferentes localidades do país –, o proprietário era obrigado a registrar sua terra: “os vigários paroquiais eram responsáveis de receber as declarações com duas cópias, possuindo, o nome da terra possuída; designação da freguesia em que está situada; o nome particular da situação, se o tiver; sua extensão se for conhecida e seus limites”.[*6]

Para sistematizar e organizar a posse das terras públicas, o governo imperial criou a Repartição Geral das Terras Públicas – órgão responsável por dirigir a medição, dividir e descrever as terras devolutas e prover sua conservação. Essa repartição era subordinada ao Ministério da Agricultura do Império. O regulamento também determinava a criação de um órgão responsável para tais realizações nas províncias.

Nas províncias, cria-se o cargo de juiz comissário de medição e a Repartição Especial das Terras Públicas. O juiz comissário era nomeado pelo presidente da província e não tinha o direito de recusar o cargo; pois, se isso ocorresse, poderia ser multado. A repartição especial era constituída pelo diretor geral (nomeado por decreto imperial), pelo fiscal tesoureiro, pelos oficiais, pelos amanuenses e pelos porteiros-arquivistas. Também cabia à repartição criar os distritos de medição, compostos pelo inspetor geral das medições (nomeado pelo governo imperial sob proposta do diretor geral), pelos escreventes, pelos desenhistas e pelos agrimensores.

A atribuição do juiz comissário era autorizar as medições e as demarcações das terras já registradas nas paróquias. Os juízes só poderiam realizar esse serviço caso este fosse requisitado pelo ocupante da terra. Após a requisição, o juiz a transmitia à repartição especial, que executaria o serviço. Pouco se fez em relação às medições e às demarcações, pois, como dependiam dos particulares para executar o serviço, a procura não ocorria com vigor.

A Repartição Geral de Terras Públicas e as repartições especiais nas províncias foram extintas em 1861, quando foi criado o Ministério de Agricultura, Comércio e Obras.

Em 1874, cria-se uma comissão do Registro Geral e de Estatística das Terras Públicas, que pouco realizou e logo foi extinta. Somente em 1876 foi criada a Inspetoria de Terras e Colonização, que perdurou até o final do Império.

De acordo com Thomas H. Holloway,[*7] a Lei de 1850 e sua regulamentação, em 1854, foram um fracasso. Poucas sesmarias foram revalidadas ou posses foram legitimadas, conforme exigia lei. O governo imperial abandonou a inspeção de terras públicas em 1878, depois de ter realizado pouquíssimo para impor a lei.

Vale ressaltar que a Lei de Terra é mais um processo de discussão dos vários grupos políticos que davam sustentação ao Império, e seu resultado, em momento algum, teve o objetivo de interferir nos interesses dessa elite política e econômica, constituída em grande parte por fazendeiros. A terra continuou a ser adquirida sem o controle do Estado, sob a proteção de documentos forjados. Apenas após a Proclamação da República é que a Lei de Terra foi revista.

Somente a província de São Pedro do Rio Grande do Sul (RS), apresentou mais informações sobre o serviço de terra (pelo menos em documentos apresentados). Acredita-se que o ocorrido deveu-se ao fato desta ter sido a região mais procurada por parte do imigrante, fazendo com que os possuidores de terra providenciassem a sua regularização imediata, a fim de efetuarem prováveis negócios. A diferença entre São Paulo e Rio Grande do Sul é que neste houve uma imigração formada por pequenos núcleos (pequena propriedade) e, naquele, a chamada imigração particular foi mais intensa.

No decorrer desse processo, mostrou-se que o trabalho do imigrante não substituiu por completo o trabalho do escravo e essa substituição só ocorreria de fato no final do século XIX e início do XX. Pelo contrário, tornou-se mais intenso o tráfico interno de indivíduos provenientes das regiões da agricultura decadente, sobretudo do Nordeste, que vieram para as regiões Sul e Sudeste. A região Sudeste, devido às grandes fazendas de café, que eram responsáveis pelo crescimento econômico do país, recebeu grande parte desses escravos. Além disso, a província de São Paulo foi a única capaz de financiar a contratação de mão-de-obra estrangeira por conta própria, pois a concentração da produção cafeeira havia lhe dado um grande impulso; enquanto as outras províncias dependiam dos cofres do Império para esse fim.

Sendo assim, podemos concluir que a Lei de Terras só fez reafirmar e estimular a tradição latifundiária brasileira.

Bibliografia

BRASIL. Actos do Poder Legislativo. 1850. (Coleção Leis do Brasil).
COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Editorial Grijalbo, 1977.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Porto Alegre: Globo, 1976, v. 1.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2001.
GADELHA, Regina M. D’Aquino Fonseca. A lei de terra (1850) e a abolição da escravidão, capitalismo e força de trabalho no Brasil do século XIX. Revista de História, São Paulo, n.º 120, pp. 153-162, jan./jul. 1989.
GUIMARÃES, Gilberto Passos. Quatro séculos de latifúndios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
HOLLOWAY, Thomas H. Imigrantes para o café: café e sociedade em São Paulo, 1886-1934. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
LIMA, Ruy Cirne. Pequena História territorial do Brasil: sesmaria e terras devolutas. São Paulo: Arquivo do Estado, 1991.
MONTELLATO, Andrea Rodrigues Dias (et al.). História temática: terra e propriedade (7ª série). São Paulo: Scipione, 2000.
MOTTA, Márcia M. Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Rio de Janeiro, 1998.
PIRES, Célia Maria Carolino (org.). Parâmetros curriculares nacionais: história. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental, 1998.
SILVA, Ligia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

Revista HISTÓRICA - Arquivo Público do Estado de São Paulo

Um terremoto chamado Pombal


Um terremoto chamado Pombal
Reformador do ensino, incentivador do comércio, perseguidor dos jesuítas e da nobreza, ele não deixou pedra sobre pedra do antigo Portugal.
Francisco Falcon

Amado ou odiado, só não dá para ignorá-lo. Partidários e opositores do marquês de Pombal digladiaram-se ao longo dos séculos XIX e XX. Os dois lados têm bons argumentos.

Administrador incansável e ilustrado, autoritário, não raro vingativo, o homem forte de Portugal num tempo de grandes transformações deixou seu nome e sua trajetória para o sempre polêmico veredicto da História.

Sebastião José de Carvalho e Melo nasceu em Soure, no norte de Portugal, em 13 de maio de 1699. Pertencia a uma família da pequena nobreza, sem grandes recursos. É provável, embora controverso, que tenha estudado leis em Coimbra e depois passado boa parte da sua juventude na província, dividido entre trabalhos rurais e processos jurídicos locais. Após a morte do pai, Manuel de Carvalho e Ataíde, em 1720, ficou sete anos administrando a propriedade da família. Aos 23 anos, deu o primeiro sinal da impetuosidade que marcaria suas futuras ações públicas: raptou e desposou D. Teresa de Noronha, viúva dez anos mais velha, pertencente à orgulhosa família dos condes dos Arcos. A família da esposa jamais o aceitaria.

A carreira de Carvalho e Melo começou na década de 1730, valendo-se bastante do prestígio e da fortuna do tio Paulo de Carvalho e Ataíde, professor da Universidade de Coimbra, depois nomeado arcipreste em Lisboa. Dele herdou, em 1737, um morgado – tipo de propriedade familiar inalienável – constituído de diversos bens em Sintra e Oeiras, prédios alugados em Lisboa e 504 mil cruzados. No ano seguinte, o tio recomendou-o ao cardeal D. João da Mota, primeiro-ministro do rei D.João V, o que lhe valeu a nomeação para uma missão diplomática em Londres.

Na capital britânica, seu primo Marco Antonio de Azevedo Coutinho, recém-nomeado secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra em Lisboa, deu-lhe informações minuciosas sobre as características do governo local e as perspectivas dos interesses lusos. A leitura de autores ingleses sobre as estratégias mercantilistas o inspirou a produzir uma volumosa quantidade de relatórios e textos político-econômicos. Também se interessou pelo papel de judeus e cristãos-novos (judeus convertidos ao cristianismo) no comércio internacional, sobretudo na área das pedras preciosas. Chegou a organizar uma rica biblioteca hebraica.

