segunda-feira, 27 de abril de 2009

Rindo da história


Quatro séculos de Brasil nos versos de Murilo Mendes
Marcello Scarrone

O que é isso? Tiradentes numa cadeira elétrica, Antônio Conselheiro enfiado na igreja por seis meses enquanto o Exército dispara tiros contra Canudos, Pinzón é quem descobre o Brasil, mas a colônia portuguesa paga o Caminha para difundir outra versão? A história nacional virada de cabeça pra baixo, seus protagonistas retratados de forma irônica e irreverente, os fatos mais importantes revisitados com humor!

Quando Murilo Mendes publica, pela Editora Ariel, sua História do Brasil (1932), o país vive o momento dramático da luta sangrenta entre os paulistas e o governo federal, que se seguiu ao golpe de 1930. Talvez por isso a releitura leve e fantasiosa dos fatos nacionais feita pelo poeta mineiro não encontrou muito sucesso na época. Conservado na Divisão de Obras Gerais da Biblioteca Nacional, o livro, que só voltou a ser editado em 1991, exibe uma linda capa de Di Cavalcanti, na qual desfilam diante dos nossos olhos índias, imperadores, presidentes e outros personagens da história pátria.

compõem seu livro, passa de um assunto a outro, de um acontecimento a outro, fazendo os leitores sorrirem e pensarem. Da divisão das capitanias, descrita como se fosse a partilha do país nas mãos das multinacionais, à ambígua decisão de D. Pedro I no fatídico dia (“Eu fico, mas vou/falar com a marquesa./Já volto pra ceia./Falando em comidas/eu fico, pois não”). “O farrista” é o apelido dado ao anjo protetor do país e sempre ausente (“Quando o almirante Cabral/ pôs as patas no Brasil/o anjo da guarda dos índios/estava passeando em Paris/Quando ele voltou de viagem/o holandês já está aqui”), enquanto todo o Segundo Reinado é condensado numa rápida e arguta pincelada (“Uma vasta sonolência/invade toda a fazenda/O imperador de pijama/lê o Larousse na rede/O fato é que com essa calma/ cinqüenta anos se agüentou”).


Raro como edição, o livro é único (ou quase) dentro da produção do autor, que a partir de 1934, tocado pela morte de um amigo, se volta para o catolicismo e para uma poesia de sabor místico e espiritual, mais densa e profunda. A leveza irreverente de História do Brasil é quase renegada pelo poeta em anos posteriores, a ponto de ser excluída por ele próprio da edição completa de suas obras em 1959, por seu conteúdo “menor”. Mas aqueles versos permanecem como testemunho de amor ao país e como “um dos poucos livros nossos em que se afirma uma forte simpatia pelos oprimidos”, nas palavras do crítico Mário Pedrosa.


Entre ‘o café dos Emboabas’ e ‘o chicote de João Candido’, há espaço ainda para ‘os pombos do Pombal’ e ‘o tango de Solano Lopez’. O momento mais alto da poesia muriliana talvez se encontre na descrição da ‘força do Aleijadinho’: “A mão doente parou, / ficou suspensa no ar, / inutilizada no ar / (...) / A esculptura bem que pede / uma força bem maior / (...) / Então de dentro do corpo / do homem disforme e triste / sae uma boca de fogo, / sopra no corpo da estatua / que respira já promptinha / dá um abraço no esculptor”. E o ponto mais agudo de sua crítica às instituições e aos políticos em ‘Linhas Paralelas’: “Um presidente resolve / construir uma boa escola / numa vila bem distante. / Mas ninguém vai nesta escola: / não tem estrada pra lá. / Depois ele resolve / construir uma estrada boa / numa outra vila do Estado. / Ninguém se muda pra lá / porque lá não tem escola”.


Mas com certeza todo o humor e a ironia do poeta, nos moldes da melhor produção modernista, concentram-se no poema-piada ‘Homo Brasiliensis’, que proclama em alto e bom tom: ”O homem é o único animal que joga no bicho”.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

O samba da falsa mulher alegre


Rainha das noites de Copacabana, Dolores Duran criou uma nova forma de interpretar o samba e compôs pérolas da nossa música
Maria Izilda Santos de Matos

Negra, de rosto arredondado, os olhos sempre envoltos numa alegre melancolia, dentes da frente ligeiramente separados, corpo miúdo e um pouco gorducho, raciocínio rápido, vivaz, com um jeito meigo e triste, assim era Dolores Duran. Carregava consigo a melancolia guardada daqueles que vivem pela noite, em palcos enfumaçados, até de manhã. Para os amigos, entre eles os cronistas Sérgio Porto e Antônio Maria, ela era “uma falsa mulher alegre”. Para o público que apreciou as interpretações e composições de Dolores, ela foi uma estrela de brilho intenso e fugaz, que iluminou a música brasileira e se apagou subitamente, aos 29 anos.

Nos anos 1940 e 1950, Copacabana tornou-se o pólo efervescente da cidade. Duas décadas antes, o bairro não passava de um areal freqüentado apenas por aqueles que acreditavam nos milagres curativos do banho de mar. A ocupação urbana transformou a região, atraindo novos e abastados moradores. Mais tarde, com a oferta de imóveis mais acessíveis, chegaram ali pessoas de menor poder aquisitivo. Copacabana florescia: ir à praia deixava de ser uma extravagância para se tornar um programa tipicamente carioca, e a emergente vida noturna do bairro atraía cada vez mais gente à procura de boa música e um pouco de diversão.

Nessa época, os bairros da Lapa e do Estácio sofriam com fortes intervenções policiais. Prostíbulos e comércios locais eram fechados, gigolôs e malandros eram presos, e muitos intelectuais que agitavam esses tradicionais cenários da boêmia carioca transferiram-se para Copacabana. Neste novo reduto, que reunia bares, restaurantes, cassinos e, principalmente, boates, pares enamorados espalhavam-se pelas mesas, envoltos pela atmosfera de uma melodia tocada ao piano ou de um cantar sussurrado, que evocava o amor magoado e a dor-de-cotovelo.


Copacabana foi o palco da trajetória de Dolores Duran, para quem a noite começava obrigatoriamente na boate Cangaceiro, onde, quando estava especialmente feliz, bebia um coquetel de frutas. Porém, se um triste pressentimento lhe vinha – “a solidão vai acabar comigo”, como diz o verso de “Solidão”, uma de suas composições mais famosas –, uísque puro era a pedida. Batia um papo, soltava algumas piadas e depois ia cantar no Little Club. Dificilmente dormia antes do início da manhã; cantava até tarde nas boates, esticava o programa por aí, e chegava a ir assistir à primeira missa do dia no Mosteiro de São Bento, com o fundo musical dos cantos gregorianos.


Estrela em Copacabana, Dolores nasceu em 1930 no bairro da Saúde, centro do Rio de Janeiro, com o nome de Adiléia Silva da Rocha. Filha de um sargento da Marinha, passou a infância nos bairros de Irajá e Pilares, onde conheceu as agruras da vida suburbana carioca. A menina humilde não conseguiu concluir o curso primário; trabalhou como modista e balconista e, apesar da pouca instrução, tornou-se uma das mais intuitivas poetisas da música popular brasileira.


Com apenas seis anos, iniciou sua carreira artística cantando em diversos concursos e festas. Como era comum nos anos 1930 e 40, participou com sucesso de vários programas de calouros no rádio. Depois de causar uma boa impressão no concurso “À procura de uma cantora de boleros”, foi convidada para fazer um teste na boate Vogue, uma das mais sofisticadas do Rio. Aprovada, obteve um contrato de crooner, cantora de baile que interpreta sucessos de outros artistas. Tinha só 16 anos, e por isso foi obrigada a falsificar a idade em seu documento para poder trabalhar na noite. Para brilhar nos palcos cariocas escolheu o pseudônimo de Dolores Duran, nome que misturava a influência dos ritmos latinos com a cultura cinematográfica norte-americana.


A exigência de ter de embalar a platéia em diversos estilos musicais lhe daria grande versatilidade. Sua sensibilidade e sua afinação impressionariam o público. Interpretando de forma singular, exibia um belo domínio vocal e era capaz de fazer sofisticadas improvisações jazzísticas. Mesmo sendo considerada a rainha do samba-canção, Dolores também foi apontada como uma precursora da Bossa Nova, por seu estilo inovador de cantar. Era ainda uma grande imitadora de cantores nacionais e internacionais, reproduzindo com perfeição os timbres de voz, inclusive dos homens.


Com o sucesso na noite, sua carreira deslancharia: em 1955, a crônica especializada elegeu Dolores como a melhor crooner do Rio. Sua voz podia ser ouvida nas boates mais conhecidas – como Vogue, Beguine, Cangaceiro, Little Club, Baccará – e também em São Paulo, no Esplanada. Lançou o primeiro disco em 1952, quando gravou dois sambas de carnaval: “Que bom será” (de Ailce Chaves, Salvador Miceli e Paulo Marquez) e “Já não interessa” (Domício Costa e Roberto Faissal). Os primeiros sucessos viriam somente dois anos depois, com o lançamento de “Canção da volta” (Antônio Maria e Ismael Neto) e “Bom querer bem” (Fernando Lobo). Mas foi em 1956 que Dolores obteve um dos seus maiores sucessos: “Filha de Chico Brito” (Chico Anísio). No mesmo ano ingressou na caravana circense do ator Paulo Gracindo (1911-1995), com a qual percorreu os subúrbios cariocas, alternando suas apresentações em boates de luxo e no picadeiro. Depois de conquistar o circuito das boates, começou a sonhar mais alto, almejando o sucesso no rádio. A oportunidade apareceu quando César de Alencar (1920-1990) a levou para a Rádio Nacional.


Os anos 1940 e 50 ficaram conhecidos como a “época de ouro do rádio”. De todas as estações, a Rádio Nacional, sem dúvida, era a que mais se destacava. Com a difusão dos aparelhos, que se tornaram cada vez mais acessíveis ao público, o rádio passou a ocupar um espaço cada vez maior na vida dos brasileiros. O samba que era tocado nos programas radiofônicos começava, neste momento, a se diferenciar rítmica e poeticamente do formato tradicional do gênero. A cadência dos sambas mais antigos foi sendo substituída pela do samba-canção, mais lento, abolerado e centrado na temática da dor-de-cotovelo. Cantado em ambientes pequenos, à meia-luz, esse estilo dançante dominou a noite e encontrou nas casas noturnas e boates o clima ideal. O diversificado público passou a se identificar com o intimismo das letras dos sambas-canções e os versos singelos e sensíveis.


Alguns compositores se queixavam de que a interpretação que Dolores fazia de suas canções, mais do que uma nova versão, uma verdadeira releitura. Ela chegava, inclusive, a fazer pequenas mudanças nas letras. Com o tempo, revelou-se também uma compositora de mão cheia. Suas canções abriram espaço para novas compositoras e imprimiram uma linguagem poética centrada nos sentimentos femininos.


