segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A lei fora da lei


Ocupação do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, pelas UPPs impôs aos moradores um estado de exceção

Vinicius Esperança


As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), política desegurança pública implantada no Rio de Janeiro desde 2008, representam uma nova forma de ocupação do território por agentes do Estado. Trazem em seu conceito a ideia de presença policial permanente, associada a algumas práticas de policiamento comunitário. Seu objetivo principal seria a retirada das armas e a repressão ao tráfico de drogas. Mas o que se observa é que essa política de ocupação inclui o controle moral da vida e do cotidiano dos moradores.

No processo de ocupação do Complexo do Alemão pelo Exército (2010 a 2012), e posterior implantação de seis UPPs na região (quatro dentro deste conjunto de favelas), duas situações simbolizam as tensões provocadas por essa estratégia: a negociação para liberação de eventos culturais e as abordagens policiais àqueles que têm “atitudes suspeitas”.

Produtores culturais locais tiveram que negociar com policiais militares a liberação ou a recusa de eventos envolvendo bebida e música, em especial os bailes funk. A polícia se utiliza deste dispositivo para controlar os espaços e as relações sociais da comunidade. Ao atribuir qualidades morais a eventos, comportamentos e tipos de festa ou música, a polícia torna-se gestora moral da vida social da favela. Quando esta situação é questionada, surge o argumento de que há situações que podem ser permitidas em outros lugares, mas não lá – o que caracteriza a aplicação da lei em estados de emergência ou exceção.

O controle dos eventos passou a ser usado pela PM como moeda de troca. “Caso se comportem e sigam as regras, permito; se não, proíbo tudo”, afirmou um comandante da UPP Nova Brasília, em abril de 2013. Fica evidente que o comando da UPP se apresenta como um regulador de questões que vão muito além do policiamento. Não existem, nos regulamentos internos, normas para dar um mesmo padrão aos procedimentos policiais. Cabe ao comandante – que a esta altura é um gestor da favela – decidir aquilo que é permitido ou não. As decisões passam a depender de seu gosto pessoal por determinado tipo de evento. Na fala dos comandantes e policiais, o baile é visto como local da desordem, da prostituição e das drogas – onde o tráfico mantém consagrado o seu domínio.


Ao negociar politicamente a permissão ou a proibição dos eventos, a polícia exerce uma nova ordem jurídica, segundo a qual certos indivíduos são submetidos a leis próprias daquele território, e uma forma particular de regulação do cotidiano é exercida através do comando da UPP. O comandante se torna o soberano, a incorporação da própria lei: ele a cria, executa e pune o seu descumprimento.

A expressão “atitude suspeita” se aplica principalmente a homens reunidos em grupo, em bares ou esquinas (“de vagabundagem”, nas palavras de um soldado), ou a homens que se assustam ou baixam o olhar quando veem a aproximação de um grupo de policiais. Incontáveis abordagens policiais a indivíduos em “atitude suspeita” reforçam o ambiente de tensão. Nas patrulhas pelos becos e pelas vielas de comunidades como Nova Brasília, Alemão, Coqueiros e Alvorada, as abordagens são feitas de forma rápida, seca e objetiva. Poucas vezes acompanhadas de qualquer saudação ou de um “obrigado” após o procedimento. Todas têm como alvo homens, a maioria entre 15 e 35 anos, de pele parda ou negra. Boné e mochila são um bom motivo para revista. Os “suspeitos” são colocados contra a parede, tiram seus bonés, abrem suas mochilas. Muitos são “conduzidos” à delegacia para o SARC (procedimento para verificar se o indivíduo possui ficha criminal ou tem mandado de prisão em aberto).

Qualquer evento ou atendimento deve ser registrado e assinado pelos policiais envolvidos: o Termo de Registro de Ocorrência (TRO) é arquivado em cada unidade, inacessível ao público. Pelo menos duas centenas de TRO analisados no Complexo do Alemão terminaram com o suspeito liberado por não constar nada contra ele.

