quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

As moedas holandesas no Brasil

 
Florim
  
Soldo
Cercados pelos portugueses no litoral de Pernambuco e não dispondo de dinheiro para pagar seus soldados e fornecedores, os holandeses realizaram a primeira cunhagem de moedas em território brasileiro. Conhecidas como "moedas obsidionais" ou "moedas de cerco", estas foram também as primeiras moedas a trazerem o nome do Brasil. Por causa da inexistência de ferramentas e materiais adequados, e da urgência do trabalho, as moedas foram feitas de forma bastante rudimentar.

Em 1645 e 1646 foram cunhadas moedas de ouro de III, VI e XII florins e em 1654, pouco antes da partida, moedas de prata, nos valores de XII, X, XX, XXX e XXXX soldos, havendo, entretanto, polêmica quanto à autenticidade dos quatro últimos valores. A inscrição G.W.C. corresponde às iniciais de "Companhia das Índias Ocidentais", em holandês.
 http://www.bcb.gov.br

Moedas-mercadorias no Brasil



 
Pau-Brasil
  ]
Zimbo
  
Pano de Algodão
Nos dois primeiros séculos após o descobrimento, em face da inexistência de uma política monetária especial para a Colônia, a quantidade de moedas em circulação era insuficiente para atender às necessidades locais. Por esse motivo, diversas mercadorias foram utilizadas como dinheiro, inclusive pelo próprio governo, sendo comuns os pagamentos realizados em açúcar, algodão, fumo, ferro, cacau e cravo, entre outros.

Em algumas ocasiões, o uso de mercadorias como moeda obedeceu a determinações legais. Em 1614, por exemplo, o governador do Rio de Janeiro estabeleceu que o açúcar corresse como moeda legal, ordenando que os comerciantes o aceitassem obrigatoriamente como pagamento. No Maranhão, que constituía um estado politicamente separado do Brasil e onde a principal moeda corrente era o algodão, foi legalmente estabelecida, em 1712, a circulação do açúcar, cacau, cravo e tabaco como moeda.

Os escravos africanos chegados ao Brasil utilizaram em suas trocas o zimbo, concha de um molusco encontrada nas praias brasileiras e que circulava como dinheiro no Congo e em Angola.
 http://www.bcb.gov.br

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

A monarquia e o mundo dos negócios



Marisa Saenz Leme
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Departamento de História, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Franca/SP, Brazil




MARSON, I. A.; OLIVEIRA, C. H. L. de S. (Org.) Monarquia, liberalismo e negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Edusp, 2013.

A Importância da monarquia brasileira foi reconsiderada entre nós a partir dos anos 1970, com base na renovação metodológica dos estudos de história política, internacionalmente desenvolvida. Longamente tido como "flor exótica" no continente americano, ficou o regime muito tempo bastante esquecido dos estudos considerados "críticos", em que se valorizavam, sobretudo, a formação escravista colonial e a sua desagregação, a partir dos anos 70 do século XIX, a par da própria desagregação do Império. Mas, por intermédio de estudos em grande parte realizados nos cursos de pós-graduação das nossas universidades, com base em intensa pesquisa empírica, a formação e desenvolvimento da monarquia brasileira vêm se mostrando um campo fértil para a compreensão das relações entre sociedade e Estado no Brasil. A obra ora em apreço representa um salto qualitativo na renovação desse campo historiográfico. Nela se realizou, por intermédio de um conjunto de trabalhos desenvolvidos nos cursos de pós-graduação da USP e da Unicamp, uma articulação teórico-historiográfica entre a instituição do Estado - que, na sua própria forma monárquica, ao contrário do que por muito tempo se pensou, foi liberal desde os primórdios da Independência - e o mundo dos negócios, num país em que as atividades econômicas urbanas tiveram um peso bem maior do que se costuma considerar. Trata-se de relações contraditórias, que não se explicam pelo que em certos vetores analíticos se avalia como "distorções" das realidades brasileiras, ou ibero-americanas, consideradas atrasadas, periféricas, imperfeitamente capitalistas e liberais. Pelo contrário, conforme explicitam na Introdução as organizadoras do livro, as relações sociedade-Estado desenvolvidas no Brasil independente e, num sentido amplo, as próprias relações coloniais decorreram das contradições que marcaram os próprios fatores originários do liberalismo.

Abrangendo dois grandes "momentos" da constituição e desenvolvimento do Brasil enquanto país independente, essas questões são analisadas, na primeira parte do livro, basicamente, à luz da Independência; na segunda parte, trata-se de se observar as relações sociedade-Estado nas regências e na ainda conturbada década da Maioridade, seguindo-se o desenvolvimento do jogo político e empresarial nas décadas seguintes, num Império já estabilizado.

Como tem mostrado a historiografia mais recente, no plano socioeconômico a nossa independência assentou-se em grande medida em determinados grupos das elites coloniais, que se desenvolveram sobretudo no século XVIII no sudeste e sul da colônia. A formação desses grupos e a articulação entre eles é elemento capital para se compreender, entre outros fatores, a maneira pela qual diferentes regiões da Colônia Brasil, longamente pouco identificadas entre si, uniram-se num todo maior. Nessa dimensão, Ana Paula Médici mapeou os grupos de contratadores de impostos, envolvidos numa extensa rede de produção e comércio na então capitania de São Paulo. Capitania que, junto com Minas Gerais, teve papel fundamental no modo pelo qual se realizou a independência, com base no centro monárquico estabelecido no Rio de Janeiro. De acordo com Vera Lucia N. Bittencourt, esse processo resultou de um complexo jogo de articulações políticas, com bases socioeconômicas. Conforme Norbert Elias (O processo civilizador: formação do Estado e civilização), foi o comércio, diferentemente das atividades estritamente rurais, que possibilitou o alargamento das fronteiras entre áreas antes apartadas, favorecendo posturas de negociação para a solução dos impasses políticos e o desenvolvimento de um Estado centralizado. Tese que se confirma na recomposição sociopolítica, feita pela autora, de um momento ainda muito pouco estudado na historiografia: a regência de D. Pedro, entre a partida de D. João VI para Lisboa e a declaração da independência. Inicialmente frágil, a autoridade do príncipe aos poucos se consolidou, no concerto das alianças e acordos entre a autoridade estatal e os grupos civis.

Mas a atuação desses grupos já adquirira feição específica, dada a possibilidade de maturação política decorrente da presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro. Próximos ao núcleo central do poder metropolitano, os elementos de maior relevância socioeconômica a ele se articulavam, não apenas no plano estritamente econômico, mas no da busca de status social e político, o que, entre outros fatores, levava ao patrocínio das festas públicas realizadas na corte joanina, conforme a exposição de Emilio Carlos R. Lopes.

Fundamentalmente, foram se constituindo, de modo mais ou menos explícito, diferentes projetos para o Brasil em formação, vivenciando-se um amplo processo de disputas políticas, que, com a Revolução Liberal do Porto em 1820, tomou impulso e adquiriu grande visibilidade. Nesse contexto, não faltou a ocorrência de embate violento, consubstanciado nos conflitos ocorridos na Praça do Comércio do Rio de Janeiro, quando da reunião montada devido às demandas de representação política surgidas com a Revolução. Cecília Helena S. Oliveira desvenda a rede de relações sociais ocultas sob o jogo político que se realizava na corte, envolvendo elementos da burocracia e diferentes grupos civis, em que se destacou um grupo de liberais aparentemente mais radicais, responsáveis pela convocação da reunião. Produtores inicialmente de menor porte financeiro do que os abastados comerciantes de "grosso trato" advogavam, a par de reformas políticas radicais, no quadro do liberalismo, a defesa do comércio e da indústria "nacionais" e outras medidas de proteção ao trabalho, urbano e rural. Reivindicações essas que propiciaram a mobilização de diferentes camadas da população.

Nessas disputas, o violento episódio - ainda historiograficamente pouco conhecido - é emblemático para nele se distinguirem as formas de atuação e de justificativas políticas dos grupos envolvidos, bem como as diferentes interpretações dos contemporâneos a seu respeito. Perdendo o controle de uma reunião por eles articulada, os "radicais" procuraram se desvincular da massa que atraíram com suas propostas, na medida em que essa apresentou comportamentos políticos próprios.