Conta-se que quando Dolores ouviu Tom Jobim (com quem comporia ainda “Se é por falta de adeus” e “Estrada do sol”) dedilhar a melodia de “Por causa de você”, logo se prontificou a fazer a letra. Encabulado, o maestro esclareceu que Vinicius de Moraes já havia escrito os versos. Dolores não se conformou; telefonou para Vinicius, e o poeta acabou reconhecendo que a letra dela era melhor.


Ah, você está vendo só do jeito que eu fiquei
E que tudo ficou
Uma tristeza tão grande nas coisas mais simples
Que você tocou


Algumas vezes, a inspiração surgia num trajeto noturno, como no caso de “Solidão” (1959), composta no caminho entre o Alto da Boa Vista e o Beco das Garrafas. Dolores parava o carro sob os postes de iluminação aqui e ali para compor versos como “Eu quero qualquer coisa verdadeira/ Um amor, uma saudade, uma lágrima, um amigo”. Conta-se que escrevia compulsivamente, mas grande parte deste material não foi preservada e, infelizmente, se perdeu.


A cantora também musicava suas próprias letras. Escreveu sozinha as composições que melhor caracterizam a singularidade de seu estilo, caso de “Castigo” (1958), “Noite do meu bem” (1959), “Fim de caso” (1959) e “Solidão”. Guardava a melodia na memória e depois cantarolava para alguém que a transcrevia na pauta. Os versos que compôs possuem a singeleza de uma conversa íntima. Falava de sentimentos muito conhecidos pelas mulheres da época: medo da solidão, a dor calada e aceita como castigo, carregada de culpa, marcada pela espera, amor sincero, fiel e carinhoso. Sem recorrer à pieguice, comum no samba-canção, suas composições alimentavam corações solitários e desiludidos, mostrando um amor exacerbado, com fortes imagens românticas: as rosas, a solidão da noite, a espera, a culpa e a procura.


Havia dias em que a inspiração lhe chegava de repente. Colega nos palcos das boates cariocas, a cantora Marisa Gata Mansa revela detalhes interessantes sobre como foi feita uma das mais famosas músicas de Dolores: “‘Fim de caso’ foi no Little Club, no Beco das Garrafas. Não tinha mais ninguém, quase 4 horas da manhã. Dolores estava sentada, violão no colo e uma folha de papel à frente. Como sempre, escrevendo com o lápis de sobrancelha. Perguntei o que ela estava fazendo e ela só me respondeu: ‘Pera aí, que eu estou terminando um negócio aqui’. E nasceu ‘Fim de caso’”.


Eu desconfio que o nosso caso
está na hora de acabar
Há um adeus em cada gesto,
em cada olhar.


Dolores procurava se manter sempre por dentro de novas tendências artísticas. Freqüentadora da noite, ouvia outros músicos e compartilhava impressões com Vinicius e Tom. As primeiras manifestações do que viria a ser conhecido como Bossa Nova desabrochariam no final dos anos 1950, nas mesmas noites de Copacabana. Como o céu que clareia de manhã, suas canções se transformavam, abandonando os desencontros amorosos, deixando o peso da noite para cantar a beleza do dia e a praia.


Apesar das recomendações médicas sobre suas fragilidades cardíacas, Dolores não refreou os excessos da vida boêmia. Na manhã de 24 de outubro de 1959, chegou em casa nas primeiras horas do dia, depois de se apresentar no Little Club e, como de costume, esticar a noite por aí. Antes de se deitar, disse à empregada: “Não me acorde. Estou muito cansada. Vou dormir até morrer”. Só à noite é que foi encontrada, vítima de um colapso cardíaco. A morte precoce, aos 29 anos, não a excluiu do quadro das grandes intérpretes e compositoras nacionais, deixando seu nome gravado para sempre na música popular brasileira. Toda a angústia do seu tempo, caracterizada pela dor de amor, a procura do amor idílico, as paixões interditas ou impossíveis, era traduzida nos versos que compunha.

Maria Izilda Santos de Matos é professora titular da PUC-SP e autora do livro Dolores Duran: Experiências Boêmias em Copacabana nos anos 50. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Da polícia do rei à polícia do cidadão


Concebida a partir de um modelo autoritário, desde os tempos de D. João VI a polícia desperta medo e desconfiança na população
Ana Paula Miranda e Lana Lage

Não era, com certeza, uma tarefa simples. Acomodar na cidade do Rio de Janeiro o príncipe regente e seu séqüito significava encontrar, num curto espaço de tempo, locais suficientes para hospedar de 12 a 15 mil pessoas. Mas o primeiro intendente de polícia Paulo Fernandes Viana a desempenhou com habilidade, em virtude dos amplos poderes que lhe eram atribuídos. Coube a ele garantir o cumprimento da lei das aposentadorias, que obrigava aquele que tivesse sua casa marcada com as letras PR, isto é “Príncipe Regente” (ou, como interpretava o povo, “Ponha-se na Rua” ou ainda “Prédio Roubado”) a entregar o imóvel para a acomodação dos recém-chegados.

A Intendência Geral de Polícia fora criada pelo Alvará de 10 de maio de 1808, dois meses depois de a Corte portuguesa aportar no Rio de Janeiro. Mantendo a mesma jurisdição que esse órgão tinha em Portugal, a atuação da polícia compreendia, além da manutenção da ordem pública, o cuidado com o espaço urbano, incluindo a responsabilidade de prover a limpeza, a salubridade, a iluminação, o arruamento da cidade, o abastecimento de água. A Intendência tinha também autoridade judicial sobre delitos que ameaçavam a ordem urbana, julgando e punindo os desordeiros, desocupados, escravos fugidos, capoeiras, ciganos, aventureiros.

Responsável pelo cargo até 1821, Paulo Fernandes Viana, entre outras providências, organizou a Guarda Real de Polícia da Corte, integrada pelo famoso major Miguel Nunes Vidigal (1745-1843), que foi imortalizado em Memórias de um Sargento de Milícias. O aviso de “Lá vem o Vidigal!” provocava fugas e tumultos. A chibata, arma usada por seus guardas, é que dava início à ação policial. Assim escreve Manuel Antônio de Almeida (1831-1861) no seu romance: “O Major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo o que dizia respeito a esse ramo de administração, era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não havia testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava; fazia o que queria e ninguém lhe tomava as contas. Exercia, enfim, uma espécie de inquisição policial”.

A ação violenta e arbitrária da polícia nessa época já era criticada por contemporâneos, como o jornalista Hipólito José da Costa (1774-1823), que escrevia, de Londres, o Correio Braziliense. Incomodado particularmente com a inclusão da censura à imprensa nas atribuições da Intendência, Hipólito criticava os excessos cometidos no Brasil, confrontando-os com as leis inglesas.


E, de fato, a criação da Polícia Metropolitana de Londres pelo ministro do Interior, Sir Robert Peel (1788-1850), em 1829, marcaria o surgimento de um outro modelo de polícia, cuja missão básica era prevenir o crime e a desordem, como alternativa à repressão pela força militar e à severidade da punição legal. Essa nova visão levaria à construção de um outro conceito de segurança, entendida como um bem público e universal, que deveria ser garantido pelo Estado sob a forma de um serviço oferecido à sociedade, sem distinção de classe social e sem interferência da política local.


No Brasil, o surgimento das instituições policiais teve como característica principal a ação repressiva voltada para a manutenção da ordem pública diante da crescente diversidade social e étnica do século XIX. O poder discricionário da polícia se tornou liberdade de ação frente aos preceitos legais e normativos, e o arbítrio foi considerado o principal instrumento de controle e manutenção da segurança do Estado, gerando uma tradição de desrespeito aos direitos individuais. O excesso de poder revelou-se uma característica quase “natural” do exercício da autoridade policial, funcionando como um mecanismo de aplicação extralegal da justiça.


Esse padrão prevaleceu por toda a época imperial e resistiu às mudanças republicanas, que não conseguiram garantir os direitos civis para toda a população. Não houve interação entre polícia e sociedade, uma vez que as práticas policiais continuaram arbitrárias. A chibata dos tempos do Vidigal foi substituída pelo conhecido “pé na porta”, que ainda hoje dá início à ação policial junto às populações pobres.


Durante o regime militar, após o golpe de 1964, a segurança pública passou a ser tratada como prioridade a partir da Doutrina de Segurança Nacional, resultando no aprofundamento do modelo autoritário da instituição policial, voltada para o total controle da informação na luta contra o inimigo interno — as organizações políticas de esquerda. A tortura, prática rotineira nas delegacias em todo o país, tornou-se visível para a sociedade nacional ao atingir outros grupos sociais, em especial os de classe média, o que favoreceu o fortalecimento de campanhas contra o regime.


Os anos 1980 se caracterizaram pela rejeição da concepção militarizada da ação policial, identificada como “herança da ditadura”. Setores de esquerda, com diversas orientações partidárias, demandavam a remodelação e a modernização das instituições policiais, com a adoção de linhas de ação que respeitassem os direitos dos cidadãos.


A Constituição de 1988 representou uma mudança na concepção da segurança pública. Além de “dever do Estado”, como afirmava o art. 144, ela passou a ser também responsabilidade de todos, o que significava, formalmente, o reconhecimento de um Estado democrático, no qual a concepção de ordem está diretamente relacionada às atitudes e valores do cidadão, quer isoladamente, quer em coletividade.


O processo de redemocratização do Brasil trouxe uma expectativa de expansão de direitos individuais, políticos e sociais mediante a concretização do estado de direito. No entanto, tem-se observado a permanência do exercício arbitrário e ilegal do poder, que tem resultado em uma série de violações, entre as quais se destaca a violência da polícia, que significa o abuso da força nas suas intervenções, particularmente da força letal, bem como o uso da tortura para obter confissões nas investigações e para garantir o controle dos presos. Todas as evidências indicam que essa brutalidade é exercida fundamentalmente contra alguns dos grupos mais vulneráveis da sociedade: moradores de favelas ou bairros pobres, e negros.


A violência policial representa uma das graves manifestações de violação de direitos humanos no Brasil. Se, por um lado, a instituição tem a atribuição do uso da força física, isto deve se dar a partir de limites claros, fundamentados nas leis. Mas as práticas cotidianas das polícias revelam que não há efetivamente clareza acerca dos limites do trabalho policial.


A conseqüência desse quadro é uma forte deslegitimação das instituições policiais, que são percebidas com desconfiança e descrença pela população, o que não significa a negação do papel da instituição. Grande parte da sociedade civil tem reivindicado que as organizações policiais atuem no sentido de manter e preservar a ordem pública, mas espera que a atuação cotidiana delas aconteça sem a violação de garantias individuais e coletivas. O desafio que se coloca é como utilizar a força baseando-se na legalidade e na legitimidade.


No entanto, há uma parcela da sociedade civil que deseja uma polícia mais repressiva e violenta para os criminosos, a partir de uma concepção de direitos que se aplica apenas aos que são considerados cidadãos de bem. Ao negar-se a universalização de direitos e apoiar as estratégias de “guerra contra o crime”, defende-se a permanência de práticas autoritárias, que historicamente têm se mostrado ineficazes, porque não dão conta de dois aspectos fundamentais: a manutenção da ordem pública não se dá com o extermínio da diferença e a democracia não se consolida pelo uso da violência.