Nomeado para a Corte de Viena, onde chegou em 1745, testemunhou um Estado em processo de amplas reformas na direção do chamado despotismo esclarecido – método de governo que aliava o poder absoluto dos reis à influência de ideais iluministas. Mas Sebastião José não perdia de vista seus interesses particulares. Viúvo desde 1739, contou com a amizade de Manuel Teles da Silva – nomeado duque da Silva-Tarouca pelo imperador Carlos VI –, e mais tarde foi confidente da imperatriz Maria Teresa da Áustria. Em 1746 casou-se com Maria Leonor, condessa de Daun, cuja mãe era dama da imperatriz. Ganhou assim seu primeiro título de nobreza: tornou-se conde de Daun.

Retornou a Lisboa em 1749, já nos meses derradeiros do reinado de D. João V. Os partidários do rei o detestavam: era visto como um estrangeirado, considerado ambicioso e vaidoso. Com a morte de D. João, em julho de 1750, foi nomeado pelo novo monarca, D. José I, para a Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Iniciava-se um período de 27 anos no topo do poder.

Pombal logo adotou medidas radicais para enfrentar o declínio dos rendimentos coloniais. A produção e a exportação de açúcar, couros, ouro e diamantes foram objeto de novos regulamentos destinados a aumentar o controle da metrópole, evitar fraudes e, no caso dos produtos agrícolas, elevar os preços, numa conjuntura de baixa no mercado internacional. Em 1755, uma tragédia elevaria sua liderança a níveis decisivos: o terremoto que vitimou milhares de pessoas e arruinou Lisboa. Suas providências foram imediatas, no sentido de reconstruir a cidade o mais depressa possível. Atribuiu-se a ele uma ordem que ficou célebre: “Enterrar os mortos e cuidar dos vivos”. Revelava-se, aos olhos de D. José, o verdadeiro homem forte do reino.

Como tal, impôs com violência exemplar o princípio da autoridade régia contra três setores da sociedade. Hostil ao seu projeto de criar companhias comerciais privilegiadas, parte da burguesia mercantil organizou os “motins do Porto” em 1757/1758. Foi duramente castigada, com várias condenações à morte (por enforcamento), à prisão e ao degredo perpétuo. A aristocracia, até então intocável, caiu em desgraça depois que o rei sofreu uma tentativa de assassinato em 1758. Alguns membros da alta nobreza foram responsabilizados pelo atentado, e a sentença foi implacável: toda a família Távora foi condenada à execução em praça pública, inclusive mulheres e crianças. Os Távora pertenciam à mais alta linhagem do reino, com direitos inclusive à sucessão do trono. Como também havia indícios da participação de padres jesuítas no complô, Pombal desferiu seu golpe definitivo contra aquela ordem religiosa: a Companhia de Jesus foi dissolvida e expulsa de Portugal e de seus domínios em 1759. A virulência com que reagiu ao episódio rendeu-lhe um novo título nobiliárquico: conde de Oeiras.

No início da década de 1760, preocupações militares dominavam as ações do governo devido ao conflito com a Espanha durante a Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Por isso, o conde de Oeiras teve que deixar em segundo plano um problema de importância fundamental para o futuro: a crise do ouro do Brasil, acompanhada do declínio dos preços e da produção de quase todos os artigos coloniais. Os rendimentos do Estado caíam de forma dramática, e a solução foi reforçar os privilégios mercantis e arrochar os impostos.

O primeiro-ministro se empenhou a fundo na reforma do ensino em todos os níveis, particularmente nos Estudos Menores (primeiras letras) e na Universidade de Coimbra. Suas reformas atingiram também a estrutura jurídica do reino, subordinando-a ao direito natural e das gentes, com grande impacto sobre o próprio ensino das leis em Coimbra. No campo religioso, converteu o Tribunal do Santo Oficio, ou da Inquisição, em tribunal de Estado. Por último, embora não menos importante, deve-se creditar a Pombal a série de leis, decretos e alvarás que aboliram as antigas discriminações que ainda pesavam sobre os cristãos-novos, eternos suspeitos de judaísmo, desde o século XVI.

Suas maiores honras lhe foram conferidas já no final da vida: em 1769, recebeu o título de marquês de Pombal. Mas com a morte de D. José I em 1777, a rainha D. Maria I, aliando-se aos seus muitos inimigos, expulsou-o do poder. Exilado em Pombal, viveu ali seus melancólicos últimos anos (ver box), morrendo em 1782.

Para o bem ou para o mal, a passagem de Sebastião José de Carvalho e Melo pelo poder foi um divisor de águas na História de Portugal.

Francisco José Calazans Falcon é professor da Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO), professor aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de A Época Pombalina (São Paulo: Ática, 1993, 2ª ed).

Saiba Mais - Bibliografia:

AZEVEDO, João Lúcio de. O Marquês de Pombal e a sua época. São Paulo: Alameda, 2004.

BESSA-LUÍS, Agustina. Sebastião José. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

MACEDO, Jorge Borges de. “Pombal”, verbete no Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão. Lisboa: Iniciativas Editoriais, vol. III, 1968.

MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal, Paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

Depois da queda

Velho e alquebrado, às voltas com doenças que o torturavam e o enfraqueciam a cada dia, o ex-ministro marquês de Pombal não teve sossego nem após se exilar em sua quinta, na cidade natal.

Logo se viu diante de uma saraivada de acusações, queixas e cobranças as mais diversas, oriundas de antigos desafetos – boa parte deles recém-saída dos cárceres da Junqueira, para onde ele os enviara vários anos antes. Tornou-se também o alvo preferido de dezenas e dezenas de poemas satíricos e outras peças literárias destinadas a ridicularizá-lo.

Como reagiu Pombal? Escrevendo muito, como era de seu feitio, o marquês utilizou as forças que ainda lhe restavam para defender-se das acusações e calúnias de seus inimigos. Ao mesmo tempo, redigiu longas exposições acerca das realizações por ele consideradas as mais importantes de sua administração. Os textos que escreveu em sua defesa, “contrariedades” apresentadas aos seus inimigos, ele chamou de Apologias. Às longas exposições de motivos e autoglorificação deu o título de Inspeções.

Nas Apologias misturam-se questões muito distintas: acusações ou simples suspeitas de enriquecimento ilícito, disputas políticas, reais ou supostas maquinações envolvendo a família real, um conflito com D. José d’Anunciação, bispo de Coimbra, e desconfianças quanto à sua religiosidade, ou melhor, ao seu catolicismo. Suspeitas também de alta traição, como seria o caso dos fatos mencionados na 14ª Apologia, intitulada “Sobre as calúnias de que a Praça d’Almeida e a Ilha de Santa Catarina se entregaram aos castelhanos por ordens particulares do Marquês de Pombal”. Pouco valor tiveram, porém, as minuciosas explicações e justificativas apresentadas por Pombal. Não descansavam os seus inimigos, com sucessivas demandas e novas acusações perante os tribunais. Irritado, o marquês perdeu a serenidade e, no afã de provar sua inocência, proclamou que todos os seus atos tinham sido resultado de total comunhão de idéias com o falecido rei D. José I. Foi então que se complicou seriamente: ao se declarar mero executor da vontade do monarca, isentava-se de culpa, mas ao preço da revelação de matérias que constituíam segredo de Estado.

Foi a deixa para que D.Maria I decretasse a abertura de processo contra o ex-ministro em 26 de setembro de 1779. Nos meses seguintes, foi inquirido diariamente por dois juízes, e somente em agosto de 1781 saiu o decreto declarando Pombal réu e merecedor de exemplar castigo. A rainha, no entanto, “lembrando-se mais da clemência que da justiça”, em atenção à idade e às doenças, e “porque o marquês lhe pedira perdão”, isentava o acusado das penas corporais, mas confirmava o desterro.

Poucos meses de vida restavam então ao outrora todo-poderoso ministro.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Mumificação no Egito antigo



Mumificação no Egito antigo
Por mais de 3 mil anos, cadáveres foram dissecados, desidratados e enfaixados
por Maria Carolina Cristianini
A expressão “a terra há de comer” não faria sentido para as pessoas com dinheiro no Egito antigo. Lá, acreditava-se no ka, uma força que continuava após a morte – desde que o corpo fosse bem conservado. Para isso, usava-se uma técnica inspirada no deserto. Após observar que a areia quente e o ar seco preservavam os mortos, os egípcios criaram um método de dissecação e mumificação acompanhado de um ritual religioso.

