quarta-feira, 20 de junho de 2018

Educação visionária



Os jesuítas enxergaram longe quando priorizaram as ações pedagógicas

Patrícia Wolley

Quando se fala sobre os jesuítas, que completam 460 anos no Brasil, logo o espírito aventureiro é posto em discussão. Porém, tão importante quanto a exploração de novas terras, era a vocação natural da Companhia de Jesus para a prática da educação. Se Rousseau e os ministros dos reis perceberam, apenas no século XVIII, a importância da pedagogia como instrumento fundamental na modelagem dos comportamentos, os pragmáticos jesuítas já atentavam para isto a criação da Companhia em 1540.

Todavia, o principal mentor da ordem não foi sempre um homem de letras. Do jovem militar de família senhorial no interior da Espanha até o Mestre em Artes diplomado pela Universidade de Paris, um longo caminho foi percorrido por Inácio de Loiola. Peregrinação à Palestina, revelações interiores e perseguições inquisitoriais fizeram parte desta trilha. A exemplo de alguns de seus companheiros, como Pierre Favre e Nicolas Alonso, Inácio também foi atingido pelas inquietações humanísticas do século XVI. 

Ao contrário do que o senso comum divulga, o intuito do novo instituto religioso não era inicialmente combater o avanço protestante na Europa, mas sim “levar o mosteiro para o mundo”. Não que a Companhia de Jesus deixasse de desempenhar um papel importante na reforma católica. O empenho dos jesuítas nessa direção é indiscutível. Porém, desde cedo eles mostraram-se sensíveis à necessidade de uma maior aproximação entre Igreja e fiéis, assim como perceberam a urgência em oferecer instrução à população, de uma maneira geral iletrada e atemorizada pelas pestes e incertezas do início da época moderna. 

Tratava-se de uma ordem evangelística por excelência, que começara a ser moldada intelectualmente anos antes na Universidade de Paris, cujo ambiente em 1530 constituía o “incêndio da Renascença”. Em seus bancos, grandes discussões religiosas entre as concepções humanistas de Erasmo de Roterdão e Lutero chocavam-se com a tradição escolástica da Idade Média. Era lá que indivíduos como François Rabelais exibiam um espírito de crítica e deboche próprios de um tempo no qual o mundo se ampliara literalmente. Seria impossível que os pensadores permanecem indiferentes perante sua posição no mundo e mesmo quanto sua relação com Deus.

É certo que Loiola não foi um “Erasmo do catolicismo”, mas a Companhia de Jesus constituiu uma proposta religiosa renovada, que se afastava da vida monacal e dos martírios conjuntos. Texto fundador da ordem, a bula Regimini Militantis Eclesiae deixava claro que “ensinar aos meninos e rudes as verdades do cristianismo” seria um dos principais objetivos dos jesuítas. De fato, não tardou para que eles cruzassem os oceanos para pôr em prática aquela meta. 

No Brasil, os jesuítas elaboraram vocabulários da língua tupi-guarani para ensinarem os rudimentos cristãos aos nativos da América Portuguesa. Praticaram um magistério público, onde a instrução era ministrada não apenas aos futuros missionários, que nunca foram tantos que não fosse preciso vir outros de fora, mas também àqueles que buscavam o ensino simplesmente para instruir-se ou para formar-se em Medicina ou Direito na Universidade de Coimbra. 

Há quem diga até que o jesuíta Vicente Rodrigues pode ser considerado o primeiro professor do Brasil. Em 1549, ele estabelecia as aulas de “ler, escrever e contar” na Bahia. Quase simultaneamente, outras escolas do gênero foram instaladas no estado, além de Espírito Santo e Pernambuco. Já no ano seguinte, eram abertos os estudos de Humanidades, como lições de Latim ministradas pelo padre Leonardo Nunes no Colégio dos Meninos de Jesus da Vila de São Vicente. No século XVII, a ordem pretendeu transformar esta instituição em uma Universidade, ao estilo da que dirigia em Évora. O projeto, contudo, foi vetado pela coroa. Ainda hoje, é possível encontrar o prédio histórico do Colégio dos Meninos no Terreiro de Jesus, próximo ao Pelourinho.