Ana Paula Miranda é professora da Universidade Candido Mendes (Ucam) e diretora-presidente do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP).

Lana Lage é professora titular da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf) e coordenadora de projetos do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Eva, “mulher de vida livre”


Discriminadas pelo resto da população, prostitutas de Tocantins afirmam com orgulho sua condição e suas escolhas
Temis Gomes Parente

No dia 8 de agosto último, Marinalva, uma garota de programa, foi gravemente ferida a tesouradas por um empresário na cidade de Palmas (TO). Motivo: a namorada do homem, após descobrir que ele costumava sair com aquela prostituta, lhe pedira uma “prova de amor”, que se materializou na agressão. A violência no cotidiano destas mulheres pode manifestar-se de forma brutal, como no caso de Marinalva, noticiado pelo Jornal do Tocantins, ou de outras garotas de programa espancadas recentemente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Ou de maneira mais sutil, por meio do preconceito e da discriminação, que as relegam à condição de seres quase subumanos.

No âmbito de uma pesquisa com as prostitutas de Tocantins para reconstruir a história de algumas cidades coloniais do estado, entrevistamos em 2004 Eva Garcia, que foi, na década de 1970, uma das prostitutas mais conhecidas da cidade de Porto Nacional. Ela morreu em 2005, aos 61 anos, na mesma casa da Rua Bartolomeu Bueno onde exerceu suas atividades de “mulher de vida livre”, expressão que preferia à denominação “prostituta”. Por quê? “Porque faço o que quero, na hora que quero, e não tenho que dar satisfação a ninguém”. Por ter conseguido adquirir o imóvel em que morava, ela foi a única prostituta que conseguiu permanecer na antiga zona de meretrício, transferida, nas três últimas décadas, para áreas mais distantes.

Porto Nacional é uma das poucas cidades de passado colonial do Tocantins. Localiza-se a 60 quilômetros da capital, Palmas, e é considerada o berço da cultura do antigo norte do estado de Goiás. Era também conhecida como a capital intelectual da região, atributo a ela conferido desde o início do século XX, com a chegada dos dominicanos, responsáveis tanto pela educação quanto pela disseminação de preceitos morais e religiosos naquele contexto social.

Nos anos 1970, Porto Nacional era a cidade mais desenvolvida da região. Na época, a zona de prostituição era delimitada por fronteiras imaginárias que não podiam ser ultrapassadas pelas moças respeitáveis nem pelas senhoras casadas. A cidade acabava sendo dividida em duas partes: uma, onde moravam as mulheres de “vida livre”, e a outra – a “cidade deles”, na expressão de Eva Garcia –, habitada por gente “de bem”.


Apesar de conhecidas por todos, as casas de mulheres localizavam-se em ruas pouco movimentadas e distantes dos centros comerciais onde circulava a burguesia. Eva tinha uma percepção clara desses limites. Quando abandonou marido e filhos em Anápolis (GO), foi morar numa dessas casas. Mas as fronteiras que separavam as prostitutas do resto da cidade foram sendo rompidas, paulatinamente, no processo de desenvolvimento urbano.


As famílias reclamavam que o comportamento das “mulheres de vida livre” não condizia com o código moral da comunidade. Os conflitos eram inevitáveis, conforme o relato de Eva Garcia: “Nesse tempo, as pessoas todo dia iam à delegacia dar parte de nós”. Quando era dia de festa religiosa, “a gente fechava as casas e ia à procissão, todo mundo olhava torto, mas nós não ligava, não”.


O preconceito não era manifestado só pelos adultos, mas também pelas crianças, provavelmente induzidas pelo comportamento dos pais. Por circular em locais para ela proibidos, Eva Garcia chegou a ser apedrejada, como a Maria Madalena da Bíblia, por um grupo de meninos: “Nesse tempo, eu tinha cabelo louro e eles gostavam de me chamar de cabeça de guariba [tipo de macaco]: ‘Ei, cabeça de guariba’, e tacavam pedra”.


À medida que as famílias “de bem” iam ocupando os espaços antes destinados às casas de mulheres, as prostitutas se viram obrigadas a recuar para locais cada vez mais distantes, onde não podiam contar com benfeitorias patrocinadas pelo poder público, como energia elétrica e água encanada.


As “mulheres de vida livre” como Eva Garcia tinham, assim, uma percepção do espaço urbano totalmente oposta à do discurso oficial. Enquanto este apontava Porto Nacional como uma cidade progressista, elas viviam em permanente estado de guerra, no seu dia-a-dia, pela sobrevivência. A violência contra as prostitutas não se resume, portanto, à agressão física que vitimou Marinalva, a infortunada garota de programa. Ela se aloja nas fibras da sociedade formal e pode se manifestar também pela omissão e pelo silêncio.

Temis Gomes Parente é professora da Universidade Federal do Tocantins e autora do livro O avesso do silêncio: vivências cotidianas das mulheres do século XIX (Goiânia: Editora UFG, 2006).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Juventude ferida


Embora a legislação brasileira tenha se aprimorado, o Estado mostra-se particularmente inábil para lidar com a questão do jovem em conflito com a lei
Paula Miraglia

Foi sob esta manchete – “Menor assalta criança na porta da escola” – que há alguns anos um jornal brasileiro noticiou o assalto praticado por um jovem contra uma criança, pouco mais nova que ele. A aparente contradição da frase expressa uma associação específica entre infância, juventude e violência que se tornou linguagem corrente na sociedade brasileira.

A questão do menor não é tema recente no país. Constantemente associado ao fenômeno da urbanização das cidades, o envolvimento da juventude com o crime – sobretudo da juventude em situação de risco – vem sendo amplamente debatido ao longo dos últimos cem anos no Brasil. A palavra “menor”, quando mencionada em relação a crianças e adolescentes, teve nesse percurso uma variedade de significados.

No final do século XIX, o termo designava a criança pobre e marginalizada pela sociedade. Já na virada do século, “menor” deixou de ser um indicativo apenas de idade e passou a definir a responsabilidade de um indivíduo perante a lei. Mas já então abrangia, além das crianças que cometiam delitos, também as pobres ou abandonadas. Hoje, a expressão “menor infrator” condensa as imagens de pobreza e criminalidade, bem como o medo que esse personagem provoca no dia-a-dia das metrópoles.

Se os jovens aparecem como protagonistas da violência, os números mostram, no entanto, que eles são também suas vítimas primordiais. O aumento das taxas de homicídios no Brasil está imediatamente relacionado ao crescimento do número de crimes praticados contra a juventude, atingindo majoritariamente jovens do sexo masculino e da “cor” ou “raça” negra.
“Criminosos”, “meninos”, “jovens infratores”, “adolescentes”, “menores”, “jovens em conflito com a lei”. A variedade, bem como o desconforto que provoca a nominação, expressa a ambigüidade da sua condição, as particularidades e os desafios das políticas de enfrentamento da violência juvenil no Brasil ao longo da história.


De acordo com o primeiro Código de Menores brasileiro, de 1927, o juiz de menores era a “autoridade competente”, e a ele cabia vigiar e fiscalizar as irregularidades sofridas ou cometidas por crianças e jovens. A partir de 1941, a infância desamparada passou a ser alvo de intervenção do Serviço de Assistência aos Menores (SAM). Em meados dos anos 1960, o SAM foi substituído pela Funabem (Fundação Nacional para o Bem-Estar do Menor).


A Febem (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor), braço estadual da Funabem, surgiu na década de 1970, durante o regime militar, como uma tentativa de redirecionar as políticas relativas à reabilitação de jovens delinqüentes, vinculando a questão do menor à questão da segurança nacional.


As sucessivas rebeliões nesta instituição, elementos constantes de sua história recente, têm um enredo comum que parece se intensificar a cada episódio: conflitos, fugas, destruições, repressão. Esses eventos contribuíram para que a Febem se tornasse um dos símbolos mais contundentes da violência, da desorganização e do medo que caracterizam o cotidiano da metrópole paulistana. E, além disso, revelam, ao longo de todos esses anos, a ineficácia da proposta educativa do modelo, que falha na sua tarefa de ressocializar.


A ação de movimentos sociais durante toda a década de 1980 permitiu que, na esteira do processo de democratização política pelo qual passava o país, se configurasse uma nova legislação, específica para a infância e a adolescência. A Constituição Federal de 1988 e a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em vigor desde 13 de julho de 1990, são marcos históricos na construção de uma nova idéia de cidadania no que diz respeito à juventude.
O ECA surgiu como um instrumento de desenvolvimento social, e não de controle social da infância e da adolescência, tal qual a legislação anterior. Numa tentativa de desfazer estereótipos criados a partir da associação entre menor, crime e delinqüência, fala em “ato infracional” em vez de crime, “adolescente” ou “pessoa em desenvolvimento”, em contraposição aos termos “menor” ou “delinqüente juvenil”, “medida socioeducativa” e não “pena”.


Mas se a lei vem se aprimorando ao longo dos anos, o aparato para executá-la não parece acompanhar o mesmo passo. O Estado, de maneira geral, não tem dado conta dos desafios impostos pela violência que vitimiza o país, e se mostra particularmente inábil em relação aos jovens que cumprem medidas socioeducativas. Estes, por sua vez, respondem com doses ainda maiores de violência, estabelecendo um ciclo que precisa ser urgentemente quebrado.


Paula Miraglia é diretora executiva do ILANUD (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente) e autora da dissertação “Rituais da violência – a Febem como espaço do medo em São Paulo” (USP, 2002).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Assassinos no poder


Ação de grupos de extermínio dá lucro à contravenção e favorece a ascensão de políticos ligados ao crime na Baixada Fluminense
José Cláudio Souza Alves

A Baixada Fluminense é um imenso campo de concentração sem arame farpado. Ali, 2.500 pessoas são assassinadas por ano, à razão de cinco a seis por dia. A média – 76 assassinatos por 100 mil habitantes – é bem superior ao número de homicídios (50 por 100 mil habitantes) que caracteriza, conforme os padrões da ONU, regiões conflagradas pela guerra. A Baixada se situa a oeste da cidade do Rio de Janeiro e é formada por oito municípios: Duque de Caxias, Belford Roxo, Mesquita, São João de Meriti, Nilópolis, Nova Iguaçu, Queimados e Japeri. Sua população tem sofrido, de forma crônica, com a violência desmedida, sem esperança de que a matança chegue um dia ao fim.

Embora as execuções sumárias já ocorressem antes na Baixada, a ação organizada dos matadores associa-se diretamente à ditadura militar. Ainda nos anos 1950, integrantes de grupos como os “Homens de Ouro” (policiais protegidos por superiores com liberdade para agir arbitrariamente, inclusive matar) ou mesmo policiais isolados ganharam notoriedade e fama de “justiceiros” na região assassinando supostos bandidos. Mas é a partir de 1967, quando recrudesce a política de segurança do regime militar, que ocorre um crescimento vertiginoso de homicídios dolosos com características de execuções sumárias: pessoas alvejadas de cima para baixo e a curta distância. Marcas de algemas nos pulsos das vítimas, entre outros indícios, revelavam que elas haviam sido presas antes pela polícia.