É nesta situação em que melhor se percebe a violação da lei perpetrada pelo agente da lei, em nome da lei, de forma violenta, abusiva e extrajudicial. Confirma-se dramaticamente a hipótese de uma nova ordem jurídica, na qual leis especiais são aplicadas a determinados indivíduos, num território sob estado de exceção. A ação do agente policial se dá ao mesmo tempo dentro e fora da lei. Fora da lei quando conduz sob custódia o indivíduo sem flagrante ou mandado de prisão, mas dentro da “lei” que se aplica àquele território. O procedimento é tão naturalizado que o policial ignora o conhecimento que tem da lei, ou desconsidera a lei, e os abordados reagem com irritação ou medo, mas também não questionam a legalidade da ação. A polícia e os indivíduos, mesmo debaixo dos protestos de alguns – especialmente ligados a ONGs, entidades defensoras dos Direitos Humanos ou intelectuais – convivem numa prática em que se espera que a regulação do cotidiano seja executada através de uma ordem jurídica própria.


Enquanto nas abordagens o agente do Estado suspende a lei em nome da “lei” e da segurança, nas negociações para a liberação de eventos, a atuação policial é paternalista e pretensamente civilizadora, imbuída da missão de gerir a moral e os costumes das populações faveladas.

Desde 2013, o projeto das UPPs, inicialmente aclamado como a grande solução para o problema da segurança pública em território nacional, entrou numa profunda crise interna e externa. Aumentaram os confrontos armados entre policiais e traficantes nas favelas com UPPs, onde arrefeceu o tráfico de drogas – que, de fato, nunca deixou de existir nessas localidades. A violenta ação policial ao longo das manifestações populares acontecidas a partir de junho, assim como na greve dos professores municipais no mesmo ano, maculou ainda mais a imagem da Polícia Militar. Por fim, ganhou importância simbólica o “caso Amarildo”, ocorrido na UPP da Rocinha: um auxiliar de pedreiro, Amarildo Dias de Souza, desaparece e depois se descobre que ele foi torturado e morto dentro da sede da UPP, e que entre os assassinos estava o próprio comandante da Unidade, um dos mais “respeitados” da instituição.

Em março de 2014, noticiou-se a ocupação militar do Complexo da Maré, também na zona norte. A Justiça expediu um mandado coletivo autorizando os policiais civis a revistarem a casa de todos os moradores destas favelas. A medida confirma a tendência do governo de decretar para uma coletividade o “estado de exceção”, que anula os direitos individuais e vê os moradores como potencialmente suspeitos de serem criminosos. A fim de evitar os “saques” ocorridos no Complexo do Alemão, somente os delegados poderão fazer esta revista.

Ao que tudo indica, a chegada das UPPs ao Complexo da Maré parece repetir, quatro anos depois, as arbitrariedades ocorridas na ocupação do Complexo do Alemão.

Vinicius Esperança é professor da Universidade Candido Mendes e autor da dissertação “‘O foco de todo mal’: estado, mídia e religião no Complexo do Alemão” (UFRRJ, 2014).

Saiba mais:
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
AMORIM,Carlos.ComandoVermelho:Ahistóriasecretadocrimeorganizado.RiodeJaneiro:Record,1993.
CABANES, Robert et al. (orgs.). Saídas de emergência: ganhar/perder a vida na periferia de São Paulo. Tradução de Fernando Ferrone e Cibele Saliba Rizek. São Paulo: Boitempo, 2011.
LIMA, Carlos Alberto de. Força de Pacificação: Os 583 Dias da Pacificação dos Complexos da Penha e do Alemão. Rio de Janeiro: Agência 2ª Comunicação, 2012.
Revista de História da Biblioteca Nacional

Inventos da Antiguidade - Medicina Primitiva



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domingo, 9 de novembro de 2014

