quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Pós-muro


Em 1989, na Europa do leste, as pessoas queriam solidariedade e liberdade para viver suas vidas fora do controle estatal.

por Slavoj Zizek
(Mais de) Vinte anos depois da queda do Muro de Berlim, é comum ouvir que os acontecimentos daquela época foram milagrosos, um sonho realizado, algo que ninguém teria imaginado mesmo poucos meses antes. Eleições livres na Polônia e Lech Walesa como presidente: quem poderia prever? Mas um milagre ainda maior ocorreu poucos anos depois: as eleições livres e democráticas devolveram os ex-comunistas ao poder, Walesa foi marginalizado e tornou-se menos popular que o próprio general Jaruzelski.

Em geral, essa reversão é explicada pelas expectativas "imaturas" do povo, que simplesmente não tinha uma ideia realista do capitalismo: eles queriam se apoderar do bolo e comê-lo, queriam as liberdades democráticas e abundância material sem ter que se adaptar a uma "sociedade de risco" - por exemplo, sem perder a segurança e a estabilidade (mais ou menos) garantidas pelos regimes comunistas.

Quando a névoa sublime da Revolução de Veludo foi dispersa pela nova realidade democrática e capitalista, as pessoas reagiram de três formas: algumas tiveram saudades dos "bons e velhos tempos" do comunismo, outras abraçaram o populismo nacionalista de direita, e houve ainda as que manifestaram uma espécie de paranoia anticomunista retardada.

As duas primeiras reações são fáceis de compreender, e até se sobrepõem com relativa frequência, tal como na Rússia atual. Os mesmos direitistas que, décadas atrás, gritavam "Antes morto do que comunista" [Better dead than red] agora resmungam "Antes comunista do que comer hambúrgueres". A nostalgia pelo comunismo não deve ser levada muito a sério: longe de expressar um desejo verdadeiro de retornar à cinzenta realidade socialista, é uma espécie de luto, um jeito de se livrar delicadamente do passado. E o populismo nacionalista, longe de ser exclusivo ao Leste Europeu, é uma característica de todos os países apanhados no vórtice da globalização.

Muito mais interessante é a recente ressurreição do anticomunismo por toda parte, da Hungria à Eslovênia. Em outubro de 2006, uma onda de protestos contra o Partido Socialista no poder paralisou a Hungria por semanas. Os manifestantes culpavam os sucessores dos comunistas pela crise econômica no país. Eles negavam legitimidade ao governo que, no entanto, foi eleito democraticamente, e, quando a polícia era usada para restaurar o mínimo de ordem civil, faziam comparações com o Exército soviético que esmagou a revolução de 1956.

Em resumo, diziam que a Revolução de Veludo de 1989 precisava se repetir, já que, por trás da falsa aparência de democracia, nada mudara de verdade, pois as mesmas forças do mal davam as cartas no poder. Em dezembro de 2006, a Polônia endureceu a lei que proibia ex-colaboradores da polícia secreta comunista e pessoas ligadas ao velho regime de assumirem cargos públicos.

Outro aspecto do mesmo processo foi a reabilitação, nos países bálticos e na Eslováquia, dos colaboradores nazistas, transformados em "combatentes anticomunistas". Sua colaboração, e mesmo a participação em massacres de judeus, foi considerada necessária na luta patriótica contra o comunismo. Era um mal menor. Na Revolução de Veludo ucraniana, que levou Viktor Yushchenko ao poder, cantavam-se as mesmas músicas entoadas pelos colaboradores nacionalistas que apoiaram a ocupação alemã.

Não é de se espantar que, pressionado por certos países pós-comunistas, o Parlamento Europeu tenha aprovado uma resolução que equipara o comunismo ao nazismo. E não é de se espantar que, na Eslovênia, a direita populista reprove a esquerda por ser uma "força de continuidade" do velho regime comunista. Novos problemas e desafios são julgados com base em velhos conflitos, e a luta pelos direitos dos gays é soturnamente interpretada como parte de um complô comunista para desmoralizar a nação.

Como e por que esses fantasmas reaparecem em nações onde a maioria dos jovens nem sequer se lembra do comunismo? Os anticomunistas fazem uma pergunta simples - "Se o capitalismo é tão melhor que o socialismo, por que nossas vidas continuam miseráveis?" - e a respondem de maneira direta: é porque ainda não chegamos ao capitalismo, não temos uma verdadeira democracia. Os ex-comunistas ainda estão no poder, disfarçados de proprietários e dirigentes. Precisamos de outro expurgo, a revolução tem que se repetir. É evidente a semelhança que há entre esse discurso e o velho costume comunista de atribuir seus fracassos à perpétua influência das "forças do passado".

Essa nova geração de anticomunistas tem uma imagem da sociedade que é assustadoramente parecida com a imagem do capitalismo alimentada pelos esquerdistas: uma sociedade na qual a democracia formal é uma máscara que esconde a dominação por uma minoria rica. Em outras palavras, os anticomunistas não percebem que aquilo que eles chamam de pseudo-capitalismo pervertido é simplesmente o capitalismo.

Pode-se dizer que, após o colapso dos regimes comunistas, seus antigos partidários, desiludidos, estavam mais preparados para gerir a nova economia capitalista do que os dissidentes do populismo. Enquanto os heróis das manifestações anticomunistas continuaram a acalentar o sonho de uma nova sociedade baseada em justiça, honestidade e solidariedade, os ex-comunistas se acomodaram sem dificuldades às novas regras capitalistas. Paradoxalmente, na nova situação pós-comunista, os anticomunistas insistiram no sonho utópico de uma democracia verdadeira, ao passo que os ex-comunistas aceitaram o mundo cruel da eficiência de mercado, com toda a sua corrupção e truques sujos.

Será que o realismo capitalista é a única resposta para a utopia socialista? O que se seguiu à queda do Muro foi mesmo a era da maturidade capitalista, o abandono de todas as utopias? Será que essa época também não teve uma utopia própria? Novembro de 1989 marcou o início dos "felizes anos 90", o utópico "fim da história" de Francis Fukuyama. Ele anunciou que a democracia liberal havia vencido, que o advento de uma comunidade mundial global e liberal estava por acontecer, e que os obstáculos que se interpunham a esse final feliz eram apenas contingentes (bolsões de resistência onde os dirigentes locais ainda não enxergavam que a hora deles havia acabado).

Em contrapartida, o 11 de Setembro marcou o fim simbólico dos "felizes anos 90". Assinalou o começo de nossa era atual, em que novos muros estão se erguendo por toda parte, entre Israel e a Cisjordânia, em torno da União Europeia, na fronteira dos Estados Unidos com o México - mas também dentro dos próprios países.

Parece que a utopia dos anos 90 de Fukuyama teve que morrer duas vezes: o colapso da utopia política liberal-democrática do 11 de Setembro não afetou a utopia econômica do capitalismo de mercados globais, mas a crise financeira de 2008 certamente o fez. Nos anos 90, acreditava-se que a humanidade havia finalmente encontrado a fórmula para uma perfeita ordem socioeconômica.

A experiência das últimas décadas mostrou claramente que o mercado não é um mecanismo benigno, que funciona melhor quando deixado por sua conta. É preciso violência para criar as condições necessárias a seu funcionamento. A forma com que os fundamentalistas de mercado reagem à desordem que se sucede quando suas ideias são aplicadas é típica dos "totalitaristas" utópicos: eles culpam o fracasso em fazer concessões - ainda há muita intervenção estatal - e exigem uma aplicação ainda mais radical da doutrina de mercado.

Observamos hoje a explosão do capitalismo na China e nos perguntamos quando o país se tornará uma democracia. Mas e se isso nunca acontecer? E se o seu capitalismo autoritário não for apenas a repetição do processo de acumulação capitalista que, na Europa, vigorou do século XVI ao XVIII, mas um sinal do que está por vir? E se a "malévola combinação do chicote asiático com o mercado de ações europeu" (como Trotsky caracterizava a Rússia czarista) provar-se mais eficiente economicamente do que o capitalismo liberal? E se ficar claro que a democracia, tal como nós a entendemos, não é mais a condição e o motor do desenvolvimento econômico, mas um obstáculo?

Se for esse o caso, talvez a decepção pós-comunista não deva ser descartada como sinal de expectativas "imaturas". Nos protestos contra os regimes comunistas no Leste Europeu, as pessoas, em sua maioria, não pediam o capitalismo. Queriam solidariedade e um tipo bruto de justiça, queriam liberdade para viver suas vidas fora do controle estatal, queriam se reunir e falar do jeito que bem entendessem, queriam se libertar da doutrinação ideológica primitiva e da hipocrisia. Aspiravam a algo que podia ser melhor descrito como um "socialismo com face humana". Talvez essa opinião mereça uma segunda chance.

A escola totalitária


A escola totalitária

Nos dois projetos mais articulados de dominação social do século 20, a educação operava um papel crucial

Fabiano Curi

Em regimes despóticos, a educação tem um papel estratégico na propagação das ideias de seus governantes. Nos dois grandes exemplos de sociedades totalitárias do século 20, a Alemanha de Hitler e a União Soviética de Stálin, as escolas e seus programas foram drasticamente reformulados para atender aos interesses do Estado.

Na Alemanha nazista, o programa nacional-socialista reescreveu a pedagogia com base no Mein Kampf, de Adolf Hitler, para aplicá-la em todos os níveis, do ensino fundamental à universidade. Logo ganharam importância as teorias raciais nazistas que enalteciam os arianos e colocavam todas as outras etnias como raças subalternas.

Campos do conhecimento foram alterados, surgindo assim uma "ciência alemã pura" - física alemã, matemática alemã, química alemã - livre da interferência bolchevique e judaica. A religião judaica se transformou em raça e passou a representar todo o mal do mundo. Judeus foram proibidos de lecionar ou de estudar.