Argumenta-se neste livro, já na sua Introdução, a compatibilidade entre continuidade do escravismo e adoção do liberalismo no Brasil independente, o que é fundamental não só para se entender a devida complexidade das relações sociedade-Estado no Brasil até o terceiro quartel do século XIX, como o liberalismo em si. Observe-se que a conservação do escravismo constitui fator que, numa perspectiva linear - na contramão das abordagens analíticas apresentadas na introdução e nos capítulos deste trabalho - é utilizada para se defender a tese do "atraso" brasileiro, considerado incompatível com o ser liberal. Nessa dimensão, João Eduardo F. Scanavini relata as discussões parlamentares que se seguiram à assinatura do tratado anglo-brasileiro de 1826, proibindo o tráfico atlântico de escravos. Deputados de tendências políticas distintas se alternaram na sua condenação (maioria) e na sua defesa (minoria), em termos amplamente ajustados ao jogo entre as competências do Executivo e do Legislativo, como costuma acontecer nos Estados de institucionalização liberal.

A segunda parte do livro aborda um Império que, embora já constituído, ainda sofria contestações importantes, até se "estabilizar" nos anos 50 do século em apreço. Importa perceber a fluidez entre posturas liberais e conservadoras que se articulavam no mundo dos negócios, embora, no plano político, se desdobrassem em matizes diferenciados, cujos sentidos, como argumenta Eric Hörner, precisam ser revistos. Problematizam-se as interpretações a respeito, em grande parte decorrentes do anacronismo de se pensar a primeira metade do século XIX em razão das cristalizações ocorridas no seu último quartel.

Embora em processo de estabilização com a Maioridade de D. Pedro II - a qual, em 1840, forçou o fim da conturbada experiência regencial -, o Império brasileiro ainda sofreu uma expressiva contestação com a Revolução Praieira, ocorrida em Pernambuco em 1848, denominada "liberal". Izabel de Andrade Marson revela exemplarmente os limites desse projeto. Explorando as contradições dos discursos praieiros e conservadores, mostra como a defesa da proteção ao comércio de retalho e da chamada "indústria nacional", em contraposição ao "laissez-faire" conservador, formou um delineamento ideológico entre os "revolucionários" da Praieira, chamados liberais, e os conservadores, adeptos do "progresso". "Progresso" esse simultaneamente aberto ao mercado internacional e, internamente, representado pelos proprietários rurais mais ricos, financeiramente capazes de transformar tecnologicamente a produção do açúcar.

O projeto "liberal", contudo, apoiado pelos proprietários rurais mais pobres e por diferentes camadas urbanas, tinha como limite fundamental, desvelado pela autora, a seguinte contradição: boa parte da massa urbana dos seus adeptos agia em razão de interesses/representações passadistas, de caráter artesanal-corporativista, enquanto o projeto de "indústria nacional liberal" trazia implícita a transformação dessas figuras sociais em mão de obra para as fábricas. Propositura essa naturalmente camuflada nos discursos liberais, de grande mobilização popular. Numa leitura linear, esse quadro propiciou, por muito tempo, uma interpretação da Praieira como uma revolução efetivamente popular, até mesmo socialista. Observe-se, nesse cenário, a recorrência do que Cecília Helena S. Oliveira qualificou como a "astúcia liberal", na década de 1820, quando os liberais envolvidos nas disputas da Praça do Comércio se desvencilharam das camadas efetivamente populares que os apoiavam.

Na sequência das "revoluções", a "conciliação" - ainda que precária enquanto tal - indica uma institucionalização política que teria permitido aos seus atores arrojarem-se na fluidez das relações entre "política, partidos e empreendimentos".

Dessa forma, interesses mais particularizados se apresentaram na trajetória político-empresarial de Teófilo Ottoni, que, com imagem marcadamente liberal, como mostra Maria Cristina N. Ferreira Neto, teria na realidade se envolvido num jogo de alianças com políticos conservadores, visando o favorecimento legal, por intermédio de aprovações parlamentares, das iniciativas do seu empreendimento. De forma semelhante, como expõe Eide Sandra A. Abreu, o liberal Tavares Bastos, partícipe da contraditória Liga Progressista, compactuou com um conjunto de trâmites escusos entre público e privado - envolvendo o Parlamento, autoridades do Executivo brasileiro e diplomatas - para obter a aprovação de uma companhia de navio a vapor estadunidense e favorecer a imigração daquele país para o Brasil. Cabe frisar que, na contramão do que sucedera no período da Independência e na Revolução Praieira, foram os conservadores, nesse momento, a defenderem o que seria a "indústria nacional" no contexto.

Conforme Habermas (Mudança estrutural da esfera pública), com o advento do Estado liberal, a esfera pública, em grande parte consubstanciada no Parlamento, passou a ser dirigida, na contramão do Estado absolutista, a partir da esfera privada, constituindo-se assim contraditoriamente o liberalismo, desde os seus primórdios, entre as suas dimensões públicas e privadas, entre um discurso descentralizador e o Estado impositivo. Estado esse que, no caso do Brasil, foi grandemente pensado como "demiurgo" da nossa sociedade, tese cabalmente desmentida pela obra ora em apreço.

É professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", campus de Franca (SP). @ - saenzl@terra.com.br
Revista Estudos Avançados - USP

Presença francesa no Brasil

Álvaro Faleiros
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo/SP, Brazil



PERRONE-MOYSÉS, L. Cinco séculos de presença francesa no Brasil: invasões, missões, irrupções. São Paulo: Edusp, 2013.

O Ano 2009 foi oficialmente o Ano da França no Brasil. Dentre as centenas de atividades realizadas, uma das que mais bem sintetizaram as intensas relações entre Brasil e França foi o ciclo de conferências promovido pelo Núcleo de Pesquisas Brasil-França (Nupebraf) do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), realizado no Centro Universitário Maria Antonia, durante o qual especialistas brasileiros e franceses das áreas de História, Antropologia, Literatura, Artes plásticas, Música, Teatro, Fotografia e Arquitetura trataram das relações entre os dois países.

O período contemplado pelas conferências retomou cronologicamente a extensa e ininterrupta relação franco-brasileira, partindo de reflexões sobre a França Antártica (século XVI) e chegando aos dias de hoje. O livro Cinco séculos de presença francesa no Brasil: invasões, missões, irrupções, organizado pela professora emérita da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Leyla Perrone-Moisés, e publicado agora pela Edusp, reúne esse importante conjunto de trabalhos.

"O Brasil de Montaigne", que abre o volume, foi escrito por Frank Lestrignant e trata da importância do contato de Montaigne com índios brasileiros e com escritos de viajantes para a elaboração de suas reflexões sobre as noções de civilização e de barbárie. O Brasil lido por Montaigne o leva, por exemplo, a considerar que "cada qual chama de barbárie o que não é de seu costume". O modo como Montaigne lida com a alteridade, lembra Lestrignant, faz que Montaigne invente, em "Dos Canibais", a "heterologia", isto é, "um discurso do outro, que é ao mesmo tempo discurso sobre o outro e discurso em que fala o outro". E prossegue o autor: "a heterologia provê um espaço intermediário, um palco reversível, em que a última palavra não pertence necessariamente ao sujeito primeiro do discurso", podendo o enunciador ser também sujeito a crítica. A "declamação em eco" presente na retórica de Montaigne é também, e sobretudo, aquela do próprio ritual sacrificial a que se refere. Ao propor tal passagem, Lestrignant produz um espelhamento verbal altamente sugestivo, o que faz deste um dos mais instigantes textos do livro.

De grande interesse também é o segundo artigo, "Franceses no Maranhão: história de intérpretes", de Beatriz Perrone-Moisés. Nele, a autora retoma a trajetória de Charles des Vaux, jovem nobre responsável pela ideia da fundação da França Equinocial no século XVII, assim como a história de David Migan, jovem intérprete francês que viveu entre os índios tupi. O centro do argumento de Beatriz Perrone-Moisés é que "Des Vaux e Migan desempenham papéis tão ou mais vitais para a França equinocial quanto alguém como La Ravardière, personagem que a historiografia optou por reter". Ao colocar o que chama de "intérpretes-embaixadores" como protagonistas da história da França Equinocial, a antropóloga lança luz sobre estratégias fundamentais de contato e de conquista ainda pouco visíveis para a historiografia oficial.

