quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Imagem no judaísmo: aspectos do "aniconismo" identitário

Ivan Esperança Rocha

Professor de História Antiga do departamento de História – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Unesp – 19806-900 – Assis/SP. E-mail:ierocha@uol.com.br

A imagem tem recebido uma crescente atenção no âmbito das ciências sociais e humanas, particularmente no campo da historiografia, o que se depreende de inúmeros eventos e publicações nivelem âmbito nacional e internacional. As imagens, ou fontes visuais, começam a ser tratadas como uma importante evidência histórica, e igualadas em valor à literatura e documentos de arquivos. 1 Em vez de seu valor afetivo e subjetivo que tinha caracterizado a Antiguidade e a Idade Média, buscam-se agora conhecimentos mais sistemáticos e consistentes sobre elas. Demonstra-se que os fatos sociais se refletem em mecanismos visuais. 2

A cerâmica, manuscritos com pinturas, imagens soltas de propaganda política e religiosa, quadros, estátuas, fotografias ou simplesmente material visual ganham uma importância não mais apenas ligada às suas qualidades estéticas mas à sua capacidade de representar os imaginários sociais e de evidenciar as mentalidades coletivas.3"No estudo das sociedades antigas, a iconografia, neste seu significado mais amplo de material visual, assume um papel de destaque, particularmente, quando não se tem a contrapartida da documentação escrita ou quando esta é lacônica", como se verifica na iconografia funerária ou templária do Egito.4

Por outro lado, na cultura judaica, bem próxima do Egito, no espaço e no tempo, o acesso a dados provenientes da iconografia é muito limitado. 5

Os judeus consideraram sua religião e seu código religioso de comportamento um elemento essencial de sua identidade e de sua sobrevivência ante os inúmeros momentos de dispersão em que foi envolvido. Entre as leis do corpo normativo israelita se encontra uma proibição de produzir ou conservar imagens com o intuito de preservar uma idéia de monoteísmo, que iria de certa forma represar a arte israelita durante séculos. A proibição, inicialmente ligada à reprodução de ídolos estrangeiros, acaba se estendendo a outros tipos de representação iconográfica, particularmente ligada à figura humana – considera-se o homem criado à imagem de Deus, que vigorou, com uma certa intensidade, praticamente até as portas da Haskalah, o iluminismo judaico, iniciado em fins do século XVIII.

A normalização da proibição de imagens em Israel encontra-se no livro do Êxodo: "Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima, nos céus, nem embaixo, na terra, nem nas águas debaixo da terra" (20,4). Esta proibição faz parte da legislação religiosa de Moisés e pode ser entendida, dentre outros textos, por meio de Isaías: "A quem havereis de comparar a Deus? Que semelhança podereis produzir dele?" (40,18).

Em um ambiente permeado por cultos idolátricos (Ex 20,5; 34,15, Sl 44,21, 1 Rs 11,8ss, 19,18, Jr 7,18, Is 10,10), os judeus querem se distinguir pela ausência de imagens de Javé. Assim, com raras exceções, com veremos mais adiante, fica proibida a produção de efígies da divindade israelita.6 Isso, no entanto, não vai banir a presença de imagens. Uma das estratégias nesse sentido será a utilizada por Salomão que passa a contratar artistas externos à comunidade israelita para a construção e embelezamento do Templo de Jerusalém, como é o caso de Hiram, um artista de Tiro que tinha grande habilidade no trabalho com bronze (1 Rs 7,13-14). Entende-se, assim, que a proibição não atingia os artistas estrangeiros e dessa maneira se pode justificar a presença de figuras de querubins e leões nos painéis do Templo (1 Rs 7,26).

Uma outra razão da presença de imagens entre os judeus envolvia o casamento dos reis israelitas com estrangeiras que traziam consigo seus cultos e seus deuses. 7 De fato, as descobertas arqueológicas trouxeram à tona uma série de iconografias do período bíblico, como sinetes com figuras de animais, plantas e outros objetos e figuras em argila de nus femininos, estas muito comuns em Jerusalém.

Sinagogas do período próximo à destruição do Templo, em 70 d.C., possuem decorações com figuras geométricas e de plantas; entre os judeus que participaram da revolta de Bar-Kokhba contra os romanos, em 135 d.C., foram encontrados vasos decorados com faces humanas; mas para que se evitasse seu uso como objetos idolátricos os olhos foram apagados.8

No entanto, mesmo com relação à proibição da representação de Javé, existem exceções, como se verifica numa fortaleza, em Kuntillet 'Ajrud, na Península do Sinai, onde foram encontrados graffiti com imagens de Iahweh ao lado de sua Ashera.9

Pode-se dizer que os judeus foram mais tolerantes com imagens que não tivessem relações com o culto. Com o declínio do politeísmo helênico-romano, muitas sinagogas começam a usar motivos da iconografia pagã, adaptando-as às suas necessidades, assim como cenas bíblicas como as da sinagoga de Dura-Europos nas proximidades do rio Eufrates. 10

No século VII, com a conquista do Oriente pelo Islamismo anicônico, os judeus voltam a abandonar as imagens, adaptando-se à nova situação. As constantes dificuldades postas pelo segundo mandamento podem ser vislumbradas no manuscrito judaico ilustrado, chamado Haggadah da Cabeça de Ave. O texto narra a história do êxodo do Egito, onde todas as figuras humanas são representadas por cabeças de pássaros para evitar a proibição icônica.

A discussão sobre a questão da imagem do Antigo Testamento é retomada no Talmude, uma compilação e adaptação de leis e tradições judaicas, realizadas entre 200 a.C. e 500 d.C., que consistem em 63 tratados de assuntos legais, éticos e históricos. O judaísmo ortodoxo baseia suas leis no texto do Talmude. Tem entre seus tratados um específico sobre imagens e ídolos, o 'Abodah Zarah.

De um lado, este tratado expressa uma rígida oposição aos ídolos, proibindo não apenas sua fabricação, mas até mesmo olhar e pensar neles (Tosefta, Shabbath 17,1 et passim; Berakhot 12b). Os ídolos não deviam ser apenas quebrados, mas jogados no Mar Morto para que não pudessem ser mais vistos ('Abodah Zarah 3,3). A madeira de uma asherah não podia ser usada nem para aquecer-se (Pesahim, 25a). Para evitar qualquer contato com os idólatras, os judeus não podiam relacionar-se comercialmente com eles pelo menos três dias antes de suas festas cultuais ('Abodah Zarah 1,1). Ficava proibido caminhar sobre uma rua pavimentada com pedras que tinham sido utilizadas para construir o pedestal de um ídolo ('Abodah Zarah 50a). Aos sábados era proibido até mesmo ler o que estava escrito sob uma pintura ou estátua ('Abodah Zarah 149).

Por outro lado, encontramos no Talmude posições mais abertas com relação às imagens. Não se proíbe qualquer imagem, mas apenas aquelas que tenham um cunho cultual. Estátuas de reis, em um ambiente em que não são consideradas objeto de culto, não são proibidas ('Abodah Zarah 40a). Imagens para ornamentação são permitidas. Qualquer figura dos planetas é permitida, com exceção do sol e da lua (quase sempre representados com cunho cultual) ('Abodah Zarah 43b). Uma asherah é uma árvore sob a qual se pratica um culto e, portanto, proibida. Se, no entanto, existir um altar de pedras sob ela, a árvore pode ser utilizada livremente ('Abodah Zarah 48a).

A ambigüidade do tratamento dado às imagens começa a declinar com a Haskalah, um movimento entre judeus europeus do séc. XVIII, conhecido como o iluminismo judaico, calcado nos valores iluministas, que buscou promover maior integração com a sociedade européia, ampliando o espaço da educação secular e definindo os rumos de um movimento político pela emancipação judaica. 11

O movimento encontrou inicialmente oposição entre os judeus ortodoxos por julgarem que a Haskalah contrariava os princípios do judaísmo tradicional, mas não deixou de ter adeptos entre eles. Uma das idéias contrapostas pela Haskalah é a do messianismo, como a espera de um gesto miraculoso em favor dos judeus; o exílio judaico também deixa de ser interpretado como uma vontade divina, mas como resultado de fatores históricos. 12 Outra influência foi nas artes, com uma ampla revisão de proibições tradicionais, particularmente no que se refere à proibição de imagens.