Para se tornar professor era necessário passar por treinamento sob observação de funcionários do partido nazista. Os candidatos deviam demonstrar ser pessoas confiáveis na propagação da política do Terceiro Reich. Mais tarde, era vetada a carreira de docente aos que não tivessem passado anteriormente pelos campos de trabalho nazistas, pela Juventude Hitlerista ou pela SA (tropa de assalto do partido).

Durante o regime, as antigas escolas públicas foram abandonadas e a educação de jovens e crianças em boa parte ficou concentrada na organização da Juventude Hitlerista, para a qual os pais eram obrigados a deixar seus filhos ingressarem sob pena de serem presos. Esse modelo visava uma profunda imersão dos alunos em treinamentos físicos e ideologia nazista com um programa militarizado.

A partir de 1937 são estabelecidos três tipos de escolas para as elites: Escolas Adolph Hitler, Institutos de Educação Nacionais e Políticos e Castelos da Ordem. Para os primeiros, iam os jovens de 12 anos que se destacaram em suas escolas; para os segundos, sob supervisão da SS (tropa de elite nazista), eram direcionados aqueles habilitados à vida militar; finalmente, nos Castelos da Ordem, era formada a elite da elite, num cenário teutônico dos séculos 14 e 15, com intensivo treinamento físico e especialização nas "ciências raciais".

Esse processo de apagamento de quaisquer outras ideias que não as que fundamentavam o nazismo não foi menos desastroso do que em outros setores da sociedade alemã. Houve diminuição do número de estudantes e de professores, assim como da qualidade acadêmica. Os professores, intelectuais e artistas judeus ou comunistas importantes que não foram mortos deixaram o país e se estabeleceram em centros de ensino espalhados pelo mundo.

Na União Soviética de Stálin, a política educacional passou por profundas mudanças já na década de 1930, buscando conexão com a industrialização das cidades e com a coletivização das fazendas. O novo sistema tornava obrigatórios quatro anos de educação no campo e sete nas cidades. O número de alunos cresceu rapidamente em instituições rigidamente controladas pelo Estado para a promoção de um patriotismo soviético.

A partir da década de 1940, foi criada uma reserva de trabalhadores intercambiável entre escolas e fábricas com alunos que não tinham um bom desempenho acadêmico. Essa política educacional não admitia pluralidade ideológica e tinha o objetivo de formar trabalhadores para o modelo econômico socialista.

Stálin cunhou o termo "pseudo-ciências burguesas" para definir campos de conhecimento como genética, sociologia, semiótica e cibernética. Tais estudos foram proibidos durante sua permanência no poder. Professores, artistas e intelectuais que não aderiram ao regime foram duramente perseguidos. (Fabiano Curi)

Variações de um conceito

Poucos conceitos têm significados tão oscilantes quanto o de ideologia. Presente pela primeira vez na filosofia moderna em 1801, no livro Elementos da ideologia, do materialista iluminista francês Destutt de Tracy (1754-1836), era concebido como uma ciência do surgimento das ideias na relação do corpo humano com o meio ambiente. Logo foram publicados estudos de outros ideólogos franceses pautando um movimento liberal materialista que se posicionava contra a monarquia, o clero e a metafísica. Esse grupo apoiou Napoleão Bonaparte (1769-1821), que o deixou de lado quando assumiu o poder. Num discurso em 1812, o imperador declarou que a ideologia e os ideólogos eram responsáveis pelas desgraças da França.

Uma outra concepção, talvez a mais reproduzida, ganha força com Karl Marx (1818-1883), para quem o conceito de ideologia diz respeito a um "falseamento da realidade", um obscurecimento das relações que nos leva a naturalizar estruturas consumadas de poder, sem contestá-las. Apesar de a análise de Marx ter como foco a ideologia de filósofos alemães posteriores a Hegel, ela alimentou muitos estudos de pensadores de cepa marxista e continua sendo uma definição bastante presente no senso comum.

Depois de Marx, entre os autores que se debruçaram sobre o assunto destacam-se o italiano Antonio Gramsci (1891-1937) e o francês Louis Althusser (1918-1990). Ambos discordam do conceito segundo o qual uma classe dominante usa a ideologia para ludibriar as classes dominadas, tomando-o a partir de outro ângulo. Para Gramsci, a ideologia articula e sustenta a sociedade, sendo absolutamente necessária para manter a coesão de diferentes realidades sociais. Já Althusser vê na ideologia a proteção que possibilita a sustentação da sociedade. Por seu principal texto, Aparelhos Ideológicos de Estado, o filósofo francês é frequentemente citado como um dos pioneiros da discussão da relação da escola com ideologia, considerando-a um importante aparelho ideológico. Sílvio Gallo, da Faculdade de Educação da Unicamp, contudo, lembra de outro autor que havia discutido a questão anteriormente: "sempre me intrigou muito um autor do final do século 18, chamado (William) Godwin (1756-1836), que alertou, no momento em que se construíam os sistemas públicos de ensino europeus, sobre a necessidade de que houvesse cautela antes de colocá-los todos nas mãos do Estado. Ele antevia que certamente os sistemas seriam utilizados para defender os interesses dos representantes desses Estados".

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Como foi a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial?

Renata Costa
Imagem: Marcelo Breyne
No dia 1º de setembro de 1939, as forças nazistas alemãs de Adolf Hitler invadiram a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. O Brasil passou a participar do conflito a partir de 1942. Na época, o presidente da República era Getúlio Vargas.

A princípio, a posição brasileira foi de neutralidade. Depois de alguns ataques a navios brasileiros, Getúlio Vargas decidiu entrar em acordo com o presidente americano Roosevelt para a participação do país na Guerra.

Embora a história dos pracinhas - diminutivo de praça, que é soldado - seja ainda pouco comentada no Brasil, Marcus Firmino Santiago da Silva, coordenador do curso de Direito da Escola Superior Professor Paulo Martins, do Distrito Federal, e estudioso sobre a Segunda Guerra, afirma que a participação brasileira foi muito importante. "O apoio do Brasil foi disputado na Segunda Guerra. De forma um pouco velada por parte dos países do eixo (Alemanha, Itália e Japão) e de maneira clara pelos aliados, especialmente os norte-americanos, além da Inglaterra e da França", afirma.

O primeiro grupo de militares brasileiros chegou à Itália em julho de 1944. O Brasil ajudou os norte-americanos na libertação da Itália, que, na época, ainda estava parcialmente nas mãos do exército alemão. Nosso país enviou cerca de 25 mil homens da Força Expedicionária Brasileira (FEB), e 42 pilotos e 400 homens de apoio da Força Aérea Brasileira (FAB).

Os pracinhas conseguem vitórias importantes contra os alemães, tomando cidades e regiões estratégicas que estavam no poder destes, como o Monte Castelo, Turim, Montese, entre outras. Mais de 14 mil alemães se renderam aos brasileiros, que também ficaram com despojos como milhares de cavalos, carros e munição.

A ação dos pracinhas não foi fácil por vários motivos. O primeiro, porque o treinamento recebido no Brasil e nos Estados Unidos não era muito próximo à realidade da guerra que encontraram. Os soldados não estavam habituados ao clima frio dos montes Apeninos, que atravessam a Itália e nem acostumados a lutar em local montanhoso. Só na batalha do Monte Castelo, houve mais de 400 baixas entre os brasileiros.

"Além disso, foi fundamental para o esforço de guerra a cessão de bases navais e aéreas no território brasileiro. Um desses locais que teve participação decisiva foi Natal, no Rio Grande do Norte", afirma o professor. A capital potiguar serviu como local para abastecimento dos aviões de guerra americanos e base naval antissubmarinos. Com o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, a FEB foi desfeita em 1946.

Kamikaze Diaries - Pátria e morte


Pátria e morte

Emiko Ohnuki-Tierney

Perto do final da Segunda Guerra, quando a invasão do Japão por tropas dos Estados Unidos parecia iminente, o vice-almirante Onishi Takijiro criou as Unidades Especiais de Ataque por Choque. Elas incluíam aviões comandados por pilotos kamikazes, os tokkōtai, que deveriam produzir o milagre da defesa da nação, cercada de porta-aviões inimigos tidos como indestrutíveis. Para tanto, os pilotos suicidas deveriam conduzir um avião carregado de explosivos a um choque direto e devastador contra um navio inimigo.

Quando a operação tokkōtai foi criada, em outubro de 1944, nem um único oficial treinado nas academias militares japonesas se apresentou como piloto voluntário – todos sabiam que se tratava de missões suicidas.

Os “voluntários” foram perto de 3 mil “meninos-soldados”, nome dado às levas de adolescentes recém-recrutados como parte do esforço de guerra. Outros mil eram “soldados-estudantes”, universitários formados às pressas pelo governo para entrar nas fileiras militares.

Os soldados-estudantes formavam um grupo excepcional. Eles eram cosmopolitas e cultos, dados a reflexões profundas, fruto do exigente currículo escolar japonês. Era obrigatório o estudo de duas línguas estrangeiras, além do latim. Quem tivesse optado pelo alemão, por exemplo, recebia como dever de casa, já na primeira aula, ler Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe. E no original, antes mesmo de o aluno ter sido apresentado ao alfabeto romano. Também era avaliada a leitura da Crítica da Razão Pura, de Immanuel Kant. O fato de o aluno não entender quase nada, e ser obrigado a reler o texto à exaustão, destinava-se a torná-lo consciente de sua ignorância e do quanto deveria estudar.

Outra característica fundamental: enquanto os soldados alemães eram treinados para matar, os japoneses eram adestrados para morrer. Rendição, fuga, rebeldia, qualquer ato para salvar a vida diante da derrota incontornável eram punidos com a morte. Todo soldado que desobedecesse ao regulamento militar, ou a alguma ordem de superior, era fuzilado na hora. E uma ofensa dessa natureza podia levar à punição dos parentes imediatos do soldado.