O terceiro e o quarto ensaios não tratam mais da época das invasões e sim das ditas "missões" do século XIX. O que está em jogo, primeiramente, é o questionamento da própria noção de missão, pois, como aponta Leyla Perrone-Moisés em sua apresentação, "as últimas pesquisas sobre o assunto mostram que os artistas franceses acolhidos pela corte de dom João VI, para fundar a primeira Escola de Belas Artes do Brasil, foram missionários voluntários".

Em "A Arcádia francesa chega ao Brasil: as telas melancólicas de Nicolas-Antoine Taunay", Lilia Moritz Schwarcz reflete sobre o modo como a complexa relação entre os artistas franceses e a recém-chegada corte portuguesa foi sendo acordada. Destaca a pesquisadora que os artistas franceses logo perceberam que sua verdadeira função seria "construir cenários rápidos e dar grandiosidade a essa corte imigrada". Nesse contexto, coube a Nicolas-Antoine Taunay a difícil tarefa de tentar "traduzir" para os trópicos a experiência de uma pintura de representação do Estado de cunho neoclássico. É o choque de culturas expresso na pintura, por exemplo, pela dificuldade em retratar a escravidão, que faz da experiência de Taunay um retrato dos "mal entendidos" que envolvem a vinda dos artistas franceses ao Brasil.

O ensaio "Jean-Baptiste Debret: um filho da Revolução Francesa diante do Brasil nascente", do filósofo Jacques Leenhardt, aponta para esse outro importante artista do período, o pintor Jean-Baptiste Debret. Assim como Taunay, ele depara com o descompasso entre a realidade brasileira e a ética neoclássica, "inaplicável às circunstâncias brasileiras". Debret, entretanto, abandona a pompa monárquica e debruça-se sobre a vida da rua, o que faz dele, nas palavras de Leenhardt, uma das mais importantes "testemunhas das transformações mais dramáticas que afetam o país".

O texto seguinte, "O teatro francês no Brasil do século XIX", de João Roberto de Faria, trata da presença francesa nos meios teatrais, presença que se dá tanto pelo predomínio do repertório dramático em nossos palcos como pela vinda de companhias dramáticas e de grandes artistas franceses, sobretudo ao Rio de Janeiro. Roberto de Faria destaca a figura de João Caetano, responsável, a partir dos anos 1830, pela adoção do repertório dramático francês de modo hegemônico, tendência que, entre compreensões e incompreensões, atravessa todos os movimentos literários do período, desde o romantismo até o naturalismo, estando na base da formação de nosso repertório nacional também. A presença de artistas franceses em palcos brasileiros foi também avassaladora, sendo responsável por parte considerável do que se convencionou chamar de dramaturgia séria. Essa forte presença não parece ter levado, contudo, à produção de um teatro brasileiro inovador, o que leva o pesquisador a afirmar que, tanto na formação de repertório quanto de companhias, "surpreende e incomoda que não tenhamos tido no período uma dramaturgia mais rica, sintonizada pelo menos com aquela predominante nos palcos franceses".

O segundo texto dedicado à literatura do século XIX é "A França literária de Machado de Assis", de Gilberto Pinheiro Passos. Partindo do conceito de paródia, seja temática, seja estilística, Pinheiro Passos desenvolve acurada leitura do modo como Machado de Assis retoma o gênero das "Memórias", presente tanto na obra Memorial de Santa-Helena de Las Casas, como nas Mémoires d'outre tombe de Chateaubriand, renovando-o. Essa "criação de memórias póstumas à brasileira" surge para o pesquisador como uma brilhante "confissão da incapacidade ou desinteresse dessa parcela social [a classe dominante] de entender e modificar o país". Pinheiro Passos estabelece também importante paralelo entre as Illusions perdues de Balzac e Quincas Borba, além de apontar de modo preciso para as leituras de Pascal na elaboração da complexa Capitu. O vasto conhecimento da obra de Machado de Assis ainda leva o pesquisador a se debruçar sobre a presença de Racine em Esaú e Jacó. O raro poder de síntese de Pinheiro Passos permite, em pouco mais de uma dezena de páginas, retomar grandes linhas de força do romance machadiano.

A presença francesa no século XX, por sua vez, é analisada em três ensaios. Em "Darius Milhad e o Brasil: o olhar do viajante, através de seus textos (1917-1949)", Manoel Corrêa do Lago se debruça sobre a estada do compositor francês no Brasil entre 1917 e 1918. De forma bastante detalhada, retoma tanto as conferências de Milhaud que tem o Brasil como tema e as composições que realizou inspirado em seus estudos de ritmos brasileiros, assim como suas atividades concertísticas e sua circulação no meio carioca. Em sua conclusão, Lago destaca que os escritos de Milhaud em sua fase brasileira "constituem, no seu conjunto, um tesouro de informações, de caráter etnomusicológico, sociológico e musical, sobre o Brasil que emergia da Primeira Guerra Mundial".

O entre-guerras é também o período tratado em "Fascínio e rejeição: Blaise Cendrars e Benjamin Péret no Brasil", de Carlos Augusto Calil. Grande conhecedor da obra de Cendrars e de Péret, Calil apresenta as contradições e descobertas que envolvem a presença desses artistas franceses no Brasil. Se, por um lado, a presença de Cendrars foi "decisiva para a consolidação do movimento modernista no Brasil", por outro, o poeta não resiste à "idealização do Brasil". Em relação a Péret, o poeta surrealista acaba expulso do Brasil em 1930 e, quando volta ao país na década de 1950, acaba preso, levando Calil a falar em dupla rejeição do Brasil em relação ao "inconveniente poeta". Assim, em ambos os casos, "a irredutível experiência brasileira, cujo elemento irracional enseja um movimento de suspeita e fascínio, ganha identidade pelo mútuo estranhamento".

O fascínio exercido pelo Brasil também é analisado em "Pierre Verger e Marcel Gautherot, da França ao Brasil: experiências cruzadas e convenções de representação", de Heliana Angotti-Salgueiro. Como destaca o ensaio, se é possível identificar nas imagens dos fotógrafos franceses "convenções de representação do exotismo", os clichês de seus retratos etnográficos "não maquiavam ou estetizavam a pobreza, nem dignificavam ideologicamente seus modelos" e, sim, representavam um modo de olhar que, segundo Angotti-Salgueiro, pode ser compreendido como um "humanismo documentário".

Diferentemente dos textos anteriores, os quatro ensaios que encerram o volume apontam para possíveis futuros cruzamentos. Imagem do próprio Ano da França no Brasil, os textos "A literatura Francesa de hoje", de Gilles Lapouge; "A irrupção da arte contemporânea nos museus de arte antiga", de Jean Galard; "A arquitetura expressiva ou o pós-modernismo à francesa", de Françoise Gaillard; e "A crise da literatura francesa e da irradiação intelectual da França no mundo", de Pierre Rivas, permitem ao leitor entrar em contato com questões que alimentam hoje o debate de ideias na França, abrindo espaço para que, neste século que se inicia, o contato entre a cultura brasileira e a cultura francesa prossiga profícuo em seus choques, encontros e equívocos, como apontam os instigantes ensaios que compõem o livro Cinco séculos de presença francesa no Brasil: invasões, missões, irrupções.

É doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (2003); professor de Literatura Francesa da FFLCH-USP. @ - faleiros@usp.br
Revista Estudos Avançados - USP

Religiosidade no Brasil

Rodrigo Franklin de Sousa
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/SP, Brazil




PEREIRA, J. B. B. Religiosidade no Brasil. São Paulo: Edusp, 2013.