As primeiras múmias conhecidas são de 3000 a.C. Privilégio dos monarcas, 800 anos depois é que o processo se estendeu a qualquer um que pudesse pagar. E nem só humanos eram mumificados. Em janeiro, cães foram encontrados em El Faiyum, um oásis a 80 quilômetros do Cairo. “Era uma forma de homenagear animais de estimação”, explica o historiador Julio Gralha, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

As últimas múmias são do século 4 d.C.. A influência romana e o avanço do cristianismo podem ter encerrado a prática.



Rumo ao sarcófago
O processo tinha seis passos e demorava até 70 dias
1. Limpeza geral

O corpo era levado para tendas ao ar livre, em um lugar chamado Ibu (local de purificação), na margem oeste do rio Nilo, onde ficavam os cemitérios. Ali, era entregue a sacerdotes. Em uma mesa inclinada para coletar fluidos, era lavado com vinho de palma e água do rio.

2. Adeus, vísceras

O sacerdote Ut removia os órgãos por um corte do lado esquerdo do abdômen. Só sobrava o coração. Pulmões, intestinos, estômago e fígado iam para recipientes especiais.O resto era jogado no rio Nilo – incluindo o cérebro, que era retirado pelas narinas.

3. Guardiões

Os órgãos mais importantes eram armazenados em vasos. Eles representavam os quatro filhos de Hórus, deus dos céus: Duamutef (cachorro) cuidava do estômago; Qebehsenuf (falcão), dos intestinos; Hapi (babuíno), dos pulmões; e Amset (humano), do fígado.

4. Sal até as entranhas

Com o cadáver livre das vísceras, começava o processo de desidratação, feito com natrão, um tipo de sal mineral muito comum na região. O corpo era preenchido e envolvido com esse sal e permanecia assim por 40 dias.

5. Recheio seco

Após a desidratação, havia nova lavagem com água do Nilo e aplicação de substâncias aromáticas e óleos para aumentar a elasticidade da pele. Para não ficar deformado, o corpo era recheado com serragem e plantas secas. Só então recebia até 20 camadas de tiras de linho engomado.


Proteção no além
Os corpos eram enfaixados junto com diversos amuletos
Olho de Wadjet

Colocado na testa, garante proteção e apoio para a cabeça

Escaravelho

Impede que o coração se separe do corpo

Nó de Ísis

Colocado no peito, pede segurança para a deusa Ísis

Ankh

Ajuda a superar os obstáculos da outra vida

Revista Aventuras na Historia

Lenço no pescoço, samba no bolso


Lenço no pescoço, samba no bolso
Adepto da malandragem, Wilson Batista inscreveu seu nome no samba com muitas composições e uma famosa polêmica
Valdemar Valente Júnior

“Samba é como meretriz: de quem pagar mais”. Wilson Batista definia sua atividade sem meias palavras, admitindo a venda da autoria de seus sambas quando a situação apertava e ele ficava sem nenhum. E embora tenha sido um dos mais produtivos compositores do país, com mais de 700 canções, o pagamento nunca esteve à altura de sua arte. Viveu para a malandragem e morreu sem nada.

Desde pequeno, em Campos, sua cidade natal, no norte fluminense, Wilson já demonstrava versatilidade musical: compunha, tocava triângulo na banda Lira de Apolo e criava paródias de músicas conhecidas para o Bando Corbeille de Flores, do qual também era integrante. Tinha 16 anos quando se mudou com a família para o Rio de Janeiro, em 1929. Sua vida mudaria rapidamente.

Pouco dado ao trabalho e aos estudos, resolveu morar sozinho perto do bairro da Lapa, reduto de músicos e boêmios, passando a freqüentar as rodas nos bares e cafés do Largo da Lapa e da Praça Tiradentes. O teatro de revista era a principal vitrine musical de uma época em que o rádio ainda não tinha se firmado como canal de comunicação urbana, e para se aproximar do meio artístico, Wilson arranjou bicos como contra-regra e iluminador dos espetáculos. Foi assim que fez chegar à cantora Araci Cortes (1904-1985) o primeiro samba que compôs, “Na estrada da vida”. Era ainda 1929 quando ela apresentou ao público os versos “Todo homem carrega a sua cruz/ Na estrada da vida que é longa e sem luz”.

Da estréia no teatro de revista decorreu a gravação, em 1932, de “Por favor, vá embora” (parceria com Benedito Lacerda), cantada por Patrício Teixeira. No ano seguinte, Wilson Batista entrou numa polêmica que se tornou histórica, envolvendo outro grande nome da música: Noel Rosa.
No samba “Lenço no pescoço”, gravado por Sílvio Caldas, Wilson exalta a condição de malandro: “Eu tenho orgulho/ Em ser tão vadio/ Sei que eles falam/ Deste meu proceder/ Eu vejo quem trabalha/ Andar no miserê”. Em resposta, Noel Rosa compõe “Rapaz folgado”: “Malandro é palavra derrotista/ Que só serve para tirar/ Todo o valor do sambista”. A tréplica veio com “Mocinho da Vila”, uma clara referência ao desafeto: “Você que é mocinho da Vila (...) Injusto é seu comentário/ Fala de malandro/ Quem é otário”.

Daí se seguiu uma aparente trégua entre os compositores, mas ela só durou até 1935, quando “Feitiço da Vila” reacendeu a questão. Não pela letra original, um dos muitos sambas a exaltar um bairro da cidade, mas pelas provocações de Noel durante improvisos feitos no “Programa Casé”, veiculado pela Rádio Philips. O samba original ganhou os seguintes versos: “A zona mais tranqüila/ É a nossa Vila/ O berço dos folgados/ Não há um cadeado no portão/ Porque na Vila/ Não há ladrão”. A paródia teria a ver com a vida pessoal de Wilson, que havia sido preso várias vezes por furto e por vadiagem. Comentava-se no meio musical que Noel preparava uma série de novos sambas pondo lenha na fogueira. O revide de Wilson Batista veio no ato, com “Conversa fiada”: “É conversa fiada/ Dizerem que samba/ Na Vila tem feitiço (...) Antes de irem dormir/ Dêem duas voltas no cadeado”.

A irritação de Noel não tardou a se manifestar. Em 1936, Araci de Almeida gravou seu bombástico “Palpite infeliz”: “Pra que ligar a quem não sabe/ Aonde tem o seu nariz?/ Quem é você que não sabe o que diz?” Wilson ainda compôs dois sambas que ficaram sem resposta. Em “Frankenstein da Vila”, referia-se ao defeito físico de Noel, uma deformação no queixo provocada no parto: “Boa impressão nunca se tem/ Quando se encontra um certo alguém/ Que até parece o Frankenstein”. E em “Terra de cego” ironizava a melhor condição social do “Poeta da Vila”: “Perde a mania de bamba/ Todos sabem qual é/ O teu diploma no samba”.
Algum tempo depois, no restaurante O Leitão, na Lapa, os dois fizeram as pazes. Como era de se esperar, o encontro também deu em samba: Noel pôs nova letra na melodia de “Terra de cego”, que passou a se chamar “Deixa de ser convencida”.

Vítima de tuberculose, Noel morreu em maio de 1937, meses antes da entrada em vigor do Estado Novo de Getulio Vargas. O regime promoveu uma intensa propaganda do trabalhismo, investindo na formação de um proletariado ordeiro e tutelado, numa espécie de imagem digna da pobreza. As referências à malandragem, até então vistas com certa tolerância, passam a ser censuradas com rigor. Nesta situação, por questões de sobrevivência, o malandro provisoriamente “se regenera”.

Até mesmo Wilson Batista, antes defensor convicto da malandragem, se rende ao ambiente da época e, em samba, ressalta a importância do trabalho. Em 1941 ele compõe, com Ataulfo Alves, “O bonde São Januário”, sucesso no carnaval: “Quem trabalha é que tem razão/ Eu digo e não tenho medo de errar/ O bonde São Januário/ Leva mais um operário/ Sou eu que vou trabalhar”.