Populismo: os itinerários de uma palavra errante


UMA MESMA ETIQUETA PARA TODOS OS OPOSITORES DA AUSTERIDADE

As eleições europeias de maio testemunharam a ascensão dos partidos hostis às políticas adotadas na União Europeia. Mas, além dessa oposição, nada une essas formações: umas atualizam a ideologia nacional conservadora da extrema direita, enquanto as outras se reivindicam como esquerda radical – uma distinção negligencia
por Gerard Mauger

As vésperas da eleição europeia de 25 de maio de 2014, durante seu último encontro de campanha em Villeurbanne, o primeiro-ministro francês, Manuel Valls, lançava solenemente um chamado à “insurreição democrática contra os populismos”. “Populismo”: quem não ouviu cem vezes estalar na boca dos pesquisadores de opinião, dos jornalistas ou dos sociólogos essa palavra-baú na qual jogamos de qualquer jeito a oposição – de direita ou de esquerda, votantes ou abstencionistas – às políticas colocadas em andamento pelas instituições europeias?

A inconsistência do substantivo “populismo” deriva em parte da diversidade de suas utilizações. No mundo político, a história do rótulo revela a extensão do espectro que ele recobre: da visão encantada dos camponeses que parodia o populismo russo (narodniki) à revolta dos fazendeiros do People’s Party nos Estados Unidos no fim do século XIX; dos populismos latino-americanos (Getúlio Vargas no Brasil, Juan Perón na Argentina) ao macarthismo; do pujadismo ao lepenismo no século XX; de Vladimir Putin a Hugo Chávez na era da globalização; do United Kingdom Independence Party (Ukip) à Aurora Dourada na Europa do século XXI; ou de Marine Le Pen a Jean-Luc Mélenchon na França de hoje. Essa última confusão, hoje banalizada, foi ilustrada (em sentido literal) pelo desenhista Plantu na revista semanal L’Express (19 jan. 2011), quando ele representou a dirigente do Front National (FN) e o copresidente do Front de Gauche [Frente de Esquerda] (FG) com o braço levantado, ambos portando ostensivamente uma braçadeira vermelha e lendo o mesmo discurso: “Todos podres!”.

No campo literário, a palavra “populismo” apareceu em francês em 1929: “postura assumida de escrita” insurgida contra o romance burguês, mas apolítico, oposta aos escritores comunistas e a suas imagens ingênuas do proletariado, esse movimento literário propunha-se a “descrever simplesmente a vida das ‘pessoas simples’”.1

No universo das ciências sociais, levada por uma intenção política de reabilitação do popular, ela aplica o relativismo cultural ao estudo das culturas dominadas (VolkskundeouProletkult). Ignorando ou diminuindo a importância das relações objetivas de dominação, ela credita às culturas populares uma forma de autonomia e celebra sua resistência, até inverter os valores dominantes e proclamar a “excelência do vulgar”. Mas ela também se opõe a uma forma corrente de desprezo que relaciona as classes dominadas à falta de cultura, à natureza e até mesmo à barbárie. Característica da burguesia e da pequena burguesia culta, esse racismo social baseia-se na “certeza própria a uma classe de monopolizar a definição cultural do ser humano, e então dos homens que merecem ser plenamente reconhecidos como tais”.2

Duas visões de povo

Ao circular assim de um campo ao outro, de um século ao outro, de um continente ao outro, o rótulo parece ter perdido qualquer consistência. Dessa forma, aqueles que se dedicam a explicar seu sentido cometem, segundo as palavras do filósofo Ludwig Wittgenstein, um erro clássico: “tentar, por trás do substantivo, encontrar substância”.3Pretender, pois, definir o populismo, como propõe o cientista político Pierre-André Taguieff,4 como uma nomenclatura relacionada diretamente ao povo não exclui evidentemente ninguém no seio das sociedades ocidentais: tal procedimento é inerente à democracia, “governo do povo, pelo povo e para o povo”. E, mesmo se reservarmos o rótulo populista a um estilo de denominação que privilegie a proximidade e cultive o carisma do chefe fortemente reforçado pela propaganda televisiva, não podemos enxergar com nitidez qual dirigente atual poderia escapar a ele.5 Além do mais, definir o populismo como um encorajamento à revolta contra as “elites” (econômicas, políticas, midiáticas) levaria a incluir ao número de suspeitos François Hollande, quando, na tribuna do Bourget, em 22 de abril de 2012, ele denunciou seu “verdadeiro adversário: o mundo das finanças, que não tem nome, não tem rosto”, e Nicolas Sarkozy atacando vigorosamente em Toulon um “capitalismo financeiro que se tornou louco por não estar submetido a nenhuma regra” (25 set. 2008).