O Tópico da religiosidade no Brasil tem recebido atenção renovada com a participação cada vez maior de grupos religiosos, não poucas vezes de orientação fundamentalista, no cenário político e midiático brasileiro. A discussão é normalmente formatada em termos das questões quentes do momento e se mostra como um lugar de formação de estereótipos e visões superficiais, como a repetida afirmação do declínio do catolicismo laico no Brasil e do crescimento desenfreado de um evangelicalismo radical, proselitista e monolítico. A presente reedição de artigos originalmente publicados na Revista USP, em 2005 - e acrescida de algumas contribuições originais - é leitura fundamental para quem busca um entendimento mais nuançado do que é a religião e a religiosidade no Brasil. O livro editado por João Baptista Borges Pereira oferece um retrato do rico e intrincado mosaico que, na realidade, caracteriza a religiosidade brasileira. Os artigos da coletânea revelam um Brasil para além dos estereótipos consagrados, um quadro religioso onde figuram, dentre outros, grupos budistas no Rio Grande do Sul, muçulmanos no Rio de Janeiro, xamãs em São Paulo, espíritas messiânicos na Paraíba e judeus no Pará.

É bem verdade que o campo religioso brasileiro é dominado pela matriz do cristianismo, uma vez que notamos que catolicismo e protestantismo abarcam 90% dos brasileiros afiliados a alguma religião em nosso país. A essa ampla maioria somam-se ainda outras religiões e movimentos que têm alcançado penetração e expressividade cada vez maiores. Entretanto, mesmo dentro do contexto dessas manifestações cristãs majoritárias encontramos marcas de diversidade e pluralidade que correspondem a contingências históricas e a conjunturas sociais e culturais das mais diversas. A religiosidade brasileira possui uma identidade plástica e metamorfa, que trai os números censitários. É possível detectar alguns fatores históricos e sociais comuns que afetam, ainda que com suas especificidades, os diferentes grupos religiosos brasileiros. Esses fatores aparecem reiteradamente em diversos textos da coletânea.

A vinculação entre o cristianismo e a população brasileira tem raízes históricas profundas. Trazido pelos portugueses, o catolicismo sempre esteve intimamente vinculado à cultura e identidade brasileiras e passou por um processo de expansão e consolidação a partir da segunda metade do século XIX, com a revitalização do catolicismo na Europa, que influenciou o crescimento de novas práticas religiosas e devoções no Brasil, que matizaram definitivamente o catolicismo brasileiro (Augustin Wernet, "Congregações femininas no Brasil e o reavivamento religioso em fins do século XIX"). É principalmente no final do século XX que se pode reconhecer um franco declínio do catolicismo no Brasil (Faustino Teixeira, "Faces do catolicismo brasileiro"), o que aponta para um "processo de reconfiguração do campo religioso nacional" (Renata de Castro Menezes, "Uma visita ao catolicismo brasileiro contemporâneo: a bênção de Santo Antônio num convento carioca"). Nesse processo, é preciso problematizar a ideologia da identificação simples entre catolicismo e identidade brasileira, ou mesmo a própria conceituação do que seria uma identidade católica (Renata de Castro Menezes, "Uma visita ao catolicismo brasileiro contemporâneo: a bênção de Santo Antônio num convento carioca"). O catolicismo brasileiro é plural e diverso, amplo, sincrético, heterogêneo, plástico. As suas várias vertentes podem ser tidas como um verdadeiro mosaico de experiências e vivências de espiritualidade, que absorvem e moldam elementos próprios da tradição católica assim como de outras tradições (Faustino Teixeira, "Faces do catolicismo brasileiro").

Pluralidade e diversidade também caracterizam as diversas configurações que as igrejas protestantes e evangélicas assumem no país. Testemunhamos tanto o crescimento vertiginoso de igrejas que se inserem agressivamente na mídia quanto o lento e progressivo crescimento de grupos minoritários que se valem de métodos tradicionais de transmissão de sua fé (Paulo Barrera Rivera, "A reinvenção de uma tradição no protestantismo brasileiro: a Igreja Evangélica Brasileira entre a Bíblia e a palavra de Deus"), tanto a dinâmica da instalação de grupos originários de outros países quanto de novos movimentos surgidos no Brasil. O protestantismo brasileiro também tem uma história longa e complexa, relacionada, por um lado, à chegada de diferentes grupos de imigrantes e, por outro, à atividade de grupos missionários. A distinção consagrada entre protestantismo de imigração e protestantismo de missão norteia vários textos do volume. Em alguns casos a distinção pode ser aplicada de forma clara, como no exemplo do luteranismo, situado firmemente na primeira categoria (Lauri Emílio Wirth, "Protestantismo brasileiro de rito luterano"). Em outros, como no do anglicanismo, existem peculiaridades que não permitem uma aplicação simples dos conceitos (Carlos Eduardo B. Calvani, "Anglicanismo no Brasil"). Há também os casos em que grupos, que em sua configuração original estavam relacionados a imigrantes, passam por uma descaracterização progressiva de sua marca étnica e passam a se propagar por meio da atividade missionária e proselitista - como no caso do protestantismo originalmente italianizado da Congregação Cristã do Brasil (João Baptista Borges Pereira, "Italianos no protestantismo brasileiro: a face esquecida pela história da imigração").

Para além da distinção, percebe-se ainda que permanece uma complexa dinâmica entre as raízes estrangeiras do protestantismo e as configurações específicas que suas vertentes assumem no Brasil. Nesse sentido se destaca a influência ainda marcante dos Estados Unidos sobre o protestantismo brasileiro e o fato de que a trajetória das igrejas protestantes tradicionais de origem americana acontece no conflito entre dependência e autonomia (Antônio Gouvêa Mendonça, "O protestantismo no Brasil e suas encruzilhadas"). Nota-se, também, que o caso particular do pentecostalismo brasileiro deve ser analisado a partir de suas origens norte-americanas em conjunção com suas especificidades no Brasil (Leonildo Silveira Campos, "As origens norte-americanas do pentecostalismo brasileiro: observações sobre uma relação ainda pouco avaliada").

O choque entre os elementos tradicionais trazidos do pentecostalismo americano com a realidade do campo religioso brasileiro produz por vezes elementos sincréticos. É o caso de segmentos neopentecostais, em particular a Igreja Universal do Reino de Deus, promotores de uma cruzada ideológica contra os cultos e tradições religiosas afro-brasileiras que, embora destoe do discurso de sincretismo e tolerância prevalentes no Brasil, cria simultaneamente um espaço simbólico novo em que tradições afro-brasileiras são absorvidas, rebatizadas e transfiguradas em um contexto evangélico (Vagner Gonçalves da Silva, "Concepções religiosas afro-brasileiras e neopentecostais: uma análise simbólica").

O conflito entre a manutenção dos valores identitários (sejam eles étnicos ou doutrinários) de cada grupo e as contingências da cultura em ele está inserido pode ser descrita em termos de um choque ou de uma negociação. E essa tensão entra em foco em diversos textos da coletânea, em particular os que tratam de religiões que, embora universais e majoritárias em outros contextos, no Brasil se caracterizam como minoritárias ou circunstancialmente étnicas (João Baptista Borges Pereira, "Italianos no protestantismo brasileiro: a face esquecida pela história da imigração"). Um exemplo particular é o da Igreja Ortodoxa, parte ainda do contexto amplo do cristianismo, onde se percebe a luta contra a imigração e a aculturação, tentativa de manter a rigidez doutrinária e uma matriz étnica clara (Murício Loiacono, "A Igreja Ortodoxa no Brasil").

No caso do judaísmo, apresenta-se uma clara distinção entre a orientação haláchica e ortodoxa de uma vertente - predominante em São Paulo - que prima pela diferenciação e separação do grupo e a maioria dos judeus brasileiros, como no caso dos do Pará, que privilegiam a formação de identidades complexas, que valorizam mais prontamente elementos próprios das culturas locais em que estão inseridos (Marta F. Topel, "Judaísmo(s) brasileiro(s): uma incursão antropológica").

As comunidades islâmicas também deparam com a negociação entre identidade étnica, confissão doutrinária e inserção na cultura brasileira, questões que afetam o crescimento e as relações de poder no interior do grupo. Uma interessante solução encontrada nesse caso é a da doutrina da taqiya, que propõe o ocultamento de práticas e crenças com vistas à acomodação à tradição local e o benefício e segurança internos da comunidade. Entretanto, a resistência brasileira ao islamismo tem levado a comunidade xiita em locais como o Rio de Janeiro a um desencanto com relação a esforços nesse sentido (Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, "Ritual, etnicidade e identidade religiosa nas comunidades muçul manas no Brasil").