O ensino jesuítico era guiado pelo Ratio Studiorum, um rigoroso programa de estudos elaborados no século XVI pela Companhia, mas a postura destes religiosos frente às questões modernas não foi homogênea. Mesmo em Portugal existia uma geração mais jovem de jesuítas que se declarava eclética em termos de conhecimento, chegando a adotar alguns elementos de física newtoniana em aula.
Dois professores de Filosofia da Universidade de Évora ilustram bem esta corrente: o padre Sebastião de Abreu, atuante entre os anos de 1750-1754, e o padre João Leitão, último jesuíta a lecionar aquela disciplina em Évora. Ambos iniciavam seus cursos apontado noções de história da Filosofia, desde os autores antigos até Newton. Em relação ao estudo dos corpos e matérias, o padre Sebastião de Abreu reconhecia que, a exemplo de Locke, “a essência dos corpos e do espírito é inacessível ao intelecto humano”. Ou seja, o conhecimento possuía limites. Existiam questões que não cabiam à teologia ou à filosofia explicar, mas aos pesquisadores descrever e compreender-lhes o funcionamento. 

Em Coimbra, destacava-se a figura do padre Inácio Monteiro, que entrou para a Companhia de Jesus em 1739. No ano de 1754, quando era ainda estudante de Teologia, já ministrava aulas de matemática no Colégio das Artes. Nesta época, publicou uma obra que resumia em linguagem clara os “primeiros princípios mais necessários da matemática”. Para o agrado dos estudantes, as conclusões do autor eram ilustradas por meio de muitas gravuras e esquemas de notável tino pedagógico.

No tocante às suas tendências doutrinais, Inácio Monteiro se definia como eclético, visto que, segundo suas palavras, “um verdadeiro filósofo não se submete ao despotismo de nenhum autor”. Contudo, ao contrário de outros com postura semelhante, Inácio Monteiro ia além, chegando mesmo a ser irônico em relação à posição da Igreja ao conhecimento dito “moderno”. Ao abordar o sistema de Copérnico em seu curso, dizia: - Se a igreja determinasse que as escrituras sagradas devessem ser entendidas literalmente, ‘ficará certíssimo o descanso da Terra’. Mas, até agora nem declarou a Igreja ou propôs como de Fé a inteligência literal dos textos referidos, nem o descanso da Terra.

O fim: um novo começo

Além da América, os jesuítas foram a todos os continentes conhecidos na sua época, alcançando também a Ásia e África. A ordem entendia o ensino como um meio não só de instruir, mas também de preparar o espírito para o entendimento sincero da religião. Inicialmente, a Companhia de Jesus mostrou-se ainda um instrumento importante de legitimação das monarquias católicas, sobretudo por meio das atividades missionárias desenvolvidas nos domínios ultramarinos.

Porém, no século XVIII, os jesuítas tornaram-se incômodos, quase uma espécie de poder paralelo. E essa influência advinha do magistério que exerciam e do conseqüente controle alcançado junto às elites letradas de toda a Europa e domínios coloniais. A ordem religiosa personificava o poder político da Igreja que os monarcas pretendiam sujeitar às suas aspirações. Isto a tornava alvo de críticas por parte de seus antagonistas no século das luzes, fossem pensadores ou homens de política, como o marquês de Pombal. Ambos associavam a ordem ao obscurantismo, a um conhecimento ultrapassado, baseado na escolástica aristotélica (subordinando do conhecimento à Teologia) e desligado da realidade. 

Sob a acusação de conspiradores, praticantes do crime de lesa-majestade, ladrões de ouro e portadores de riquezas ilícitas, os jesuítas foram expulsos do Império Português em 1759. Esse foi apenas o primeiro de muitos outros atos que atormentariam o instituto até a sua dissolução definitiva em 1773 por ordem Papa Vicenzo Antonio Ganganelli, de tradição franciscana. A decisão foi fruto de um conclave das Cortes Espanhola e Francesa dos Bourbon. As motivações políticas ficam evidentes no documento Breve Dominus ac Redemptor, que sela o término da Companhia por esta levar seus membro “a se erguer contra as outras Ordens religiosas, contra o Clero secular, as Academias, as Universidades, os Colégios, as Escolas públicas, e contra os próprios Soberanos que os haviam acolhido e admitido em seus Estados".