A cientista política Nonna Mayer estima que a característica mais bem partilhada pelos movimentos europeus qualificados como populistas nas análises pós-eleitorais seria a xenofobia:6 no “mosaico eurofóbico” composto pelo jornal Le Monde (28 maio 2014), catorze dos dezesseis partidos mencionados são anti-imigrantes. Todavia, editorialistas, assimilando a contestação das instituições europeias a uma forma de hostilidade aos estrangeiros, colam também a etiqueta de populista nas esquerdas radicais grega, espanhola e francesa (Syriza, Podemos, FG), que, no entanto, são pouco suspeitas de racismo. É preciso então se perguntar sobre suas representações do povo e questionar a substituição de um rótulo por outro.

Esquematicamente, podemos distinguir três figuras do “povo”.7 “Populismo” deriva do latim populus, e “democracia” se forma sobre a raiz grega dêmos, as duas palavras significando “povo”. O povo ao qual faz referência a democracia é o corpo cívico em seu conjunto, o povo-nação, de onde surge um desvio sempre possível para o nacionalismo – do qual uma forma contemporânea, menos fustigada que a outra, exalta a “competitividade da França num mundo globalizado”. Já o povo ao qual se dirigem os populistas corresponde a duas definições distintas.

Na versão de direita, ele é mais ethnosque dêmos: povo invadido ou ameaçado de invasão, ele se opõe ao estrangeiro e ao imigrante. Mais ou menos abertamente xenófobo e, na França contemporânea, antiárabe ou islamofóbico, ele defende a identidade do povo-ethnos, suposta e culturalmente intacta e homogênea, contra as populações oriundas da imigração e tidas como inassimiláveis. Ele se apresenta como nacional. Dessa forma, mesmo que opostas quanto à Europa e à globalização, as estratégias eleitorais da União por um Movimento Popular (UMP) e do FN são idênticas. Para selar uma aliança a prioriimprovável, mas eleitoralmente necessária, com as classes populares, trata-se, nesta versão de direita, de substituir sua visão do mundo – “eles (os de cima)”/“nós (os de baixo)” – por uma abordagem opondo um “nós (os de baixo)” àqueles “que não trabalham e não querem trabalhar” (desempregados, imigrantes, beneficiados por ajudas sociais); em suma, a um “eles” abaixo de “nós”.8 Reativamos assim o conflito latente entre estabelecidos e marginais9 ao jogarmos com o medo do rebaixamento de classe.

A afiliação reivindicada dos meios populares às classes médias, a ostentação da honestidade e a estigmatização moral dos delinquentes e dos “preguiçosos” permitem se distinguir da representação dominante que assimila classes trabalhadoras e classes perigosas. É por isso que a direita propõe medidas como a limitação da imigração dita “de trabalho” e manifesta sua vontade de estabelecer um teto à renda dos beneficiários dos auxílios sociais e de obrigá-los a realizar trabalhos de interesse geral. Ela preserva assim a especificidade daquele que “trabalha duro” e favorece a aliança entre uma fração declinante das classes dominantes (o pequeno patronato) e a fração estabelecida das classes populares.

Na versão de esquerda, ao contrário, o povo designa o povo operário, o povo simples celebrado por Jules Michelet, o povo-plebe, “os de baixo” e, num plano político, o povo mobilizado, oposto aos de cima, à burguesia, às classes dominantes, ao establishment, aos privilegiados, aos detentores dos poderes econômico, político, midiático etc.