O budismo chegou ao Brasil no final da década de 1950, e seu crescimento tem sido baseado no processo lento de pequenos grupos, de maneira que os resultados de sua inserção no Brasil só poderão ser percebidos em longo prazo (Ricardo Mário Gonçalves, "As flores do Dharma desabrocham sob o cruzeiro do sul: aspectos dos vários 'budismos' no Brasil"). Mas, novas religiões japonesas de matriz budista também têm, em maior ou menor escala, atraído o interesse dos brasileiros (Geraldo José de Paiva, "Novas religiões japonesas e sua inserção no Brasil: discussões a partir da psicologia"). Um caso de destaque é o da Sokka Gakkai no Rio Grande do Sul, que na tentativa de "otimizar" a propagação de sua fé no Brasil, tenta operar em torno de uma complexa dinâmica entre uma "face" pública simpática e acomodada à religiosidade brasileira e uma "face" interna que prima pelo reforço e não negociação de suas convicções e especificidades doutrinárias (Suzana Ramos Coutinho Bornholdt, "História, especificidades e inserção do budismo japonês da Sokka Gakkai no Sul do Brasil").

Outro ponto de enfoque da coletânea diz respeito à inserção de crenças e práticas originariamente minoritárias na sociedade brasileira contemporânea e às formas como estas se moldam segundo tendências atuais. Por exemplo, as manifestações religiosas indígenas permanecem à margem da sociedade (Roque de Barros Laraia, "As religiões indígenas: o caso tupi-guarani"), embora sirvam, ainda que de maneira transversa, de inspiração para o chamado xamanismo urbano. Esse fenômeno agrega cosmologias indígenas a outros elementos constitutivos próprios da vida nas cidades, como forma de cultivo e expressão da religiosidade no contexto urbano contemporâneo (José Guilherme Cantor Magnani, "Xamãs na cidade"). São precisamente essas contingências da vida urbana que reconfiguram a relação entre religiosidade e economia, como no caso do espiritismo, que apresenta hoje segmentos que se desviam da proposta original voltada para a caridade e o desapego material, adotando noções de prosperidade e afluência como valores espirituais (Sandra Jacqueline Stoll, "O espiritismo na encruzilhada: mediunidade com fins lucrativos?").

Por vezes, a distopia entre ideário religioso e realidade concreta leva ao surgimento de movimentos radicais, milenaristas e messiânicos. Esses movimentos no Brasil surgiram em contextos predominantemente rurais, mas também em centros urbanos e comunidades indígenas e são apresentados como efetivados por atores intencionais, cujas ações se originam de uma cosmovisão particular e articulada (Renato da Silva Queiroz, "Mobilizações sociorreligiosas no Brasil: os surtos messiânico-milenaristas").

Os textos aqui reunidos variam desde aqueles que praticamente se limitam a uma descrição histórica ou circunstancial dos grupos abordados a releituras e propostas inovadoras. O conjunto permite uma visualização significativa dos matizes e processos de transformação constante da religiosidade no Brasil.

É professor e coordenador do Programa de Pós-Gra-duação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie. @- rodrigo.sousa@mackenzie.br
Revista Estudos Avançados  - USP

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Apartheid - O massacre

Jornalista que testemunhou o massacre conta que policiais
abriram fogo de repente – e sem motivo para provocar a matança.
‘Não vi nenhuma arma entre os negros’, relata ele
Sem culpa e sem defesa: 'A maioria dos corpos estava esticada na estrada que rasgava o campo em que estávamos', diz Tyler
Sem culpa e sem defesa: 'A maioria dos corpos estava esticada na estrada que rasgava o campo em que estávamos', diz Tyler

 O jornalista Humphrey Tyler, editor-assistente da revista sul-africana Drum, cobria profissionalmente a manifestação convocada pelo Congresso Pan-Africanista em Sharpeville. Ele garante que a multidão não representava ameaça à polícia, e que as forças de segurança abriram fogo sem prévio aviso contra homens, mulheres e crianças desarmados. “A polícia estava com medo”, conta. A seguir, seu relato sobre o ocorrido.
Chegamos a Sharpeville pelos fundos, atrás de um carro cinza da polícia e de três tanques Saracen. Enquanto dirigíamos pela periferia da township, ouvimos muitas pessoas gritarem o slogan Pan-Africanista “Izwe Lethu”, que significa “Nossa Terra”, e fazerem também o sinal de “liberdade” com os polegares erguidos. Elas estavam sorrindo, felizes; ninguém parecia ter medo. Conforme nos aproximamos da delegacia, vimos mais e mais pessoas nas ruas. Havia muitos policiais, também, com mais armas e munição do que uniformes... Um africano se aproximou de nós, e disse que era o líder local do Congresso Pan-Africanista. De acordo com ele, sua organização era contra a violência e estava ali para uma demonstração de paz. A multidão realmente parecia amigável. Certamente, nunca passou por nossas cabeças que essas pessoas iriam nos atacar, ou a alguém.
De repente, alguns gritos secos de “Izwe Lethu”, parecendo de mulheres, vieram do local próximo onde estava a polícia, e vi algumas pessoas contornando os tanques, com as mãos levantadas na saudação africanista. Então os tiros começaram. Ouvimos o barulho de uma metralhadora, depois outra, depois outra. Havia centena de mulheres, algumas delas rindo. Elas devem ter pensado que a polícia estava usando balas de festim. Uma mulher foi atingida a menos de dez metros de nosso carro. Seu companheiro, um jovem rapaz, achou que ela tivesse tropeçado. Então ele a virou e viu que seu peito havia sido despedaçado pelo tiro. Ele olhou para o sangue em suas mãos e gritou, “Meu Deus, ela se foi!”. Centenas de crianças também corriam.
Um garoto estava se protegendo com um antigo cobertor, que mantinha esticado acima de sua cabeça, pensando, talvez, que o pano poderia salvá-lo das balas. Algumas das crianças, pouco mais altas que a grama, estavam saltitando como coelhos. Algumas também foram alvejadas. Os tiros continuavam. Um policial estava em cima de um tanque Saracen, e parecia que estava mirando sua arma em direção à multidão. Ele movia sua metralhadora na horizontal, formando um arco, como se estivesse manejando uma filmadora. Dois outros policiais estavam com ele, e tive a impressão que estavam atirando com revólveres. A maioria dos corpos estava esticada na estrada que rasgava o campo em que estávamos.
Uma a uma, as armas pararam. Antes dos tiros, não ouvi nenhum aviso para a multidão se dispersar. Não houve aviso. Os tiros começaram e só cessaram quando não havia mais almas vivas em frente à delegacia. Os policiais alegam que estavam desesperados e em perigo porque a multidão estava atirando pedras contra eles. Mas apenas três policiais foram atingidos, e mais de 200 nativos foram baleados. A polícia também disse que a multidão estava equipada com “armas ferozes”, que deixaram nas proximidades da delegacia devido à fuga. Eu olhei com muito cuidado, e não vi nenhuma arma. Vi depois também as fotografias da cena do crime. E tudo o que pude ver foram sapatos, chapéus e algumas bicicletas deixadas junto aos corpos. A multidão não me fez sentir medo em nenhum momento, apesar de eu, com minha pele branca, andar no meio dela sem nenhum tipo de proteção. Eu acho que a polícia estava com medo – e a multidão sabia disso.
Revista Veja

Hendrik Verwoerd e o Apartheid


Hendrik Verwoerd é o cérebro do eficaz sistema de
segregação racial na África do Sul. Psicólogo e ex-assistente
social, o premiê cumpre uma carreira meteórica na política

O porta-voz do 'povo escolhido': fascinado pelos ideais do Nacional-Socialismo, Verwoerd defende política de 'boa vizinhança'

Se a intenção é a de desqualificá-lo, como muitos têm feito nos últimos dias, depois do Massacre de Sharpeville, comparar Hendrik Verwoerd ao homem mais odiado deste século XX, o inominável Adolf Hitler, representa um equívoco retumbante. “Estou no caminho certo”, deve pensar, feliz, o primeiro-ministro da África do Sul, ao ver-se incluído a tão seleta companhia. De todo modo, ambas as informações, infelizmente, procedem. Se, em termos de eficácia genocida, Verwoerd ainda está a léguas de distância do nazista, é seguro dizer que, em termos governamentais e políticos, seu trabalho de legitimação e institucionalização do racismo é de fazer inveja a Hitler. Desde que chegou ao governo, em 1948, com a vitória do Partido Nacional nas urnas, o hábil político erigiu em seu país um arcabouço institucional de segregação de dar inveja ao Führer. Como reclama a comunidade internacional, seus ideais arianos de intolerância e de opressão são completamente alheios ao progresso da história – mas encontram eco nos delírios eugênicos de Hitler, para desespero do planeta.