Os valores tradicionais da família também passaram a ser louvados pelo agora bem-comportado mundo do samba. O maior sucesso de Wilson Batista até então trata exatamente disso: em “Oh, seu Oscar” (1940), um marido abandonado se lamenta: “Fiz tudo para ver seu bem-estar/ Até no cais do porto eu fui parar/ Martirizando o meu corpo noite e dia”. E a figura do chefe de família responsável aparecerá em várias outras composições, como “Ganha-se pouco, mas é divertido” (1941), “Boa companheira” e “Emília”, ambos de 1942.

Os anos difíceis da Segunda Guerra Mundial – especialmente com a entrada do Brasil no conflito, em 1944 – deram origem a sambas primorosos. A figura do sambista Laurindo, personagem fictício que aparece pela primeira vez no samba “Triste cuíca”, de Noel Rosa e Hervê Cordovil, é recuperada como herói de guerra em “Lá vem Mangueira”, “Comício em Mangueira” e “Cabo Laurindo”: “Laurindo voltou coberto de glória/ Trazendo garboso no peito/ A cruz da vitória”.
O malandro tornou-se “chefe de família” em 1945, ao casar-se com Marina. Era uma jovem baiana que ele conhecera num baile de carnaval. Desde o namoro, a musa inspiradora já lhe rendia belos sambas, como “Lealdade” – “Serei, serei leal contigo/ Quando eu cansar dos teus beijos, te digo” – e “E o 56 não veio” – “Será que ela não veio porque se zangou?/ Ou o bonde Alegria descarrilou?” O nome do bonde não era licença poética. Quando os namorados brigavam, Marina deixava de ir ao seu encontro na Central do Brasil e pegava uma condução que passava pelo cais do porto, percurso diferente do Alegria, linha 56. Os quatro anos de casamento coincidiram com algumas das melhores composições de Wilson, como “Louco (Ela é seu mundo)” e “Vulto”.

A parceria com o compositor e caricaturista Nássara (1910-1996) foi outra fonte de sucesso. Emplacaram as marchas “Balzaquiana” (1950) e “Sereia de Copacabana” (1951) e o samba “Mundo de zinco” (1952). Quando o cantor Francisco Alves morreu num acidente de carro em 1952, recebeu da dupla uma homenagem comovente – em “Chico Viola”, Wilson aproveita para mostrar que seu antigo desafeto, Noel Rosa, também tinha lugar de honra na memória do samba: “Na voz do seu plangente violão/ Ele deixou seu coração/ Partiu, disse adeus/ Foi pro céu/ Foi fazer, foi fazer/ Companhia a Noel”.

Com a chegada da Bossa Nova e, mais tarde, da Jovem Guarda, Wilson Batista tornou-se um compositor fora de moda. Para piorar, sua saúde era precária. Com problemas cardíacos e uma infiltração pulmonar, era uma pálida lembrança do homem elegante de outros tempos, sempre vestido de terno azul-marinho ou branco e camisa de seda. O consumo de drogas agravava ainda mais seu estado. A aparência dizia tudo: olheiras profundas, rosto magro e barba por fazer.

Viveu seus últimos anos na mais absoluta miséria. Quem o conhecia se cansara de “levar mordidas” de dinheiro emprestado que nunca voltava. Wilson vendia seus sambas por qualquer preço, especialmente para Jorge de Castro, contraventor do jogo do bicho. Foi despejado do apartamento onde morava, na Rua Senador Dantas, por falta de pagamento.

Wilson Batista morreu numa enfermaria coletiva do Hospital Souza Aguiar no dia 7 de julho de 1968, quatro dias depois de completar 55 anos. A seu pedido, foi providenciado um smoking, pois queria ir para o outro mundo em traje de gala. Seu corpo foi enterrado ao anoitecer, em homenagem a quem tanto amou a noite.
Deixou um sofá, uma geladeira, uma vitrola, um gravador, um caderno com letras de músicas e alguns troféus. Mas seu maior legado não tem preço: as composições e a malandragem que ele eternizou no imaginário carioca.

Valdemar Valente Júnior é professor de Literatura Brasileira da Universidade Castelo Branco e da UniverCidade e autor da tese “Entre a cidade e o campo: Mário de Andrade e a música popular” (UFRJ, 2003).

Saiba Mais - Bibliografia:

CUNHA, Fabiana Lopes da. Da marginalidade ao estrelato: o samba na construção da nacionalidade (1917-1945). São Paulo: Annablume, 2004.

GOMES, Bruno Ferreira. Wilson Batista e sua época. Rio de Janeiro: Funarte, 1985.

PIMENTEL, Luís e VIEIRA, Luís Fernando. Wilson Batista: na corda bamba do samba. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.

SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras, vol. 1 (1901-1957) . São Paulo: Editora 34, 1997.

Saiba Mais - Discografia:

João Nogueira. “Wilson, Geraldo e Noel”. (1981) CD.

Joyce e Roberto Silva. “Wilson Batista”. (1985) CD.

Wilson Batista. “MPB: Compositores” (1987) CD.

Cristina Buarque. “Ganha-se pouco, mas é divertido: Cristina Buarque canta Wilson Batista”. (2000) CD.

Roberto Paiva e Francisco Egídio. “Polêmica”. (2003) CD.

Malandro que é malandro...

Vagabundo, esperto, preguiçoso, contraventor: as características mais variadas são associadas à figura do malandro. Está aí uma das grandes dificuldades para se chegar a uma definição sobre sua identidade. No clássico estudo Carnavais, Malandros e Heróis, o antropólogo Roberto DaMatta descreve o malandro brasileiro como alguém que transita dentro e fora da ordem social. Para o autor, ele se posiciona na linha intermediária entre o caxias, que segue todas as regras, e o criminoso.

É alguém que prova a existência de uma outra maneira de se realizar na vida: no lugar das preocupações com o trabalho e com o acúmulo de riquezas, o prazer e os sentimentos passam a ser prioridade.

Além da boemia, o malandro se caracteriza pela facilidade em burlar leis impossíveis de serem cumpridas, revelando um modo tipicamente brasileiro de lidar com imposições absurdas. DaMatta adverte, no entanto, que quando o campo de atuação do malandro passa das malandragens socialmente aceitas para a violência explícita, ele se torna um criminoso de fato: “É quando o malandro corre o risco de deixar de viver do jeito e do expediente para viver dos golpes, virando então um autêntico marginal ou bandido”. (Equipe RHBN)

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Metamorfoses da república

O modo de governo criado pelos romanos se estendeu pelo tempo e chegou como a principal forma de organização dos Estados atuais

POR RENATO MOSCATELI



A República, em óleo sobre tela com 1,39 m de largura, do pintor francês Jules Claude Ziegler (1804-1856). Podese observar, em sentido horário, parte de inscrições das palavras “liberdade”, “igualdade” e “fraternidade”
A resposta para a pergunta a seguir talvez pareça óbvia, e provavelmente soa banal para um povo que vive há mais de cem anos em um Estado autodenominado República Federativa do Brasil. Mas, afinal, vivemos nós, brasileiros do século XXI, em uma república? Aqui, como em grande parte do mundo contemporâneo, a forma republicana de governo, tal como a conhecemos, tornou-se tão familiar que quase não pensamos no fato de que ela não é obra dos homens modernos. Suas raízes estendem-se profundamente no tempo, atingindo mais de dois mil anos no passado, até as práticas políticas dos cidadãos da Roma antiga. Por este motivo, uma outra pergunta menos banal também poderia ser feita: os romanos de outrora reconheceriam em nossos Estados o regime republicano que eles tão orgulhosamente criaram?