Como reflexo desse movimento, nos séculos XIX e XX vimos o surgimento de grandes artistas judeus como Marc Chagall (1887-1985) com seus esplêndidos vitrais das doze tribos judaicas conservados na Sinagoga do Hospital Hadassa de Jerusalém, e Lasar Segall, um judeu lituano radicado no Brasil que transformou sua casa em museu com um acervo em torno de 2.500 obras.

Deve-se dizer, no entanto, que a Haskalah, do ponto de vista artístico, foi precedida pela ação de judeus, que apesar de não se envolverem com a pintura já tinham se dedicado a outros tipos de expressões artísticas, como a joalheria, cunhagem de moedas e medalhas, ourivesaria, gravação em madeira, cerâmica, caligrafia e ilustração de manuscritos hebraicos, dentre outras. 13

Numa exposição realizada no Museu Judaico de Nova York, de 18 de novembro de 2001 a 17 de março de 2003, foi apresentada e discutida a arte desenvolvida durante o processo de aculturação judaica no século XIX, sendo apresentada como uma das conseqüências da Haskalah.

Por fim, os judeus, ao se perguntarem se suas antigas leis ainda têm algum valor na atualidade, particularmente, se a proibição de imagens como objeto de culto ainda tem algum valor para a sociedade moderna, encontram uma resposta nas palavras de uma exegeta judia, Nechama Leibowitz (1905-1997), para quem o segundo mandamento ainda continua válido, dado que objetos e bens de materiais, ou a própria ciência, são guindados a uma posição de culto no mundo moderno. 14

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NOTAS

1 BURKE, Peter. O testemunho das imagens. In: ________. Testemunho ocular. História e imagem. Bauru: Edusc, 2004. p.15. [ Links ]
2 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira História, v.23, n.45, 2003, p. 11ss. [ Links ]
3 CHARTIER, R. Imagens. In: BURGUIÈRE, A. Dicionário das Ciências Históricas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1993. p.406-7. [ Links ]
4 ROCHA, Ivan Esperança. Práticas e representações judaico-cristãs. Assis: FCL – Assis – Unesp Publicações, 2004. p.29. [ Links ]
5 LIVERANI, Mario. Antico Oriente. Storia, Società, Economia. Bari: Laterza, 2005. p.688-689. [ Links ]
6 VON RAD, G. Eikôn. In: KITTEL, G. (ed.). Grande Lessico del Nuovo Testamento. Brescia: Paideia, 1967. v. 3, col. 143. [ Links ]
7 EHRLICH, Car. Make yourself no graven image: The Second Commandment and Judaism. In: _____ et al. Thirty Years of Judaic Studies at the University of Massachusetts Amherst. Massachusetts: University of Massachusetts Amherst, 2004. p.254-271. [ Links ]
8 YADIN, Yigael Yadin. Bar-Kokhba: The Rediscovery of the Legendary Hero of the Last Jewish Revolt against Imperial Rome (London: Weidenfeld and Nicolson, 1971), p. 86-111, apud EHRLICH, Car. Make yourself no graven image: The Second Commandment and Judaism. In: __________ et al. Thirty Years of Judaic Studies at the University of Massachusetts Amherst. Massachusetts: University of Massachusetts Amherst, 2004. p.261. [ Links ]
9 DEVER, William G. Asherah, consort of Yahweh? New evidence from Kuntillet Ajrud. Bulletin of the American Schools of Oriental Research, n. 255, 1984, p.21ss. [ Links ]
10 KRAELING, Carl H. The Synagogue. (The Excavations at Dura-Europos Final Report 8/1. New Haven: Yale University, 1956). Citado por EHRLICH, Car. Make yourself no graven image: The Second Commandment and Judaism. In: _____ et al. Thirty Years of Judaic Studies at the University of Massachusetts Amherst.Massachusetts: University of Massachusetts Amherst, 2004. p.262ss. [ Links ]
11 ROSENTHAL, Herman Peter. Haskalah. In: WIERNIK, Singer, Isidore; Alder, Cyrus (eds.) et al (1901-1906). The Jewish Encyclopedia. New York: Funk and Wagnalls, v.8, 1901-1906, p.256-258. [ Links ]
12 SHOENBERG, Shira. The haskalah. Disponível em: http://www.jewishvirtuallibrary.org. Acesso em 10 de setembro de 2006. [ Links ]
13 PASTERNAK, Velvel. Music and art. Disponível em: http://www.judaism.com/12paths/music&art.htm. Acesso em 06 de setembro de 2006. [ Links ]
14 GROSSBARD, Sylvie. Shemot–Yitro. Disponível em: http://www.usy.org/yourusy/reled/dt/readdvar.asp?dvar=161. Acesso em 03 nov. 2006. [ Links ]

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Feliz Ano Novo - Rio de Janeiro









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Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.
Fernando Pessoa

Eduardo
M
arculino

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A fracassada fuga de Napoleão para o Brasil


A fracassada fuga de Napoleão para o Brasil
Por: Leonardo Dantas Silva*

Napoleão Bonaparte (1769-1821), general e estadista, imperador dos franceses, por pouco não se tornou um dos destaques da História do Brasil, com repercussões na América Espanhola e nos Estados Unidos, caso tivesse sucesso o seu plano de fuga da ilha de Santa Helena, onde se encontrava prisioneiro dos ingleses, para Pernambuco por ocasião da proclamação da Revolução Republicana de 1817.
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Na época, era propósito da maçonaria internacional e de um grupo abastado de refugiados franceses, libertar Napoleão da ilha de Santa Helena e conduzi-lo ao Recife, no caso viesse a se confirmar o sucesso da República de Pernambuco, proclamada em 6 de março de 1817.A ser confirmada esta última hipótese, que imagens seriam geradas para a história, com a figura carismática do Corso levando a chama republicana às plagas da América do Sul?
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No ano de 1817 transpirava-se em Pernambuco um notório descontentamento com a sua situação de uma capitania tão rica reduzida à condição de colônia de Portugal, o que fez ressurgir sentimentos separatistas acalentados desde a expulsão do governo holandês em 1654.

Jovens bacharéis egressos de Coimbra e de outras universidades européias, padres e seminaristas do Seminário de Olinda, discutiam ardorosamente nos cenáculos das cinco lojas maçônicas e nos púlpitos das igrejas, o ideário liberal proclamado pela Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e pelos princípios da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776).

Em 6 de março de 1817 um movimento armado contra o governo português tomou conta das ruas do Recife, com o apoio do clero, das classes militares e do comércio, visando transformar Pernambuco e as demais províncias, que hoje integram o Nordeste brasileiro, numa República independente de Portugal. Para isso fora enviado preso para o Rio de Janeiro o governador português, Caetano Pinto de Miranda Montenegro; promulgado um projeto de Constituição – que tinha por princípios básicos a interdependência dos três poderes, as liberdades de crença e opinião e as garantias individuais –; criada uma nova bandeira e outros símbolos da pátria; constituído um conselho de notáveis e eleitos os representantes das classes governantes.

Para a manutenção da nova república, movimentaram-se as lojas maçônicas no sentido de conseguir apoio e recursos junto às suas congêneres de Londres e, em particular, dos Estados Unidos. Para tal missão foi enviado como embaixador da nova República o comerciante Antônio Gonçalves da Cruz, conhecido pelo apelido de Cabugá. Levando em sua bagagem o desenho aquarelado da Bandeira Republicana, o texto do projeto de constituição, a Lei Orgânica, e “uma carta para o irmão presidente”, Cabugá iniciou sua delicada missão pelos Estados Unidos da América. Muito embora sem conseguir o prometido encontro com o presidente Madison, vem ele ser recebido em audiência particular pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, para o qual relatou os propósitos e necessidades da mais nova república sul-americana.

Não foi feliz o Cabugá nos seus primeiros contatos, mas, não se sabendo o porquê, talvez até pelo seu relacionamento com a maçonaria internacional, ele vem despertar simpatias entre os maçons norte-americanos e um grupo de emigrados franceses, simpatizantes da causa bonapartista. Com tal apoio, conseguiu os recursos necessários a contratação de embarcações e marinheiros, para o transporte de armas e munições para a nova república. O movimento contou também com as simpatias de José Bonaparte, que viu nos novos acontecimentos a possibilidade de por em execução o plano de fuga de seu irmão, Napoleão Bonaparte, então prisioneiro dos ingleses em Longwood, capital de Santa Helena, uma ilha do Atlântico Sul, situada a 1.850 km da costa ocidental da África.