Nos seis primeiros meses de 1975 foram registrados 198 homicídios de autoria desconhecida na Baixada Fluminense. Como resposta, o então secretário estadual de Segurança Pública criou um grupo especialmente designado para desvendar os crimes insolúveis atribuídos ao que se chamava de “esquadrão da morte”. O grupo levantou que, entre 1956 e 1962, em toda a comarca de Nova Iguaçu – que compreendia, além da própria sede, atual cidade de Nova Iguaçu, vários distritos que posteriormente se tornariam cidades emancipadas, como Belford Roxo, Mesquita e Queimados – tinham ocorrido seis homicídios com características de execução sumária. Nos anos seguintes – entre 1963 e 1975 –, contavam-se 654 casos, cem vezes mais que os números do período anterior.

A média de assassinatos na Baixada Fluminense – 76 por 100 mil habitantes – é bem superior à marca estabelecida pela ONU para caracterizar uma zona de guerra

Os casos investigados pela polícia e relatados pela imprensa da época confirmam o que continua ocorrendo nos dias de hoje: a participação direta de integrantes dos vários órgãos da segurança pública – policiais militares e civis, bombeiros e guardas municipais – nos assassinatos. Mas se eles eram os executores das ações, havia os que as financiavam. Eram comerciantes e empresários da Baixada que passaram a usar os grupos de extermínio como forma de “limpeza social”, ou seja, a eliminação sumária dos que poderiam pôr em risco os seus ganhos. Os que não apoiavam essa prática eram ameaçados e roubados pelos próprios membros dos grupos de extermínio, sendo obrigados a financiá-los sob pena de prejuízo nos seus negócios.
Na outra ponta desse triângulo se encontravam os que davam suporte à atuação dos exterminadores: políticos locais com estreitas vinculações com autoridades ligadas à ditadura. Neste jogo, obtinham dupla vantagem. Conquistavam prestígio junto aos eleitores ao eliminar supostos marginais e garantiam os lucros de comerciantes e empresários que financiavam suas campanhas eleitorais. É óbvio que esses políticos se valiam dos assassinos de aluguel para resolver os próprios conflitos relacionados à disputa política e ao controle eleitoral nas suas áreas de atuação.


Ao processo de redemocratização, durante o qual o projeto da ditadura começou a perder força, correspondeu um momento de mudanças no funcionamento dos grupos de extermínio da Baixada. O aumento das denúncias, por parte de movimentos sociais, igrejas e imprensa, passa a exigir que o envolvimento do aparato público de segurança nas execuções sumárias seja reduzido. Teve destaque no período a corajosa atuação de D. Adriano Hypólito, bispo da diocese de Nova Iguaçu.


Vítima de um atentado praticado por agentes ligados aos órgãos de segurança numa ação clandestina, o religioso foi seqüestrado, despido, pintado de vermelho, e teve seu carro explodido em frente à sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, no Rio de Janeiro, em 1976. Mas ele não se intimidou e continuou a fazer denúncias, tendo identificado em 1983, por indicação de uma testemunha, um grupo de extermínio que atuava na área de sua diocese.


Nessa época, o “Mão Branca” ocupava as páginas dos jornais. Seria o nome, de conteúdo claramente racista, por trás do qual vários grupos de extermínio se escondiam, a fim de confundir possíveis investigações. Esses grupos ganham, então, mais autonomia e independência, acolhendo não só membros dos aparelhos de segurança, mas também cidadãos civis. Tornam-se, progressivamente, donos da própria voz, que antes pertencia aos seus contratantes. É assim que, nos anos 1990, assiste-se à ascensão política de matadores eleitos democraticamente vereadores, deputados estaduais e prefeitos de importantes cidades da Baixada Fluminense.


No combate aos grupos de extermínio nesse período destacou-se o delegado Hélio Luz, titular da Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense. Sua ação contribui para reduzir em 25% o número de homicídios na região. A promotora pública Tânia Maria Salles Moreira, por sua vez, levou à condenação dezenas de matadores da Baixada. No final da década de 1990 e início da de 2000, ocorre uma retomada, por parte do aparato policial, do controle das execuções sumárias. A chacina de 31 de março de 2005, perpetrada por policiais, na qual 29 pessoas foram assassinadas nas cidades de Queimados e Nova Iguaçu, tornou-se o símbolo dessa nova fase.


A ação dos grupos de extermínio não se esgota em si mesma. Envolve roubos, assaltos, estelionato, corrupção e tráfico de armas e de drogas, jogo do bicho e a indústria da jogatina (caça-níqueis e bingos), articulando-se diretamente tanto ao mercado econômico quanto às estratégias políticas de controle eleitoral.

É falsa a idéia de um poder atuando paralelamente ao Estado: é justamente dentro do Estado que se aloja a estrutura de funcionamento desses grupos criminosos

Qual é a reflexão a que a violência aqui analisada nos conduz? A primeira e fundamental é a de que é falsa a expressão, comumente utilizada na mídia, de que existe um poder paralelo ao Estado, formado pelo crime organizado. É justamente dentro do Estado que se aloja a estrutura de funcionamento desses grupos criminosos, que vivem da economia gerada por ações ilegais e violentas. Mas o lucro principal são as vantagens de determinados grupos políticos na obtenção de votos. A atuação cada vez mais violenta do aparato policial em comunidades pobres, em nome da segurança dos cidadãos de bem, costuma agradar à classe média e, conseqüentemente, rende dividendos políticos aos que a defendem. Só que, nessas ações, centenas de pessoas são mortas e feridas, milhares de crianças ficam impedidas de ir às aulas e operários não conseguem chegar ao trabalho, pois, se o fazem, arriscam-se a serem mortos.


Nas comunidades pobres, os votos são obtidos por práticas assistencialistas e clientelistas: o que deveria ser direito de todos se transforma em favores concedidos por algum político. Em muitos casos, os grupos que controlam o tráfico de drogas fazem acordos com candidatos a cargos eletivos, pelos quais estes passam a ter acesso quase exclusivo a determinada comunidade. O que a mídia chama hoje de “milícias” nada mais são do que grupos de extermínio que mudaram de nome. Encobrem os crimes praticados por policiais, que passam a controlar o poder político e econômico nas favelas, substituindo as facções criminosas.


Essas milícias, anteriormente chamadas também de “polícia mineira”, têm sua origem vinculada ao financiamento que os comerciantes da favela Rio das Pedras (em Jacarepaguá, município de Rio de Janeiro) davam a policiais para impedir a entrada ali do tráfico de drogas. A partir dessa experiência bem-sucedida, outros grupos de policiais começaram a controlar várias outras comunidades, passando a cobrar taxas dos moradores pela virtual segurança que oferecem em troca de serviços ilegais, entre eles a entrega de bujões de gás, o transporte de moradores e o acesso à TV a cabo e à Internet. Passam a controlar também o tráfico de drogas e de armas.


O poder político e econômico gerado pelo crime aprofundou suas raízes ao longo do tempo, alterando a própria realidade de funcionamento do Estado e do mercado. Para se entender o nosso campo de extermínio em massa na Baixada Fluminense é preciso olhar diretamente para aqueles que se beneficiam com isso. Grupos políticos e econômicos estão diretamente envolvidos. Junto com eles, assassinos e criminosos, policiais ou civis, fazem parte de uma imensa rede que movimenta milhões em dinheiro e em votos. Por trás do lema utilizado por um político fluminense egresso dos grupos de extermínio – “bandido bom é bandido morto” –, oculta-se não apenas o crime anunciado, mas a aprovação da prática da execução sumária pelos que o elegeram.


O fato é que a matança de pobres e favelados, na maioria negros, moradores de periferia sem acesso à educação e à saúde, beneficiou e vem beneficiando, ao longo do tempo, vários grupos sociais, econômicos e políticos do Rio de Janeiro. Identificar a forma como essas práticas criminosas se perpetuam é crucial para compreendê-las e erradicá-las. Desmistificar os discursos que dão como necessária, para o bem social, a eliminação de “vagabundos” e “bandidos” pode contribuir para o surgimento de candidatos que rejeitem a prática clientelista e lutem pela emancipação dessas populações atingidas e aprisionadas pela violência.

José Cláudio Souza Alves é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autor do livro Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense (APPH-Clio, 2003)

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Cidade de Deus e condomínio do diabo


Criado para abrigar ex-favelados, conjunto habitacional reproduz, no plano horizontal, a violência do tráfico e todas as mazelas sociais dos morros cariocas
Alba Zaluar

Quando cheguei na Cidade de Deus em 1980, os habitantes do local já viviam sob a tensão dos conflitos armados entre traficantes de drogas ilegais. Primeira guerra de quadrilhas na cidade do Rio de Janeiro e amplamente noticiada pela imprensa, a luta entre grupos rivais acontecia cerca de dez anos depois da transferência para lá de moradores de 63 diferentes favelas da cidade.

Em discussão já nas décadas anteriores, a política de remoção de favelas tomou corpo no começo dos anos 1960, durante o governo de Carlos Lacerda (1960-1965). No projeto original, a transferência seria acompanhada de medidas de cunho social e a construção das casas populares para os favelados não visaria o lucro. Mas quando a política foi implantada com força, durante o regime militar, houve mudança compulsória dos moradores das favelas e destruição imediata dos barracos vazios. Paralelamente, foi montada uma política habitacional para contornar a insatisfação presente na sociedade e a oposição ao governo. O sonho da casa própria, junto com os empregos gerados pela construção das habitações populares, seria o “bálsamo” para as “feridas cívicas” e o descontentamento de muitos, nas palavras da secretária de Serviços Sociais do estado da Guanabara, Sandra Cavalcanti, quando propôs a fundação do Banco Nacional de Habitação. Criado em outubro de 1964, o BNH tinha a finalidade de vender a prazo habitações construídas para todas as classes sociais. No final da década de 1960, mudanças políticas no governo federal transformaram a construção das casas populares em finalidade lucrativa, sem os fins sociais originais: os custos da edificação seriam integralmente pagos pelos beneficiados, com lucros para o sistema.

Construído inicialmente com o dinheiro da Aliança para o Progresso (organização de ajuda econômica e social para a América Latina criada pelos Estados Unidos em 1961), o conjunto habitacional de Cidade de Deus foi idealizado para abrigar os favelados removidos da Zona Sul da cidade. Outros conjuntos, como a Vila Aliança ou a Vila Kennedy, ficavam nos subúrbios distantes e receberiam moradores de outras zonas do Rio de Janeiro. Único localizado perto da orla marítima, e, portanto, da área urbana mais rica, Cidade de Deus era o conjunto maior, tendo inicialmente 6.658 unidades habitacionais, ao passo que a Vila Kennedy reunia 5.509 unidades e a Vila Esperança, apenas 464. Além de favelados removidos, ele receberia boa parte dos flagelados da enchente de 1966, apressadamente colocados nas casas de triagem, concebidas como provisórias, mas que estão lá até hoje.