Obscuros, resistentes às inovações, rivais políticos dos reis, “donzelões intransigentes” no dizer de Gilberto Freire, a polêmica ordem religiosa só seria restaurada em 1814, após as reviravoltas políticas promovidas pela Revolução Francesa. Contudo, a desconfiança lançada pelas novas idéias liberais em relação às ligações entre a Igreja e o poder civil tornou esse processo de reconstrução difícil, lento e irregular. 

O tema da restauração e atuação da Companhia de Jesus no mundo contemporâneo é ainda pouco debatido e estudado. Pistas oportunas são oferecidas pelo historiador inglês Jonathan Wright. Em “Jesuítas: missões, mitos e histórias”, obra publicada pela editora Relume Dumará, o autor afirma que os jesuítas só retomaram oficialmente as atividades em Portugal no ano de 1829, mas logo sofreram novo exílio devido aos tumultos liberais de 1834, quando D. Pedro I, tão autoritário por aqui, consolidou o constitucionalismo português. 

A partir de 1858, os jesuítas foram readmitidos gradativamente nas terras lusitanas, sofrendo novo revés na primeira década do século XX. Wright registra ainda superficialmente a ojeriza dos velhos filhos de Santo Inácio aos comunistas, assim como as simpatias que alguns membros da ordem nutriram pelo nazismo alemão. Entretanto, em especial no Brasil e na Ásia, a Companhia de Jesus permaneceu fiel ao espírito humanista de estudos e conhecimento. Um exemplo é o Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus em Belo Horizonte, hoje Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Este Centro constituiu-se a partir de diferentes instituições da ordem espalhadas pelo Brasil, tais como a Faculdade de Filosofia de Nova Friburgo (RJ), instituída em 1941, e a de Teologia, fundada no ano de 1949, em São Leopoldo (RS). 

Em 1982, as faculdades se reuniram no centro de estudos da capital mineira “com a finalidade de formar-se em centro comum de estudos para as províncias jesuítas do Brasil, aberto a outras províncias fora do país, ao clero, às congregações religiosas e a leigos”. Um dos destaques dessa instituição jesuítica é a Biblioteca Pedro Vaz, que possui rico e amplo acervo de obras raras, inclusive exemplares dos volumes originais da Enciclopédia de Diderot e D’Alembert.

Mocinhos ou vilões? Traidores régios ou injustiçados? Politicamente atuantes ou colaboradores indiretos do holocausto? Aos historiadores não cabem julgamentos definitivos, apenas reflexões e análises. Mas o fato é que a história da Companhia de Jesus se confunde com a própria trajetória do mundo ocidental nas épocas moderna e contemporânea. Tortuosa e irregular por excelência, como toda História dos homens e das instituições.
Revista de História da Biblioteca Nacional

A república suicida

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A controversa República Bahiense mantinha laços estreitos com a monarquia

Hendrik Kraay

Durante uma reunião tumultuada no dia 7 de novembro de 1837, a Câmara Municipal da cidade do Salvador declarou a Bahia “inteira e perfeitamente desligada do governo denominado central do Rio de Janeiro”. Foi o começo da Sabinada, uma efêmera experiência republicana que durou somente quatro meses. Os rebeldes militares e civis que tomaram a cidade e expulsaram o governo provincial pareciam ser republicanos. Prometeram convocar uma assembléia constituinte e elegeram um presidente e um vice-presidente.

Mas, no dia 11, o próprio vice-presidente eleito, João Carneiro da Silva Rego, que exercia a presidência na ausência do presidente, requereu que a Câmara limitasse a duração da independência à menoridade de Dom Pedro II, que terminaria no dia 2 de dezembro de 1843. Parece, como observou Paulo Cesar Souza, uma república suicida quase no seu ato de fundação. 