Quanto aos contornos de “povo popular”, se a classe operária foi por muito tempo o centro, a vanguarda (o populismo tornando-se então “operariarismo”), eles incluem também os empregados – mulheres, em sua esmagadora maioria – e, para além disso, uma fração mais ou menos extensa dos camponeses e da pequena burguesia (professores, funcionários da área de saúde, técnicos, engenheiros etc.). Em outras palavras, no caso francês, mais de três quartos dos ativos, dos quais apenas os operários e os empregados representam a metade. “Somos o partido do povo”, dizia o dirigente comunista Maurice Thorez em 15 de maio de 1936 (antes que esse partido se tornasse, muitas décadas depois, o das “pessoas”, segundo Robert Hue). Com inspiração mais ou menos marxista, esse tipo de “populismo”, defensor das classes populares enquanto exploradas, oprimidas, em luta contra as classes dominantes, apresenta-se frequentemente como socialista. As representações que servem de base para as denominações do povo-ethnos(populismo nacional) e aquelas que invocam ao contrário o “povo popular” (populismo socialista) se opõem como a direita se opõe à esquerda. Mas os advogados de um populismo popular cultivam com boa vontade – tanto por convicção quanto por necessidade – uma visão encantada, por vezes estetizante, de um povo idealizado. Eles dão ao “homem comum”, trabalhador explorado e dominado, uma reivindicação espontânea de igualdade. Eles postulam um conjunto de virtudes indissociáveis do ethospopular tradicional: solidariedade, autenticidade, naturalidade, simplicidade, honestidade, bom senso, lucidez, até mesmo sabedoria. Essas qualidades estão cristalizadas na noção de “decência comum” (common decency) cara ao escritor britânico George Orwell: “Os trabalhadores manuais, em uma civilização industrial, possuem certo número de traços que lhes são impostos por suas condições de existência: a lealdade, a ausência de calculismo, a generosidade, o ódio aos privilégios. É com base nessas disposições que eles desenvolvem sua visão da sociedade futura, o que explica por que a ideia da igualdade está no coração do socialismo dos proletários”.10

Assim, não seria possível pretender que os discursos securitários e xenófobos do FN não tenham eco junto às classes populares. Nas últimas eleições europeias, mesmo que 65% dos operários tenham se abstido (como 68% dos funcionários públicos e 69% dos desempregados), mais de 40% daqueles que votaram teriam escolhido esse partido, ou seja, cerca de 15% desse grupo em sua totalidade (segundo o instituto Ipsos). É ao mesmo tempo pouco e muito: se é verdade que o maior partido das classes populares ainda é o da abstenção,11 uma parte delas vota à extrema direita, convencida de que “ninguém faz nada por elas e que ‘aqueles’ de cima e ‘aqueles’ de baixo prosperam à sua custa”.12 Nesse caso, o sucesso da oferta do FN ilustra a capacidade do partido em manter a confusão entre o povo ethnos e o povo dêmos, e em formar entre as frações de classes médias e de classes populares uma aliança dirigida ao mesmo tempo contra os muito pobres e os muito ricos – uma estratégia também usada na Rússia por Putin.

Um povo que vota mal entregue às suas pulsões

Esse tipo de projeto político aproveita-se do “racismo de classe” que manifestam até mesmo sem se dar conta aqueles que o comentam. Sob suas plumas, esse povo que vota mal, implicitamente reduzido ao estado de populacho, patinaria em uma propensão inata ao fechamento, ao ensimesmamento, em um ressentimento adquirido de mau aluno diante das elites (o que seria atestado por seu nível baixo de diploma) e de uma incultura política: suas pulsões, sua credulidade, sua irracionalidade supostas o levariam em direção às propostas simplistas e fariam dele uma presa fácil para os demagogos. Ao contrário, esse discurso reserva às ditas elites as virtudes de abertura, inteligência, sutileza e superioridade moral. A denúncia do povo popular, encarnado pela figura do “beauf”,13 machista, homofóbico, racista, islamofóbico etc., renova assim a filosofia conservadora do fim do século XIX e sua desconfiança das multidões e da democracia – as de Hippolyte Tainte e de Gustave Le Bon. Ela deduz essas torpezas pela simples inversão das virtudes que credita às “elites”, as quais, por construção, são suposta e rigorosamente impermeáveis a esse tipo de desvio.