Para Alfredo de Carvalho, que disserta sobre o episódio em seu livro, Aventuras e Aventureiros no Brasil (Rio de Janeiro: Pongetti & Cia., 1929), firmara-se assim entre o embaixador da nova República de Pernambuco, Antônio Gonçalves da Cruz, e os emigrados franceses “uma espécie de contrato de auxílios mútuos: os bonapartistas deveriam ajudar os revolucionários na luta pela independência e, conseguida esta, os republicanos prestariam seu apoio à tentativa de evasão de Napoleão da prisão onde se encontrava, na ilha de Santa Helena”.

Para isso contavam os bonapartistas com as simpatias de dez mil “emigrados franceses sempre prontos a sacrificarem-se pelo seu imperador”. Para as despesas com a formação de uma frota de guerra, devidamente armada e bem municiada, bem como a contratação de soldados e marinheiros necessários, dispunham eles de quantia superior a 1 milhão de dólares.

NAPOLEÃO EM PERNAMBUCO

Com a conciliação de propósitos, inicia-se assim a execução do plano de fuga de Napoleão Bonaparte, tendo como base de operações a nova República de Pernambuco.

Primeiramente, atendendo pedido de Cabugá, o governo dos Estados Unidos nomeia como cônsul daquela república no Recife o diplomata M. Joseph Ray, notório simpatizante da causa dos bonapartistas, que deveria dar acolhida a todos os envolvidos que viesse aportar nas costas de Pernambuco.

Sem qualquer notícia recente dos acontecimentos envolvendo os simpatizantes da República Pernambucana, bem como da reação tirânica da coroa portuguesa contra os insurretos, partiu da Filadélfia o navio americano Parangon em direção às costas do Rio Grande do Norte, o qual veio aportar em baía Formosa, a 50 quilômetros de Natal, em 29 de agosto de 1817, transportando um carregamento de breu. Depois de despachar sua carga e se abastecer de víveres, o barco seguiu viagem com destino à Paraíba, não sem antes deixar em terra quatro franceses.

O pequeno grupo era chefiado pelo coronel Paul-Albert-Marie de Latapie, militante da infantaria dos exércitos napoleônicos, que gravemente ferido na batalha de Waterloo (1815), ocorrida a 15 km. de Bruxelas, fora buscar refúgio nos Estados Unidos. O experiente militar se fazia acompanhar dos também oficiais bonapartistas Artong e Roulet, apresentando-se como quarto personagem, um jovem cientista, Louis Adolpho Le Doulcet (1794-1882), que vem alcançar destaque nos estudos da Botânica e na produção musical. Seu nome é registrado pela Enciclopédia Larousse (que trata de sua aventura no Brasil), que informa ser ele filho do Conde de Pontécoulant (1769-1840), senador do Império francês ao tempo de Napoleão I.

Este último, que também era dado ao exercício da medicina, logo fez amizade com José Ignácio Borges, secretário do governador do Rio Grande do Norte, que facilitou para todo grupo os passaportes necessários para viagens por todo território brasileiro.

De posse dos papéis os aventureiros rumaram para o Recife, onde os aguardava o cônsul dos Estados Unidos M. Joseph Hay, que lhe fora indicado por Cabugá. O cônsul tinha como secretário o dinamarquês Georges Fleming Holdt, que havia servido na marinha de Napoleão, e que mais tarde vem a ser preso pelo governo, ocasião em que confessa a existência do plano de fuga do imperador da Ilha de Santa Helena.

Só ao chegar ao Brasil é que os franceses se dão conta do fracasso da Revolução Republicana de Pernambuco, cujos principais líderes se encontravam presos no Recife e Salvador, já tendo alguns deles dado suas vidas à causa da liberdade.

No Recife foram os franceses Latapie, Artong, Roulet e Louis Le Doulcet recolhidos ao forte do Brum, por ordem do capitão-general Luiz do Rego Barreto, responsável pela repressão da coroa portuguesa ao movimento republicano de seis de março de 1817.

Por interveniência do cônsul M. Joseph Hay foram eles libertados, não sem antes confessar que “estavam na Filadélfia quando tomaram conhecimento das notícias da revolução de Pernambuco”. Tal acontecimento fez com que José Bonaparte desse continuidade a um ardiloso plano visando resgatar o seu irmão, Napoleão, de sua prisão na ilha de Santa Helena.

Louis Adolfo regressa ao Rio Grande do Norte, enquanto os três outros ficaram no Recife, na casa do cônsul dos Estados Unidos. Logo depois Latapie e Artong seguem viagem para o Rio de Janeiro na tentativa de avistar-se com outros bonapartistas, inclusive com o general Theodoro van Hogendorp (1761-1822), militar holandês que depois de galgar os mais altos cargos no exército de Napoleão vivia anonimamente numa chácara, na Estrada da Tijuca, aonde por vezes recebera a visita do príncipe D. Pedro.

Nesse ínterim chega às costas da Paraíba, na baía da Traição, um barco com oito marinheiros do navio Pingüim, que presos e levados ao Recife, vieram confessar estar a serviço de Cabugá que fretara aquele navio nos Estados Unidos e o mandara para Pernambuco, carregado de armas e munições para uso dos revoltosos. Diante dos novos fatos, o Pingüim seguiu viagem rumo à Bahia, deixando oito tripulantes na praia; o fato vem a ser comunicado pelo governador da Paraíba, Bernardo Teixeira, ao ministro Villa Nova Portugal, em data de 1º de março de 1818.

No Recife foi de pronto requerida à prisão de Roulet e de três outros franceses que se encontravam na casa do cônsul. Feita a busca no local foram presos o secretário do consulado Georges Fleming Holdt, Roulet e três outros suspeitos, além do livro de correspondência oficial. Na prisão o dinamarquês Holdt veio confessar mais detalhes do plano traçado para a fuga de Napoleão, que lhe fora descrito em minúcias pelo coronel Latapie, quando de jantar na casa do cônsul norte-americano.

Do plano ali narrado já tinha conhecimento o próprio Napoleão, que autenticara com a sua assinatura às cartas geográficas enviadas sob sigilo de Santa Helena para José Bonaparte, nos Estados Unidos, confirmando a existência da quantia de mais de 1 milhão de dólares para fazer face às despesas com a pequena frota.

Depois de alguns meses na prisão, onde eram visitados constantemente pelo cônsul americano, afirmando Alfredo de Carvalho que “a sua enérgica conduta pesou nas determinações do governo de Pernambuco e do Rio e precipitou o desfecho do processo”.

Para o diplomata M. Joseph Hay, as autoridades portuguesas estavam cientes que “nem Roulet, nem Latapie, nem Louis Adolfo, nem Artong, tinham vindo ao Brasil com intuito de fazer agitação e de pregação em favor da proclamação de uma república”, mas tão somente sondar o ambiente a fim de estudar a possibilidade de por em prática o plano de fuga de seu imperador, então prisioneiro dos ingleses na ilha de Santa Helena.

Acatando tal argumentação o Tribunal de Alçada de Pernambuco, julgando-se incompetente em razão dos fatos alegados, enviou os franceses para o Rio de Janeiro de onde foram, no mais curto espaço de tempo, embarcados para Portugal, que logo os expulsou do seu território através da fronteira com Espanha.

O plano de fuga de Napoleão, orquestrado por José Bonaparte, porém, só muito depois vem a ser conhecido com detalhes, quando em 1853 vem a ser publicada, em Londres, a correspondência diplomática, trocada Charles Bagot, de Washington, com o Lord Castlereagh. Segundo Alfredo de Carvalho, que faz referência à documentação no seu livro Aventuras e Aventureiros no Brasil (1929), em relatório datado de 29 de julho de 1817, ficara escolhido como ponto de encontro da expedição “a ilha de Fernando de Noronha, situada a 62 léguas da costa do Brasil”, para onde iriam os barcos de guerra especialmente fretados para aquela operação, destacando o documento: “Ali devem reunir-se oficiais franceses de Bonaparte, em número de aproximadamente oitenta, setecentos oficiais americanos, duas escunas e um navio armado pelo Lord Cochrane, tendo a bordo oitocentos marinheiros e duzentos oficiais”.