Dois momentos foram especialmente dramáticos para os removidos. Primeiro, a própria remoção, que os obrigou a deixar para trás empregos, vizinhos, amigos, associações vicinais e seus precários barracos de então. A Cidade de Deus não tinha iluminação pública nem rede de transporte eficiente. Os trabalhadores saíam na companhia dos filhos às 4 horas da manhã, andando no escuro durante uma hora, pelo mato, até chegarem ao ponto de ônibus mais próximo.


Segundo momento, o despejo dos que deixaram as prestações atrasadas durante meses. Os que não conseguiram chegar a um acordo com a Companhia de Habitação Popular (Cohab), construtora dos conjuntos habitacionais, tiveram que enfrentar uma segunda expulsão. Mas os moradores se vingaram dos defensores da remoção e reproduziram no plano horizontal, cheio de ruas e praças, todas as formas de associação e todos os problemas que existiam nas 63 favelas de onde vieram. Acrescidos de mais um: a guerra de quadrilhas.


Em 1980, os jovens da Cidade de Deus já falavam em fuzis e “três-oitões” com orgulho inconseqüente. Quanto mais mortífera e cara a arma, mais admiração passava a despertar nos colegas e vizinhos por causa do poder que se associava a ela. Mais do que consideração ou reconhecimento, era e é uma questão de poder: e para garanti-lo, era e é preciso usar a arma. Eliminar membros de quadrilhas ou comandos inimigos com esses instrumentos da morte aumenta esse poder, que se baseia no medo e no respeito pelo matador. Estava criado um estilo de masculinidade violento e cruel, que matará milhares de jovens nas décadas seguintes.

Alba Zaluar é professora de Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autora de Condomínio do Diabo, Rio de Janeiro: Editora da UFRJ e Revan, 1994.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

A escola do sol quadrado


Em 1879, um chefe de polícia instituiu experiência inédita no Paraná: uma escola primária para os presos de Curitiba. A intenção era cuidar de sua “higiene moral”
Valter Martins

Imigrantes vindos de todo lado e o aumento da exploração da erva-mate provocaram muitas mudanças na Província do Paraná no final do século XIX. Sua capital, Curitiba, se modernizava: surgiam o hospital, um museu, a biblioteca pública, associações literárias, dois jornais, e começava a construção da ferrovia que ligaria a cidade ao porto de Paranaguá. Outras novidades eram o telefone, o telégrafo, bondes, iluminação a gás, o Passeio Público. A população crescia e também o número dos errantes e dos sem trabalho: tudo isso, associado ao hábito de muitos de circular armados, aumentava a insegurança dos habitantes.

Entre os largos da Matriz e do Mercado ficava a cadeia de Curitiba. Seu edifício tinha capacidade para 60 presos. Nas vizinhanças, o Beco do Inferno e a Rua Alegre davam o tom da vida mundana, em contraste com os atos piedosos na Igreja de Nossa Senhora da Luz.

Ao assumir a chefia de polícia da província em abril de 1879, o juiz de direito Luiz Barreto Correa de Menezes encontrou o que chamou de “péssimo regime”. Loucos, criminosos e presos por pequenos delitos dividiam as mesmas celas. Para ele, o sistema das prisões paranaenses era anacrônico, já condenado nos países civilizados: daquela forma, a cadeia era uma escola do crime. Ordenou, então, a separação dos presos. Em dezembro de 1880, após reformas no prédio, a cela no1 abrigava os processados e pronunciados; a no 2, os detidos e escravos; a no 3, os condenados às galés (presos agrilhoados condenados a trabalhos forçados) ; a no 4, os condenados à prisão simples ou com trabalho. Na cela 5 funcionava a escola de ensino primário; a no 6 era a prisão feminina; na cela 7 ficavam os militares infratores e a cela 8 era a solitária.

O chefe de polícia afirmava que cabia ao poder constituído lutar para regenerar os encarcerados. Um caminho era o trabalho, que chamou de “higiene moral do preso”. Desejava instalar na cadeia uma oficina para evitar a ociosidade e inspirar o amor ao trabalho. Outro caminho era a educação, para que os presos não vivessem na ignorância e tivessem chances de se reintegrar à sociedade.

A idéia de Menezes de criar na cadeia de Curitiba uma escola primária – inédita no Paraná, mas já realidade em outras províncias – foi adiante, e uma cela foi adaptada para sala de aula. O presidente da província na época definia como lamentável a situação da instrução pública, e afirmava que ela deveria ser difundida em todas as classes sociais. O analfabetismo era visto como causa de atraso moral e intelectual, sendo associado à criminalidade. Mesmo assim, não se cogitou estender às mulheres presas os benefícios da escola de primeiras letras.

Na cerimônia de inauguração (era o emblemático 7 de setembro de 1879), o delegado Euclides Francisco de Moura declarou que naquele dia rasgavam-se muitas páginas do medonho livro do crime. Que os alunos aproveitassem a oportunidade de esclarecer a razão porque a educação era o pão do espírito. Lembrou que abrir escolas era fechar cadeias, e entregou para uso didático exemplares da Gramática Portuguesa, da Lei de Deus e do Novo Testamento.

Instalada a escola, as aulas começaram: todos os dias, do meio-dia às 3 da tarde, menos domingos e dias santos. Após a entrada dos alunos, a porta da sala era fechada pelo carcereiro, e aberta somente no fim das lições. Estudava-se leitura, escrita e gramática por duas horas, e no restante do tempo, aritmética e doutrina cristã.

O primeiro professor, Pedro Antonio da Silva, cumpria pena por homicídio desde 1854. Sem preparo, fez o que pôde enquanto um professor habilitado não era nomeado. Dos 19 alunos, o mais jovem tinha 19 anos e o mais velho, 62, e vinham de diferentes lugares: oito paranaenses, um português, um alemão, um fluminense, três paulistas, dois gaúchos, um mineiro, um amazonense e um baiano. As penas deles eram pesadas, como a de Manoel Marques dos Santos, 25 anos, condenado à prisão perpétua por homicídio. A maioria dos presos estava atrás das grades por homicídio, mas havia também escravos fujões, praças do Exército ou pessoas detidas por bebedeira, desordem, gatunagem, defloramento, estupro, poligamia, demência.
Mesmo sendo veterano na cadeia, Pedro Antonio enfrentava problemas com seus alunos e pares. Às vezes, por uma ou outra razão, alguns presos davam um jeito de não assistir à aula. Houve também evasão escolar. Na madrugada de 25 de setembro de 1886, o aluno Horácio Cardoso fugiu, mas sabendo ler e escrever.

Foi na escola da cadeia que muitos homens tiveram contato com livros, penas e lápis. Para alguns deles, abria-se o mundo da leitura e da escrita, que podia aliviar o tédio da prisão e ser útil um dia, na liberdade. Com o mínimo necessário ao seu funcionamento (quadro-negro, giz, esponja, régua, ponteiro para o quadro, mesa com gaveta e cadeira para o professor, campainha e verbas irrisórias), a escola da cadeia de Curitiba sobreviveu até 1888. A escola podia ter muitos limites, mas certamente contribuiu para tornar alguns homens melhores e capazes de se reintegrar à sociedade.

Valter Martins é professor de História na Universidade Estadual do Centro- Oeste (UNICENTRO), Campus de Irati/PR.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Duas vezes de fogo


Há muito tempo os conflitos no Brasil são agravados pelo uso de álcool e pelo porte de armas, que aumentam a violência
Ivan de Andrade Vellasco

“Acusou-o de ser vagabundo e por isso foi morta. Era sua irmã!” O que poderia ser manchete nos jornais sensacionalistas de hoje ocorreu em 1876 em Minas Gerais, na cidade de São João del-Rei. Justino feriu a vítima com “instrumento cortante e perfurante do lado esquerdo do corpo em direção ao coração”, o que veio a provocar sua morte. O motivo do crime foi uma repreensão feita pela vítima por ele ter-se recusado a ajudar seu marido. Ela disse que ele deveria “dar-se ao trabalho”, já que era procurado por cobradores. Em outras palavras, a irmã acusou-o de vagabundagem e foi esfaqueada no coração. Justino estava embriagado.

Assim como hoje, dois problemas sérios multiplicavam a violência e os crimes na época do Império: o uso generalizado de armas e a embriaguez. Associados, tinham um efeito explosivo. Qualquer um que já tenha tido contato com fontes criminais do período certamente se deparou com a enorme freqüência do abuso das “bebidas espirituosas” como causa determinante dos enredos de mortes e violências. Como esperar bons resultados da reunião de homens violentos, armados e alcoolizados? O consumo de cachaça, a julgar pelos dados existentes sobre sua produção e comercialização, somado às descrições de viajantes, parecia ser um hábito fortemente arraigado. O viajante e aventureiro inglês Richard Burton (1821-1890), que andou pelo Brasil entre 1865 e 1868, escreveu que “a facilidade de se encontrar bebida barata e forte” fazia “uma raça de grandes bebedores”, e acrescentava: “começam o dia com um gole ‘para espantar o diabo’. Há um segundo ‘mata-bicho’, que, como diz a velha pilhéria, não há jeito de morrer. Depois de quebrar o jejum, às sete ou oito da manhã, um terceiro”, e por aí iam as coisas.

Rita Paulina estava em sua residência, na Rua da Cruz, também em São João del- Rei, quando Manuel Agostinho invadiu a casa e, usando um chicote e uma faca, agrediu-a gravemente, ferindo-a por todo o corpo. O réu disse ao juiz que Rita Paulina era sua amásia e que ele gastava todo o seu dinheiro com ela. Naquele dia, encontrou-a deitada com outro homem. Já Rita declarou que “nenhuma antecedência havia e só sim que querendo o dito Manuel peão satisfazer seus apetites na pessoa dela, paciente, sem seu consentimento”. O réu negou tudo ao juiz, pois no dia do crime estava totalmente embriagado e não se lembrava de nada. Era o ano de 1854.


Em 1877, a costureira Ana Felipa de Castro Viana, moradora da mesma cidade, foi presa por ter espancado o menor Juvenal, de três anos de idade, seu afilhado, que vivia em sua companhia por motivo de falecimento de sua mãe. A ré, armada de uma correia, fez-lhe vários ferimentos pelo fato de este ter estado fora de casa por dois dias; alegou, também, que havia bebido um pouco mais e estava “dominada pela ira”.


Para piorar as coisas, o código criminal em vigor ainda considerava atenuante o fato de “ter o delinqüente cometido o crime no estado de embriaguez”, tanto quanto o eram a defesa pessoal ou da família e “a desafronta de alguma injúria ou desonra”. Esses casos freqüentemente definiam a absolvição do réu. Por isso, era comum os advogados alegarem embriaguez de seus clientes como uma forma de obter, se não uma absolvição, pelo menos uma punição mais branda das autoridades. No caso da agressão de Manuel Agostinho a Rita Paulina, a estratégia da defesa foi a de acentuar seu estado, declarando que o réu, “bebeu demais, de sorte que ficou esquentado (...) mais lhe atacou a embriaguez (...) perdeu todo o seu senso comum, ficando mais ébrio do que estava, sem saber o que fazia, louco inteiramente, cobrando em tudo e por tudo por estar sem discernimento algum”. Foi absolvido.