Embora o líder principal da Sabinada, o médico Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, fosse considerado republicano, o governo rebelde no qual ele serviu de secretário manteve uma relação ambígua com a monarquia brasileira. Houve tiradas antimonárquicas, entre elas uma ordem que mandou apagar a inscrição no obelisco que lembrava a chegada de Dom João em 1808, pois não se devia comemorar “um déspota sanhudo e ingrato [que] veio infeccionar[-nós] com o bafo pestífero da corte portuguesa”.

No dia 2 de dezembro de 1837, a Sabinada festejou o “Glorioso Aniversário do natalício do Sn.r D. Pedro II” com salvas de artilharia, um cortejo perante a imperial efígie e a iluminação dos edifícios públicos. O Novo Diário da Bahia pediu desculpas pela falta de pompa no “regozijo público”, pois os novos soldados recrutados para defender a cidade ainda estavam sem uniformes. Um funcionário público processado depois da derrota justificou seu serviço ao governo da Sabinada dizendo que, durante a revolta, “tremulava a mesma bandeira e (...) se davam vivas a sua majestade o Senhor D. Pedro II”. 

O Novo Diário da Bahia, o porta-voz do movimento editado por Sabino, publicou alguns ensaios sobre as vantagens do sistema republicano e condenou os que diziam que o Brasil não tinha condições para se tornar república. Defendeu a soberania do povo da Bahia e o seu direito de escolher a forma de governo. 

Nas suas proclamações, o governo rebelde queixava-se da preponderância política do Rio de Janeiro, batia na tecla da lusofóbia e enfatizava seu amor à ordem. Prometia proteger a propriedade privada, a escravidão, a lei, a monarquia e o altar. As proclamações terminavam com vivas à Igreja, ao jovem imperador, à independência baiana (durante a menoridade), à liberdade, à liberdade da Bahia e às tropas heróicas. 

De onde veio essa lealdade à monarquia? Símbolo poderoso, a monarquia estava profundamente enraizada na sociedade brasileira, como demonstrou Lília Moritz Schwarcz. Como todos os símbolos, a monarquia tinha múltiplos significados e a Sabinada podia ser considerada uma luta em torno do seu significado. No dia 2 de dezembro de 1837, não foram somente os Sabinos que festejaram o aniversário de Dom Pedro II – os legalistas também comemoraram o dia. Os governos do Regresso investiam muito no ritual e nos símbolos monárquicos como sustentáculos da ordem conservadora que tentaram implantar. A Sabinada cogitava uma monarquia liberal e federalista, e esperava que o jovem imperador, uma vez de maior idade, desfizesse os projetos do Regresso. 
A independência temporária durou pouco mais de quatro meses. Assediados pelas tropas imperiais, os rebeldes não conseguiram resistir. A derrota foi um massacre. Mais de mil rebeldes – em sua maioria homens de cor – morreram contra apenas quarenta soldados legalistas nos três dias de combate em março. 

Até a década de 1880, pouco se falava da Sabinada. Na crise final do Império, alguns historiadores baianos tentaram interpretá-la como precursor republicano. Henrique Praguer esperava que “o eminente e desditoso patriota baiano, Dr. Sabino, mártir da idéia federalista e republicana”, fosse considerado herói republicano como Tiradentes. A assembléia constituinte do novo Estado da Bahia declarou feriado o dia 7 de novembro; foi festejado como precursor da liberdade republicana pela imprensa baiana na década de 1890. Todavia, sempre foi um movimento ambíguo e em 1903 um jornal duvidou do sentido republicano da Sabinada, pois os sabinos cogitavam voltar ao Império quando da maioridade de Dom Pedro II. Em 1909, o historiador Braz do Amaral lamentou o “erro deplorável” da aprovação do feriado e julgou a comemoração do dia “uma imensa desgraça”.

Em 1937, Luiz Viana Filho insistiu na feição republicana do movimento e qualificou a independência interina como uma mera transigência tática. Cinqüenta anos depois, Paulo Cesar Souza preferiu qualificar o movimento como separatista e destacou seu ideário liberal, democrático, e federalista. Mais recentemente, a história social chamou atenção à luta de classe, aos conflitos raciais e à participação de escravos e milicianos negros no movimento. 