Como primeira lição, o soldado-estudante aprendia a usar o rifle para se matar antes de ser capturado. Era-lhe ensinado a acionar o gatilho usando o dedão do pé – tendo por alvo um ponto preciso abaixo do queixo, para a morte ser instantânea.

Ser piloto tokkōtai significava morte certa, e por isso a oficialidade de alta patente imprimiu-lhe a falsa característica de voluntariado. Na maioria das vezes, todos os membros de uma unidade eram convocados a se apresentar num salão comum. Convidavam-se os recrutas a dar um passo à frente caso quisessem aderir à honra de dar a vida pela pátria. Ou o inverso: aqueles que não quisessem se tornar pilotos suicidas deveriam dar um passo à frente. Poucos resistiam à pressão.

O retrato idealizado desses jovens, promovido pelo governo militar da época, corresponde ainda hoje ao estereótipo do kamikaze – eles são vistos como a encarnação moderna dos bravos guerreiros, honrados por poderem se sacrificar pelo imperador.

Kamikaze Diaries: Reflections of Japanese Student Soldiers, livro da acadêmica americana Emiko Ohnuki-Tierney,corrige essa distorção. A seguir, trechos desses diários.



SASAKI HACHIRŌ

O pai de Sasaki Hachirōfez o possível para dissuadir o filho de ser voluntário para a missão de piloto kamikaze. Não tendo conseguido, jamais voltou a lhe dirigir a palavra. Mesmo quando Hachirō, com 22 anos de idade, veio se despedir, o pai saiu de casa e só retornou na manhã seguinte. Terminada a guerra, a família recebeu uma notificação da morte de Hachirō, junto com uma medalha e uma pequena soma de dinheiro. Sem dizer nenhuma palavra, o pai pegou o dinheiro, foi até uma loja de bebidas, comprou saquê e o bebeu sozinho.



10 de fevereiro de 1940_Finalmente invadimos Cingapura. O número de vítimas civis deve ter sido grande. Crueldade da guerra. Cega a esse tipo de questões, a história continua sua marcha diária.



13 de abril_Soa a sentimentalismo, mas, se você precisa morrer, que seja de forma bela.



12 de outubro_O idealismo não é nem uma ideologia fixa nem uma autoridade absoluta.



1º de novembro_Para quem vive no século XX, é preciso saber encontrar a síntese entre o mais passivo e o mais agressivo polo de racionalismo e ativismo... O racionalismo é por demais objetivo e o ativismo, subjetivo em demasia. Como sustenta Heidegger, estamos na história. Ela não nos precede quando nela adentramos. A partir do momento em que nascemos, estamos na história. Somos o sujeito que vive no objeto. (...)

(...)Prefiro pensar que “inevitabilidade” é mais importante do que “necessidade”. Devemos sempre nos empenhar em stirb und werde! [“morra e seja”, ou crescimento por meio da morte]. Estou sinceramente feliz por estar vivo... O que mais importa é a liberdade da vontade, liberdade de espírito em meio ao caos do presente... Obediência cega sem vontade livre não constitui uma resposta ao nosso caos.



16 de abril de 1941_Quantos realmente morrem de “morte trágica” nessa guerra? Estou convencido de haver várias mortes cômicas disfarçadas de mortes trágicas. À primeira vista, ambas são iguais. Mas mortes cômicas camufladas de trágicas não deixam transparecer a alegria de uma vida. Estão cobertas de agonia sem valor ou sentido. Ou seja, são duplamente negativas, o que as torna cômicas.



14 de setembro_Foi anunciado que todos os japoneses devem trabalhar em indústrias vitais para o esforço de guerra. Isso significa que há pessoas saboreando néctar enquanto ignoram o esforço árduo e a humanidade dos japoneses. O que é patriotismo? Como tolerar a matança de milhões de pessoas e a privação de liberdades básicas de bilhões de outras por causa de noções abstratas como patriotismo e pátria?



9 de dezembro_Não consigo me sentir eufórico com as vitórias do Japão na guerra. Sinto ansiedade. Também me preocupo com os rumos do capitalismo depois do fim da guerra.



15 de dezembro_Dado que vivobem, sob a benevolência da nação deste imperador, não me recusaria a me alistar, se chamado. Não sou fraco a ponto de me sentir esmagado pela guerra. Mas faço questão de declarar minha oposição a todas as guerras.



26 de janeiro de 1942_Sei que posso morrer a qualquer momento, e por isso deixo tudo o que é meu arrumado; vivo uma vida organizada e tiro fotografias para a posteridade.



1º de março_Hoje presto exame de admissão para economia na Universidade de Tóquio. Usei meu uniforme de sempre, mas minhas roupas íntimas estavam limpas e novas. Acho que escrevi um ensaio singular sobre a questão da nossa história e da história do Ocidente. Também acho que fui bastante audacioso na resposta sobre a crítica literária contemporânea. Portanto, não sei como serei avaliado. Em retrospecto, penso que poderia ter me saído melhor, mas se for reprovado isso significa que eles não têm a mais vaga ideia do meu potencial. Uma das perguntas foi tirada da obra de Tanabe Hajime, Rekishiteki-geniitsu [Realidade Histórica, sem edição em português]. Fico deprimido ao pensar o quanto esse livro me impressionou no passado. Ele é dogmático e cheio de fios soltos. Não é nada além de raciocínio vazio.



4 de março_Achei uma aranha minúscula dentro do meu livro. Num impulso de malvadeza, aproximei meu cigarro da aranha, que se pôs a correr freneticamente. Coloquei o cigarro aceso à sua frente, ela mudou de rota. Repeti o ato várias vezes até a aranha se imobilizar. Deixei-a sossegada por um tempo. Num novo impulso, aproximei o cigarro aceso por cima, e ela voltou a correr. Continuamos assim por uns dois minutos. Ela então cansou, encolheu as pernas e tornou-se imóvel mesmo sem ter sido tocada pela brasa do cigarro.

É possível que, para essa aranha, o tamanho do livro seja o do Japão, e cinco minutos sejam cinco ou dez anos. Durante esse período, e nesse espaço, onde quer que ela fosse, havia fogo. E quando ela parou, o fogo veio de cima... Se isso acontecer a um ser humano, ele enlouquece. A aranha não entendia de onde vinha aquela chama. Seres humanos também perdem.

Desejo me tornar um homem capaz, mesmo que a grande custo. Capaz de identificar objetivamente a causa do problema, e transmitir esse conhecimento à geração seguinte. Feito isso, posso morrer. Através da alegoria da aranha traço um retrato doloroso do povo japonês nestes tempos de guerra – sem entender o que ocorre, ele corre sem rumo, em busca de uma saída para a situação impossível causada pela guerra.



Abril_Os militares: bando de loucos!



Junho_Todos os livros escritos pelos marxistas [japoneses] são demagógicos, combativos ou parecem ensaios de estudantes secundários que descobriram a filosofia. Perdi a ingenuidade de me deixar levar nessa demagogia. Lamento por Marx ser divulgado através desses sujeitos.



Abril de 1943_[A notícia da morte do almirante Yamamoto Isoroku angustia Sasaki. Yamamoto opusera-se inicialmente à entrada do Japão na guerra, argumentando que o país não aguentaria seis meses, mas acabou designado para comandar o ataque a Pearl Harbor. Seu bombardeiro Mitsubishi “Betty” foi derrubado por caças americanos numa emboscada, causando profunda comoção à nação. Sasaki pensa em se apresentar como piloto suicida voluntário e morrer.] Sou um mero ser humano. Por vezes, meu peito explode de excitação quando imagino o dia em que vou decolar rumo ao céu. Treinei corpo e alma o quanto pude, e anseio pela chegada do dia de usar em combate todo o meu potencial. Minha vida e morte pertencem à missão. Mas há vezes em que invejo os estudantes de ciências que continuam em casa, isentos do serviço militar. Invejo os que se tornarão bibliotecários, engenheiros ou médicos, e escaparam do recrutamento. Sou atraído pela minha segunda alma terrena. Tenho duas almas escondidas dentro de mim, e cada uma desponta com os estímulos externos da minha mente. Uma de minhas almas olha para o céu, enquanto a outra sente atração pela terra. Gostaria de me alistar na Marinha o quanto antes, para poder me dedicar à minha tarefa. Tomara que passem logo os dias em que me sinto atormentado por pensamentos tolos.



11 de junho_[O desembarque das tropas americanas na ilha Attu desencadeia um longo solilóquio de Sasaki Hachirōsobre marxismo e capitalismo.] Vejo sinais de um novo ethos para uma nova era. Se o poder do velho capitalismo é algo do qual não conseguimos nos libertar a menos que ele seja esmagado pela guerra, estaremos transformando um desastre num fato positivo. Estamos em busca de uma fênix saída das cinzas. Mesmo que o Japão sofra uma ou duas derrotas, ele não será destruído se conseguir sobreviver. Não sou pessimista, mas não podemos negar a realidade. Temos de olhar para frente, superar os tempos difíceis. Nesta encruzilhada crítica da história, não podemos deixar que velhos capitalistas e militares irracionais se agarrem ao velho regime. Nós, os jovens, precisamos arcar com a responsabilidade de fazer nascer um novo mundo.



Novembro_Não sei se esperam que eu vença esta guerra, mas vou lutar o quanto puder... Rezo para que chegue logo o dia em que possamos saudar um mundo no qual não devamos matar inimigos que não conseguimos odiar. Para esse fim, estou disposto a ter meu corpo destroçado inúmeras vezes.



Dezembro de 1944_Finalmente vou para a Marinha. Treinei meu corpo praticando natação, ginástica e tiro ao alvo. Sinto-me confiante na minha força. Devemos agora tornar-nos escudos para garantir vida eterna à nossa nação e prevenir o avanço do inimigo. Meus estudos universitários são importantes, mas a disciplina que escolhi (economia), que é pragmática e socialmente relevante, será mais bem exercida se eu tiver um treinamento militar. E, mesmo que eu venha a tombar, a sociedade não depende de um só indivíduo.