Grande parte dos crimes, cometidos por bêbados ou não, ocorria com o uso de armas: pistolas, facas, porretes e outras. Essa era a outra face que caracterizava a violência na época. As armas, além de um atributo inseparável da masculinidade, eram também instrumentos de trabalho e de defesa. Pistolas e garruchas constituíam uma garantia de defesa ao ataque de animais no campo e de salteadores nas estradas, ou para impor respeito e temor em festas e ajuntamentos. Facas faziam parte dos acessórios básicos de qualquer das profissões praticadas; suas infinitas funções as tornavam objetos de primeira necessidade. Além disso, como seria possível impor respeito à população escrava sem armas?


A proibição do uso de armas por parte dos escravos existia desde o início do século XVIII, mas seu controle efetivo parece ter se restringido às armas de fogo, e na medida da capacidade das autoridades. Quanto às armas brancas e outros instrumentos de trabalho com igual poder agressivo, era praticamente impossível a restrição do seu uso pelas mesmas razões das necessidades que elas cobriam.


O desarmamento da população ocorreu em vários países como parte da monopolização da violência pelo Estado ao longo do século XIX. Esse processo teria passado por vários momentos, incluindo o confisco de armas, a criminalização dos duelos, o controle da produção e da distribuição das armas e – aspecto decisivo – a montagem do sistema de justiça capaz de se sobrepor aos poderes privados e tomar para si o trabalho de vigilância da população. A política de desarmamento da população é vista como possível causa das baixas taxas criminais na Europa, por exemplo. Nos Estados Unidos, onde o acesso a armas de fogo pelos cidadãos é totalmente livre, as mortes devidas ao seu uso são centenas de vezes maiores do que nos países europeus.


No Brasil, as tentativas de desarmamento vêm de longa data. Em 1831, o Código Criminal declarou crime o uso das “armas ofensivas que forem proibidas”, com pena máxima prevista de “sessenta dias de prisão com multa correspondente à metade do tempo, além da perda da arma”; a exceção ficaria para os oficiais de justiça, militares e aqueles que obtivessem licença dos juízes de paz. Alguns meses depois, a lei de 26 de outubro ampliava a pena e dispunha que “o uso, sem licença, de pistola, bacamarte, faca de ponta, punhal, sovela [agulha com cabo usada por sapateiros para furar o couro] ou qualquer outro instrumento perfurante, será punido com a pena de prisão com trabalho por um a seis meses, duplicando-se em reincidência”. O artigo 299 do Código Criminal dizia que “as câmaras municipais declararão quais sejam as armas ofensivas, cujo uso poderão permitir os juízes de paz, os casos em que as poderão permitir, e bem assim quais as armas ofensivas que será lícito trazer e usar sem licença aos ocupados em trabalhos para que elas forem necessárias”.


As resoluções das Câmaras tentavam adequar a legislação às condições cotidianas da população e das diferentes atividades e ocupações profissionais. Como mostra a da Câmara de São João del-Rei, na qual porretes e manguaras (cacetes) seriam permitidos somente aos “viajores, na derrota de suas viagens”, armas de fogo, facas, espadas e azagaias somente aos que “portassem patentes” e aos que necessitassem e obtivessem licença para tal, desde que não fossem turbulentos ou suspeitos. Os tropeiros, capineiros, lenheiros e oficiais de ofício ficariam autorizados a portar instrumentos considerados armas desde que fossem imprescindíveis ao exercício de suas tarefas e ofícios. Mas devia-se tentar restringir seu uso aos locais de trabalho.


Além de freqüentemente estimulados pela bebida e armados, os homens da época reconheciam nos conflitos dois desafios a serem enfrentados: a ameaça a seus privilégios e a defesa da sua honra. Honra e vingança constituíam os motivos da violência, cuja finalidade era restaurar uma posição ameaçada pelo desafio. As posições sociais definiam códigos de honra e obedeciam a uma hierarquia baseada na cor, no sexo e na riqueza, que definia os comportamentos de uns em relação aos outros.


Uma querela de 1825 conta a seguinte história, ocorrida na freguesia das Dores, termo da vila de São João del-Rei: Domingos mandou dizer a Pedro Antônio que tirasse o gado de suas terras. Encontrando-se os dois mais tarde, Domingos foi afrontado por ele, que disse “que ele não tinha direito para mandar tais recados, porque não tinha fazenda alguma, e isto respondeu muito enfadado o tal [Domingos], dizendo-lhe que ele se estava fazendo de bonito, e foi logo puxando de uma faca, e investindo contra o suplicante fez-lhe os ferimentos e certamente o matava se não fossem acudir por todos que se achavam presentes; e depois disso armando-se de espingarda e ferro montou a cavalo e retirou-se dali desafiando a todos que ali estavam”. A honra de um homem era sua capacidade de responder aos desafios postos por outro, quando eram ultrapassados os limites que deveriam ser respeitados. Isso significava afirmar publicamente uma posição e uma disposição de defendê-la numa sociedade em que o anonimato era inexistente e a reputação era a garantia de ser respeitado e temido pela opinião pública.


Afinal, o que permanece igual e o que mudou de lá para cá? Certamente, os motivos da violência mudaram. A julgar pelo que lemos diariamente no noticiário político, a honra não parece mercadoria de muito valor nos dias de hoje. Os criminosos são mais racionais, matam e corrompem por dinheiro, os crimes “a sangue-frio” predominam sobre os cometidos a “sangue quente”. Isso indica uma transformação no sentido da violência. As noções de honra e defesa de valores que a motivavam no passado cederam ao predomínio da violência instrumental como um meio para atingir fins. Pensemos nos traficantes e nos corruptos. As “bebidas espirituosas” continuam associadas à violência, mas a elas se somaram drogas de grande poder destrutivo: o crack e a cocaína. Um outro lado da questão é igualmente preocupante hoje: a crescente participação de menores, de todas as classes, em espetáculos de violência coletiva, muitos deles resultando em graves lesões corporais ou em mortes por espancamento ou arma de fogo. E aqui um problema continua o mesmo: a disseminação do uso de armas entre a população. Com o agravante de que as zagaias, facas e pistolas de pólvora foram substituídas por escopetas, metralhadoras e armas de precisão criadas para guerras.


Ivan de Andrade Vellasco é professor na Universidade Federal de São João del-Rei e autor do livro As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça – Minas Gerais século 19. Edusc/Anpocs (2004).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Caldeirão do inferno


Relatos de antigos detentos e funcionários revelam a extrema violência reinante nos presídios da Ilha Grande, longe dos olhos da sociedade
Myrian Sepúlveda dos Santos

Apesar das belezas do lugar, a imprensa, a opinião pública e os próprios detentos costumavam referir-se à Ilha Grande, no litoral do Rio de Janeiro, com o sugestivo apelido de “Caldeirão do inferno”. De fato, ao longo de cem anos, as colônias correcionais, prisões e penitenciárias lá existentes sempre estiveram associadas às condições desumanas a que eram submetidos os internos: maus-tratos, assassinatos, estupros e toda forma de violência faziam parte do dia-a-dia dos presidiários.

Além do que dizem documentos, livros e filmes, a história das prisões da Ilha Grande também se constrói a partir das biografias dos criminosos que para lá foram enviados. De Madame Satã, famoso malandro da Lapa dos anos 1930, a Rogério Lengruber, o “Bagulhão”, um dos mais idolatrados líderes da facção criminosa Comando Vermelho, muitos tipos de contraventores passaram pela Ilha. São lembrados pelos antigos moradores os lendários banqueiros do bicho Natal da Portela e Castor de Andrade, assaltantes de bancos e integrantes do Esquadrão da Morte dos anos 1960, entre eles Lúcio Flávio e Mariel Mariscot.

Ao longo de todos esses anos, o histórico de arbítrio, corrupção e violência se manteve mais ou menos inalterado, e sobrepôs-se sempre às melhores intenções. Entre estas, a de construir-se um “sistema penitenciário modelo” num local paradisíaco, cujo isolamento facilitava os propósitos do governo. O Código Penal de 1890 combatia o castigo físico e o poder arbitrário dos carcereiros. As leis apontavam a necessidade de o Estado recuperar o recluso a partir da educação e do trabalho. Na prática, tudo foi muito diferente do discurso oficial.

O primeiro estabelecimento penal da Ilha Grande, a Colônia Correcional de Dois Rios, foi instalado em 1894. Seu objetivo era recuperar ‘bêbados”, “mendigos” e “vagabundos”, contribuindo assim para a construção de uma nação civilizada. Apesar da lei, os que foram enviados para a Colônia sofreram com penas disciplinares violentas, que iam das chicotadas às péssimas condições de higiene.

Depois de terem freqüentado as prisões do continente e dado muito trabalho aos chefes de polícia, os “miseráveis” crônicos, os “párias da sociedade”, eram enviados à ilha, na verdade, para lá morrerem. São prova disso os atestados de óbito lavrados poucos meses após o ingresso dos presos. E há também ofícios destinando mulheres presas a guardas penitenciários, numa prova de que a Ilha Grande tinha suas próprias leis. As leis da barbárie.

Muitos desses fatos não ficaram apenas na memória dos protagonistas. Após a década de 1930, relatos importantes das condições de tratamento nas prisões da Ilha Grande começaram a ser divulgados. Foram cruciais os livros publicados por Orígenes Lessa, encarcerado por participar da Revolução Constitucionalista de 1932, e por Graciliano Ramos, preso ao se colocar contra o governo de Vargas, em 1936.

No período, dois estabelecimentos penais foram construídos na ilha: a Colônia Agrícola do Distrito Federal (CADF), na Vila de Dois Rios, e a Colônia Penal Cândido Mendes (CPCM), esta última aproveitando alguns dos estabelecimentos do antigo Lazareto (asilo de hansenianos), na Vila do Abraão. Apesar do alto investimento em novas estruturas arquitetônicas e em novos métodos disciplinares que enfatizavam a recuperação dos presos pelo trabalho, as práticas continuaram a se pautar pela violência extrema.

O regime de trabalho em turmas possibilitava muitas fugas. Para reprimi-las, grupos de guardas ou policiais militares, conhecidos como “cachorrinhos-do-mato”, organizavam verdadeiras caças aos presos que se evadiam: estes, segundo os relatos, muitas vezes eram amarrados nus em árvores e espancados até a morte.

Grande parte da população da Vila Dois Rios é ainda hoje composta de policiais e guardas penitenciários que foram funcionários do antigo Instituto Penal Cândido Mendes. De modo geral, eles gostam de falar do passado, de contar histórias e narrar como era a vida no tempo da prisão. Em 2002, sentado à mesa de uma birosca na Vila Dois Rios, um ex-guarda nos contava tranqüilamente o triste destino de um preso conhecido como “Paulistão”, que em 1953 tentara fugir da Ilha Grande junto com dois outros detentos, “Mexicano” e “Fumaça”.