Em vez de procurar um cerne de pureza republicana no meio dos atos contraditórios e da retórica ambígua da Sabinada, devemos entendê-la como parte de uma longa tradição liberal, federalista e constitucionalista cujas origens remontam à conspiração dos alfaiates de 1798, perpassem pelas lutas pela Independência na província (inclusive o levante dos Periquitos de 1824), e tiveram seu maior expoente ideológico em Cipriano Barata de Almeida. As revoltas liberais e federalistas de 1831 a 1833 deram continuidade ao movimento, que culminou na Sabinada. Não foi um movimento forçosamente republicano, embora não seja difícil apontar aspectos republicanos nele.

Para os seus integrantes, talvez, menos importava a forma do governo – monarquia ou república – do que os direitos dos cidadãos (já especificados no artigo 179 da constituição imperial, documento que parecia letra morta aos olhos do Novo Diário da Bahia), a autonomia provincial (base para uma união federalista brasileira na qual a Corte – Rio de Janeiro – não gozaria de todas as vantagens) e o domínio da sociedade baiana pelos aristocratas do Recôncavo. Enfim, queriam a liberdade ou as instituições liberais, conceitos amplos que enquadravam os anseios para uma sociedade mais justa, sem necessariamente implicarem uma república.

Saiba mais

Hendrik Kraay. Massacre em Salvador. Publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional em fevereiro de 2008.

Paulo Cesar Souza. A Sabinada: A revolta separatista da Bahia (1837), 2ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Luiz Vianna Filho. A Sabinada (a Republica bahiana de 1837). Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.

Marco Morel. Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade. Salvador: Academia de Letras da Bahia e Assembléia Legislativa do Estado da Bahia, 2001.

Lilia Moritz Schwarcz, As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos, 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
Revista de História da Biblioteca Nacional

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Um País Enganador

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A identidade nacional é feita de equívocos e desinformação. Das salas de aula às mesas de bar, o Brasil não é o que parece ser.

Lorenzo Aldé

Futebol, mulher e religião não se discute. É o que ensina a sabedoria popular. Temas controvertidos, envoltos em paixões e idiossincrasias, melhor deixar de lado para não estragar o bate-papo de botequim. Que tal, então, conversar sobre os personagens e episódios de nossa História? Será que eles entram na roda sem maiores pinimbas?

Nem sempre. Mitos, lendas e incorreções sobre a formação e a identidade nacionais povoam o imaginário coletivo. Muitas vezes a versão se sobrepõe ao fato, seja pela disseminação de interpretações equivocadas, seja pela dificuldade de se definir, preto no branco, o que é a verdade neste país de memórias “mestiças”.

Bom exemplo é a figura de Getulio Vargas. Ditador simpatizante dos ideais fascistas ou defensor dos trabalhadores? Entre os dois extremos do mesmo personagem, é difícil equilibrar-se numa visão isenta. “É quase uma ofensa falar mal de Vargas”, comenta a professora Mariana Melo, baseada em sua experiência com turmas de um curso noturno em uma escola estadual do Rio de Janeiro. Não adianta descrever em detalhes as arbitrariedades do Estado Novo (1930-1937), a censura, a perseguição política. “Mas, professora, ele criou as leis trabalhistas”, retrucam os alunos. Para ela, uma postura compreensível: “Dentro da perspectiva dessa camada social, isso é o mais importante”, pondera a professora, dizendo ser espinhosa também a missão de mostrar aos alunos que as benesses sociais trazidas por Vargas não foram fruto de sua generosidade pessoal, mas resultado de um processo histórico quase inevitável.

Se entre adultos é complicado esclarecer contradições desse gênero, que dirá entre crianças e adolescentes. Este público está habituado a interpretar histórias que tenham vilões de um lado e heróis de outro. “Tem que ter uma definição: é bom ou é mau?”, sintetiza a professora Joana Ferraz de Abreu, que leciona em escolas particulares do Rio. Por isso, ensinar Getulio também lhe dá trabalho, assim como episódios da História mundial. “A Alemanha é a vilã da guerra, mas a Inglaterra também tinha campos de concentração. Claro que tudo depende de que lado do front o país esteve e de quem saiu vitorioso. As crianças americanas, por exemplo, dificilmente aprendem muito sobre a bomba atômica”, compara.