A REPÚBLICA DOS ANTIGOS

O estabelecimento da república de Roma não se deu logo na fundação da cidade, tradicionalmente atribuída aos lendários irmãos Rômulo e Remo, em 753 a.C. Durante seus primeiros séculos de existência, as diversas tribos que se uniram para formar o povo romano foram governadas por reis sob o predomínio dos etruscos, que já habitavam a Península Itálica desde muito antes. A literatura atribui o início da linhagem real ao próprio Rômulo, e acrescenta mais outros cinco monarcas entre ele e o último governante dessa fase da história de Roma, Tarquínio, o Soberbo. No final do século VI a.C., com a saída dos chefes etruscos da cidade, caiu a monarquia e começaram a ser lançadas as bases da república. Os conflitos entre o patriciado – a nobreza romana – e a plebe marcaram o tom no novo cenário político. Enquanto os patrícios desejavam manter suas antigas distinções sociais, os plebeus buscavam reunir forças para obrigá-los a concederlhes um número cada vez maior de direitos civis e econômicos. Segundo o pesquisador Moses Hadas, essas duas classes tinham se tornado quase como duas comunidades separadas, pois os plebeus não podiam se casar com cônjuges patrícios nem exercer nenhum cargo importante. Tal diferenciação também possuía um aspecto religioso. Dado que certos rituais só eram permitidos aos patrícios, rituais que constituíam pré-requisitos para o desempenho de altos cargos, os plebeus ficavam efetivamente impedidos de alcançá-los. Assim, ao lado de questões econômicas como a reforma agrária e a solução do problema das dívidas, a igualdade perante as leis estava entre as principais reivindicações da plebe. Graças à revolta de 493 a.C., quando se retiraram no Monte Sagrado para pressionar os patrícios, os plebeus obtiveram a criação da magistratura dos tribunos, cujo poder de veto frente às demais autoridades seria essencial para defender seus interesses dali em diante. Algumas décadas mais tarde, o direito público e privado de Roma foi finalmente codificado a pedido da plebe, o que levou à Lei das Doze Tábuas gravadas em placas de bronze pelos decênviros, magistrados especialmente escolhidos para essa função. Tendo acesso ao conhecimento das leis tanto quanto os membros da aristocracia, o povo comum passou a exigir que todos fossem julgados pelas mesmas regras. Esse processo de ampliação dos direitos de cidadania intensificou-se ainda mais no século seguinte, por meio das resoluções que permitiram a ascensão dos plebeus às magistraturas da república e ao senado, e também pela elevação dos plebiscitos ao status de leis para todo o povo. Para compreender melhor o alcance de todas essas conquistas da plebe, é preciso saber como funcionavam algumas das instituições políticas romanas, tais como os comícios e o senado.


"Se não se admite a igualdade da fortuna; se a igualdade da inteligência é um mito, a igualdade dos direitos parece obrigatória entre os membros de uma república. Que é, pois, o Estado, SENÃO UMA SOCIEDADE PARA O DIREITO?"
Cícero, Da República


De Pietro da Cortona, Rômulo e Remo abrigados por Fausto, de 1643, encontra-se no Museu do Louvre, em Paris. Os dois irmãos são os fundadores mitológicos da cidade de Roma, mas foi Rômulo, após assassinar o irmão, o primeiro rei de Roma

COMÍCIOS E ESPORTES

As pessoas que já assistiram a algum comício em sua vida podem pensar que em Roma os políticos organizavam grandes shows artísticos, com tocadores de lira e artistas famosos, a fim de atrair público para ouvir suas promessas eleitorais. Porém, apesar da política do “pão e circo” também ser uma herança deixada pelos romanos, não era nos comícios, e sim nas corridas do Circo Máximo e nos espetáculos sangrentos das lutas de gladiadores que ela se fazia presente de forma ostensiva. Nos comícios romanos, os cidadãos eram bem mais do que meros espectadores. Era neles que o povo exercia sua soberania, reunido em assembléia no Fórum ou no Campo de Marte: votava-se para aprovar ou rejeitar leis, decidir sobre a paz e a guerra, assim como para eleger os magistrados – cônsules, questores, edis e pretores, entre outros – que administravam o Estado.


Ruínas do Fórum Magnum, localizado no centro de Roma. No local eram resolvidas pendências jurídicas e administrativas

A CENSURA: A GUARDIÃ DOS BONS COSTUMES REPUBLICANOS
Atualmente, poucos ataques aos direitos civis são considerados tão terríveis quanto aqueles que atingem a liberdade de expressão. Seja sob governos autoritários, seja em plena democracia, os obstáculos colocados à divulgação de opiniões políticas, obras artísticas ou crenças religiosas são prontamente tachados com o nome de censura e abominados pelos defensores da livre manifestação do pensamento. Na república romana, em contrapartida, a atividade dos censores era vista como essencial para a preservação do Estado. Ela foi criada, segundo a tradição, em 443 a.C. Eleitos nos comícios por centúrias a cada cinco anos, os dois censores eram escolhidos entre os cidadãos de comprovada experiência, geralmente antigos cônsules. Eles desfrutavam de grande influência na sociedade e possuíam, entre suas principais atribuições, a missão de cuidar do regimen morum, o “policiamento dos costumes”, investigando a vida dos cidadãos para combater os comportamentos considerados socialmente inaceitáveis, como o luxo excessivo, os maus exemplos e as filosofias tidas por exóticas e perniciosas. Tais atentados contra os bons costumes eram denunciados publicamente por meio da nota censória. Não que a sociedade de Roma fosse “puritana”, mas o grande zelo moral tinha uma função política fundamental na república: resguardar a virtude cívica, ou seja, um amor pela pátria e pelas leis que devia estar sempre acima dos interesses pessoais. Ao repreender os indivíduos que demonstravam atitudes ou sentimentos contrários aos costumes austeros que representavam a própria cidadania romana, os censores tinham em vista manter a unidade de valores morais responsável pela grandeza da república.

Havia três tipos de comícios, de acordo com o modo como os cidadãos dividiam-se para votar: por cúrias, por centúrias e por tribos. A primeira divisão baseava-se no nascimento, a segunda era de ordem censitária, e a terceira seguia o princípio do domicílio. Os comícios por tribos eram os mais favoráveis aos interesses do povo comum, já que neles os patrícios não detinham qualquer prerrogativa, ao contrário dos comícios por centúrias, nos quais a riqueza garantia à elite a chance de determinar os rumos da votação. Em 287 a.C., após séculos de lutas, os plebiscitos – decisões tomadas pela plebe nos comícios por tribos – passaram a adquirir força de lei para todos os romanos, inclusive para os senadores que eram impedidos de participar de sua votação.

SENADO E O POVO ROMANO


Grafismo de Philippe Remacle reproduz a mais tradicional inscrição da República Romana. Significa Senatus Populusque Romanus (O Senado e o povo de Roma) e era utilizada como assinatura oficial do governo em moedas, documentos oficiais entalhados no metal ou em rocha, e como brasão das Legiões Romanas

Quando Roma ainda era uma monarquia, o Senado já existia e funcionava como uma assembléia para aconselhar o rei e zelar pelas tradições dos antepassados (mos maiorum). Sua denominação vem da palavra senes (anciãos), em referência à idade de seus membros, que originalmente saíam apenas das fileiras do patriciado. Embora também participasse das atividades legislativas na república, dando ou não seu aval às leis votadas nos comícios e sugerindo aos magistrados propostas de leis a serem submetidas ao sufrágio popular, o Senado era principalmente um órgão administrativo. Os senadores, cujo cargo era vitalício, votavam as despesas e supervisionavam a execução de obras públicas, aconselhavam os magistrados, fixavam as datas das eleições e distribuíam os governos das províncias, entre outras funções. Como uma das instituições mais veneráveis da república, ele tinha seu nome gravado na sigla que representava a própria Roma, SPQR, Senatus Populus Que Romanus, “o Senado e o Povo Romano”.