Para os guardas e agentes penitenciários, o castigo físico, inclusive chicotadas, era o tratamento mais adequado para os “vagabundos” que iam parar na ilha

O relato do depoente dá uma idéia precisa da violência e da arbitrariedade reinantes. Segundo ele, ao ordenar a captura dos presos, o diretor do presídio foi bastante preciso: “Olha, o ‘Fumaça’ e o ‘Mexicano’ vocês tragam. O ‘Paulistão’ eu não quero ver de volta”. De fato, o “Paulistão” jamais apareceu. Quanto aos outros dois, receberam o corretivo merecido pela infração: “Levaram uma surra na praia de Conceição de Jacareí. Todo mundo assistindo... e o pau comendo. Jogava eles dentro do mar, tirava do mar e o diretor na canoa, mandando continuar o castigo”.

Este e outros depoimentos foram dados por um ex-funcionário público extremamente orgulhoso de sua carreira. Contava suas antigas façanhas em voz alta, rodeado por uns quinze moradores, e procurando em vários momentos se mostrar diferente dos guardas e policiais de hoje, que, segundo ele, são “oficiais corruptos”. Os policiais e agentes penitenciários mais novos não relatam casos de violência, mas, como os antigos, continuam achando que o castigo físico é o tratamento mais adequado para “vagabundo”.

Os “vagabundos” – ex-presos da Ilha Grande que entrevistamos – também tinham sua estratégia. A tarefa deles era sobreviver na prisão, e para isso tinham de assimilar rapidamente os códigos locais. Diferenciar, por exemplo, os presos que tinham “recurso” daqueles que não o possuíam. Quem tinha pena grande para cumprir, tinha “recurso”: podia matar para se defender porque o tamanho de sua pena não aumentaria. Os presos sem “recurso” tinham de ser mais cuidadosos. Precisavam reconhecer as hierarquias estabelecidas, as éticas constituídas e as possibilidades de se defender ou morrer, tanto em relação aos guardas como aos demais presos.

Em 1960, com a transferência da capital federal para Brasília, os presídios da Ilha Grande passam à responsabilidade do governo do estado. Dois anos depois, por ordem do governador Carlos Lacerda, as edificações que abrigavam a Colônia Penal Cândido Mendes, instalada na ilha desde 1941, foram destruídas a quilos de dinamite.

Várias denúncias justificavam a atitude. Nessa época, as masmorras da Colônia foram consideradas inabitáveis e as práticas de controle dos presos, abusivas. O fim da Colônia foi associado à perspectiva de renovação no sistema penitenciário. Acontece que, apenas a dez quilômetros do presídio destruído, um outro já tomava forma.

Nos anos mais severos da ditadura militar, a estratégia da repressão foi criminalizar os presos políticos. Nelson Rodrigues Filho e muitos outros militantes de esquerda que lutavam contra a ditadura militar foram enviados para o Instituto Penal Cândido Mendes, penitenciária de segurança máxima que ocupava as instalações da antiga Colônia Agrícola. “Quase dois irmãos”, filme de Lúcia Murat realizado em 2005, descreve a convivência entre comunistas e assaltantes de banco, todos submetidos à Lei de Segurança Nacional.

O espetáculo da implosão dos presídios da Ilha Grande sugere a esperança de uma mudança radical do sistema carcerário. Esta, no entanto, jamais aconteceu

Após a década de 1980, o movimento pelos direitos humanos, a Igreja, a imprensa e os próprios presos, organizados, começaram a exercer certa pressão sobre o sistema, e, finalmente, guardas penitenciários que tinham cometido excessos passaram a responder a processos judiciais. Mas a tentativa de diminuir a violência policial contra criminosos não foi acompanhada de propostas alternativas de encarceramento. Verificou-se no período um processo crescente de corrupção da máquina administrativa, por políticos que, em bairros populares, se apoiaram no poder econômico e no prestígio de facções criminosas.

O crime organizado passou a ter cada vez mais controle sobre os presídios e penitenciárias da Ilha Grande. Em 1986, o assaltante José Carlos dos Reis Encina, o “Escadinha”, foi resgatado da Ilha Grande por um helicóptero, numa das ações mais espetaculares já ocorridas nas prisões do país. Nessa época, a violência aumentou consideravelmente. Como resultado da guerra entre as organizações criminosas, segundo relatos dos guardas, cabeças foram decepadas, e num dos confrontos, o coração de um prisioneiro foi tirado à faca do seu peito e jogado aos cachorros no pátio.

Em 1994, por ordem do governador Nilo Batista, o enorme complexo arquitetônico de Dois Rios foi também implodido. O espetáculo da implosão parece corresponder ao ritual de se detonar “o mal pela raiz” e apontar, para a sociedade e os presidiários, a esperança de uma mudança radical. Ele foi encenado duas vezes na Ilha Grande, mas também no Carandiru, em São Paulo, e no complexo da Frei Caneca, no Rio de Janeiro. O que as reportagens, os livros e os filmes não mostram é que a cada espetáculo de destruição sucedem-se novas construções de complexos penitenciários, cada um deles dando razão a relatos mais infernais que os precedentes.

No Brasil, a violência no sistema carcerário é inegavelmente maior do que a registrada nos países industrialmente mais desenvolvidos. Aqui, o distanciamento entre a lei e a sua boa execução, sempre ressaltado por estudiosos, pode ser explicado por diversos fatores, entre eles a má distribuição de renda e a enorme desigualdade no acesso da população aos direitos civis, políticos e sociais. Questiona-se, por outro lado, a própria natureza da instituição penitenciária. No quadro atual, a possibilidade de recuperação dos sentenciados por meio do sistema carcerário é muito pequena.

Um caminho em direção às mudanças poderia começar a ser trilhado pela própria sociedade. Acreditar, por exemplo, que os presos não são intrinsecamente diferentes de nós. São apenas pessoas que seguiram o caminho errado. Os estereótipos – sejam eles aplicados ao judeu, ao negro, ao índio ou ao criminoso, entre outras minorias – é que legitimam a barbárie. Quanto mais se aumentar o distanciamento entre os “vagabundos” e a “gente de bem”, maior será o grau de horror presente nas penitenciárias.

Myrian Sepúlveda dos Santos é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e autora do artigo “Arbítrio e violência nas prisões da Ilha Grande”. In: Deserdados: dimensões das desigualdades sociais. Rio de Janeiro: H.P. Comunicação, 2007, p. 39-57.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

“Aldeias do mal”


Associando-as ao crime e à falta de higiene, governantes tentaram acabar com as favelas do Rio desde o momento em que elas surgiram, há mais de cem anos
Romulo Costa Mattos

Em 5 de julho de 1909, o jornal Correio da Manhã escreveu sobre o Morro da Favela: “É o lugar onde reside a maior parte dos valentes da nossa terra, e que, exatamente por isso – por ser o esconderijo da gente disposta a matar, por qualquer motivo, ou, até mesmo, sem motivo algum –, não tem o menor respeito ao Código Penal nem à Polícia, que também, honra lhe seja feita, não vai lá, senão nos grandes dias do endemoninhado vilarejo”.

Essa reportagem mostra que a percepção social da violência urbana nas favelas vem de muito tempo, assim como o estigma imposto aos seus habitantes. Pelo menos desde a década de 1900, os moradores das favelas são comumente vistos como grandes promotores da criminalidade na cidade do Rio de Janeiro. Ainda mais antiga é a idéia de que as moradias populares em geral seriam prejudiciais à ordem pública.

Há projetos datados de 1855 que propunham a colocação de portões de ferro nos cortiços, que deveriam ficar trancados a partir de certa hora. Mas foi nas últimas décadas do século XIX que a crise de habitação assumiu maiores proporções. Isto se deu em virtude das transformações desencadeadas pela decadência da cafeicultura no Vale do Paraíba, pela abolição da escravatura e pelo desenvolvimento do processo de industrialização – ainda que este último fosse incipiente.

Nesse contexto, muitos ex-escravos e europeus – principalmente portugueses – acorreram para a cidade do Rio de Janeiro. O extraordinário crescimento populacional sobrecarregou sua área central, que concentrava, havia décadas, as temidas habitações coletivas. A perseguição a essas moradias populares culminou na demolição, em 1893, do cortiço Cabeça de Porco, localizado próximo à região da Central do Brasil.


O prefeito Candido Barata Ribeiro (1843-1910) justificou o desalojamento de cerca de duas mil pessoas em nome da higiene pública. Os jornalistas foram além e festejaram o fim de um lugar que, segundo eles, abrigaria assassinos. Mas os interesses particulares não devem ser esquecidos, pois novos terrenos seriam abertos à exploração imobiliária.


Um grupo de ex-moradores do Cabeça de Porco conseguiu autorização para levar consigo ripas de madeira – muitos quartos ali se assemelhavam aos barracões das futuras favelas.

Caminharam então poucos metros até o Morro da Providência, onde levantaram novas moradias. Entre 1893 e 1894, soldados que combateram a Revolta da Armada obtiveram licença do governo para morar no Morro de Santo Antônio, no Centro. Começava assim a história das favelas no Rio de Janeiro.


Pouco tempo depois, em 1897, soldados retornados da Guerra de Canudos instalaram-se no já habitado Morro da Providência. No beligerante arraial baiano, a tropa do governo ficara na região de um morro chamado Favela, sendo esse o nome de uma planta resistente, que causava irritação no contato com a pele humana. Por abrigar pessoas que haviam tomado parte naquele conflito, o Morro da Providência foi popularmente batizado de Morro da Favela. O apelido pegou, e na década de 1920 as colinas tomadas por barracões e casebres passaram a ser conhecidas como favelas.

Já na década de 1900, os moradores das favelas eram comumente vistos como os grandes promotores da criminalidade no Rio de Janeiro


Nos primeiros anos, o Morro de Santo Antônio chamava mais a atenção dos poderes públicos por se localizar na área central da cidade. A prefeitura vez por outra demolia os barracos, que teimavam em reaparecer. O Morro da Favela ficava um pouco mais distante, na região portuária, que era tida como violenta e incivilizada devido a seu alto percentual de negros. Foi assim que, por um lado, a localização dessa colina deixou-a protegida das marretas municipais em um momento inicial. Por outro, contribuiu para que ela fosse considerada o território por excelência das “classes perigosas” – conceito esse que, na prática, colocava os pobres como perigosos.


Assim como os antigos cortiços, as favelas do início do século XX eram vistas como um problema de saúde pública e segurança. Mas o contexto no qual elas ganhavam notoriedade era outro. O Rio de Janeiro estava sendo construído como uma nova cidade, moderna, europeizada, capaz de ser o cartão-postal da recém-criada República. Contrariando esse ideal, as favelas passaram a ser vistas como outras cidades, corpos estranhos dentro da urbe formal.


As reformas urbanas do prefeito Francisco Pereira Passos (1836-1913) foram a maior realização daquela época. Entre 1902 e 1906, as principais ruas do Centro foram alargadas e novas artérias foram abertas, entre as quais a imponente Avenida Central. Quarteirões inteiros de cortiços foram destruídos. Quem não podia arcar com os custos do transporte e morar nos subúrbios teve de se virar para permanecer na valorizada área central. As habitações coletivas situadas nas suas imediações foram uma opção. Outra alternativa bastante aproveitada foram os seus morros.