No Brasil, o ato bárbaro cometido pelos Estados Unidos contra Hiroshima e Nagasaki no fim da Segunda Guerra Mundial tem espaço na sala de aula. E repercute até demais, pois o antiamericanismo anda em voga entre os mais jovens. É um dos preconceitos que prejudicam uma compreensão imparcial dos acontecimentos.

Há muitos outros. Os índios aqui eram preguiçosos (quando não “burros”), por isso não funcionaram como escravos. Já os africanos “entendiam o capitalismo” e assim “aceitavam melhor” sua condição e se misturaram harmonicamente aos portugueses. Versões que não caem do céu: estão presentes nos livros didáticos e ganham adeptos ou críticos de acordo com os ventos ideológicos de cada época. Autores hoje consagrados já sofreram patrulha e foram relegados ao esquecimento em momentos adversos às suas teses. Em trechos de Casa-Grande & Senzala (1933), Gilberto Freyre descreve como os negros iam para o trabalho cantando e fala da importância da figura da ama-de-leite, o que sugere que a interação entre senhores e escravos não era tão excludente ou violenta. Por essas e outras, a obra do sociólogo foi desprezada nos anos 1960 e 70, auge do marxismo na academia, por supostamente “atenuar a luta de classes”. Relativizadas como reflexões condizentes com seu momento histórico, as contribuições de Freyre são hoje aceitas como valiosas para se entender a formação cultural do país. Até porque, se por um lado descreve a excepcional (no sentido de exceção, claro) mistura entre portugueses e negros no Brasil (diferentemente do que ocorreu, por exemplo, nas possessões inglesas e francesas na Ásia e na África), por outro também fala das torturas e castigos aos quais os escravos eram submetidos. Ambigüidades tipicamente luso-brasileiras, pois não?

Tem mais. Tiradentes: um herói nacional? Não foi. Naqueles fins do século XVIII, os insurgentes das Minas (por muito tempo tachados de inconfidentes, outra imprecisão histórica fruto da versão oficial da época) queriam a independência regional, nem pensavam em Brasil. E Pedro Álvares Cabral? “Por incrível que pareça, ainda hoje é superdimensionado”, revela Roberto Argento, outro professor de escolas particulares cariocas. A lenda do “descobrimento” acidental no caminho para as Índias, pelo visto, ainda perdura. Político? Tudo corrupto. Percepção que as autoridades atuais insistem em renovar, dia após dia, nos escândalos do noticiário. “Os alunos não acreditam que algum político, em qualquer tempo, tenha feito algo de bom. Quando aprendem sobre as práticas dos coronéis, dizem que é tudo igual até hoje”, diz Joana Ferraz de Abreu. E a participação do Brasil na Segunda Guerra desperta interesse, curiosidade? Que nada: somente risos. “Eles acham piada, desvalorizam, não acreditam que tenha sido importante. Nem quando digo que afundamos oito navios alemães e tivemos 36 afundados por eles, e que perdemos 1.040 homens”, revela a professora.

Às vezes, episódios marcantes para uma cidade ou região são vistos por seus moradores como decisivos para a História do Brasil. Em recente viagem a Recife, a professora Mariana Melo testemunhou, no discurso de vários guias turísticos, a louvação das Batalhas dos Guararapes (1648 e 1649), com a conseqüente expulsão dos holandeses, como marco inicial da identidade nacional. Talvez os pernambucanos não gostem de ouvir isso, mas nem mesmo no momento da Independência, quase dois séculos depois, estava bem claro o que era ser brasileiro.

Atire a primeira pedra quem não se acha no umbigo do mundo. Ou os cariocas realmente acreditam que a vinda da família real, em 1808, transformou profundamente todo o país? Pois se nem país existia! O impacto na cidade do Rio de Janeiro e seus ecos na Região Sudeste mal se fizeram sentir no Norte e no Nordeste, por exemplo. E nem o bairrismo nos salva da desinformação. Em recente vestibular na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), solicitados a mencionar duas obras arquitetônicas dos tempos de D. João, a maioria dos alunos listou entre elas o Teatro Municipal. Talvez uma confusão espacial, por se localizar próximo ao prédio da Biblioteca Nacional, esta sim uma instituição nascida da Corte portuguesa. O problema é que nem o prédio da BN data daquela época. Como o Teatro Municipal, foi construído nos primeiros anos do século XX, no governo do prefeito Pereira Passos.