Nascido em Amsterdã, na Holanda, em 1901, Verwoerd mudou-se para a África do Sul com apenas dois anos de idade – seu pai era um grande simpatizante da causa africâner. Graduado com honras em Filosofia e Psicologia na Universidade Stellenbosch, recusou uma bolsa de estudos em Oxford e decidiu, em 1925, seguir para a Alemanha, onde ficou até 1928, como aluno nas Universidades de Berlim, Leipzig e Hamburgo. Muitos especulam que, nesse período, Verwoerd teria se entorpecido pelos princípios do Nacional-Socialismo alemão. De volta à África do Sul, tomou parte em programas de assistência social a brancos pobres, tornando-se referência na área. Na segunda metade da década de 1930, assumiu a edição do jornal Die Transvaler, veículo de propaganda do nacionalismo africâner. Tal ideologia via os africâners – de ascendência holandesa, em sua maioria – como “o povo escolhido” na África do Sul, e desprezava e combatia a presença de negros, judeus e habitantes de língua inglesa (herança antibritânica cultivada desde a época da Guerra dos Bôeres).

Ao mesmo tempo em que assumiu a chefia do Die Transvaler, Verwoerd começou sua vida política, como líder do recrudescente Partido Nacional da África do Sul na região do Transvaal. Após o triunfo nas eleições gerais de 1948, o primeiro-ministro Daniel Malan convocou o ex-editor para assumir o Ministério de Assuntos Nativos. Nesse momento, Verwoerd conseguiu colocar em prática todas as suas habilidades para preparar as bases que suportariam o regime de segregação racial planejado pelos nacionalistas. O sucesso das diversas legislações do apartheid transformou o ministro em uma das estrelas do Partido Nacionalista. Em 1958, com a morte do primeiro-ministro Johannes Gerhardus Strijdom (que havia assumido após a aposentadoria de Malan), Verwoerd é eleito primeiro-ministro da África do Sul, e passa a rodar o mundo para fazer a defesa internacional do sistema segregacionista de seu país. “O apartheid é a política da boa vizinhança”, costuma declarar, diante de platéias atônitas.

Com o regime em pleno e perfeito funcionamento, Verwoerd tem, nos últimos anos, se dedicado a concretizar o sonho dos nacionalistas desde que estes chegaram ao poder: a criação de uma república da África do Sul. Em janeiro último, o primeiro-ministro anunciou a convocação de um referendo para determinar a questão republicana. O assunto deve render muita polêmica neste ano. No início de fevereiro, o primeiro-ministro britânico Harold Macmillan, em visita à África do Sul, sinalizou em discurso ao parlamento que a Grã-Bretanha estaria disposta a conceder a independência a suas colônias na África – a política britânica de descolonização dos trabalhistas, iniciada em meados dos anos 1940, foi interrompida com a ascensão dos conservadores, em 1951, e se manteve inerte durante toda a década. Entretanto, Macmillan fez críticas ao sistema segregacionista da África do Sul, o que poderia emperrar o processo. “São os ventos da mudança”, declarou, dizendo que cada vez mais as populações negras, maioria no continente, querem para si o legítimo direito de governar seus países. Verwoerd rebateu, demonstrando, mais uma vez, seus devaneios. “Somos as pessoas que trouxeram a civilização à África. Fazer justiça significa não apenas ser justo com os negros da África, mas também com os brancos da África.”
Revista Veja

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

História ensaboada

Cinzas vegetais e sebo de bode faziam parte da receita do primeiro sabão

Ei, você! Já tomou banho hoje? Com sabão, não foi? Ainda sentindo o cheirinho gostoso de sua espuma, responda: você sabe como surgiu esse importante artigo de higiene?



Não dá para dizer ao certo quando o sabão foi inventado, mas o historiador romano Plínio, o Velho – que viveu do ano 23 ao ano 79 da nossa era – já relatava a preocupação dos povos mais antigos com a limpeza (Foto: Wikimedia Commons / Soapy Soap Company / CC BY-SA 3.0)

Antes da invenção do sabão, para limpar algum tecido, era preciso, por exemplo, batê-lo sobre pedras em um rio. A fricção com a pedra e a ação da água arrancavam a sujeira da roupa – sobretudo substâncias gordurosas, que não se dissolvem na água. Porém, haja esforço!

Os antigos sabiam que a adição de cinzas vegetais à água usada para lavar roupa facilitava um bocado o processo. Daí para criar o sabão, foi um pulo!

Plínio, o Velho, contou que os fenícios fabricaram o que hoje consideramos o primeiro sabão de que se tem notícia. Ao colocar sebo de bode com cinzas de plantas em grandes tachos e aquecê-los por várias horas sobre uma fogueira, eles conseguiram fazer um produto diferente…

Cinzas + sebo = sabão + glicerina
Depois que a mistura derretia e fumegava, uma substância esponjosa subia à tona e endurecia quando esfriava, deixando um líquido no fundo do tacho. Ela era amarelada, salpicada de cinzas e, mesmo que tudo o que fosse responsável pelo cheiro de bode tivesse sido removido, apresentava um irresistível cheirinho de sebo derretido.


Apesar de cheio de características repugnantes, o primeiro sabão já registrado dava conta do recado – era capaz de eliminar sujeiras e gorduras, como faz hoje com roupas, panelas e pessoas (Ilustração: Cruz)

Aos seus olhos, pode parecer incrível que, misturando sebo de bode e cinzas, tenha se formado o sabão. Mas o que aconteceu no tacho dos fenícios pode ser muito bem explicado!

As gorduras animais, como o sebo de bode, são ricas em uma substância que praticamente não se dissolve na água. Seu nome? Estearina. Já as cinzas das plantas são ricas em outra substância: os sais de potássio. Quando a estearina entra em contato com esses sais, é formado um composto chamado esteorato de potássio, que nada mais é do que um tipo de sabão.

O líquido que ficava no fundo do tacho dos fenícios, por outro lado, é o que chamamos de glicerina. Já ouviu falar? A glicerina tem muitas aplicações: é utilizada na indústria farmacêutica e na fabricação de explosivos. Com a sua venda, as fábricas de sabão lucram bastante. Além disso, podem misturar a glicerina ao sabão, junto com um pouco de lanolina, óleo de coco e alguns alcoóis, para obter sabonete!

Sabões hoje

Agora que conhecemos a história dos fenícios, no entanto, é preciso dizer: nem só sebo de bode e cinzas de planas podem ser empregados para fabricar sabão. Qualquer gordura animal ou óleo vegetal serve. Atualmente, por exemplo, são bastante utilizados o óleo de coco e o de palma. No lugar das cinzas, é comum empregar soda cáustica, uma substância corrosiva.

Felizmente, os sabões de hoje têm um cheiro mais agradável. Já pensou tomar banho e sair com cheiro de sebo de bode?!


Por que o sabão limpa até os pratos mais engordurados?

Não sei se você já tentou lavar um prato engordurado só com água – não adianta de nada! Já com sabão, a louça fica limpinha! Você sabe explicar por quê?

O sabão é formado por pequenas moléculas com uma propriedade especial: uma parte delas em afinidade com a água e outra parte tem afinidade com a gordura. Ou seja, um lado da molécula de sabão gruda na água e o outro, na gordura! Desse jeito, a água com sabão consegue retirar a gordura, por exemplo, da superfície de uma panela. É como se o sabão formasse uma ponte entre a gordura e a água – que não se misturam normalmente – e os três saíssem juntos.
Breno Pannia Espósito, Instituto de Química, Universidade de São Paulo
Revista Ciência Hoje das Crianças

A história das letras

Descubra como surgiu o alfabeto, que permite escrever em todas as línguas do mundo!