A expansão das favelas durante a Reforma Passos transformou-as na principal representação de moradia popular, substituindo as habitações coletivas. Para jornalistas e escritores, a pobreza agora se encontraria ali. No fim da década de 1900, o Morro da Favela passou a ser considerado o lugar mais perigoso da capital, reforçando a má fama conquistada por seus moradores depois da participação na Revolta da Vacina, em 1904.


Na já citada edição de 5 de julho de 1909, o Correio da Manhã afirmava: “A Favela (...) é a aldeia do mal. Enfim, e por isso, por lhe parecer que essa gente não tem deveres nem direitos em face da lei, a polícia não cogita de vigilância sobre ela”. Na mesma reportagem, o morro foi chamado ainda de “aldeia da morte”.


Esse era o atalho que levava à negação da condição de cidadãos de seus moradores. Pelo menos desde o “bota-abaixo” promovido por Pereira Passos, existia a percepção de que essa colina seria também habitada pelos trabalhadores honestos. Mas a valoração positiva de seus habitantes só ganhou força nos anos 1920, quando as favelas tiveram sua expansão definitiva no cenário urbano.


Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), foi se consolidando uma certa descrença no ideal de civilização que a Europa até então representava, com o surgimento de intelectuais empenhados em definir os traços de nossa nacionalidade. Ao mesmo tempo, artistas europeus começaram a visitar o Morro da Favela para conhecer a cultura proveniente dos povos africanos, em moda no Velho Continente, no que foram acompanhados pelos brasileiros. Em 1924, o modernista Oswald de Andrade escreveu em seu “Manifesto da poesia pau-brasil”: “Os casebres de açafrão e ocre nos verdes da Favela, sob o azul cristalino, são fatos estéticos”.


Apesar de os morros serem considerados àquela altura símbolos nacionais – principalmente o da Favela –, seus moradores continuavam a ser relacionados à violência urbana. Segundo o Jornal do Brasil de 19 de maio de 1926, “a Favela é o Rio, mas o Rio integral, sincero, o Rio tal como Deus o fez. E tanto mais pitoresco, para ser visto, quando é lá que vimos um pouco da alma turbulenta, desordeira e, à sua maneira, épica da cidade”.


Ainda na década de 1920, as favelas foram incluídas pela primeira vez em um plano para o Rio de Janeiro. Com a chegada do urbanista francês Alfred Agache (1875-1959), em 1927, o fim das favelas foi oficialmente arquitetado. O prefeito Antônio Prado Júnior (1880-1955) o convidara para elaborar um projeto que abordasse a cidade como um todo, um sistema, um corpo integrado. Esse pensamento sobre seu espaço diferia das meras ações pontuais de embelezamento e higiene de outrora. Agache justificou a destruição das favelas “não só sob o ponto de vista da ordem social e da segurança, como sob o ponto de vista da higiene geral da cidade, sem falar da estética”.


Em 1927, quando Alfred Agache afirmou que as favelas teriam de ser erradicadas, o compositor José Barbosa da Silva, o Sinhô, freqüentador e defensor do Morro da Favela, escreveu “A Favela vai abaixo”. Os primeiros versos citavam as casinhas de madeira, cada vez mais retratadas por intelectuais e artistas: “Minha cabrocha/ A Favela vai abaixo/ Quantas saudades tu terás deste torrão/ Da casinha pequenina de madeira/ Que nos enche de carinho o coração”.
Ao contrário do “Rei do Samba”, Agache se referia às favelas como “lepras” e “chagas”. O elevado custo financeiro e a Revolução de 1930, que levou Getulio Vargas ao poder, contribuíram, porém, para que seu projeto fosse arquivado. O governo de Getulio deixou as favelas em paz por algum tempo e chegou a defender, em determinadas instâncias, os seus moradores contra as ações dos proprietários de terrenos. Isso, decerto, reforçava a imagem do presidente como “pai dos pobres”.


O Código de Obras da cidade, de 1937, mostrou que essa situação era provisória. Entre seus objetivos estava a eliminação das favelas, em cujas casas era vedado qualquer tipo de melhoramento. Essa foi a primeira política formal de governo referente às favelas. Na Primeira República, a fiscalização e o conhecimento delas ficara a cargo da grande imprensa, que denunciava o surgimento de barracões e casebres, apontava para o adensamento populacional nos morros e pedia providências a esse respeito. Agora, os poderes públicos entravam em cena, para melhor conhecer as favelas e controlá-las.


Relatório elaborado para a prefeitura pelo médico Victor Tavares de Moura – “Esboço de um plano para o estudo e a solução das favelas no Rio de Janeiro”, 1940 – é ilustrativo de como os morros eram vistos como um problema moral: “A vida lá em cima é tudo quanto há de mais pernicioso. Imperam os jogos de baralho (...) e o samba é diversão irrigada a álcool. Os barracões (...) abrigam, cada um, mais de uma dezena de indivíduos (...) em perigosa promiscuidade”. O médico defendia medidas como o controle da entrada de indivíduos de baixa condição social no Rio de Janeiro e o retorno deles para seus lugares de origem.


Outro trabalho destinado ao conhecimento das favelas, no início da década de 1940, foi o da assistente social Maria Hortência do Nascimento e Silva, que critica a valorização das favelas entre os intelectuais entusiastas da chamada cultura popular: “enquanto alguns se compenetram da gravidade do problema e procuram remediar a situação desses desgraçados, os cronistas se encantam pelo morro e o enaltecem (...) Será que do malandro querem fazer uma personalidade, e do samba um hino nacional?”.


A resposta era: sim. No plano cultural, Getulio Vargas anunciara o aproveitamento das potencialidades brasileiras, que tinha relação com a política econômica do país. Em um livro de exaltação ao Estado Novo, o jornalista Henrique Dias da Cruz havia explicado: “Não é mais, pois, o malandro, homem da desordem, que agride, que mata. A navalha e o revólver foram substituídos pelo pandeiro, pelo violão, pelo cavaquinho”.


Enquanto o médico e a assistente social condenavam o estilo de vida nas favelas, o jornalista dizia que a vadiagem e o crime seriam coisas do passado nesses espaços. Essa diferença de opiniões relacionava-se à ocupação profissional de cada um. Enquanto os dois primeiros eram mais pragmáticos e justificavam a intervenção do Estado nas favelas, o último atuava no plano simbólico e tentava dar uma imagem positiva ao Estado Novo.


Os três autores tinham em comum a idéia da necessidade de uma assistência educacional, que resolvesse o suposto problema moral dos moradores das favelas. O jornalista revelou a receita do regime: “ao invés de polícia, assistência moral; ao invés de cadeia, escola, hospital, trabalho”. Mas a onda repressiva que acompanhou a ditadura Vargas atingiu fortemente os tais malandros e contraventores – que a percepção social insistia em localizar nos barracões.


Mais ou menos na época desses trabalhos, o Estado Novo se ocupava da primeira política habitacional voltada para as camadas pobres da população. Entre 1942 e 1943, foram inaugurados parques proletários na Gávea, no Caju e no Leblon, que receberam entre sete e oito mil pessoas de quatro favelas. Os mecanismos de controle nesses locais eram notáveis. Além da exigência de atestado de bons antecedentes, seus moradores eram identificados por meio de cartões. Apesar de os parques proletários terem sido concebidos como provisórios, sua população só foi expulsa décadas mais tarde, quando as áreas ao seu redor se valorizaram no mercado imobiliário.


Na década de 1940, os favelados passaram a despertar um novo tipo de medo: o de seu possível envolvimento com o comunismo

Nessa época, os moradores de favelas despertavam um novo tipo de medo, que era o de seu possível envolvimento com o comunismo. A prefeitura e a Arquidiocese do Rio de Janeiro haviam se articulado em 1946 para criar a Fundação Leão XIII e subir os morros antes que deles descessem os “comunistas”. A organização dos habitantes das favelas estava sendo favorecida pela restauração da ordem democrática na mesma época em que o Partido Comunista Brasileiro aparecia como a terceira força política na capital.


O aprofundamento da relação entre as favelas e a política nos anos 1950 levou a Igreja e o governo municipal a criarem outras instituições para atuar nesses espaços – respectivamente, a Cruzada São Sebastião (1955), que urbanizou favelas e construiu o conjunto habitacional conhecido como Cruzada, no Leblon, e o Serviço Especial de Recuperação das Favelas e Habitações Anti-higiênicas (1956). Datam ainda dessa época o Primeiro Congresso dos Favelados do Rio de Janeiro e a Coligação dos Trabalhadores Favelados do Distrito Federal – ambos de 1957. Na mesma década, a população das favelas cresceu 7%, enquanto que a do restante da cidade aumentou 2%.


Eleito primeiro governador do Estado da Guanabara, entre 1960 e 1965, Carlos Lacerda deu continuação à febre viária iniciada na década anterior, construindo viadutos e avenidas. Dentro do quadro de renovação urbana da metrópole, surgiu o programa de remoção de favelas. O governador, que, ainda como jornalista do Correio da Manhã, havia promovido em 1948 uma vigorosa campanha por sua extinção (a “Batalha do Rio”), iniciou a transferência de suas populações para lugares distantes da área central.


As remoções de favelas assumiram proporções gigantescas a partir de 1968. O governo federal criou a Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio, que atuou até 1973. Esse órgão unificou a política sobre as favelas com o objetivo de extingui-las – o que se relacionava à capacidade de articulação dos chamados favelados. A Federação das Associações das Favelas do Estado da Guanabara fora criada em 1962, no contexto da transferência compulsória de moradores para as vilas populares. Era dessa época o samba “Opinião” (1963), de Zé Kéti: “Podem me prender/ Podem me bater/ Podem até/ Deixar-me sem comer/ Que eu não mudo de opinião/ Daqui do morro/ Eu não saio não”. Entre 1962 e 1974, foram 80 favelas atingidas, 26.193 barracos destruídos e 139.218 habitantes removidos. Em anos de ditadura militar, líderes favelados foram torturados e assassinados.


Vitoriosa principalmente na imprensa escrita e nos telejornais, a associação entre violência e favelas se explica pela simplificada noção de que pobreza gera violência, quando, na verdade, esta tem origem na desigualdade social, na dinâmica de produção de riqueza. O que ocorre nas favelas é apenas a parte mais visível de um processo. Se as estatísticas insistem em localizar a violência nas favelas, apontando para o alto índice de morte de seus jovens, cabe perguntar: por que os seus moradores são vistos como os produtores do crime e não como os que possivelmente mais sofrem com ele na cidade? Talvez a tradição de pensamento sobre as favelas – como um problema de segurança, higiene e moral – ajude a responder.

Romulo Costa Mattos é doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor da dissertação “A ‘Aldeia do Mal’: o Morro da Favela e a construção social das favelas durante a Primeira República” (UFF, 2004).

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