20 de fevereiro de 1945_[Todos os soldados-estudantes foram reunidos num saguão da Universidade Imperial de Tóquio e “convidados” a se inscrever na lista de pilotos suicidas “voluntários”.]



14 de abril_[Sasaki Hachirōmorre aos 22 anos e 9 meses de idade.]





HAYASHI TADAO

O diário manuscrito de Hayashi Tadao foi compilado e editado por seu irmão mais velho, Katsuya, vários anos após o fim da guerra. As forças de ocupação americanas haviam imposto uma rígida censura ao Japão. Diários como o de Tadao eram confiscados. O irmão de Hayashi também quis dar tempo para que os próprios japoneses começassem a compreender o envolvimento do país na Segunda Guerra Mundial. E o porquê de se ter enviado tantos jovens universitários para a morte.

Os irmãos Hayashi e Katsuda compartilhavam o apego ao comunismo, à música clássica ocidental, à filosofia e a discussões sobre vida e morte. Pouco depois da guerra, a família recebeu uma caixa de madeira com a inscrição “A Heroica Alma do Saudoso Hayashi Tadao”. No lugar das cinzas, em uma pequena folha de papel branco havia as palavras “restos mortais” (ikotsu) escritas em caligrafia nobre.



6 de abril de 1940_À noite leio Debaixo das Rodas, de Hermann Hesse. A jovem alma [o personagem Hans Giebenrath] procura crescer contra a opressão do sistema educacional do mosteiro. Ele abandona o mosteiro e tenta seguir seu próprio caminho. Mas Hans adoece. A beleza e a efemeridade do seu espírito e alma levam ao triste final de sua vida. A corrente subterrânea da impermanência. Sopro de crescimento, bela mas frágil alma da juventude, e morte.



15 de abril_Dominar o idioma inglês e identificar um princípio que me guiará intelectualmente – o liberalismo – são duas tarefas importantes da minha busca. Me pergunto em vão: “Quanto tempo vou viver?”



23 de maio_Sigo uma agenda diária que me impus: ler cinco páginas em inglês e 100 em japonês... Durante meus anos de colegial me proponho a ler 300 livros em japonês, quinze em inglês [além dos do currículo escolar] e melhorar meu condicionamento físico com trinta minutos de exercícios diários. Não ler enquanto descanso.



19 de abril de 1941_A indulgência com emoções e o erótico tem sua razão de ser. Mesmo que não passe de uma união entre dois corpos, o ser humano está destinado a sentir que não pode viver sem a companhia de outro ser humano. É claro que o erotismo não brota apenas da solidão. Algo mais leva ao desejo de companhia. Mas talvez essa interpretação sirva apenas para estetizar o erotismo...



22 de junho_[A propósito da declaração de guerra da Alemanha à União Soviética.]O que vai acontecer com o Japão? A morte é imoral e viver é absolutamente moral.



31 de agosto_Japão, por que eu não te amo e não te respeito?



12 de outubro_A nação é uma entidade com enorme poder de controle.Não posso mais elogiar minha pátria. A guerra não se destina a proteger o país, mas é o resultado inevitável da forma como o Japão se desenvolveu como nação. Sinto que devo aceitar o destino da minha geração, lutar na guerra e morrer. Chamo isso de “destino”, uma vez que somos mandados ao campo de batalha para morrer sem podermos expressar nossas opiniões, criticar e dar argumentos a favor ou contra. Morrer na guerra, morrer sob a demanda da nação – não tenho a menor intenção de elogiar esse estado de coisas. Trata-se de uma grande tragédia.



20 de janeiro de 1942_Uma frase de Jean-Christophe [obra que valeu o Nobel de Literatura ao romancista francês Romain Rolland] me tocou fundo: “A vida consiste em uma batalha contínua e sem trégua. Se você quer se tornar um ser humano honrado, precisa lutar contra inimigos invisíveis, desastres naturais, desejos avassaladores, pensamentos sombrios; tudo o que engana a pessoa, a diminui, a destrói.”



18 de junho_Assisti a uma palestra do professor Tanabe Hajime [venerado membro da Escola de Filosofia de Kyoto]. Sua voz era tão miúda que ficou quase inaudível. Em suma, ele disse que “a filosofia é um treinamento para a morte. A realidade demanda a morte, isto é, o sacrifício da própria vida. Não se morre de acordo com a própria vontade”.



30 de setembro_Preciso ser sincero. O desejo sexual é doloroso. Olho para mim, tomado pela vontade de união física. Em seguida combato o impulso como se fosse sujo e feio, resultado da minha raiva por não satisfazer o desejo. Por outro lado, sonho em aspirar o cheiro do suor [de uma amante] que excita, o cheiro do corpo do sexo oposto, o toque em um corpo quente, a euforia do enlace de duas pessoas apaixonadas se descobrindo, sem o sentimento da vergonha, a dança selvagem do ato, o adormecer abraçado e a doce sensação de despertar a seu lado – são todas imagens que me atormentam. Luto diariamente com esta dor. Preciso assumir o controle sobre mim!



21 de maio de 1943_Outra palestra do professor T. Ele explicou que a Escola Estoica considera a morte um fenômeno natural, não controlável por nossa vontade, enquanto o existencialismo de Heidegger vê a morte como uma possibilidade realista – a possibilidade de renascer que deriva da nossa habilidade de encarar a morte. De acordo com o professor, nossa única salvação é sabermos que devemos morrer, que devemos viver nossas vidas preparados para mergulhar na morte a qualquer momento. A morte não é Sein [ser, em alemão], mas Sollen [dever ser]. Ele prosseguiu dizendo que a humanidade e Deus não entram em contato direto. São as nações que medeiam entre os dois. Devemos fazer o possível para manter os três conectados.



16 de junho_Ao ler Em Torno de uma Vida: Memórias de um Revolucionário [de Piotr Kropotkin, o anarquista], fiquei tocado pela força espiritual dos russos, em especial pelas mulheres da Rússia pré-revolucionária. Apesar de perseguidas pelo regime, elas procuraram obter conhecimento; algumas se aventuraram no exterior e acabaram por encontrar uma faculdade de medicina para mulheres. Nelas encontro o verdadeiro caráter dos russos. Nossa tendência, quando pensamos no povo russo, é evocar a imagem do miserável mundo descrito por Dostoiévski em Recordações da Casa dos Mortos, mas a intensa busca intelectual da verdade também existiu.



1º de dezembro_[Entre 200 mil e 300 mil estudantes foram convocados para a guerra. O número exato permanece incerto.]



9 de dezembro_[Entre os 63 mil jovens enviados para a base naval de Takeyama, em Yokosuka, estava Hayashi Tadao.]



19 de dezembro_Os dias passam rápido. Ainda assim, cada dia parece longo... Não se pode lutar sozinho em guerras modernas. Cada um se torna uma peça da roda. Como estou convencido de que esta guerra é uma Totalkrieg [guerra total], devo concordar com cada etapa necessária.



25 de dezembro_Estou decidido a manter meu diário. Mas o Geist [Espírito] precisa permanecer livre. Dado que procuramos manter a liberdade de espírito, nos sentimos controlados. Por sermos responsáveis pela proteção do país, devemos ter a firme convicção de pro patria mori, trabalhar nossa força física e dominar nossas qualificações técnicas.



1º de janeiro de 1944_Talvez o que nos espera seja uma funda desilusão e, para nossa sociedade, uma anarquia insidiosa. Sonho em me alongar sobre as ondas do mar num dia ensolarado de primavera para me intoxicar com pensamentos soltos enquanto meu corpo se solta à deriva na água... De repente, me vem à mente uma cena de Casa dos Mortos – no entardecer de um dia de verão de céu esbranquiçado, os prisioneiros são empurrados para dentro das celas.

Vivo na solidão.



3 de janeiro_Não fujo do sacrifício. Mas martírio e sacrifício devem ser feitos no auge da realização pessoal. Sacrifício ao término do autoaniquilamento, da dissolução do seu ser, não tem nenhum significado.



22 de janeiro_Os militares exterminam a paixão e transformam o ser humano numa peça que gira uma roda mecanicamente.



23 de janeiro_Estamos todos pessimistas quanto à possibilidade de voltar para casa. Se eu não conseguir sair da Marinha, vou enlouquecer. No momento eu só quero ler livros e nesse estado de espírito não vou conseguir lutar na guerra... Não tenho paixão. Sinto perda e indiferença. Não me importa o que venha a acontecer. O sentimento mais penoso e insuportável deriva dessa vida de forçada indiferença. A parte dura não é morrer, é viver.



28 de janeiro_[Hayashi Tadao é selecionado para piloto reserva e transferido para a base naval de Tsuchiura, notória pelo tratamento brutal conferido aos soldados.]



8 de maio_O individualismo não é um mero “ismo”, mas um princípio inato do ser humano. Realmente odeio os militares. A única utilidade que reconheço neles é o seu papel de protetor do nosso Volk [povo, em alemão].



19 de maio_Sinto-me cada vez mais atraído pela solidão, preces, dívida e responsabilidade social, mas nenhum sentimento de amor, que me parece remoto demais no momento.



2 de junho_Acabo de ouvir a Nona de Beethoven. Me tocou profundamente. Intensificou meu desejo de ler livros.



8 de junho_Prevejo a queda de Paris para dentro de um mês e meio. Agora começa o contra-ataque inimigo, com sua acachapante superioridade bélica. A catastrófica etapa descrita em Nada de Novo no Front [romance pacifista de Erich Maria Remarque sobre a Primeira Guerra Mundial] se aproxima.



16 de junho_Ataques aéreos contra Saipan, ilhas de Tinian e Bonin. A situação é muito tensa, mas para mim tanto faz o Japão ser destruído. É por demais tedioso ficar esperando.



20 de junho_Minha alma treme diante da tapeçaria literária de Tonio Kröger, de Thomas Mann, com sua pitada de solidão, sensibilidade aguda e uma sublimidade quase ameaçadora.