Terminava assim o malogrado plano daqueles aventureiros de resgatar Napoleão Bonaparte de sua prisão na pequenina ilha rochosa de Santa Helena e transformá-lo no grande comandante dos exércitos republicanos da América do Sul.

Findaram-se assim, sem maiores conseqüências, os sonhos daqueles bonapartistas que, como os nossos patriotas, também acreditaram no arrebol da República de Pernambuco de 1817.

A República de 1817
e sua repercussão no noticiário da imprensa internacional


Ainda está por se escrever sobre as repercussões em outros continentes da Revolução Republicana em 1817 em Pernambuco, particularmente na Europa e nos Estados Unidos. Muito embora o diplomata Gonçalo Mello Mourão já tenha estudado às implicações do movimento em vários países, quando da publicação do seu livro, A Revolução de 1817 e a História do Brasil (Ed. Itatiaia, 1996) [1], fatos menores, porém, estão a despertar a curiosidade dos que se interessam pela importância de nossa primeira república.

A chamada República de Pernambuco, pela segunda vez Restaurado, alusão ao episódio da primeira Restauração Pernambucana (1654), teve curta duração, pouco mais de 45 dias, mas os seus efeitos repercutiram em várias partes do mundo. Ao contrário da ótica da maioria dos estudiosos do período, o movimento republicano de 6 de março de 1817 “criou o Brasil a nível internacional como entidade independente e com ela começa a História Diplomática do Brasil. [...] É com a Revolução de 1817 e sua repercussão, nacional e internacional, que o Brasil e sua história diplomática própria nascem, entendidos aí tanto os fatos que ele próprio criou com a configuração de sua imagem externa” (Mourão, p. 48/1996).

Apesar de acontecer numa época de difíceis meios de comunicação, a Revolução Republicana de 1817, em Pernambuco, alcançou repercussão invulgar na correspondência diplomática da época, hoje conservada em arquivos de Lisboa, Londres, Paris, Madri, Viena, São Petersburgo e Washington. Os acontecimentos do Recife ganharam às páginas dos jornais londrinos de língua portuguesa – Português, Investigador Português e Correio Brasiliense –, tendo o Time (Londres) lhe dedicado o editorial de sua edição de 27 de maio de 1817, cujo noticiário transcrevia a correspondência trazida pelo navio Tigris, abrindo a sua edição com a manchete de primeira página: General Insurretion in the Brasilis (Insurreição Geral no Brasil).

De 27 de maio a 16 de junho daquele ano, o Time mantém os seus leitores informados acerca da República de Pernambuco, estendendo-se o noticiário até 1º de agosto, quando narra os acontecimentos de sua derrocada. Nesse período nada menos de 21 editoriais foram dedicados à Revolução de 1817, sendo o seu noticiário transcrito em 58 edições daquele jornal londrino.

Nos Estados Unidos, a chegada do enviado dos revolucionários pernambucanos, Antônio Gonçalves da Cruz, o Cabugá, aparece na imprensa de Boston, tendo sua fracassada missão se estendido por dois meses.

*Leonardo Dantas Silva é jornalista e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil
1] MELLO-MOURÃO, Gonçalo de B.C. e. A Revolução de 1817 e a História do Brasil – Um estudo de história diplomática,. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,1996.
revista algomais

IRMANDADE DA BOA MORTE

Fotos de Lamberto Scipioni
Confraria secreta:
Passados quase 200 anos de sua criação, a Irmandade da Boa Morte ainda se mantém ativa e fechada – somente participam dela as descendentes de escravas com mais de 40 anos.


Mulheres negras fundaram o primeiro movimento feminista no Brasil

Fabíola Musarra

De todos os tesouros que preserva espalhados em suas ruas, a pequena cidade baiana de Cachoeira é detentora de uma das manifestações culturais mais ricas do País: a festa de Nossa Senhora da Boa Morte. Realizada no fim de semana mais próximo a 15 de agosto, a iniciativa – mais do que uma simples comemoração – é um convite para ingressar num mundo onde cultura, tradição, história e magia convivem e se confundem.

Situada na região do Recôncavo Baiano, a 109 quilômetros de Salvador, a cidade “nasceu” de um engenho de açúcar, no século 16. Devido à fertilidade de seu solo e ao intenso comércio, foi um dos principais pólos econômicos da Bahia até o século 19. De seu apogeu, Cachoeira ainda conserva algumas tradições. A festa de Nossa Senhora da Boa Morte é uma delas.

Tributo a Maria:
Desde 1820, as irmãs se mantêm fiéis na devoção a Nossa Senhora. Anualmente, realizam a festa de Cachoeira, cumprindo uma promessa feita por suas ancestrais nos tempos da escravidão.

Participar dessa cerimônia é mergulhar no passado e reviver os tempos do Brasil colonial, do Império e do País independente mas ainda escravocrata. É percorrer uma paisagem onde a energia de escravos mortos ou torturados ainda ecoam. É desvendar a-quele que talvez seja o primeiro movimento feminista negro do País: a Irmandade da Boa Morte, uma organização de mulheres negras que à sua moda resistiu e se rebelou contra os sofrimentos impostos pelo regime escravagista, desde a jornada diária de trabalho de 18 horas nas lavouras aos castigos e mutilações, como o corte dos tendões das fujonas, os açoites em público, os grilhões e brasas em seus rostos, a extração e quebra de dentes a frio e o corte de orelhas e da língua daquelas consideradas mais afoitas. Sem falar dos abusos sexuais.

Não é à toa que esse período de mais de 350 anos é um dos capítulos mais sombrios da história das Américas. Mas foi nesse cenário que surgiu a Irmandade da Boa Morte, que é quem até hoje organiza a festa em Cachoeira. Fundada em 1820, essa sociedade de mulheres negras e mestiças, escravas e libertas, tinha duas metas principais: comprar a carta de alforria para a libertação de maridos, filhos e outros escravos, e preservar os rituais das religiões africanas até então terminantemente proibidos, como o culto dos orixás. Posteriormente, foi essa organização que fundou a primeira casa de candomblé keto no Brasil.

Respeito a Oxalá:
Após ritual secreto, as irmãs oferecem uma ceia à comunidade. Nela, o dendê e a carne são expressamente proibidos, num gesto de respeito a Oxalá, que não ”aprecia” esses alimentos.

Passados quase dois séculos de sua criação, a Irmandade da Boa Morte ainda é uma confraria católica de mulheres negras e mestiças que representam a ancestralidade dos povos africanos escravizados e libertos no Recôncavo Baiano. A sociedade ainda se mantém ativa e é fechada – somente podem ingressar nela as descendentes de escravas com mais de 40 anos.

Atualmente, a Irmandade é integrada por cerca de 30 senhoras – houve um tempo em que esse número chegou a 200. Embora neguem, são elas que continuam realizando secretamente os mesmos rituais aos deuses africanos dos tempos da escravidão, incluindo aqueles feitos durante a festa da Nossa Senhora da Boa Morte.

Quitutes nas ruas em troca da liberdade
Como outras devoções marianas, o culto a Nossa Senhora da Boa Morte é um exemplo da inestimável herança deixada por índios, portugueses e negros. Ele foi trazido para o Brasil pelos jesuítas portugueses. Chegou primeiro em igrejas e conventos de Salvador, que realizavam a procissão do enterro de Maria ou procissão de Nossa Senhora de Boa Morte.

Mais tarde, essa devoção foi levada para Cachoeira, onde a festa é atualmente uma das mais famosas do País, ganhando inclusive daquelas organizadas na capital baiana e no Rio de Janeiro em honra a essa mesma santa.

Sinal de luto:
Na procissão do corpo de Nossa Senhora, realizada na sexta-feira, todas as mulheres da confraria vestem-se de branco, cor que simboliza o luto para o povo santo.