Desse modo, hoje como ontem, duas representações diametralmente opostas do populismo se enfrentam: o racismo de classes de uns serve para denunciar o populismo dos outros. 

Gerard Mauger
Diretor de pesquisa emérito do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS − Centre Nationalde la Recherche Scientifique). Recentemente, publicou La sociologie de la délinquance juvénile[A sociologia da delinquência juvenil], Paris, La Découverte, Col. Repères, 2009.
Ilustração: Dahmer
1 Philippe Roger, “Le roman du populisme” [O romance do populismo], Critique (especial “Populismes”), n.776-777, Paris, jan.-fev. 2012.
2 Claude Grignon e Jean-Claude Passeron, Le savant et le populaire [O sábio e o popular], Seuil, Paris, 1989.
3 Ludwig Wittgenstein, Le Cahier Bleu et le Cahier Brun [O Livro Azul e o Livro Marrom], Gallimard, Paris, 2004.
4 Pierre-André Taguieff, L’illusion populiste. De l’archaïque au médiatique [A ilusão populista. Do arcaico ao midiático], Berg International, Paris, 2002.
5 Ler Serge Halimi, “Le populisme, voilà l’ennemi!” [O populismo, eis o inimigo!], Le Monde Diplomatique, abr. 1996.
6 Nonna Mayer, “Le populisme est-il fatal?” [O populismo é fatal?], Critique, op. cit.
7 É o que propõe Jacques Rancière com “L’introuvable populisme” [O populismo impossível de ser encontrado]. In: Alain Badiou et al., Qu’est-ce qu’un peuple? [O que é um povo?], La Fabrique, Paris, 2013. Quanto às “Vinte e quatro notas sobre a utilização da palavra povo”, propostas na mesma obra por Alain Badiou, podemos sem dificuldade reduzi-las a três: “nacional”, “operário” e “racial”.
8 Cf. Robert Castel, “Pourquoi la classe ouvrière a perdu la partie” [Por que a classe operária perdeu o jogo]. In: La montée des incertitudes. Travail, protections, statut de l’individu [O crescimento das incertezas. Trabalho, proteções, estatuto do indivíduo], Seuil, 2009.
9 Sobre essa distinção entre established e outsiders, cf. Norbert Elias e John L. Scotson,Logiques de l’exclusion. Enquête sociologique au cœur des problèmes d’une communauté[Lógicas da exclusão. Pesquisa sociológica no coração dos problemas de uma comunidade], Fayard, Paris, 1997 (1. ed.: 1965).
10 New English Weekly, Londres, 16 jun. 1938. Citado por Jean-Claude Michéa, Orwell, anarchiste tory [Orwell, anarquista conservador], Climats, Castelnau, 2000.
11 Ler Céline Braconnier e Jean-Yves Dormagen, “Ce que s’abstenir veut dire” [O que se abster quer dizer], Le Monde Diplomatique, maio 2014.
12 Robert Castel, op. cit.