8 de julho_É pouco provável que eu consiga obter O Estado e a Revolução, de Lênin. Meu plano, então, é memorizar A Última, de Wilhelm Schmidtbonn, e O Apóstolo, de Rilke.



14 de Julho_Hoje encerro meu diário, fruto da minha empobrecida vida espiritual. Eu, confusão e anarquia, estou reduzido a isso. O que me atrai são questões sobre a natureza da sociedade moderna. Neste diário eu expus minhas fraquezas. Este misérable humano na sua totalidade está aqui retratado. Escrever o diário foi uma forma de encontrar algum sentido para mim.

O que desejaria, para mim, é andar pelas ruas de Moscou com uma boina na cabeça, estudar economia e política internacional numa Bibliothek alemã ou me envolver numa análise teórica dos rumos a serem tomados pelo Japão. Se eu viver, é o que farei. Se eu morrer, terá sido um mero sonho. Gostaria de pensar neste diário como o primeiro capítulo do registro de um ser humano que tinha um grande sonho, mas que não encontrou uma solução. Tentei como pude realizar este sonho. Fim.



Final de maio de 1945_[Antes de ser transferido para a base aeronaval de Miho, Hayashi Tadao implorou ao irmão que lhe emprestasse O Estado e a Revolução, de Lênin, à época proibido no Japão. O irmão conseguiu fazer-lhe chegar a obra e Hayashi Tadao lhe contou ter lido, página por página, no banheiro. A cada vez, rasgava a nova página em pedacinhos e a fazia sumir na privada. Houve vezes em que engoliu os pedacinhos.]



30 de maio_[Última carta à mãe.] Mãe. Quantas vezes você falou que viveríamos em Kyoto depois da minha formatura da faculdade... Kyoto é realmente uma cidade pacífica e plebeia. Você e eu – não há lugar melhor para vivermos juntos e continuarmos a nos aprimorar. Mãe, já não há esperança de vivermos juntos agora que fomos arrastados pelo redemoinho do tumulto mundial. Como você viverá? De qual força moral poderá você depender para a continuação da vida? Minha pobre mãe.



27 de julho_Entardecer, o momento mais belo... Sem avisar, milhões de imagens aparecem e desaparecem. Amado povo. Como é doloroso morrer no céu.



28 de julho_[Hayashi Tadao morreu aos 24 anos, já depois da rendição aos americanos. Seu avião explodiu numa noite enluarada.]





KASUkA TAKEO

Apesar da publicação de inúmeros testamentos, fotos e filmes mostrando jovens pilotos sorridentes fazendo o último aceno antes de decolar para a derradeira missão, um raro relato de como transcorria a noite de véspera mostra uma história inteiramente diversa. Kasuka Takeo tinha 86 anos em junho de 1995 quando narrou o que viu, numa noite como aquela. Durante a guerra, Kasuka Takeo tinha por tarefa cuidar das refeições, da lavanderia, da faxina e de outros trabalhos manuais para os pilotos tokkōtai da base aeronaval de Tsuchiura. Eis o trecho da carta enviada a um amigo:

No salão onde ocorriam as festas de despedida, os jovens oficiais estudantes bebiam saquê frio. Alguns engoliam o copo de um só trago. Outros sorviam grandes quantidades em goles consecutivos. O local se transformava em caos. Alguns quebravam lâmpadas com suas espadas. Outros arremessavam cadeiras contras as janelas e rasgavam as toalhas de mesa. Um misto de hinos militares com xingamentos enchia o salão. Enquanto alguns vociferavam em fúria, outros soluçavam. Era a última noite de suas vidas. Embora, para todos os efeitos, estivessem prontos a sacrificar sua preciosa juventude ao alvorecer, em nome do imperador e do Japão, eles estavam dilacerados – uns repousavam a cabeça na mesa, outros escreviam testamentos ou juntavam as palmas das mãos em meditação, ou dançavam feito alucinados. Na manhã seguinte, todos decolaram portando a faixa com o sol nascente na fronte.





NAKAO TAKENORI

Nascido em Fukuoka, numa família de classe média-alta, Nakao Takenori estudava direito na Universidade de Tóquio quando foi convocado para a guerra, em dezembro de 1943, aos 19 anos de idade.

Em 1997, seu irmão caçula publicou Registro de uma Busca Espiritual: Diário Manuscrito Deixado por Nakao Takenori, um Estudante que Morreu na Guerra. Com mais de 700 páginas, nele ficam evidentes a procura de um sentido para a vida e o desejo de ser “puro”, livre de qualquer materialismo ou egoísmo. A busca da mulher ideal também permeia os escritos de Nakao Takenori. Seu conhecimento de textos filosóficos em grego e latim, além de literatura alemã e francesa, era profundo.



Agosto de 1939_Embora Hitler e Napoleão tenham guerreado para expandir seus territórios nacionais, do ponto de vista histórico eles são apenas a ascensão e queda de um povo. Seres humanos nascem para a morte. Somos apenas um ciclo histórico. A história se repete. Qual o verdadeiro sentido do universo?



Dezembro_Ameaçar a vida de um inocente jamais deveria ser permitido. Do ponto de vista dos militares, porém, isso não importa, pois a única coisa que conta para eles é a honra. Eles não questionam o que é ou não verdade, apenas enchem o ar de mentiras.

Devo ingressar no mundo do caos em que interesses partidários obstruem a justiça? Não gostaria de fazer parte do mundo que aprimora a justiça somente para os burocratas e aumenta o poder dos militares. Prefiro me manter à margem e, como Zola [Émile Zola, autor de J’Accuse, panfleto de 1898 em defesa do oficial francês Alfred Dreyfus, de raiz judaica, acusado injustamente de traição], orientar a nação em direção à justiça e à verdade.



Abril de 1940_Sócrates foi forte. Sempre se opôs aos hipócritas e manteve seu sentido de justiça. Sinto não ser tão forte como ele.



Maio_Vejo tudo cinza. Desesperança e melancolia sem perspectiva de melhora. Não estou certo de conseguir suportar a exaustão física e mental. Devo simplesmente morrer, sem haver qualquer sentido à minha vida? Sinto como se tudo fosse desmoronar repentinamente.



Abril de 1941_Muitos estudantes aceitam o seu destino, aceitam a necessidade de lutar mesmo diante da matança cruel. Sacrificam as próprias vidas pela pátria e morrem abençoando suas mães e irmãos. É espantoso. Talvez seja esse o espírito que hoje torna a Alemanha vitoriosa. [Nakao Takenori acabara de ler uma coleção de cartas escritas por soldados-estudantes alemães da Primeira Guerra Mundial.]



Abril de 1943_Estamos lutando contra a Inglaterra, esse grande império em declínio, e contra uma América que está no ápice de sua cultura material. Embora eu ainda não esteja no campo de batalha físico, já me considero dentro. Eu, que procuro e amo o absoluto, devo me sacrificar pela pátria... Será o “absoluto” encontrável neste sacrifício?

Não consigo não me debater com esta contradição... Eu, que cheguei a conhecer a profundidade da vida e a viver essa vida, devo me sacrificar pelo país uma vez que é esse meu destino? Persigo a verdade, a duras penas.



28 de abril de 1945_[Última carta endereçada aos pais.] Na festa de despedida o pessoal me deu forças. Também me esforcei para me encorajar. Sinto-me uma pessoa feliz. Posso ir ao encontro da morte na certeza de ter recebido tratamento sincero de quem eu tratei bem... Meu copiloto é Uno Shigero, um garoto bacana de 19 anos... Ele me considera seu irmão mais velho e eu o vejo como meu irmão caçula. Unidos por um mesmo pulsar de coração, vamos mergulhar num navio inimigo. Uma foto minha, que tirei recentemente, ficará pronta em pouco tempo. Ela será enviada a vocês.



29 de abril_[Nakao e Uno decolam para a missão suicida, mas são forçados a retornar à base por mau funcionamento do avião.]



5 de maio_[Os pais de Nakao vão até a base naval de Takuma para ver o filho, mas são informados de que ele já havia sido transferido para outra base; não foram informados de que ele tinha morrido na véspera, ao mergulhar na batalha de Okinawa.]





HAYASHI ICHIZŌ

Nascido numa família cristã de cultura refinada, Hayashi Ichizōse formou pela Universidade Imperial de Kyoto e foi alistado aos 21 anos. Dois anos depois, foi selecionado como piloto tokkōtai. Em menos de dois meses partiu para sua missão final. Todos os trechos de seu diário datam de 1945, quando já estava aquartelado na base naval de Wŏnsan, na Coreia ocupada.



9 de janeiro de 1945_Ganhei um caderno novo e vou começar a escrever meu diário... Embora nossa missão seja lutar, é frustrante ficar esperando... Mais um dia sem poder decolar... Provavelmente não poderei ir à frente de combate antes do florescer das cerejeiras, nem quando elas já tiverem murchado.



22 de fevereiro_[Data em que foi designado para uma unidade tokkōtai.] Devemos seguir a expressão “Sob as ordens de Sua Majestade”. Recebemos a locação da nossa morte. Devemos simplesmente mergulhar com o avião. Seres humanos são dotados da capacidade de perdoar.



23 de fevereiro_Tenho tido tanto medo da morte, mas ela já foi decidida por nós...Quando penso na minha mãe, não consigo não chorar. Sei que tentarão consolá-la, mas sei que não será fácil aliviar sua dor. Choro muito ao pensar nela...

Tenho a sorte de crer em Deus, e minha mãe também. Embora eu vá morrer, sonho com o nosso reencontro... Tenho a forte esperança de que nosso país irá superar esta crise e haverá de prosperar. Não suportaria a ideia de a nossa pátria ser esmagada pelo inimigo sujo.

Para ser sincero, não posso afirmar que o desejo de morrer pelo imperador seja genuíno, que ele venha do fundo do coração. Mas foi decidido assim.