Para preservar sua identidade cultural e fugir das terríveis punições impostas pela Igreja católica da época, as primeiras irmãs – as mães, mulheres e irmãs de escravos fugidos – começaram as cerimônias e rituais pedindo a intercessão de Nossa Senhora da Boa Morte. “Elas vendiam quitutes nas ruas para comprar a carta de alforria de outros escravos. Pediam, então, a ajuda de Nossa Senhora para libertar os escravos e conseguir voltar à África de-pois da morte”, conta uma das senhoras da Irmandade. “E nós continuamos a cumprir a promessa feita pelas nossas ancestrais, de sempre agradecer a Nossa Senhora pela ajuda obtida.”

Em Cachoeira, a festa de Nossa Senhora é realizada desde o início do movimento abolicionista. Durante 68 anos, entre a organização da Irmandade (1820) até a decretação da Lei Áurea (1888), as irmãs faziam um ritual secreto e sem as cerimônias católicas. Apenas rezavam suas novenas e faziam o samba-de-roda (uma dança em que os participantes fazem uma roda e batem palmas). Depois disso, é que se celebrava a missa católica.

Ainda hoje a cerimônia preserva seus traços característicos, marcados pela memória do sofrimento dos escravos para alcançar a liberdade. Segundo os pesquisadores, é exatamente este o significado da celebração – o agradecimento a Nossa Senhora pela liberdade conseguida com muito sacrifício, com a realização de várias cerimônias, culminando com a assunção da mãe de Jesus.

Em linhas gerais, a programação da festa de Nossa Senhora de Boa Morte inclui a confissão na Igreja Matriz, um cortejo representando a morte de Nossa Senhora, uma vigília, ceia e uma procissão do enterro da santa. Depois, é celebrada a ascensão de Nossa Senhora, seguida de procissão e de uma missa na Igreja Matriz da cidade.

Embora a mãe de Jesus seja cultuada o ano inteiro, o ápice dessa devoção da Irmandade tem uma data marcada: acontece com a celebração da ascensão da santa. No calendário de duração da festa de Nossa Senhora da Boa Morte, sexta-feira e sábado são os dias dedicados aos cultos sagrados e secretos. Em cerimônia privativa, as irmãs rezam para Nossa Senhora enquanto queimam-se incensos na pequena casa ao lado da Capela da Ajuda, local onde uma imagem de 300 anos de Maria morta é arrumada e velada.

O sagrado dá passagem ao profano
Depois, é feita a saída em procissão do corpo de Nossa Senhora. Durante o cortejo, a imagem tricentenária da santa é carregada pelas irmãs que integram a comissão da festa no ano. Durante toda a procissão, elas são auxiliadas e se revezam no translado do corpo.

Todas vestem-se de branco, têm contas e brincos brancos ou prateados, usam torço muçulmano também branco e carregam tochas com velas acesas. O traje branco é sinal de luto para o povo de santo. A missa de corpo presente é feita em memória das irmãs falecidas. As irmãs retornam com o caixão à sede da sociedade. Velam Nossa Senhora e fazem rituais secretos.

Depois deles, oferecem uma ceia branca (peixes, pães, arroz e vinho) à comunidade. Como no candomblé a sexta-feira é um dia dedicado a Oxalá e como esse orixá “não aprecia” dendê e carne, esses ingredientes são proibidos nessa refeição.

Há quem diga que a ceia branca é preparada para as irmãs falecidas. Assim sendo, é alimento para egum (espírito de uma pessoa que já morreu) e só pode ser comido na sede da Boa Morte. “Há alguns anos, uma pessoa tentou levar comida embora e tomou um soco de um egum, derrubando tudo no chão. Isso foi um sinal de que os alimentos não deveriam ser comidos fora da nossa sede”, recorda uma das integrantes da confraria.

No sábado, na missa e na procissão simbolizando a morte de Nossa Senhora, as irmãs usam seus trajes de gala, as chamadas becas. A cabeça é coberta por um lenço branco denominado bioco. Sobre a camisa branca trazem um pano- da-costa de veludo preto.

Na cintura amarram um lenço branco sobre a saia preta plissada e calçam chagrins (uma espécie de chinelo) brancos.

Domingo é o dia que se comemora a ascensão de Nossa Senhora ao céu. Para celebrar, as irmãs da confraria oferecem uma feijoada à população. Aí sim, começa a festa profana, bem do jeito que o baiano gosta. Ela dá direito a muita comida, bebida e a samba-de-roda. Como toda a festa que se preza na Bahia, a alegria começa com data e hora marcadas... mas só termina quando o fôlego acabar.

Cachoeira, monumento nacional

Considerada monumento nacional e tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico em 1971, Cachoeira é a segunda cidade baiana (a primeira é Salvador) que reúne o mais importante acervo arquitetônico no estilo barroco. Suas casas coloniais, igrejas e prédios históricos preservam a imagem do Brasil Colônia, Império e República, quando por três séculos (do 17 ao 19) o comércio e a agricultura colocaram o vilarejo no ranking de um dos mais prósperos do País. Desde 2002, parte desse passado vem sendo resgatado pelo programa Monumenta, do Ministério da Cultura, e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

O primeiro passo desse projeto foi a restauração da pequena Capela da Ajuda, uma construção com características medievais e missionárias. A capela foi edificada nos arredores do engenho de cana-de-açúcar, em volta da qual se formou a povoação. Em 1693, o povoado passou a se chamar Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira. Erguida entre 1595 e 1606 por Paulo Dias Adorno – fidalgo português fundador do povoado que originou Cachoeira –, a Capela da Ajuda foi ainda primeira sede da Irmandade da Boa Morte.

Também já foram restauradas a casa onde nasceu a enfermeira Ana Nery, que cuidou dos feridos na Guerra do Paraguai; a cadeia e a Casa de Câmara. Construído entre 1698 e 1712, esse imóvel foi sede do governo da Bahia em dois períodos: em 1822, abrigou a junta governativa nas lutas pela independência da Bahia e entre 1837 e 1838, por ocasião da Revolução da Sabinada.

Ao todo o Monumenta prevê a restauração de 327 imóveis em Cachoeira. Entre eles, a Igreja da Matriz (construída entre 1693 e 1754, abriga os maiores painéis de azulejos portugueses com cenários bíblicos da América Latina) e o conjunto do Carmo, de 1702 (integrado pela Igreja de Nossa Senhora do Rosário e Casa de Oração da Ordem Terceira, reúne trabalhos em talha dourada e imagens com influências orientais), além da Santa Casa de Misericórdia e do antigo fórum.

O que fazer na cidade

Primeiro freguesia, depois vila, com mais de 300 anos de fundação e elevada à condição de cidade há 166 anos, Cachoeira, ao lado de São Francisco do Conde e Jaguaribe, é uma das três mais antigas cidades baianas. Com toda essa idade e história, Cachoeira abriga, naturalmente, um deslumbrante casario colonial. Todo esse conjunto de sobrados, praças, ruas, becos e ladeiras merece ser conhecido.

Outro ponto turístico de destaque é a Fundação Hansen Bahia. Ela reúne aproximadamente 13 mil peças, entre xilogravuras e matrizes, cópias assinadas e não assinadas do gravador alemão Karl Heinz Hansen, naturalizado brasileiro com o nome de Hansen Bahia.

O prédio da fundação é do século 17 e serviu de hospedagem para o imperador Dom Pedro II, em 1858, e para a princesa Isabel e o Conde d´Eu, em 1885, na inauguração da ponte Dom Pedro II (1822-1885), erguida em estrutura metálica importada da Inglaterra. A ponte interliga Cachoeira e São Félix, cruzando o Rio Paraguaçu. É, por si só, outra atração imperdível da cidade.