13 O “beauf” é um personagem de história em quadrinhos inventado por Cabu nos anos 1970. Ele encarna um tipo ideal de racista, sexista e homofóbico. Na mesma época, Les Bidochon, HQ desenhado por Binet, apresentava personagens do mesmo tipo.
Le Monde Diplomatique Brasil

O atentado de Sarajevo, pretexto para reescrever a história

Segundo uma análise cada vez mais difundida, o assassinato do herdeiro do Império Austro-Húngaro provocou a Primeira Guerra Mundial. Ao conferir um lugar central à política sérvia no início do conflito, essa leitura ajuda a criar a imagem sóbria dos Bálcãs e oculta as causas reais da carnificina de 18 milhões de mortos
por Jean-Arnault Dérens


sorte da Europa foi lançada em Sarajevo no dia 28 de junho de 1914? Nessa data, um jovem nacionalista “iugoslavo”, Gavrilo Princip, membro da organização secreta Jovem Bósnia, manipulada por certas facções do serviço secreto do reino da Sérvia, assassinou o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro da coroa do Império Austro-Húngaro, e sua esposa, a condessa Sofia Chotek.

A memória desse gesto mortal se manteve viva durante todo o século XX em diversas interpretações contraditórias. Em 1941, quando acabavam de penetrar em Sarajevo, oficiais nazistas arrancaram a placa comemorativa que havia no local do drama e a ofereceram a Hitler na ocasião de seu aniversário. Após a Libertação, sob a Iugoslávia socialista, uma nova placa foi instalada no mesmo lugar, com a pegada de Gavrilo Princip gravada no concreto. A Iugoslávia socialista considerava o jovem revolucionário – morto de tuberculose na prisão em 1918 – um “herói” e um “libertador”. No próximo dia 28 de junho, a prefeitura de Sarajevo planeja erigir um novo monumento à memória do arquiduque assassinado e inaugurar um busto de Gavrilo Princip em Belgrado, no Parque Kalemegdan.

Qual importância é conveniente conferir a seu gesto mortal? Em seu best-seller internacional, Les somnambules,1 o historiador britânico Christopher Clark propõe uma releitura das causas da guerra que, segundo ele, não era inevitável. O atentado de Sarajevo não teria servido apenas de pretexto para o Império Austro-Húngaro declarar, em 28 de julho, guerra contra a Sérvia – cujo jogo de alianças teria culminado no primeiro conflito mundial; teria desempenhado também o papel de disparador da guerra.

Reavaliar dessa forma a importância do atentado de Sarajevo conduziu o historiador a conferir uma responsabilidade central à política sérvia nos acontecimentos que precipitaram a Europa para a guerra. A questão de uma eventual unificação dos povos eslavos do sul – “iugo” significa sul – agitava os Bálcãs naquele momento, assim como as possessões territoriais austro-húngaras. A tutela (1878) e, principalmente, a anexação (1908) da Bósnia-Herzegovina haviam deteriorado seriamente as relações entre Viena e Belgrado.

Vingança ideológica do Ocidente

A abordagem escolhida pelo historiador, contudo, leva-o a relativizar a importância dos interesses imperialistas das “grandes potências” nos Bálcãs, que não queriam dividir os restos do Império Otomano que agonizava. Em vez disso, Clark retoma longamente as circunstâncias trágicas do golpe de Estado de 1903, com a deposição da dinastia sérvia dos Obrenovic e a ascensão da dinastia dos Karadjordjevic. O massacre dos membros da família real deposta provaria uma verdadeira “barbárie” sérvia, além de uma tendência ao regicídio, que o atentado de Sarajevo viria a confirmar.

Os historiadores sérvios se defenderam ao denunciar o que qualificaram como “revisionismo histórico”. Alguns nacionalistas entenderam o recado como “vingança ideológica” do Ocidente, que ainda desejaria punir os sérvios pelas guerras dos anos 1990. Mas as críticas abundam amplamente nos setores nacionalistas. O escritor e jornalista bósnio Muharem Bazdulj também estigmatiza essas reescrituras da história ao denunciar a confusão voluntária que essa leitura histórica faz dos conceitos de “nacionalismo sérvio” e “aspiração iugoslava”.2 Segundo ele, a “reabilitação” do Império Austro-Húngaro teria como objetivo, por consequência, negar qualquer legitimidade à experiência iugoslava. No momento de comemoração de seu centenário, no dia 28 de junho próximo, o projeto “Sarajevo, coração da Europa”, financiado pela União Europeia, exalta o “modelo” da reconciliação franco-austríaca, silenciando a ambição iugoslava de vida comum.