Não terei medo no momento da morte. Tenho medo do quanto o medo da morte perturba a minha vida.



4 de março_O motivo pelo qual ando pensando em suicídio é porque a morte em combate significa o meu completo aniquilamento, impedindo que eu contribua para a sociedade, que eu empreenda algo. É fácil falar de morte no abstrato, como nas discussões dos filósofos da Antiguidade. É a morte real que temo e não sei se poderei superar este medo.



19 de março_Gostaria de fazer alguma diferença no mundo. Não nego que parte desse desejo deriva da minha vontade de ter a existência reconhecida. Mas sobretudo ele deriva do vazio que sinto e da minha ira com os chamados líderes, que são incapazes de reconhecer problemas que até eu consigo identificar.

Os militares que ocupam altos postos estão cometendo um pecado que não pode ser desculpado: estão matando crianças e civis inocentes na China.

Não tenho mais tempo para fugir... Desta vez não vou tentar escapar.



21 de março_Com os preparativos para a decolagem final sinto um peso dentro de mim. Acho que não conseguirei olhar a morte na cara.

Desespero, desespero é pecado.



Abril_[A missão final de Hayashi Ichizōfoi abortada devido ao mau funcionamento do seu avião. Isso permitiu que ainda escrevesse mais três “cartas de despedida” à mãe.] Hoje metade de nossa unidade mergulhou sobre navios inimigos ao largo de Okinawa. Não temos luz, por isso escrevo perto de uma fogueira.

Mando lembranças a todos. Não me resta tempo para escrever-lhes. Vamos afundar navios inimigos. O uniforme de um piloto tokkōtai para sua última missão inclui uma bandana com o sol nascente e uma echarpe de seda branca em volta do pescoço... Para meu último voo vou enrolar no meu corpo a bandeira do Sol Nascente que você me deu e vou colocar uma foto sua no peito... Quando você ouvir pelo rádio que navios inimigos foram afundados, por favor lembre que mergulhei em um deles.

Amanhã não estarei mais vivo. Os que saíram em missão ontem estão todos mortos? Não consigo crer que seja real. Sinto como se fossem retornar de repente. Você talvez pense a mesma coisa em relação a mim. Mas, por favor, desista. Por favor, chore. Mas, por favor, não fique tão triste.

Parto antes de você. E me pergunto se me será permitido ir para o céu. Ore por mim, mãe. Não suportaria a ideia de ir para um lugar onde você não se juntará a mim mais tarde.

Amanhã mergulho contra uma flotilha de porta-aviões inimigos. Se você fizer um funeral religioso, coloque a data certa: 10 de abril.

Salazar - Um ditador fascista?


Político sem brilho, destituído de carisma, Salazar comandou Portugal por mais de 35 anos. A sua condução de um pequeno país, em meio a uma Europa sacudida por abalos, é motivo para que a biografia de um homem insosso esteja longe de ser insossa

por Boris Fausto
Uma série de ditaduras marcou o mundo ocidental a partir dos anos 20 do século passado. Numa sequência que durou mais de vinte anos, Mussolini inaugurou o cortejo, ao tomar o poder na Itália, em 1922. Seguiram-se Salazar em Portugal (1932), Hitler na Alemanha (1933) e o general Franco na Espanha (1939). Atravessando o Atlântico, o Brasil teve a “glória” de figurar no cortejo, com o golpe de Getúlio Vargas, implantando o Estado Novo em novembro de 1937.

Os ditadores chegaram ao poder por diferentes vias, numa conjuntura em que a democracia liberal se enfraquecera e os regimes chamados fortes pareciam ser a fórmula regeneradora das nações doentes, corroídas pela desordem. Benito Mussolini se tornou Il Duce após um passeio, mitificado pelos seus seguidores: a marcha triunfal sobre Roma. António Salazar assumiu o poder sem abalos. Adolf Hitler foi chamado pelo presidente Hindenburg para salvar a Alemanha. Francisco Franco se destacou pela via sangrenta da guerra civil, da qual saiu vitorioso.

Nesse cortejo de ditadores da Europa Ocidental, segundo o grau de sinistra importância, Hitler ficou em primeiro lugar e Salazar na última posição, embora estivesse longe de ter exercido uma “ditadura branda”. Não por acaso, Hitler, Mussolini e Franco foram objeto de excelentes biografias. Salazar, pelo contrário, recebeu poucas atenções fora de Portugal. E é de um historiador português, Filipe Ribeiro de Meneses, uma qualificada e minuciosa biografia do ditador português. O livro foi escrito originalmente em inglês, sob o título de Salazar: A Political Biographye não há nessa edição o subtítulo publicitário “Biografia definitiva”, que consta da edição brasileira. Traduzido para o português de Portugal, o livro tem para nós, brasileiros, um sabor especial, pelo palavreado luso, que lhe dá um curioso gosto de autenticidade.

É de se perguntar: como é possível atravessar as mais de 800 páginas de uma biografia, cujo personagem central não é uma figura especialmente atraente? Se a minha receita servir, li o livro com grande interesse, prestando menos atenção em minúcias que me parecem secundárias para o leitor brasileiro.

António de Oliveira Salazar, ditador sem brilho, destituído de carisma, teve, entretanto, uma longa carreira política: comandou Portugal por 36 anos. Seus traços de personalidade, seu percurso na condução de um pequeno país, em meio a uma Europa sacudida por muitos abalos, o caráter sui generis do regime autoritário português são motivos suficientes para que a biografia de um homem insosso esteja longe de ser insossa.

Salazar nasceu numa pequena cidade, com um desses nomes evocativos de uma aldeia lusa: Santa Comba Dão. Único filho homem da família, viveu a infância num período em que seu pai, vindo da pobreza, alcançara condição mediana. Ao chegar à adolescência, abriam-se para ele dois caminhos numa sociedade que gerava poucas oportunidades econômicas: o sacerdócio e a carreira militar. Salazar entrou para o seminário de Viseu e chegou a receber ordens menores, a caminho de tornar-se sacerdote. Apesar de os padres representarem forte influência na sua formação católica conservadora e no seu moralismo, não seguiu carreira eclesiástica. Seguiu um rumo mais prestigioso, ao ingressar na Universidade de Coimbra em 1910, onde se especializaria em economia e finanças.

Na vida privada, Salazar foi um solteirão, atendido por uma governanta cinco anos mais velha do que ele durante todo o tempo em que viveu em Lisboa. A natureza das relações entre Salazar e Maria de Jesus Caetano Freire, que o país conhecia como dona Maria, deu margem a muita especulação, mas nada de certo se sabe a respeito. Em compensação, dois casos amorosos de Salazar, depois de chegar ao governo, tornaram-se conhecidos. Ambos envolveram relações complicadas: um deles, com uma sobrinha casada; o outro, com Maria Emília Vieira, jovem de vida boêmia, em Paris e na noite lisboeta. Por mais que ele fosse discreto em seus affaires, não era o “monge castrado” como o chamou num panfleto seu opositor Cunha Leal, banido, aliás, para os Açores.

Os casos de Salazar estão bem longe do ideal de família e do papel da mulher que pregava em seus escritos. A família, segundo ele, era “a célula social cuja estabilidade e firmeza são condição essencial do progresso”. Quanto à mulher, o maior elogio que se poderia fazer-lhe resumia-se a um epitáfio romano: “Era honesta, dirigia a casa; fiava lã.”

No plano das ideias, além da raiz fundamental – o catolicismo conservador –, ele foi bastante influenciado pela Action Française, movimento de direita em que figuravam nomes como Charles Maurras, Maurice Barrès e Gustave Le Bon. Este último impressionou Salazar pela relativização das instituições políticas existentes e por não acreditar na capacidade intelectual da grande massa.

A aproximação de Salazar com a política se deu a partir de seus escritos em jornais católicos de província, que tinha em grande conta porque considerava “a imprensa católica do país a mais séria, a mais ponderada, a única decente e limpa, que pode entrar em todas as casas, sem ministrar à donzela incauta o veneno do romance perigoso e sem tecer, sob atraentes formas, a apologia dos criminosos”.

A República portuguesa nunca chegou a se estabilizar. Ficou dividida entre as correntes partidárias, as conspirações monárquicas, a anarquia administrativa e o desequilíbrio orçamentário – herança maldita dos tempos da monarquia, derrubada em 1910. Em dezembro de 1917, um golpe de Estado abriu caminho para a ditadura militar de Sidónio Pais. Figura extraordinária esse Sidónio Pais! Sempre rodeado de belas mulheres, charmoso, carismático, populista, era pessoalmente o oposto de Salazar, que então iniciava seus passos na carreira política. A “República nova” de Sidónio, porém, durou pouco porque o “presidente-rei” foi morto a tiros, num atentado nas ruas de Lisboa, em dezembro de 1918.

Portugal voltou a ser uma democracia cuja morte anunciada percorreu os anos caóticos de 1920 a 1926. Após uma tentativa fracassada, Salazar elegeu-se deputado por um pequeno partido, o Centro Católico Português. Mais tarde, manifestaria desprezo por essa breve experiência parlamentar. Em 1920, oito primeiros-ministros passaram de raspão pelo poder e os assassinatos políticos se tornaram moeda corrente. Por fim, em 1928, uma facção militar desfechou um golpe de Estado. A ditadura, como o regime democrático anterior, seria marcada pela instabilidade não só política, como também econômica e financeira.

Foi um quadro conhecido: gastos crescentes, arrecadação insuficiente, déficits orçamentários. Os ministros da área econômica consideravam essencial obter um empréstimo internacional que ancorasse as finanças portuguesas e permitisse ao país concentrar investimentos em áreas estratégicas. Mas, como lembra Ribeiro de Meneses, havia grande desconfiança de tudo o que fosse português, a ponto de ter-se inventado um verbo em francês – portugaliser –,sinônimo de virar tudo pelo avesso.