REVISTA PLANETA
EDIÇÃO 395

MONTE SAINT-MICHEL

O rochedo do arcanjo

No litoral norte da França, entre a Normandia e a Bretanha, um monte desafia os ventos e as tempestades e, quando a maré sobe e o cerca, ele se torna uma ilha. No seu topo, antes do ano 1.000, surgiu um templo dedicado ao Arcanjo Miguel. Meta de peregrinos religiosos, durante séculos esse monte é hoje o mais impressionante mosteiro do Ocidente e um dos mais procurados destinos do turismo mundial. Mas isso não destruiu o encanto mágico que o lugar desperta. Em 1979, a Unesco inseriu o Monte Saint-Michel no rol do Patrimônio Cultural da Humanidade

Lamberto Scipioni

Leia também:
• O coração da abadia
• As últimas testemunhas de Saint-Michel
• Mais informações e visitas virtuais
• Notícias da Unesco



Por Luis Pellegrini
Fotos: Lamberto Scipioni

Desde os tempos pagãos mais remotos, a ilhota montanhosa onde hoje se eleva o mosteiro de Saint-Michel, bem como toda a região que a circunda, era considerada território sagrado pelos antigos celtas. Inúmeros menires e dolmens de pedra de grandes dimensões até hoje podem ser vistos, fincados no solo daquelas terras. Ao redor do século 8, o cristianismo se instalou no topo do monte, com a construção de uma primeira cripta, feita de blocos de granito superpostos. Desde então, a história do Monte Saint-Michel tem sido uma sucessão de períodos de grande brilho intelectual e religioso, de crises internas, de guerras, de demolições e reconstruções do imenso complexo de edifícios que constituem a abadia e o mosteiro.

Lamberto Scipioni

Uma longa passarela: A aldeia medieval existente na base do Monte Saint-Michel é um primor da arquitetura medieval do norte da França. Ao redor de boa parte da ilha existe uma muralha encimada por uma longa passarela da qual o visitante descortina extraordinários panoramas da baía. As ruas da aldeia são estreitas, cheias de lojas de suvenires para os turistas, restaurantes e hotéis das mais diferentes categorias.
Na Idade Média, o Monte Saint-Michel era uma das metas de peregrinação mais procuradas pelos católicos

Naquele período da Idade Média, o culto a São Miguel começava a se propagar em toda a Europa. Acreditava-se que os lugares mais altos, como o cimo das montanhas, lhe pertenciam. Sob a inspiração de Saint-Aubert, bispo de Abranches, 12 monges se instalaram na cripta: salmos, devoções coletivas e mortificações marcavam o seu cotidiano. Foi o que bastou para que um mundo de lendas e histórias milagrosas – algumas falsas, outras verdadeiras – se formasse ao redor do Monte Saint-Michel. Muitas foram transformadas em crônicas e relatos pelos próprios monges.

Os beneditinos assumiriam o lugar

em 966. A área do mosteiro aumentou consideravelmente, graças às contribuições financeiras de grãos-senhores da Normandia, da Bretanha, da Itália e da Inglaterra. Além das atividades devocionais, os monges passaram também a estudar, copiar e “iluminar” manuscritos, transformando-os em preciosas obras de arte: as iluminuras. Diferente do que aconteceu depois, quando a Igreja passou a proibir a abordagem de uma série de temas, naqueles tempos medievais os religiosos podiam estudar e se interessar por quase tudo: literatura, história, ciência, filosofia. Em Saint-Michel foram copiados, por exemplo, os famosos tratados de Aristóteles.

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Perfeição arquitetônica: À esquerda, o salão principal do refeitório do mosteiro. Nele, antes de depois das refeições, eram realizadas sessões de leitura de textos sagrados. O conjunto do refeitório, abadia e claustro ficaram conhecidos pela alcunha de “A Maravilha”, pela sua perfeição arquitetônica. À direita, o menir pré-histórico de Dol, nas proximidades do Monte Saint-Michel. Na Antiguidade, toda a região era considerada solo sagrado para os celtas

Como em todos os outros grandes sítios do catolicismo, a arquitetura grandiosa tinha a finalidade de agradar a Deus, aos sacerdotes e aos peregrinos. Desde o início, o santuário de Saint-Michel atraiu centenas de milhares de devotos. Com suas ofertas, eles contribuíram para a prosperidade do vilarejo e da comunidade monástica. Até o final do século 18, o Monte Saint-Michel fez parte de uma poderosa cadeia de metas maiores de peregrinação, em pé de igualdade com Roma, Jerusalém e Santiago de Compostela.

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Subida ao céu: Ao redor do Monte Saint-Michel, várias escadarias conduzem ao mosteiro e à abadia. Não importa qual seja o percurso, a vista que se descortina é sempre extraordinária. Sem falar nas construções em pedras, características da arquitetura do lugar, quase todas de época medieval. Como a terra é pouca, os moradores aproveitam o espaço para fazerem jardins

A fama de lugar milagroso, depositário de inúmeras relíquias de santos, atrai milhares de peregrinos em busca da salvação e de milagres. Mas nem só de milagres é feita a história do lugar. Ela está repleta de relatos de acidentes e catástrofes. Só em 1318, 13 peregrinos morreram pisados pela multidão, 18 se afogaram no mar e 12 desapareceram nos bancos de areias movediças que surgem quando a maré é baixa e permite a travessia a pé do continente até a ilha. No ano 922 um incêndio destruiu boa parte da aldeia e do mosteiro.

Em 1103, uma grande porção da nave central da abadia desabou. Em 1203, novo incêndio arrasou o mosteiro: sua reconstrução faria surgir uma estrutura arquitetônica de inspiração gótica cuja extraordinária beleza a tornou conhecida como “A Maravilha”.

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Dois milhões de visitantes:
A proclamação pela Unesco do Monte Saint-Michel como Patrimônio Cultural da Humanidade, em 1979, incrementou de forma extraordinária o número de visitantes. A cada ano, cerca de 2 mi de turistas do mundo todo visitam o lugar. Durante o dia, em todas as estações do ano, as ruelas da aldeia estão repletas de visitantes. À noite, a quietude reina

Durante a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), entre França e Inglaterra, a abadia tomou ares de fortaleza militar, sem contudo perder seu caráter sagrado nem suas funções religiosas. Os ingleses conquistaram todo o território ao redor do monte, mas não conseguiram sobrepujar as enormes muralhas do mosteiro-abadia.

O fato de o Monte Saint-Michel permanecer boa parte do tempo ilhado (durante as marés altas) e rodeado de perigosos bancos de areia movediça (durante as marés baixas) era uma excelente proteção, que, como no caso da Guerra dos cem Anos, o tornava inexpugnável. Mas, por outro lado, esse isolamento apresentava grandes riscos para os peregrinos: para chegar ao mosteiro eles tinham de atravessar a pé longas extensões de areias molhadas. Os bancos de areia movediça e as marés que subiam rapidamente e podiam chegar a 13 metros de altura tornavam o trajeto muito perigoso. Na época, costumava-se dizer, com um certo humor negro: “Antes de ir a Saint-Michel, não esqueça de fazer seu testamento.” Foi preciso esperar a chegada do século 19 para que o monte fosse ligado ao continente por um dique. Sua construção, por um lado, resolveu o problema dos visitantes e dos moradores. Por outro lado, o dique provocou o assoreamento da baía. Hoje, apenas duas vezes por mês – nos dias de Lua nova e de Lua cheia – o monte se transforma com certeza numa ilha.

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Um claustro divino: O claustro medievalé um dos pontos altos do complexo arquitetônico. Inteiramente cercado por colunas e arcos góticos, esse magnífico jardim suspenso representa o céu na terra. Era nele que os monges passavam horas de intermináveis deambulações e orações. Muitos visitantes de hoje fazem o mesmo. A meditação e oração silenciosas são permitidas

O dique é também um fator fundamental do grande afluxo de turistas ao local: mais de dois milhões de visitantes por ano se deixam seduzir pela magia do rochedo. Em todas as estações do ano, a rua principal da aldeia está cheia de gente.

Quem deseja um pouco mais de recolhimento deve aguardar a chegada da noite, quando apenas os moradores e os turistas que se hospedam nos hotéis locais saem para passear.

Para se chegar ao mosteiro, a partir da aldeia, é preciso subir várias escadarias. O ponto culminante é a abadia gótica, situada sobre o mosteiro, cujo pórtico principal se abre para um terraço panorâmico.