A retirada de “pequenos detalhes”

Amplamente repercutida nos meios de comunicação, a visão de Clark conforta uma imagem “negra” dos Bálcãs. No início dos anos 1990, o jornalista Robert D. Kaplan havia publicado Balkan ghosts,3 que exerceu uma profunda influência sobre a percepção dos Bálcãs por parte dos norte-americanos. Aí já estava a sugestão de que as verdadeiras raízes da Primeira Guerra Mundial deveriam ser buscadas nessa região. A Segunda Guerra Mundial, por sua vez, teria sido apenas uma consequência da primeira, e aí residiria a causa de todos os problemas da Europa no século XX. Nessa linha de pensamento, a “matriz ideológica” tanto do fascismo como do comunismo poderia estar no nacionalismo sérvio e croata...

De acordo com a historiadora búlgara Maria Todorova, esse imaginário ocidental dos “Bálcãs selvagens”4 permite definir, por contraste, a “verdadeira” Europa: ocidental, moderna, civilizada. Contudo, foi nas trincheiras da guerra de 1914 que, pela primeira vez na história, os jovens croatas e os jovens sérvios receberam ordens de matarem-se entre si: os primeiros vestiam o uniforme austro-húngaro, enquanto o governo dos segundos era aliado da França e da Grã-Bretanha.

A inversão de valores é explícita em um texto do jornalista italiano Domenico Quirico: “Sarajevo é o coração das trevas, e há cem anos a consciência europeia agoniza nos escombros de seu universo. É preciso vir aqui, aos Bálcãs, para compreender os egoísmos irracionais que a assassinaram”.5 Se essas palavras possuem algum sentido, é preciso compreender que são as “trevas” de Sarajevo que obscurecem há um século a “consciência europeia”, e os “egoísmos irracionais” dos Bálcãs que “assassinaram” essa Europa. Retiram-se da leitura histórica, assim, “detalhes” pouco importantes como os choques imperialistas, o colonialismo, o fascismo, o nazismo. A fonte primeira de todos os males do século XX foi finalmente encontrada: é essa terra “ensopada de sangue” que constitui os Bálcãs. 

Jean-Arnault Dérens redator-chefe do Courrier des Balkans.

1 Christopher Clark, Les somnambules. Été 1914: comment l’Europe a marché vers la guerre[Os sonâmbulos. Verão de 1914: como a Europa caminhou em direção à guerra], Paris, Flammarion, 2013.
2 Ler Muharem Bazdulj, “Attentat de Sarajevo: Gavrilo Princip, Hitler et l’idée yougoslave. Entretien avec Vuk Mijatović” [Atentado de Sarajevo: Gavrilo Princip, Hitler e a ideia iugoslava. Entrevista com Vuk Mijatović], Le Courrier des Balkans, 25 nov. 2013.
3 Robert D. Kaplan, Balkan ghosts: a journey through history [Fantasmas dos Bálcãs: uma jornada pela história], Picador, Nova York, 2005.
4 Maria Todorova, Imaginaire des Balkans [Imaginário dos Bálcãs], Paris, Éditions de l’Ehess, 2011.
5 Domenico Quirico, “À Sarajevo, la conscience de l’Europe râle sous les décombres” [Em Sarajevo, a consciência europeia agoniza em seus escombros], La Stampa/Le Monde, suplemento Europa, 16 jan. 2014.
Le Monde Diplomatique Brasil

terça-feira, 4 de novembro de 2014

A Peste Negra



Tudo começa quase como um resfriado comum. Dentro de um dia aparecem a febre, as manchas pretas do tamanho de bolas de bilhar no pescoço, e então a tosse com sangue. Poucos viveram mais de dois dias após o início da infecção, e muito rapidamente o destino dos corpos tornou-se um problema.