Já imaginou um carteiro carregado de tabletes de barro, madeira e pedra, distribuindo essas encomendas pelas cidades? Há cerca de 5 mil anos talvez essa cena não seria tão estranha. Em vez de papel, as pessoas escreviam em pedaços de barro e outros materiais. A escrita também era bem diferente da atual, feita com desenhos. Para quem não sabia desenhar era um verdadeiro abacaxi.

A escrita foi inventada na Suméria, um país que existia onde hoje estão o Irã e o Iraque, numa região chamada Mesopotâmia, que significa “entre rios”. Os rios são o Tigre e o Eufrates. Naquela época, cerca de 5 mil anos atrás, a escrita começou a ser feita em pequenas almofadas de barro. Mais tarde, usou-se também madeira, metal e pedra para escrever. A idéia pegou e, assim, surgiram maneiras diferentes de escrever em vários pontos do mundo, de acordo com a língua falada em cada região.

No começo, a escrita era feita com o desenho das coisas. Por exemplo: se a palavra era “casa”, fazia-se o desenho de uma casa. Mas logo vieram as dificuldades. Como escrever o nome de uma pessoa? Não bastava fazer o desenho de um homem ou de uma mulher! Então começaram-se a combinar os símbolos. Desse modo, para escrever algo sobre alguém chamado Coelho, bastava desenhar um homem e um coelho. Mas isso também nem sempre funcionava bem. Como a gente poderia representar alguém chamado Henrique? Para resolver esse tipo de problema, passou-se a escrever os sons das palavras e não mais as idéias. Para escrever “irmão”, desenhavam-se as pernas andando (ir) e uma mão. Um soldado era representado por um sol junto com um dado.


Ainda assim as dificuldades apareciam. Surgiu, então, uma maneira de escrever na qual eram observados os sons da fala. Se a gente espichar a fala devagar, ao dizer cavalo, por exemplo, alguns sons chamados “vogais” ficam destacados: caaa + vaaa + looo. Se a gente presta atenção nos movimentos da boca, os sons chamados “consoantes” se sobressaem: ccca + vvva + lllo. Juntando os dois tipos de sons, temos umas unidades chamadas sílabas: ca + va + lo. Assim, os símbolos da escrita passaram a ser as sílabas ou as vogais e as consoantes separadamente, conforme a língua. Esse tipo de escrita que representa separadamente as vogais e as consoantes, ou seja, cada letra, é chamado alfabeto, que se mostrou tão interessante, útil e prático que hoje em dia todas as línguas do mundo podem ser escritas com esse sistema.
Revista Ciência Hoje para Crianças

sábado, 7 de dezembro de 2013

Apartheid


Na África do Sul, a segregação racial é legitimada,
o sistema de leis garante fartos privilégios à minoria branca
– e ninguém consegue fazer nada para mudar o quadro

'Com passes, somos escravos': manifestação de mulheres contra a obrigatoriedade do porte das infames cadernetas

Regime sem precedentes na história mundial, idealizado e executado com eficiência nos campos político, cultural, econômico, agrícola e industrial, o apartheid, política oficial governamental de segregação racial orquestrada pela minoria branca, vem há 12 anos espalhando seus tentáculos contra os negros na África do Sul. O sistema que assombra o mundo moderno começou a ser implantado em 1948, assim que o Partido Nacional emergiu vitorioso nas eleições gerais do país – em sufrágio exclusivo aos brancos, obviamente. As diretrizes de segregação estavam descritas no programa de governo, mas poucos poderiam imaginar que as cabeças do nacionalismo afrikâner obteriam tanto êxito, em tão pouco tempo, em sua pérfida cruzada.

A segregação, o preconceito e o ódio racial afligem a África desde a chegada dos europeus e da colonização, há séculos. Na África do Sul, que de possessão holandesa passou às mãos inglesas em 1815, por determinação do Congresso de Viena, já existiam alguns decretos dispondo sobre o tema – o mais conhecido deles a Lei da Terra, de 1913, que dividiu desproporcionalmente as terras nacionais. Na ocasião, a minoria branca ficou com mais de 90% das áreas, enquanto a maioria negra recebeu menos de 10%. A partir de 1948, porém, o governo habilmente lançou mão de uma série de leis que regulariam e legitimariam o apartheid, tirando-o da esfera das convenções sociais para incluí-lo, de forma sistemática, na própria constituição do país. A lei do passe, que motivou a manifestação que acabaria em tragédia em Sharpeville, é apenas uma das inúmeras disposições que instituem a segregação. A seguir, alguns desses instrumentos:

Lei da proibição de casamentos mistos (1949)
Proíbe o casamento entre brancos e pessoas de outras raças.

Lei da imoralidade (1950)
Proíbe e criminaliza a relação sexual entre brancos e pessoas de outras raças.

Lei de registro populacional (1950)
Obriga a população a cadastrar-se em um registro nacional, separando-a por raças.

Lei de agrupamentos urbanos (1950)
Força a separação física entre as raças ao criar áreas residenciais separadas. Permitiu a remoção forçada de negros de suas áreas de origem.

Lei dos nativos (1952)
Mais conhecida como a lei do passe, obriga os negros a carregar uma caderneta de identificação. Sua não-apresentação à polícia, quando solicitada, é crime.

Lei de reserva de benefícios sociais separados (1953)
Garante a segregação em todos os locais e equipamentos públicos, para eliminar o contato entre brancos e outras raças. Determina a afixação de sinais de “Somente europeus” e “Somente não-europeus”.

Lei de Educação Bantu (1953)
Cria medidas para reduzir o nível de educação recebida pela população negra – seu objetivo real, de acordo com seu idealizador, Hendrik Verwoerd, é impedir que os negros aspirem a posições às quais não podem ter na sociedade sul-africana Em que pese a organização de negros para combater o regime – e a clara oposição da comunidade internacional –, o apartheid segue em pleno funcionamento, sem sinais de cansaço. Ao contrário: o líder Verwoerd não se cansa de espalhar as supostas virtudes do regime, definido em seu âmago pelo ex-primeiro-ministro Daniel Malan. “A consciência da cor, profundamente arraigada nos sul-africanos brancos – um fenômeno inacessível à compreensão dos mal informados – provém das diferenças fundamentais existentes entre os dois grupos: o branco e o preto. A diferença de cor é meramente uma manifestação física do contraste existente entre dois modos de vida irreconciliáveis, entre o barbarismo e a civilização, entre o idolatrismo e a cristandade, e finalmente entre números esmagadores, de um lado, e números insignificantes, de outros.”
Revista Veja

Mandela e o Apartheid


Manifestação contra o apartheid acaba em carnificina em
Johanesburgo. Policiais dispararam contra multidão desarmada.
Resultado: 69 negros executados e um país em convulsão

Baleados pelas costas: sob o olhar de um policial, o corpo de um manifestante negro assassinado em Sharpeville

Não é de hoje que o regime de segregação racial conhecido como apartheid vem conquistando lamentável lugar de destaque nas páginas do cada vez mais volumoso livro de calúnias da humanidade. Neste mês de março de 1960, porém, um novo capítulo nessa história de intolerância, discriminação e barbárie foi inscrita com o sangue dos negros pelas autoridades brancas da África do Sul. No último dia 21, um protesto pacífico contra as leis do passe, incentivado pelas lideranças do Congresso Pan-Africanista e reprimido com violência pela polícia em todo o país, causou uma verdadeira carnificina em Sharpeville, a 45 quilômetros de Johanesburgo. Em uma ação desproporcional e covarde, as centenas de manifestantes que se aglomeravam em frente à delegacia de polícia local tornaram-se alvos vivos dos soldados do comando sul-africano. Revólveres, rifles e submetralhadoras, sem aviso prévio ou justificativa, cuspiram fogo contra a multidão, assassinando 69 pessoas e ferindo quase 200 – a maioria baleada pelas costas, em uma tentativa desesperada de fuga.