Nesse quadro, a estrela do professor Salazar subia. Adversário do empréstimo externo, ele propôs, num relatório amplamente divulgado, medidas fiscais duras para tirar Portugal de uma situação difícil. Entre outras vantagens, o relatório o aproximou dos grandes grupos econômicos, que não eram muitos. Não tardaria a ser chamado para assumir o Ministério das Finanças, como homem providencial. Na véspera de completar 39 anos, tomou posse do cargo, em 27 de abril de 1928. Cada vez mais prestigiado, em meio às divisões no Exército e na sociedade, Salazar foi nomeado presidente do Conselho de Ministros, em junho de 1932. Na realidade, o cargo de primeiro-ministro era mero formalismo. Salazar tornou-se um ditador civil que comandou Portugal quase até sua morte.

Em linhas gerais, as medidas drásticas tomadas por ele, seja como ministro das Finanças, seja como ditador, surtiram efeito. A obstinação pelo equilíbrio orçamentário assim como um choque fiscal, suportado sobretudo pelas camadas pobres, possibilitaram o reequilíbrio econômico de Portugal. O país atravessou relativamente bem a Grande Depressão mundial iniciada em 1929, mesmo sofrendo um corte significativo dos recursos enviados pelos emigrantes portugueses, provenientes principalmente do Brasil. Ribeiro de Meneses rebate a tese corrente de que o Estado Novo luso se caracterizasse pelo imobilismo. Ao contrário, o regime salazarista representaria uma tentativa frustrada, mas nem por isso menos séria, de permitir a Portugal se desenvolver e se modernizar, dentro da ordem e do respeito às hierarquias sociais.

Salazar tornou-se ditador de uma forma bem diversa de seus contemporâneos.Mussolini apelou para a mobilização popular e para o nacionalismo. Supostamente, a Itália, após a Primeira Guerra Mundial, fora desprezada por seus parceiros maiores, vencedores da guerra. Hitler, além de utilizar o terrível ingrediente da conspiração mundial judaico-comunista, inflamou parte da população alemã, batendo na tecla do nacionalismo, ao insistir no direito da Alemanha de ocupar um lugar central na Europa depois de ter sido humilhada pelo Tratado de Versalhes. Franco subiu ao poder como vitorioso em uma guerra civil desastrosa, para ele uma cruzada cristã contra ateus e comunistas.

Bem longe da retórica ribombante dos ditadores de fascio e suástica, Salazar notabilizou-se por ter salvado Portugal do caos, por uma via que se pode chamar de burocrática. Em torno dele, não se elaborou um culto da personalidade, apesar de seu prestígio na maioria da população. Tinha aversão a aparições públicas, recusava-se a participar de comícios e, para completar, era mau orador e não aceitava baixar o nível dos discursos ou ceder a slogans fáceis de lembrar.

Nem por isso deixou de zelar por sua imagem, a fim de obter ganhos políticos. Por iniciativa do Secretariado de Propaganda Nacional – órgão que lembra o Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP do Brasil do Estado Novo – e dele próprio, sempre se apresentou ao público como um homem humilde, destituído de ambições políticas, que se dispusera a salvar o país, sem medir sacrifícios pessoais. Não fora essa elevada missão, permaneceria na cátedra de Coimbra – um remanso diante das dificuldades de dirigir Portugal. Em maio de 1935, o Diário da Manhã, órgão do regime, lançou essa pérola ao comentar um discurso do ditador: “SALAZAR, ou o ANTIDEMAGOGO: Seria essa a sua melhor definição. O demagogo dirige-se aos maus instintos... Salazar dirige-se às consciências bem formadas, aos impulsos de altruísmo e de equilíbrio, à pequena luz da Graça que dorme, latente, no íntimo de todas as criaturas.”

O salazarismo enfatizava a religiosidade, o nacionalismo, o anticomunismo, a crítica a um liberalismo que a modernidade do século XX não podia contemplar. O nacionalismo era “territorialmente satisfeito”, não se destacava pelo expansionismo, e sim como um instrumento para abafar a luta de classes. O importante era se dar bem com os vizinhos – a Espanha em particular – e manter o status quo nas “províncias de além-mar”.

O anticomunismo tornou-se virulento quando eclodiu a Guerra Civil Espanhola, em 1936. Para o regime, os republicanos e os “vermelhos” eram a mesma coisa, e ambos tinham pretensões negativas em relação a Portugal. Anos mais tarde, o perigo comunista viria a ser uma das justificativas de Salazar para tentar manter as colônias da África.

À primeira vista, pareceria que a ditadura salazarista era mais um regime fascista implantado na Europa Ocidental. A oposição portuguesa, na sua difícil luta política, tinha razões práticas para não olhar Portugal como um caso à parte. Mas, na verdade, apesar de seus namoros com o fascismo, o salazarismo distinguiu-se das correntes totalitárias tanto internas quanto externas.

Como nota Ribeiro de Meneses, no início do Estado Novo talvez a principal ameaça ao regime e a seu líder não viesse da esquerda, mas da extrema-direita, formada pelos integralistas e pelo Movimento Nacional-Sindicalista, de Rolão Preto. Os nacional-sindicalistas tendiam a transformar seu movimento, o dos “Camisas Azuis”, em um partido único. Insistiam em se constituir uma verdadeira representação corporativa da sociedade. Atacavam sem tréguas o comunismo e o capitalismo internacional. Batalhavam pela criação de um clima social propício ao surgimento de um líder carismático, condição que Salazar, sabidamente, não reunia.

Salazar preferiu seguir outro caminho – o da implantação de um regime autoritário, apoiado num setor do Exército. Se a garantia da ordem era cara aos militares, muitos oficiais, especialmente os fascistas e integralistas, faziam fortes restrições a Salazar, seja por sua atitude de transferir a cúpula do poder dos militares para os civis, seja pelos cortes orçamentários que impuseram restrições ao aparelhamento das Forças Armadas.

Como reafirmou Salazar nos últimos anos de vida, os limites do Exército eram claros: a instituição não poderia imiscuir-se nas lutas políticas, nem constituir um partido político, devendo cingir-se a suas tarefas específicas. Mais ainda, Salazar nunca pretendeu se apoiar na mobilização popular, como pretendiam as organizações fascistas, nem na força de um partido único. A União Nacional, lançada no início da ditadura, não teria as características de um partido único nos moldes do fascismo e, principalmente, do nazismo. Uma observação do historiador António Costa Pinto, citada no livro de Ribeiro de Meneses, lembrando que a União Nacional foi criada por decreto governamental, destaca com ironia: “A legislação sobre o partido foi passada do mesmo modo que a legislação sobre as ferrovias. A administração controlava-o, adormecia-o ou revitalizava-o de acordo com a situação de momento.”

Salazar se referia a Portugal como país de “elites paupérrimas”. Mas ele pouco fez para ampliar essas elites. Na linguagem de hoje, o primeiro escalão do governo e o aparelho administrativo foram recrutados, essencialmente, nos meios universitários. Além do Exército, apesar das reticências, o regime contou com o apoio da Igreja Católica. Quem, como eu, viveu aqueles tempos associou ao salazarismo dois nomes: o do general Carmona, que foi presidente de Portugal, e o do cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Cerejeira.

O formato autoritário do regime deveu-se tanto às convicções de Salazar quanto a seu pragmatismo, na medida em que ele levava em conta as lentas mudanças da sociedade portuguesa. Comparando o Estado Novo salazarista com o implantado no Brasil, ao lado de muitas semelhanças há, pelo menos, uma diferença básica: no âmbito de uma sociedade em crescimento, na qual a industrialização ganhava ímpeto, Getúlio não poderia prescindir de uma política para a classe trabalhadora, configurada no populismo.

No terreno ideológico, se Salazar não se afinava com o fascismo, adotava alguns de seus modelos. Um bom exemplo é o Estatuto do Trabalho Nacional, de setembro de 1933, inspirado na Carta del Lavoro de Mussolini, de 1927. Quase dez anos depois, a Consolidação das Leis do Trabalho, baixada no Brasil no curso do Estado Novo, teve a mesma inspiração.

O Estado devia ser o centro da organização política e seu papel seria de “promover, harmonizar e fiscalizar todas as atividades nacionais”, tendo como órgão principal o Poder Executivo. Esse Estado forte deveria intervir em todas as atividades e, decisivamente, no campo econômico, em face da crise de que padecia o capitalismo. Ao mesmo tempo, era necessário reconciliar a nação e o Estado, de uma forma nunca conseguida desde o despontar do liberalismo em Portugal, em 1820. A reconciliação teria de ser alcançada pela educação, por um lado, e, por outro, pelo advento de uma nova Constituição, capaz de reavivar o país, ao refletir realisticamente seus corpos sociais ativos: a família, a paróquia, o município e a corporação econômica. Nessa reconciliação, o papel dominante caberia ao Estado, ao qual a nação deveria se integrar.

Entretanto, Salazar insistia que havia limites morais e espirituais à ação estatal, em áreas que, para além da política, pertenciam à consciência individual. Essas áreas privadas serviam como baluarte teórico e prático contra a extrema-direita, e para manter os católicos em papel relevante. Nesse passo, Salazar se distinguia de seus mestres da Action Française, ao rejeitar a noção maurrasiana de la politique d’abord – a política antes de tudo.

Uma expressão muito utilizada na época definiu o regime salazarista como uma “ditadura constitucional”. A expressão tinha razão de ser. Em abril de 1933, uma nova Constituição, aprovada por plebiscito, transformou o Estado numa República unitária e corporativa. A Constituição previa a eleição de um presidente pelo voto direto, cabendo a ele nomear um conselho de ministros e o seu presidente. Outros órgãos institucionais eram a Assembleia Nacional e a Câmara Corporativa.