Nos comícios romanos os cidadãos, reunidos no Fórum ou no Campo de Marte, elegiam seus magistrados e exerciam sua soberania


Diante do Senado, uma das mais importantes instituições romanas, Cícero discursa contra Catilina, cuja conspiração conseguiu derrotar

De acordo com Giovanni Lobrano, especialista italiano em história jurídica, o sistema constitucional surgido em Roma configurou o modelo republicano por excelência. Na definição de república dada por Marco Túlio Cícero (106 – 43 a.C), um dos maiores políticos e oradores da antiguidade, pode-se discernir o núcleo do direito público romano: “É pois (...) a República coisa do povo, considerando tal, não todos os homens de qualquer modo congregados, mas a reunião que tem seu fundamento no consentimento jurídico e na utilidade comum”. Lobrano afirma que decorrem daí dois pontos essenciais: o primeiro é a oposição entre a república e a não-república (o regnum); o segundo, é a distinção entre o governo republicano e a soberania popular. O primeiro nível diz respeito à atividade legislativa onde ocorre a produção do direito, na medida em que os comandos do povo são a fonte das leis: nos comícios, como foi visto, os cidadãos romanos pronunciavam-se pessoalmente a respeito das questões que lhes eram feitas. Cícero afirmava que a liberdade só podia existir verdadeiramente onde o povo é soberano, pois não há liberdade quando ela não é igual para todos os cidadãos. Por isto, lembra Lobrano, o direito público de Roma classificava como crime a aspiração ao sistema político divergente da república, quer dizer, aquele no qual o exercício da soberania (o leges iubere) não pertencia ao povo. O segundo nível é a esfera relativa ao que chamamos atualmente de poder executivo. Tendo estabelecido que os governantes eram “servos do povo”, os romanos não viam problema em entregar o governo a poucos indivíduos escolhidos, tais como os dois cônsules que ocupavam os mais altos postos na gestão do Estado. Para assegurar que os magistrados obedecessem às leis no cumprimento de suas funções, os romanos os mantinham sob vigilância tanto no final do mandato, por meio do exame judiciário de eventual responsabilidade, quanto durante o mandato, por meio do instituto do tribunato e de seu poder específico de veto. Mais importante do que o número dos magistrados compondo o governo, era o fato de que eles estavam sujeitos ao controle do povo.


Um dos famosos mosaicos da Basílica de San Vitale, em Ravena, na Itália. Traz ao centro a imagem de Flavius Petrus Sabbatius Justinianus, ou simplesmente Justiniano I, imperador romano do Oriente desde 527 até sua morte. O Império Bizantino conheceu um período de prosperidade durante seu governo

HOMENS DA REPÚBLICA


• LUCIUS JUNIUS BRUTUS
(séc. VI a.C.)


A mãe de todas as repúblicas já surgiu por meio de conflitos, intrigas, e com ares de lenda. Cônsul romano, Lúcio Bruto teria sido o principal articulador da queda de Tarquínio Soberbo, último monarca romano. Diz-se que, tão logo assumiu sua posição política, Bruto haveria ordenado executar os próprios filhos. Marco Bruto, um dos assassinos de César, afirmava duvidosamente descender de Lúcio.


• BENITO AMILCARE ANDREA MUSSOLINI
(1883-1945)


República Social Italiana, também conhecida como República de Salò, era na verdade um governo fascista. Instaurado em 1943 na parte aliada da Itália, submetia-se ao controle nazista. Benito Mussolini era Il Duce, “o condutor” dessa “república”. Com o fim da guerra, tal ditadura minguou. Em 1946, um referendo aboliu definitivamente a monarquia e instaurou, dessa vez, sim, uma república. A Constituição italiana de 1948 estabeleceu um parlamento, com Câmara dos Deputados, Senado, sistema judiciário e um poder executivo composto por um conselho de ministros e um primeiro-ministro.


• GIUSEPPE GARIBALDI
(1807-1882)


Este, sim, um verdadeiro “herói de dois mundos”, como foi alcunhado, guerreou durante toda a vida, em conflitos na Europa e na América do Sul. O italiano foi uma das figuras proeminentes da “unificação italiana”. Passou dez anos a bordo de navios mercantes, seguindo os passos do pai marinheiro. Seduzido pelo socialismo de Henri Saint- Simon, entrou para a sociedade secreta Jovem Itália, fundada por Giuseppe Mazzini, republicano defensor da unidade italiana. Exilado, veio ao Brasil. Aproximou- se dos republicanos que haviam proclamado a República Riograndense no Rio Grande do Sul. Tornou-se importante na Revolução Farroupilha, que combateu o Império.


• OLIVER CROMWELL
(1599–1658)


Não é só o United Manchester que é odiado na Irlanda e na Escócia, e amado na Inglaterra. Oliver Cromwell também. O fim do absolutismo monárquico na Inglaterra foi precedido por uma guerra civil. Cromwell era um republicano que defendia a criação da Commonwealth. Como militar, ele lutou contra as forças do rei Carlos, e se consagrou como estrategista de guerra. Suas bem sucedidas campanhas foram avassaladoras na Escócia e na Irlanda, onde é considerado um “açougueiro”.


• MANUEL DEODORO DA FONSECA
(1886–1944)


O proclamador da República e primeiro presidente do Brasil foi um militar, conhecido com Marechal Deodoro. Pedro II foi deposto de forma pacífica e sem nenhuma participação popular, em 15 de Novembro de 1889, por meio de um golpe militar. Apesar da propaganda republicana, a idéia de mudança política não ecoava no País. Ao concluírem que não realizariam tal projeto pelo voto, os republicanos capitalizaram o descontentamento já recrudescido das classes armadas contra o Império – desde a Questão Militar. Deodoro foi o líder com prestígio suficiente para levar a efeito o engajamento dos altos oficiais.

A REPÚBLICA NA MODERNIDADE

Com o estabelecimento do império no séc. I a.C., as instituições republicanas perderam gradativamente seu antigo brilho. Os césares concentraram em suas mãos o poder das várias magistraturas, e até a voz dos comícios deixou de ser a expressão da soberania popular. O legado de Roma, é claro, não desapareceu, nem mesmo depois da queda do império frente à força avassaladora das invasões germânicas. O direito romano, por exemplo, foi preservado em grande medida no Corpus Iuris Civilis compilado por Justiniano, imperador do Oriente no séc. VI d.C., sendo retomado por estudiosos centenas de anos mais tarde, no contexto do humanismo e da formação das monarquias absolutistas.

"A SOBERANIA NÃO PODE SER REPRESENTADA PELA MESMA RAZÃO POR QUE NÃO PODE SER ALIENADA; ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa: ela é a mesma, ou ela é outra; não há meio-termo. Toda lei que o povo em pessoa não ratificou é nula; não é uma lei"
Jean-Jacques Rousseau, Contrato Social


O Corpus Iuris Civilis (Corpo de direito civil), publicado por Justiniano I, de Constantinopla, tinha a finalidade de guardar o direito romano

O governo republicano floresceu novamente em cidades da Itália no final da Idade Média e na Renascença, como Gênova, Florença e Veneza, mas com diferenças significativas em relação à república romana. A despeito de conflitos internos terem levado o povo comum a ocupar, ocasionalmente, um espaço maior no governo, na maior parte do tempo eram as elites urbanas que protagonizavam a cena política, notadamente os comerciantes e banqueiros enriquecidos pelas novas oportunidades do capitalismo em expansão. Em Veneza, por exemplo, a cidadania era restrita aos membros de umas 200 famílias patrícias; eles formavam o Grande Conselho responsável pela eleição do senado, principal órgão legislativo do Estado. Em Florença, terra natal de Maquiavel, o ideal republicano inspirava os cidadãos, ainda que durante o predomínio dos Médici ele representasse pouco mais do que uma bela fachada para o monopólio político dessa poderosa família. Nessas cidades-repúblicas, portanto, havia um forte elemento aristocrático que as distanciava da soberania popular tão característica do antigo modelo de Roma.

Em Veneza a cidadania era restrita aos membros de umas 200 famílias patrícias

Mergulhadas em um mundo de reis e príncipes, as repúblicas italianas jamais conseguiram alcançar o mesmo status de sua célebre ancestral. As monarquias de direito divino, com seus governos fortemente centralizados, haviam tornado-se o tipo de Estado amplamente difundido na Europa moderna, mais adaptado às necessidades da época. Foi apenas no séc. XVIII que uma nova onda de republicanismo começou a percorrer o continente e as terras que compunham seus domínios coloniais. Depois de centenas de anos vivendo sob o governo de reis absolutistas, os revolucionários da América e da França acreditaram que havia chegado o momento de recolocar o povo no poder. As repúblicas que eles ajudaram a criar, porém, foram levantadas não somente sobre as bases deixadas pela civilização romana, mas também sobre as instituições políticas nascidas na Idade Média em meio às conquistas germânicas.