A inescusável execução em massa provocou náusea na comunidade internacional e despertou a ira das lideranças negras na África do Sul – o temor de uma guerra civil já toma conta de membros do alto escalão do primeiro-ministro africâner Hendrik Verwoerd. Uma semana depois do chamado “Massacre de Sharpeville”, um dia nacional de luto, 28 de março, foi convocado pelos chefes negros. Os funerais das vítimas seriam acompanhados por um boicote do trabalho e novas manifestações contra o passe. Ainda que os líderes do movimento seguissem pregando a não-violência, a tensão latente acabou por registrar uma série de tumultos e pancadarias em diferentes pontos de Johanesburgo, Worcestor e Cidade do Cabo. Em reação direta aos eventos, já se noticia uma corrida de cidadãos sul-africanos a consulados estrangeiros, em busca de vistos de emigração, bem como um aumento espantoso na venda de armamento aos brancos.

Na véspera dos funerais, para evitar novos conflitos, o governo da África do Sul havia anunciado a suspensão da obrigatoriedade do porte do passe pelos negros. Esperançoso com o que parecia um primeiro ato de conciliação por parte da administração de Verwoerd, o planeta foi logo devolvido à realidade obtusa do apartheid com a declaração oficial de estado de emergência em 30 de março. Sob tal auspício, as autoridades sul-africanas voltaram à carga com prisões em massa – o número, ainda não oficial, é de 18.000 detidos, incluindo o líder do Congresso Pan-Africanista, Robert Sobukwe, e a quase totalidade dos cabeças do movimento negro –, além da criminalização das entidades políticas dos nativos. Uma passada de olhos pela história revela que, atuando na clandestinidade, as oposições não demoram a deixar a resistência pacífica em favor da armada. No ambiente incendiário em que se encontra a África do Sul, parece questão de tempo.

Caderneta da infâmia - Na origem do protesto que geraria o extermínio na township (área urbana reservada aos negros) de Sharpeville está um dos maiores instrumentos de controle e segregação racial a serviço do governo: as leis do passe. Obrigados a carregar as infames cadernetas – que contêm foto, dados pessoais, número de série, registro profissional, pagamento de impostos e ficha criminal – e a mostrá-las às autoridades sempre que solicitadas, os negros não apenas têm sua liberdade de movimento cerceada, mas também são vítimas, a cada abordagem, de atos de humilhação. Caso o indivíduo não apresente o passe, é sumariamente detido. Existente desde a época dos escravos, em 1700, o conceito e a oficialização do passe – e, por tabela, sua oposição – ganhou força com a instauração do regime do apartheid, no ano de em 1948, com a chegada ao poder do Partido Nacional. Na última década, foram várias as manifestações contrárias às leis, notadamente a marcha das mulheres de agosto de 1956. Nenhuma delas, contudo, surtiu grande efeito prático.

No início de março, o Congresso Nacional Africano (CNA) programou, para o último dia do mês, uma nova manifestação anti-passe. Antecipando-se a ela, os membros do Congresso Pan-Africanista (CPA) – fundado no ano passado por dissidentes do CNA –, liderados pelo educador metodista Robert Sobukwe, marcaram seu protesto sobre o mesmo tema para o dia 21, dez dias antes, portanto, da movimentação da associação rival. A campanha, de acordo com a orientação de Sobukwe, deveria ser totalmente pacífica. Todos os africanos deveriam deixar seus passes em casa e, desarmados, comparecer às delegacias de polícia, entregando-se aos oficiais para serem presos. Os líderes do CPA acreditavam que a detenção massiva de negros resultaria numa pane do sistema: não apenas as prisões ficariam superlotadas, mas também a economia seria bruscamente afetada, com boa parte da força de trabalho no cárcere.

No dia 21 de março, a adesão à chamada de Sobukwe foi maciça, tendo sido observada com sucesso em diversas townships pelo país. Em Sharpeville, uma multidão calculada entre 5.000 e 7.000 pessoas colocou-se defronte ao distrito policial, para aflição do efetivo local de vinte soldados. O pedido de reforços foi imediatamente atendido, com 130 homens, escoltados por quatro tanques Saracen, adentrando o recinto – todo cercado por arame farpado. Vôos rasantes de jatos Sabre e monomotores Harvard buscaram, sem sucesso, dispersar a multidão. Por volta das 13 horas, de acordo com relatos de testemunhas, a tentativa da polícia de deter um negro causou uma pequena confusão perto do portão de entrada da delegacia, e algumas pedras foram atiradas contra os tanques da polícia. O comandante da polícia, G. D. Pienaar, teria então ordenado seus homens a carregar os revólveres, rifles e submetralhadoras. E então, sem que a multidão tenha recebido qualquer aviso ou determinação para recuar, os policiais começam a disparar suas armas. Completamente desprevenidos, os negros bateram em retirada, desesperados. Os projéteis seguiam em sua direção, alvejando os retardatários pelas costas. Pouco mais de dois minutos depois, Sharpeville encerrava seu cenário de apocalipse. Dúzias e dúzias de mortos e feridos jaziam nas cercanias.

O comandante Pienaar, com doentia tranqüilidade, explicou a ação. “Meu carro foi atingido por uma pedra. Se eles fazem isso, precisam aprender a lição da forma mais dura.” O primeiro-ministro Verwoerd também forneceu seu aval à matança, dizendo que os manifestantes em Sharpeville “atiraram primeiro” – apesar de não terem sido encontradas armas com os manifestantes ou deixadas por eles. Presente no local, o britânico Ian Berry, fotógrafo da revista Drum, rebateu as alegações oficiais de legítima defesa. “Os policiais não estavam em perigo. Presumo que eles tenham atirado com o intuito de dar à multidão, e a toda África negra, por conseqüência, uma terrível lição.”

Comparação lisonjeira - Do resto da África ao Vaticano, o mundo civilizado repudiou com igual fervor não apenas a chacina, mas também a naturalidade com que o governo da África do Sul a encarou. William Tubman, presidente da Libéria, definiu o massacre de Sharpeville como “a mais vil, cruel e inadmissível ação na história humana.” O departamento de Estado americano classificou a violência dos policiais de Verwoed como “deplorável”, e lamentou as perdas trágicas da comunidade africana. O jornal L’Osservatore Romano, órgão de imprensa oficial do Vaticano, questionou o motivo pelo qual a polícia da África do Sul não empregou “técnicas modernas de dispersão como mangueiras de água e gás lacrimogêneo, que são usados em todos os países civilizados, ao invés de massacrar homens, mulheres e crianças indiscriminadamente”.

Pouco antes do fechamento desta edição, no dia 1º de abril, uma reunião extraordinária do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas abordou o assunto e deu origem à resolução 134 do órgão. O documento responsabiliza o governo da África do Sul pela ação e urge que a administração abandone a política do apartheid, que coloca em perigo a paz e a segurança internacionais. O primeiro-ministro Verwoerd, porém, outra vez deu de ombros. “As críticas vêm apenas dos agitadores do mundo político. As pessoas de bem estão em sua maioria quietas.” Se o chefe de estado não estivesse tão absorto em sua insanidade, veria que não é bem assim – os apupos desta vez vêm também do próprio quintal. A imprensa branca africâner, sempre nacionalista, já vinha pedindo moderação ao líder – não à toa, o Johannesburg Vaderland já sugeria, no dia anterior ao massacre, “um sistema mais simples e menos doloroso de passes”.

O Johannesburg Star, de língua inglesa, atacou Verwoerd após o derramamento de sangue. “É patética a fé do governo em metralhadoras para resolver problemas humanos básicos.” O bispo anglicano de Johanesburgo apelou “a todos aqueles que têm sentimentos humanos na África do Sul para combater as táticas policiais.” No entanto, o mais simbólico, contundente e representativo protesto contra a administração federal veio por cortesia de uma manifestação de mais de 500 estudantes brancos da Universidade de Natal, em Durban. Os jovens mandaram confeccionar cartazes nos quais, em menos de 30 caracteres e com uma lapidar frase sem verbo, resumiam a indignação de um planeta: “Hitler 1939, Verwoerd 1960”. Nada mais precisa ser dito. Mas algo precisa ser feito para que se evite, duas décadas depois, a repetição de tal aberração.
Revista Veja