Teoricamente, a maior soma de poderes cabia ao presidente, mas foi o primeiro-ministro – Salazar, como é óbvio – quem concentrou as decisões governamentais. A Assembleia Nacional e a Câmara Corporativa tinham um papel secundário. Ambas se reuniam apenas três meses por ano e esta última desempenhava papel opinativo. A Assembleia Nacional era uma caricatura de um Parlamento, mesmo porque Salazar – tal como outros ditadores de seu tempo – considerava o Parlamento uma instituição caduca, expressão de um liberalismo moribundo e palco para disputas estéreis dos partidos políticos. O corporativismo era parte de um programa político católico que Salazar sempre defendera. Na prática, porém, as organizações corporativas tiveram como funções prioritárias exercer uma forma de controle social, desenvolver o capitalismo nacional e reforçar o papel do Estado.

A consolidação de Salazar no poder foi rápida. A oposição formava um arco que ia dos republicanos conservadores, empurrados para fora da ditadura militar e do Estado Novo, ao Partido Comunista Português, o PCP, liderado por Álvaro Cunhal. Até o fim da Segunda Guerra Mundial, os opositores tiveram escassa repercussão. O desinteresse pela política, a censura aos meios de comunicação, a repressão dos dissidentes, muitos deles sujeitos a prisões e torturas, foram elementos inibidores de uma oposição eficaz.

Em um país de reduzidas dimensões, a polícia política – a famosa Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a Pide – estava por toda parte. Dois estabelecimentos penais eram especialmente temidos: Peniche, uma fortaleza no alto de um penedo, situado na ponta mais ocidental de Portugal, e o campo de concentração do Tarrafal, na ilha de Santiago em Cabo Verde, onde morreram dezenas de prisioneiros políticos. No verão de 1937, um atentado a bomba – façanha de uma célula anarquista – serviu para “justificar” a repressão e para demonstrações de apoio a Salazar.

Em 1945, na onda de democratização que se seguiu ao conflito mundial (como o fim do Estado Novo no Brasil), Salazar anunciou eleições legislativas para novembro daquele ano, abertas a todos quantos quisessem desafiar a lista da União Nacional. Meses antes, chegara a dizer que “as eleições seriam livres como as da livre Inglaterra”. Republicanos e comunistas uniram-se no Movimento de Unidade Democrática, mas a Pide passou a acossar e prender os membros do movimento, que acabou se retirando do pleito.

Uma variante desse cenário ocorreu nas eleições para presidente da República, de fevereiro de 1949. A oposição, na qual o PCP tinha grande influência, lançou o nome de Norton de Mattos, um general de tendências moderadas. Comícios entusiásticos mostraram que o antissalazarismo ganhava a opinião pública. Mas, ainda uma vez, a acossada oposição se complicou e Norton de Matos retirou a candidatura.

Tornou-se cada vez mais claro que as eleições, mesmo em condições anormais, tinham-se convertido em um problema para o salazarismo. No pleito de 1958, o país foi tomado por uma febre eleitoral com a candidatura de outro general, Humberto Delgado, salazarista histórico que passara para a oposição. Delgado manteve sua candidatura até o fim, e só a fraude eleitoral permitiu a vitória do almirante Américo Tomás.

A vida do general Delgado e de sua secretária brasileira, Arajaryr Campos, terminou de forma trágica, em fevereiro de 1965, quando ambos foram assassinados em território espanhol, ao tentar cruzar a fronteira para Portugal. As mortes, perpetradas por agentes da Pide com a autorização de Salazar, tiveram repercussão internacional e quebraram o prestígio do “manso ditador”. O ex-presidente Jânio Quadros enviou um telegrama a Salazar, insistindo numa investigação completa do caso pelas Nações Unidas.

Espetacular foi a façanha do capitão Henrique Galvão, que em janeiro de 1961 fugiu da prisão em Portugal e, à frente de um grupo rebelde de nome quixotesco, o Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação, apresou no Caribe um navio de passageiros – o Santa Maria. Rumando para o sul, Galvão enviou uma saudação ao povo brasileiro, à imprensa e ao recém-eleito presidente brasileiro, Jânio Quadros. Ao que tudo indica, Galvão esperou a posse de Jânio para desembarcar no Recife, pois JK, seu antecessor, tinha boas relações com a ditadura portuguesa. O “homem da vassoura” enviou a Galvão uma mensagem de boas-vindas e lhe concedeu asilo político. Ele nunca mais voltaria a Portugal e, anos mais tarde, morreria no Brasil.

No plano das relações exteriores, Portugal mantinha tradicionalmente laços estreitos com a Inglaterra, numa posição de inferioridade. Apesar da oposição das correntes germanófilas, o país entrou na Primeira Guerra Mundial ao lado dos Aliados e enviou um contingente militar para lutar nos campos da França. A implantação da ditadura salazarista não impediu a continuidade das boas relações com a Inglaterra, mas esta nem sempre apoiou as decisões do governo português. Salazar suscitou severas críticas dos ingleses, por exemplo, quando, de forma dissimulada mas significativa, ele apoiou o general Franco durante a Guerra Civil Espanhola.

Ao eclodir a Segunda Guerra Mundial, porém, a neutralidade de Portugal foi apoiada sem ressalvas pela Inglaterra. Salazar manteve essa postura, mesmo quando a queda da França parecia prenunciar a vitória do nazifascismo, e procurou influenciar o general Franco para que a Espanha também se mantivesse neutra. Mas em 1941, quando Hitler invadiu a União Soviética, Franco se colocou abertamente do lado alemão, enviando um contingente militar – a Divisão Azul – para lutar, ou melhor, para ser destroçado, na Frente Oriental.

Salazar nunca se identificou com o regime nazista, embora agentes da Alemanha, como de outros países, circulassem em Portugal sem serem incomodados. Numa carta enviada a um de seus confidentes mais próximos, em setembro de 1941, ele afirmou: “Considero uma desgraça para a Europa que (...) o nazismo se imponha por toda a parte com a sua violência e rigidez de alguns de seus princípios. Para os que têm da Civilização uma noção moral, será um franco retrocesso.”

Salazar não via os Estados Unidos com os mesmos bons olhos com que via a Inglaterra. Os americanos – segundo ele – eram estranhos aos princípios europeus. E representavam um capitalismo sem freios, com pretensões hegemônicas. Alguém perguntaria: que importava, afinal de contas, para os Estados Unidos, a postura do nanico Portugal? A resposta pode ser sintetizada na importância estratégica do arquipélago dos Açores. Em julho de 1941, o presidente Roosevelt enviou uma carta a Salazar, afirmando que a utilização do arquipélago, e de outras possessões portuguesas, nada tinha a ver com uma ocupação. Para o propósito de proteger os Açores, Roosevelt dizia ter todo o gosto em incluir forças brasileiras, mas não se chegou a tanto. Depois de muitas pressões e longos entendimentos, Portugal autorizou a utilização dos Açores, primeiro pelos britânicos e depois, com relutância, pelos americanos.

No pós-guerra, a insistência de Salazar na manutenção das colônias da África a qualquer preço acelerou a desagregação do Império português. Portugal invocava a ameaça da União Soviética no continente africano. Dizia que não havia racismo, e sim harmonia de raças nas colônias portuguesas. E lembrava o exemplo maior do Brasil – uma nação luso-tropical cuja história passava pelo papel desempenhado por Portugal. O defensor intelectual dessa ideologia foi Gilberto Freyre, particularmente no livro O Mundo que o Português Criou. Embora Salazar e seus acólitos tivessem horror da importância que ele atribuía à herança africana em Portugal, deixaram o aspecto de lado para utilizar as ideias de Gilberto Freyre, um intelectual de inegável prestígio. Alguns livros do sociólogo brasileiro foram publicados em Portugal e ele visitou o país várias vezes, a convite do governo português.

As colônias portuguesas na Ásia foram caindo, uma a uma: Timor, Goa, Macau. Mas Salazar não podia admitir o abandono das “províncias ultramarinas” da África, cada vez mais convencido de que a independência delas levaria ao domínio da União Soviética ou ao caos generalizado. Os movimentos de independência estendiam-se da Guiné-Bissau e Cabo Verde a Angola e Moçambique. Em busca de uma política integradora e assimilacionista, o governo tentou sem êxito a reforma – uma espécie de luso-tropicalismo em forma legislativa, na feliz expressão de Ribeiro de Meneses. Na verdade, a prolongada Guerra da Angola, cada vez mais impopular em Portugal e na África, a cujo final Salazar não chegou a assistir, foi um fator dos mais importantesna queda da ditadura.

Salazar não teve a morte violenta de Mussolini e de Hitler. Como o general Franco, morreu na cama, de morte natural, em julho de 1970. Meses antes, quando sofrera um acidente cardiovascular, fora substituído no poder, sem seu conhecimento, por Marcelo Caetano, atitude que lhe causou profunda amargura. Caetano tentou inutilmente reformar o regime para garantir sua sobrevivência. A Revolução dos Cravos poria fim à ditadura em 1974, por iniciativa dos quadros médios do Exército, acolhidos pela população, num clima de forte emoção. O deus de Salazar poupou-o desse espetáculo de desordem, como certamente ele o denominaria.

Passadas muitas décadas, a Europa Ocidental de hoje é muito diversa do que foi dos anos 30 até meados da década seguinte. A era das ditaduras teve fim, a Alemanha e a França – inimigas mortais em três guerras – tornaram-se nações amigas, o comunismo deixou de ser um fantasma perturbador, o sonho da União Europeia converteu-se em realidade.

Não obstante, nos dias de hoje, a União Europeia atravessa ventos e tempestades, e os temas econômicos e financeiros – déficits orçamentários, irresponsabilidade fiscal – entraram na ordem do dia. Tudo isso soaria familiar aos ouvidos do professor Salazar e ele talvez pensasse que poderia retornar do “assento etéreo” a este mundo, como homem providencial. Nesse caso, alguém precisaria dizer-lhe que os tempos são outros, pois estamos em busca de líderes, aliás muito escassos, e não de homens providenciais.