"UMA REPÚBLICA, pelo que entendo um governo no qual o esquema da representação tem lugar, ABRE UMA PERSPECTIVA DIFERENTE E PROMETE A CURA PELA QUAL ESTAMOS PROCURANDO"
James Madison, carta a William Hunter datada de março de 1790


Momento em que o general George Washington encabeçou as tropas revolucionárias durante o conflito com os britânicos, para pegá-los de surpresa


ANGLO-SAXÕES E A REPUBLICA FEDERATIVA

O professor Lobrano dá o nome de modelo anglo-germânico ao conjunto dessas instituições geradas no governo gótico medieval, uma vez que elas foram adotadas pela monarquia da Inglaterra após as guerras civis do século XVII. Admirado por muitos contemporâneos, esse modelo ficou ainda mais famoso devido ao filósofo francês Montesquieu, cuja obra-prima política, O Espírito das Leis (1748), descreveu e elogiou a constituição inglesa como exemplo de Estado moderado fiador da liberdade política de seus cidadãos.


Aristocrata, o Barão de Montesquieu, retratado por Charles de Secondat, foi um crítico da monarquia absolutista e do clero. Sua obra mais famosa foi o Espírito das leis, de 1748, tendo contribuído também para a Enciclopédia
O modelo anglo-germânico ancora-se em dois pilares: o sistema parlamentar, por meio do qual são os representantes dos cidadãos que exercem, de fato, a soberania; e a divisão e o equilíbrio dos poderes, um instrumento para impedir que qualquer uma das esferas do Estado abuse da autoridade que lhe foi confiada. Embora Montesquieu tenha apresentado esse esquema constitucional com referência a um regime monárquico, no qual o rei encabeçava o executivo e as duas Câmaras (dos Comuns e dos Lordes) partilhavam o legislativo, alguns de seus leitores, entre eles os “pais fundadores” dos Estados Unidos e certos líderes revolucionários franceses, adotaram seus princípios básicos para criar um novo tipo de Estado, a “república representativa”, que influenciou decisivamente as instituições políticas do mundo contemporâneo.

Após o início da guerra de independência (1775– 1783) que libertou as Treze Colônias americanas do domínio britânico, ocorreram debates decisivos sobre a forma de governo a ser adotada no novo país. Neste contexto, os conceitos de república e democracia receberam um importante destaque. Para Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, co-autores dos Escritos Federalistas, era preciso distinguir corretamente essas duas entidades políticas: segundo eles, enquanto na democracia o povo exerce o poder por si mesmo, o que é próprio a um Estado de pequenas dimensões, na república ele o faz por meio de seus representantes eleitos, o que permitiria até a um Estado de grande extensão adotá-la. Realizar essa mudança no entendimento acerca da república era essencial para o trio de escritores, cujas propostas tinham de ser adequadas a um país que, desde seu nascimento, era muito maior do que as pequenas cidades-Estado da antiguidade. Além de igualar a república ao sistema representativo, eles também insistiram no papel do federalismo nos Estados Unidos, graças ao qual as diferenças regionais entre os componentes da nação poderiam ser preservadas, ao mesmo tempo em que todos eles contribuiriam, com seus parlamentares, para o governo da União. Esse governo federal repousava ainda sobre o princípio da separação dos poderes, o outro pilar do modelo anglo-germânico. Com um judiciário autônomo, um executivo chefiado pelo presidente eleito por sufrágio popular, e um legislativo bicameral formado por congressistas e senadores igualmente eleitos para representar a vontade popular, os americanos acreditaram ter produzido um sistema político bem estruturado para banir a ameaça do despotismo contra a qual eles haviam se insurgido. Eles estavam convencidos, portanto, de que a extensa república federativa dos Estados Unidos tinha todas as condições para efetivar a liberdade e os demais direitos inalienáveis de seus cidadãos.


Queda da Bastilha, um dos fatos mais importantes da Revolução Francesa. A data se tornou feriado nacional na França

Enquanto na democracia o povo exerce o poder por si mesmo, na república o faz por meio de seus representantes

O MODELO FRANCÊS


Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi figura marcante do Iluminismo francês
Também no final do século XVIII, os franceses viram-se mergulhados nas turbulências da revolução contra o Antigo Regime. Nas discussões acaloradas que se travaram então, ocorreu um processo semelhante àquele verificado na América, em que a república passou a ser associada ao sistema representativo. Conquanto houvesse defensores do exercício da soberania pelo próprio povo, sem dúvida influenciados pelo republicanismo ao estilo romano de Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778), as condições políticas da França, um Estado com dezenas de milhões de habitantes já nessa época, favoreceram a vitória dos adeptos da representação parlamentar, que teve no abade Sieyès (1748 – 1836) um de seus nomes mais célebres.

Quando os revolucionários assumiram a condição de Assembléia Nacional Constituinte, em 1789, Sieyès apregoou a idéia de que os delegados escolhidos para redigir as novas leis da França não deveriam estar sob o mandato imperativo do povo, pois isto, de acordo com ele, os privaria da liberdade necessária ao sucesso de sua tarefa. O abade pensava que a política da era moderna tinha de adotar o mesmo princípio da divisão do trabalho que vigorava na economia, ou seja, o povo confiaria a autoridade a seus representantes ao invés de buscar desempenhá-la por si mesmo, e estes articulariam seus interesses em benefício dele. Separando a origem do poder, por um lado, e sua implementação, por outro, Sieyès estava seguindo uma concepção que se tornou fundamental na política dos últimos duzentos anos: a de que a soberania repousa na nação, mas é exercida pelos indivíduos eleitos para falar em seu nome.

A DITADURA: SITUAÇÕES EXTREMAS REQUEREM MEDIDAS EXTREMAS

Na história da América Latina, a ocorrência de governos ditatoriais tem sido um fantasma muito difícil de ser exorcizado. Geralmente deflagradas por golpes militares que depõem governantes eleitos pelo povo, as ditaduras de nossa época são marcadas pelo autoritarismo e por flagrantes desrespeitos aos direitos civis, entre os quais a tortura é um dos mais lamentáveis. Na Roma antiga, porém, a ditadura não significava uma ruptura na ordem institucional, mas apenas um recurso empregado pelo próprio governo em situações de crise. Nos momentos em que a república passava por graves emergências, quando perigos internos ou externos ameaçavam sua existência, um ditador era indicado pelos cônsules para salvar o Estado. Durante as duas primeiras Guerras Púnicas (264-241 e 218-201 a.C.), por exemplo, nas quais os romanos enfrentaram os exércitos de Cartago, as vitórias do notável general Aníbal marchando com seus elefantes através dos territórios da república levaram à eleição do ditador Quinto Fábio Máximo Cuntactor (o Contemporizador), incumbido pelo governo da tarefa de deter os avanços inimigos. Para tanto, como todos os ditadores, ele recebeu plenos poderes, e não podia ser punido legalmente por nenhum de seus atos. Enquanto durava a ditadura, as próprias leis de Roma viam-se caladas. As únicas limitações a que o poder ditatorial estava sujeito eram de ordem temporal: sua autoridade vigorava por um semestre, embora houvesse ditadores que deixassem o cargo antes desse período, por terem conseguido resolver rapidamente o problema para o qual foram solicitados. Nos momentos finais da república, as ações de Caio Júlio César prenunciaram o mau uso da ditadura que se tornaria freqüente dois milênios mais tarde. Após derrotar Pompeu, seu rival, César regressou a Roma e, escudado pelo poder dos soldados sob seu comando, foi nomeado ditador por vários mandatos consecutivos. Em 44 a.C., recebeu o título de “Ditador Perpétuo”, do qual desfrutou por pouco tempo, até ser morto no Senado em uma conspiração da qual participou seu filho adotivo Brutus. Pouco depois, a república se extinguiu sob o império iniciado pelo outro filho adotivo de César, Otávio.