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Templo vivo: Acima, a nave principal da abadia de Saint-Michel. O templo recuperou hoje suas funções religiosas, graças à presença, desde 2001, de uma pequena comunidade de monges e monjas que obtiveram permissão das autoridaes civis para nele residir e atuar. No Monte Saint-Michel mantém-se viva a chama
da fé católica

Durante quase um século e meio – entre o início do século 19 e a segunda metade do século 20 –, o Monte Saint-Michel permaneceu destituído de suas funções religiosas. Os beneditinos foram expulsos do lugar durante a Revolução Francesa. O complexo tornou-se então prisão de Estado. Em 1874, ele foi declarado monumento histórico nacional da França. Após a Segunda Guerra Mundial, começou a atrair turistas e, finalmente, entre 1965 e 1966, uma nova, embora muito reduzida comunidade de monges beneditinos se instalou no monte, dando início à renovação da sua dimensão espiritual.

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Alta gastronomia: O restaurante Mère Poulard é um dos mais antigos. Alta gastronomia (cozinha normanda e bretã) faz parte das muitas atrações do lugar

Até 2001, essa comunidade monástica vivia num pequeno mosteiro situado na aldeia que circunda o complexo do grande mosteiro e abadia do Monte Saint-Michel. No dia 24 de junho de 2001, depois de longos meses de negociações com as autoridades que cuidam dos monumentos nacionais franceses, cinco monjas e quatro monges da ordem católica Fraternidades de Jerusalém foram autorizados a se instalar e residir no grande mosteiro.

Praticamente todas as seções do complexo de Saint-Michel podem ser visitadas pelo turista. O lugar é palco também de um espetáculo de som e luz noturno. A característica principal desse espetáculo é que, durante o seu transcorrer, o visitante não precisa seguir um roteiro preciso.

Ao contrário, ele pode parar o tempo que quiser para contemplar a arquitetura e as obras de arte expostas nos salões do complexo; pode sentar, meditar, voltar atrás, permanecer lá dentro o tempo que quiser. O Monte Saint-Michel não é apenas um esplêndido sítio de turismo cultural selecionado pela Unesco para integrar a lista do Patrimônio Cultural Material da Humanidade. Ele também é, ainda, uma cidadela da fé cristã, e como tal pode e deve ser aproveitado.

A maravilha

O setor do complexo arquitetônico do Monte Saint-Michel conhecido como “A Maravilha”, é o coração da abadia. Dele faz parte o refeitório, dotado de excelente qualidade acústica, onde os leitores liam os textos sagrados em voz alta. A estrutura de vigas é de madeira. Acima do refeitório situam-se as salas de hóspedes e o salão nobre, onde eram acolhidos os peregrinos de alto nível social. Na parte esquerda de “A Maravilha” estão os ateliês monásticos e a biblioteca onde os monges desenhavam, escreviam e pintavam. A biblioteca, banhada pela luz difusa filtrada através de grandes vitrais, atraía eruditos e estudiosos de toda a Europa. A obra-prima de todo o complexo é, no entanto, o claustro, localizado 77 metros acima do nível do mar. Suspenso entre o céu e a terra, circundado por extraordinários arcos góticos, ele era e ainda é um lugar privilegiado para a meditação.

Iluminuras
Lamberto Scipioni

Alguns manuscritos do Monte Saint-Michel,
salvos dos incêndios, dos desabamentos e dos roubos, são as últimas testemunhas da vida espiritual, intelectual e artística que durante
séculos se desenvolveu na abadia beneditina.
Parte deles está exposta ao público na biblioteca da prefeitura da cidade de Abranches, localizada perto do Monte Saint-Michel.

O Museu municipal de Abranches, por seu lado, exibe ao público uma coleção única de utensílios e instrumentos usados pelos iluministas medievais.
A exposição permite conhecer as diferentes qualidades dos manuscritos e das tintas, e saber, por exemplo, como os copistas utilizavam as finíssimas folhas de ouro para produzir os
preciosos dourados das iluminuras.

Mais informações e visitas virtuais

www.abbayedumontsaintmichel.net
www.monum.fr/m_stmichel/indexa.dml?lang=fr
www.unesco.org
www.mont-saint-michel-baie.com
www.normandy-tourism.org/fr

REVISTA PLANETA
EDIÇÃO 401

sábado, 18 de dezembro de 2010

Humanidade miserável

Dostoiévski
28 de março de 2010

Em seu primeiro romance, Dostoiévski trouxe à tona os sentimentos e infortúnios dos excluídos de São Petersburgo
Aurora Bernardini
Um mundo multiforme e contraditório, ao qual se referiu Igor Vólguin – estudioso da obra de Dostoiévski (1821-1881) – configurou-se em volta do escritor desde sua primeira infância. Doçura e crueldade, miséria e esbanjamento, fantasia e realidade, ordem rígida e evasão, soberba e submissão, avareza e dom de si são apenas algumas das características que haverão de marcar Gente Pobre (1844-1846), seu primeiro romance.
Fiódor era o segundo dos sete filhos (quatro homens e três mulheres) de Mikhaíl Andréievitch e Maria Fiódorovna Netcháiev. O pai, médico, iniciou sua formação cuidando dos feridos da campanha contra Napoleão em 1812, mas teve uma carreira medíocre. Vítima de um terrível complô dos servos que maltratava, morreu em sua propriedade rural localizada em Tula, cidade próxima a Moscou. A mãe, Maria Fiódorovna, era filha de um rico comerciante. Mulher sensata e generosa, abrandava o marido ciumento e protegia a prole de seus ataques.
Quando Fiódor nasceu, a família morava nas dependências do grande hospital público Mariinski, em Moscou, onde o pai trabalhava. A casa em que moravam era circundada por um jardim, separado do hospital por uma grade. Era para lá que o jovem Fiódor escapulia, misturando-se aos pacientes e deles ouvindo as histórias mais variadas. Os relatos o impressionavam a ponto – dizem alguns de seus biógrafos – de ter tido aos 9 anos o primeiro ataque de epilepsia, doença que nunca o abandonou e que descreveria, com instantes de êxtase, em Mýchkin, Smerdiákov e em outros protagonistas de seus futuros romances.
Infortúnios
Em 1834, Fiódor e o irmão mais velho, Mikhail, foram inscritos no internato Tchermak, de onde sairiam para ingressar na Escola de Engenharia do Gênio Militar de São Petersburgo. Aos sábados, voltavam para casa e, valendo-se dos momentos em que o pai descansava, devoravam os livros de seus autores prediletos (Walter Scott, Charles Dickens, George Sand, Victor Hugo) e recitavam poemas de Púchkin e Jukóvski para a mãe, já doente de tuberculose, que os ouvia encantada.
A partir de 1837, as desgraças se sucedem. Primeiro a morte de Púchkin, o ídolo, depois, a da mãe amada. Outro grave desgosto: o irmão e grande amigo Mikhail não é aceito na Escola de Engenharia por questões de saúde. Na escola, rigorosíssima, mas onde injustiças são cometidas em prol dos protegidos, Fiódor passa por dificuldades financeiras e mal consegue sobreviver, pois o pai – tomado por uma avareza incontrolável – não lhe envia o dinheiro imprescindível. Em junho de 1839, recebe o telegrama em que é informado da morte do genitor, que fora brutalmente assassinado pelos colonos mujiques. A comoção é tanta que lhe sobrevém outro acesso epilético.
O crime repercute em sua consciência de forma indelével. Fora das leis humanas, ele também é culpado, também desejara a morte do pai, dirá Freud em seu ensaio “Dostoiévski e o Parricídio”. Se as leis humanas erigem um “muro de pedra” em volta do indivíduo, os futuros protagonistas de seus livros haverão de transpô-lo, caindo em um território ora ilógico, ora alucinado, em que será dito aquilo que tem medo de revelar a si próprio.
A gênese do romance
No entanto, a vida continua. Fiódor traduz Balzac e Schiller, compõe dois dramas históricos, joga e despede-se do irmão Mikhail que, agora casado, vai morar em Revel. Quem lhe fará companhia durante certo tempo é o irmão André, que vai a São Petersburgo estudar arquitetura.
Passados alguns concursos, Dostoiévski entra nos quadros do serviço ativo do Gênio Militar. Em 1844, porém, em vista de uma transferência que haveria de levá-lo para longe de São Petersburgo, demite-se irrevogavelmente. É em meio às dificuldades financeiras e ao mar de dívidas em que se encontra mergulhado que começa a esboçar Gente Pobre, seu primeiro romance. Em março de 1845, escreve ao irmão em Revel: “Estou contente com meu romance. Já o estou passando a limpo. É uma obra sóbria e limpa, apesar de alguns defeitos”.
Dostoiévski mal podia imaginar o estrondoso aplauso com que a crítica progressista da “escola natural” russa – de tendência social, voltada para o tema dos desvalidos, com Belínski à frente – iria saudar o livro, publicado em 1846. Em forma epistolar, o romance traz duas digressões nas quais os dois heróis contam um ao outro sua vida modesta e atribulada. De um lado está o pobre escriba Makar Diévuchkin – que, como Akaki Akákevitch, de Gógol, só possui um uniforme remendado – e, de outro, seu secreto amor: a doce e terna Varvara Dobrosiólova, jovem que vive de costura, em uma casa ao lado.
O leitor há de ficar impressionado com os sentimentos insuspeitos e as “verdades elementares” que suscitam esses habitantes de uma São Petersburgo que, ao lado de belos palácios, avenidas fervilhantes e heróis retumbantes, como Don Carlos e Posa, abriga pardieiros de uma humanidade miserável composta de pequenos funcionários, usurários, prostitutas, estudantes e jovens ultrajadas. “Eles são vossos irmãos”, escreveria Belínski. “Em algum canto sombrio, o coração puro e nobre de um conselheiro dedicado a seus chefes e, com ele, o de uma jovenzinha, ultrajada e triste” – conforme escreveu Dostoiévski – lhe apontava a vereda pela qual começaria o percurso de sua longa estrada.