Se nem Carmen Miranda era brasileira, a que certeza podemos nos apegar? O futebol é inglês, a banana é asiática, nossos “reis” contemporâneos são tão díspares quanto podem ser Pelé, Roberto Carlos e Xuxa. Sem falar na cultura de massa, que há décadas afunilou os significados de Brasil para o eixo Rio-São Paulo, via tevê. Até a cana-de-açúcar, orgulho do momento na promessa dos biocombustíveis contra o aquecimento global, deve ser questionada como símbolo nacional. Não só porque também foi importada de outras possessões lusas, mas porque o glorioso Proálcool, na virada da década de 1970 para a de 1980, foi feito à custa de outro glorioso orgulho pátrio: a Mata Atlântica nordestina. Repetiremos a dose, agora para cima da Amazônia?

Ufanismos sempre devem ser vistos com desconfiança. Mas é claro que parte desses mitos merece ser encarada com bom humor. A origem saxã do nosso esporte número 1, por exemplo, é matéria de almanaque. O futebol é brasileiro e ninguém tasca! Assim como o samba, claro. Inicialmente também derivado de influência européia — a binária e “marcial” polca — foi requebrado no terreiro dos negros com tempero de maxixe até virar essa contradança inimitável pelos gringos. Ponto para a miscigenação brasileira!

Segundo o pesquisador José Miguel Wisnik, da USP, o samba é a síntese da identidade nacional. Foi a solução, ansiosamente procurada no alvorecer da República, para incorporar a incômoda figura do mestiço, até então “nem rejeitado nem admitido”. “A invenção do samba é o ‘desrecalque’ dessa figura que vem à tona para ser símbolo do Brasil”, resumiu Wisnik em encontro sobre as identidades do samba, realizado na Bahia em 2007. Em resumo: o Brasil é mulato. Terra das contradições, onde convivem ordem e desordem, democracia e jeitinho, descontração e violência, natureza e devastação, diversidade e racismo.

Talvez seja esta a nossa sina. Mas antes de naturalizar a bandeira do samba como ideal nacional, fica aqui mais uma pulga para orelhas pensantes. Segundo o antropólogo Hermano Viana, a consolidação do ritmo, entre os anos 1920 e 1930, também foi uma criação intelectual, que atendia aos interesses políticos da época. “O governo precisava impor uma centralização cultural, havia uma indústria fonográfica nascente, e o rádio despontava como o primeiro meio de comunicação de massa”, comentou no mesmo evento.

Se o mulato que dá cara ao Brasil é “inzoneiro” como na canção, basta recorrer ao dicionário para descobrirmos que se trata de um ser “enganador”. Quem sabe, em se tratando de Brasil, nosso dever como historiadores, professores ou simples cidadãos, deva ser buscar não as certezas, mas as incertezas? Elucidar não as verdades, mas os enganos? Explicar para confundir, confundir para esclarecer...

Nesta mesma edição, uma seleção de doze versões enganadoras da História nacional, baseadas em fatos e personagens reais. Parte delas, fruto de “tradições inventadas”, como o historiador Eric Hobsbawm define a prática das nações de distorcer a realidade para engrandecer seus feitos ou reforçar sua identidade. É o caso de “símbolos nacionais” como a cachaça e a feijoada, e da lenda a respeito de antigas civilizações que teriam passado pelo Brasil, como os vikings e fenícios. Outras histórias resultam apenas de confusão ou desconhecimento, como o suposto parentesco entre Oswald e Mário de Andrade e a origem do nome da cidade de Olinda. 

Você está convidado a pôr suas próprias crenças à prova. E nós, da Revista de História da Biblioteca Nacional, abertos a receber, por e-mail, outras desmitificações que por acaso você conheça. Afinal, nunca é tarde para desaprender. 
Revista de História da Biblioteca Nacional