Trinta anos depois da queda da Bastilha, o escritor e político suíço Benjamin Constant (1767 – 1830) pronunciou seu famoso discurso no Ateneu Real de Paris, “Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos”, em que procurou justificar a pertinência do sistema representativo à sua época. Constant criticou os revolucionários que pretenderam restaurar na França o republicanismo à moda de Esparta ou de Roma, sem perceber que já não havia mais lugar para ele. De acordo com o suíço, o objetivo dos antigos era partilhar o poder entre todos os cidadãos da mesma pátria, e era a isto que eles davam o nome de liberdade. Assim, nas repúblicas de outrora, o exercício da cidadania consistia na principal ocupação dos homens livres, algo que não teria sido possível sem a existência da escravidão. Como o trabalho de seus escravos os desobrigava das preocupações econômicas, os cidadãos dispunham de tempo para participar das assembléias legislativas e de magistraturas no governo. Entre os modernos, em contrapartida, o objetivo maior é ter segurança para desfrutar das posses particulares, e são justamente as garantias dadas pelas instituições políticas a essas posses que constituem a liberdade para eles. Nos Estados da modernidade, os cidadãos precisam delegar o exercício das funções legislativas e executivas a representantes, ficando desse modo liberados para se dedicar a seus assuntos particulares . O perigo resultante desse quadro, adverte Constant, é que os indivíduos permanecem tão absorvidos no gozo da independência pessoal e na busca de interesses particulares que renunciam muito facilmente ao seu direito de participar do poder político. Esse alheamento cotidiano em relação à res publica denunciado por Constant tem sido uma das causas mais fortes de alguns dos graves problemas que assolam a política contemporânea, da corrupção no governo à emergência de regimes autoritários.


Tomada da Bastilha, Jean-Pierre Louis Laurent Houel. Evento representou o princípio da queda do regime monárquico na França e o início da república no país

OS “NOVOS ROMANOS”


A influência da cultura romana sobre os criadores das repúblicas da Idade Contemporânea era tão marcante que se manifestou de diversas formas. Os fundadores dos Estados Unidos estudaram e citaram frequentemente os autores latinos, e chegavam a assinar seus próprios textos com pseudônimos romanos. Thomas Paine (imagem) denominava- se “Atlanticus”; o conservador Joseph Galloway referiase à sua correspondência com o liberal britânico Charles J. Fox como as “Cartas de Cícero a Catilina II”; os autores dos Escritos Federalistas assinaram todos os ensaios da obra com o pseudônimo de “Publius”. John Adams, o segundo presidente americano, passava noites a sós em seu quarto declamando em voz alta os discursos de Cícero. Thomas Jeff erson, sucessor de Adams na presidência, adotou a arquitetura romana como modelo tanto para sua residência pessoal, Monticello, quanto para edifícios públicos: o Capitólio do Estado da Virgínia é uma cópia da Maison Carrée, velho templo romano construído em Nîmes, França, e a biblioteca da Universidade da Virgínia é uma pequena réplica, em madeira e tijolos, do Panteão erigido em concreto e mármore na Roma antiga.

Entre os revolucionários franceses, via-se a mesma admiração pela herança romana. Um dos símbolos utilizados durante a Revolução, o barrete frígio, era uma referência ao capuz utilizado pelos escravos romanos que haviam obtido a liberdade, e cujos descendentes adquiriram o direito à cidadania. Na república proclamada em 1792, as lideranças jacobinas, especialmente Robespierre e Saint-Just, pregavam o retorno aos ideais cívicos romanos. Em seus discursos, Robespierre conclamava seus ouvintes a elevar suas almas até as virtudes republicanas e os exemplos dados pelos antigos, e dizia que “o povo é bom, mas seus delegados são corruptíveis. É na virtude e na soberania do povo que se deve buscar o preservativo contra os vícios e o despotismo do governo.” Anos depois, próximo ao fim dessa primeira experiência republicana na França, Napoleão Bonaparte deu o golpe de Estado que instituiu o governo de um consulado tríplice, resgatando assim o título da magistratura suprema de Roma. Ao obter para si o lugar de primeiro-cônsul, posteriormente o de cônsul vitalício, e afinal o de imperador, Bonaparte reproduziu à sua maneira o caminho que permitiu a Otávio destacar-se do triunvirato com Lépido e Marco Antônio, culminando no estabelecimento do Império. A semelhança entre os dois personagens não era simples coincidência. Napoleão aspirava a assumir a magnificência dos césares, desejo que teve impacto também na arte do período. Se os motivos e os símbolos da estética republicana haviam inspirado os anos iniciais da Revolução, durante a era napoleônica as águias, as coroas de louro e as vitórias aladas, típicas da arte imperial romana, passaram a predominar.

A REPÚBLICA DO BRASIL


Sem saber exatamente do que se tratava o “desfile militar”, o povo carioca assiste à passagem dos responsáveis pela proclamação da República
O caso do Brasil não foge ao quadro pintado por Constant, tanto mais pelas circunstâncias que levaram à proclamação de sua república. Ao contrário do que ocorreu na França, ela não foi o fruto de um processo revolucionário. A república brasileira também não surgiu da luta pela independência, como nos Estados Unidos, envolvendo tanto as elites avessas ao domínio das metrópoles européias quanto as massas populares que depositavam suas esperanças em uma nova ordem política. Segundo o jornalista republicano Aristides Lobo, em novembro de 1889, quando os militares encabeçados pelo Marechal Deodoro da Fonseca marcharam para depor o imperador Dom Pedro II, o povo nas ruas teria assistido “bestializado” à passagem da tropa, acreditando que se tratava simplesmente de uma parada militar. O comentário de Lobo resume o desapontamento dos partidários da república diante da falta de iniciativa popular nesse momento decisivo da história do país. O historiador José Murilo de Carvalho, que estudou os acontecimentos de nossas primeiras décadas republicanas, chamou a atenção para o fato de que o novo regime consolidou-se sobre um mínimo de participação eleitoral, sobre a própria exclusão do envolvimento popular no governo. A ideologia liberal favorável às oligarquias dominantes deu a tônica da república nascente, suprimindo gradativamente outras tendências também presentes entre os republicanos brasileiros: o jacobinismo, inspirado na Revolução Francesa, que idealizava a democracia direta em que todos os cidadãos teriam vez e voz, e o positivismo, derivado das obras de Auguste Comte, que via a instituição da república como um passo importante rumo à utopia cientificista de uma “idade de ouro” futura para toda a humanidade. Os positivistas conseguiram ao menos deixar uma marca indelével no símbolo maior da república, gravando seu lema, “Ordem e progresso”, na bandeira nacional.


Em alegoria do final do século XIX das repúblicas francesa e brasileira, representase a pretendida similaridade de princípios entre os dois governos
Mesmo hoje, os vícios iniciais da república no Brasil ainda estão longe de serem totalmente sanados. Nossa história tem sido marcada pelas intervenções violentas de golpes militares, por longos períodos de governos ditatoriais, pelas promessas demagógicas de líderes populistas e, com uma triste persistência, pela crônica diária dos escândalos de corrupção. A melhor solução para esses males parece estar em um certo “retorno às origens” da tradição republicana, pois, relembrando as palavras de Cícero, não há verdadeira república quando ela não é “coisa do povo”. Ampliar significativamente o espaço da participação cidadã nas questões políticas, para muito além da simples escolha dos governantes, é o maior desafio para os grandes Estados de nosso tempo, mas talvez seja o único caminho para toda e qualquer república digna desse nome.

REFERÊNCIAS

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a república que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
_______. A formação das almas: O imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
DUBOUCHET, Paul. De Montesquieu le moderne à Rousseau l’ancien: la démocratie et la république en question. Paris: L’Harmattan, 2005.
GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1968.
HADAS, Moses. Roma imperial. Trad. Gulnara L. de M. Pereira e Iolanda S. de Toledo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.
LOBRANO, Giovanni. La respublica romana, municipale-federativa e tribunizia: modello costituzionale attuale. In Diritto@Storia: Rivista Internazionale di Scienze Giuridiche e
Tradizione Romana, Sassari, ano 3, n. 3, mai. 2004.
MONNIER, Raymonde. “Démocratie représentative” ou “république democratique”: de la querelle des mots (République) à la querelle des anciens et des modernes. In Annales historiques de la Révolution française, n. 325, 2006.

RENATO MOSCATELI é Mestre em História Social pelo Programa Associado de Pós-Graduação em História UEM/UEL, e doutorando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Membro do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa Rousseau. Autor de O Senhor das Letras: o Antigo Regime e a modernidade na literatura voltaireana (Eduem), e de diversos trabalhos publicados sobre o século XVIII francês, em seus aspectos históricos, políticos e filosóficos. E-mail: r057939@dac.unicamp.br

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