Revista CULT

Filosofia: do início, e de antes

Pitágoras
14 de março de 2010

A Filosofia nasceu como ideal de felicidade, interessou-se primeiro pelos problemas da natureza. Mas antes de o nome ser registrado já havia Filosofia e filósofos
Há algo essencial nesse saber que exige nome próprio. O amor pela sabedoria foi expresso pela primeira vez por Pitágoras (século 6 a.C.) que, elogiado por sua eloqüência e indagado pelo saber que a inspirava, afirmou não ser um sábio (sophós), e sim um amante da sabedoria, um filósofo. Surpreso com a novidade do nome, o príncipe que o admirara perguntou-lhe o que eram os filósofos. A resposta metafórica comparou a vida humana às atividades ocorridas durante os jogos públicos, aos quais uns compareciam para brilhar nos exercícios físicos; uns aproveitavam a multidão reunida e iam em busca de comércio; e outros não buscavam dinheiro ou aplauso, e sim conhecimento: lá estavam para observar. Assim, teria dito Pitágoras: “Nós viemos à existência como se vai a uma grande feira, alguns como escravos da fama, uns ambiciosos de lucros, e outros ávidos de sabedoria. A estes últimos, mais raros, chamamos filósofos.”
Inicialmente, o termo theorós referia-se a espectadores que assistiam aos jogos olímpicos, a comandantes convidados a passar tropas em revista, a uma espécie de embaixador cuja função era estar presente e contemplar. O teórico era o espectador no sentido mais autêntico da palavra, e a teoria era uma forma de participação espetacular. O verbo filosofar apareceu quando o historiador Heródoto (século 5 a.C.) apresentou a autarquia como ideal da verdadeira felicidade e considerou que a vida contemplativa ou teórica era superior, por passar ao largo das disputas materiais. A Filosofia nasceu como nomeação sob a égide da ética eudaimônica e do pensamento não-instrumentalizado. Mas antes de o nome ser registrado já havia Filosofia e filósofos. Oficialmente, a Filosofia surgiu no século 6 a.C, em Mileto. É curioso notar que teve origem em uma colônia da Ásia menor, floresceu nas colônias da Itália meridional, e só depois de um século foi acolhida no centro da Grécia, e atingiu o auge em Atenas.
Antes, as epopéias homéricas haviam tornado os deuses inteligíveis e afastado o terror relativo a forças obscuras e incontroláveis. Mas o universo continuava sujeito a comportamentos passionais e arbitrários. Raios, relâmpagos e trovões surgiam da ira de Zeus; Poseidon criava ondas e tempestades marítimas, e Apolo trazia o sol em seu carro resplandecente. Um mundo à mercê dos humores divinos é o limite de racionalização das epopéias. A primeira pergunta posta pelo novo modo de pensar, portador de tamanha exigência de compreensão que mereceu nome próprio, foi: “Qual é o princípio (a arkhé) de todas as coisas?” Os primeiros filósofos tentaram entender a natureza a partir de um único princípio organizador, dessacralizado, impessoal, lógico. Uma vez entendida a arkhé, seguir-se-ia o entendimento das coisas. Na busca de um princípio único há, implícito, um desafio ao riquíssimo politeísmo grego. Os chamados filósofos naturalistas concebiam o mundo como kósmos – uma unidade sistemática composta de elementos diversos – e a premissa fundamental era a de que a natureza funciona sempre do jeito mais simples. A confiança na uniformidade do mundo natural, na existência de um padrão regular subjacente, distinto da caprichosa e imprevisível vontade de um deus, marca a mudança de atitude acerca da origem do cosmos e de seus fenômenos.
A filosofia grega começou com os problemas da natureza e não com os relativos ao ser humano. Por que o homem se interessou primeiro pelo cosmos, e só dois séculos mais tarde por conhecer a si mesmo? Não há resposta capaz de encerrar a questão e entre diversas razões verossímeis, ressalto a relativa à beleza da Grécia. A poderosa harmonia de desenho, cor, transparências e relevos da natureza grega interpela os que a vêem. Penso ser possível estabelecer uma analogia entre a invenção da Filosofia e a narrativa mítica sobre a passagem do caos ao cosmos. No início, diziam as musas, era o Kháos, um vazio abismal e vertiginoso, em cujo seio apareceu Gaia, a Terra. Da Terra, como impulso que nela fez brotar o desejo existente em suas profundezas, surgiu Eros, o Amor Primordial. Terra-Gaia gerou então Urano, o Céu, cuja única atividade era sexual: ele ficava o tempo todo deitado sobre ela! Terra engravidou e não pode dar à luz seus rebentos, teve de guardá-los no ventre, pois Céu, sempre em cima dela, mantinha uma noite contínua, sem deixar espaço a nenhuma outra existência. Dentro do corpo materno, Krónos, o filho caçula, decidiu enfrentar o pai e – com uma foice fornecida pela mãe – cortou-lhe os órgãos sexuais quando ele a penetrava. O Céu foi assim obrigado a separar-se da Terra. Como Krónos, os gregos arcaicos precisaram abrir espaço para o autodesenvolvimento, através de mediações abstratas, entre si e a beleza que os envolvia e os interpelava. Se, na Grécia homérica, o temor aos perigos naturais levou à produção de mitos, na Grécia arcaica o belo natural provocou o Logos. Enigmática e exuberante, a natureza pedia: “Diga meu nome.” Fatores históricos modelaram a fôrma filosofia, a partir da pulsão provocada pela Beleza. Lembro que Platão considerou a beleza capaz de provocar um arrebatamento potente o suficiente para conduzir a psykhé ao mundo das idéias, ao conhecimento. Teorizar tem certo teor de estar fora de si, de sentir-se arrastado e possuído pela contemplação. Ser arrebatado é mesmo a possibilidade da teoria, cuja essência consiste em uma espécie de transe entre sujeito e objeto contemplados. Reforço a hipótese com palavras de An Introduction to Greek Philosophy1: “A região chamada antigamente de Jônia é uma das áreas mais belas e mais favorecidas pela natureza na superfície deste planeta… Com seus promontórios abruptos e grandes ilhas em mar aberto, oferece uma mistura variada de montanhas e planícies, ricas em pastagens e em terra cultivável entremeada de pomares e bosques de oliveiras. O inverno é suave, com chuvas abundantes. Nascentes copiosas e longos rios perenes ajudam a manter a relva verde durante o calor do verão. Não há clima melhor em todo o mundo… a prosperidade era inevitável.”

Imaculada Kangussu é doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (Ufmg) e professora na Universidade Federal de Ouro Preto. Publicou artigos, principalmente sobre Estética, em diversos jornais, periódicos e livros, entre eles Katharsis – reflexos de um conceito estético (Com Arte, 2002) e Theoria Aesthetica (Escritos, 2005), dos quais é co-organizadora

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