terça-feira, 30 de novembro de 2010

Santos, fanáticos ou líderes sociais?

Movimentos com base na fé, abundantes no Brasil, ainda são mal estudados

ANDRÉ CAMPOS


Saga de Antônio Conselheiro registrada na igreja
de Canudos / Foto: André Campos

Em outubro de 1897, após 11 meses de uma guerra sangrenta, finalmente o exército brasileiro derrotou a última trincheira que ainda resistia em Canudos. Terminava assim a epopeia da nação sertaneja surgida em torno de Antônio Conselheiro, a quem eram atribuídos atos de caridade, curas milagrosas, visões e profecias. Havia quatro anos que ele se estabelecera naquele local, para o qual foram afluindo levas e levas de peregrinos. E quatro anos bastariam para que o minúsculo povoado que o acolheu se tornasse a segunda maior cidade baiana de então, com estimados 25 mil moradores – menor apenas que Salvador.

A Guerra de Canudos, onde pereceram 20 mil sertanejos e 5 mil soldados aproximadamente, foi apenas mais um capítulo na história de ebulições sociais que, em terras brasileiras, floresceram no rastro de líderes religiosos. “O Brasil tem sido especialmente pródigo na geração de movimentos messiânicos”, escreve Lísias Nogueira Negrão, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) que estuda temas ligados à religiosidade popular.

O messianismo pode ser entendido como a crença na vinda de um enviado divino que conduzirá determinado grupo à libertação. Nosso primeiro registro de conflito associado a esse ideal remonta provavelmente a 1817, quando um ex-soldado, acompanhado por 400 adeptos, fundou a Cidade do Paraíso Terrestre, vilarejo que abrigava uma laje “encantada” através da qual falava uma santa. Três anos depois, a comunidade seria desmantelada a mando do governador pernambucano.

No Brasil, abundante como as mobilizações messiânicas é o leque de interpretações sobre tais fenômenos – um tema que desperta paixões e pouco afeito a meios-termos, em que adjetivos como “loucos” e “fanáticos” convivem com discursos que tratam seus participantes como heróis ou revolucionários. Tal disparidade é legitimada, em grande medida, pelas dúvidas que ainda pairam sobre esses acontecimentos – sob diversos aspectos, eles permanecem pouco estudados e mal explicados.

Na esteira dessas lacunas, alguns municípios fomentam atualmente ações locais para resgatar a memória sobre certos episódios. São passagens nebulosas da história que, não raro, ainda contam com remanescentes vivos, e que seguem gerando polêmica nas regiões onde ocorreram.

Catolicismo “rústico”

Figuras messiânicas no Brasil têm sido notadas principalmente em áreas rurais, algo que, segundo Renato da Silva Queiroz, livre-docente do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, remete a uma versão “rústica” do catolicismo difundida nos sertões – onde a costumeira ausência das autoridades eclesiásticas facilitou o surgimento de líderes leigos. “É o universo do capelão, que desconhece a doutrina católica mas se encarrega da condução dos ritos, das orações e ladainhas que acompanham as práticas religiosas da população pobre do campo”, escreve o professor.

Em geral, o registro de tais episódios é obra de jornalistas, militares e outros membros das camadas dominantes, a exemplo do clássico Os Sertões, no qual Euclides da Cunha descreve a Guerra de Canudos como um embate entre o progresso e o atraso, e critica a própria religiosidade “mestiça” do sertanejo – que gera “um monoteísmo incompreendido, eivado de misticismo extravagante, em que se rebate o fetichismo do índio e do africano”.

O “racismo científico” foi amplamente utilizado para explicar “surtos” messiânicos no Brasil. A cabeça de Antônio Conselheiro, decepada pelo exército, chegou inclusive a ser estudada pelo psiquiatra Raimundo Nina Rodrigues, adepto de teorias raciais que associavam traços físicos à predisposição ao crime. Antes do fim da guerra, Rodrigues já havia diagnosticado a “psicose sistemática progressiva” do beato, com base em relatos que atribuíam a ele atos agressivos e sucessivas mudanças de emprego e de lugar.

Não era a primeira vez – nem seria a última – que líderes de feições messiânicas seriam desqualificados sob a alegação de transtornos mentais. Na década de 1970, por exemplo, Aparecido Galdino Jacintho, um rezador de Rubineia (SP), mobilizou seus seguidores contra a construção de uma barragem na região e acabou internado num manicômio judiciário pela ditadura militar.

Paraíso terrestre

Em meados do século 20, por meio de uma releitura marxista, experiências como Canudos e o Contestado (ver texto abaixo) foram reavaliadas, ressurgindo quase como revoluções rudimentares – onde o “fanatismo” converte-se em expressão, ainda que alienada, da luta de classes. Não faltaram inclusive autores que enxergassem em comunidades do gênero a plena realização dos ideais de uma sociedade harmoniosa e igualitária.

Alguns registros históricos, no entanto, divergem dessa utopia. Em Canudos havia inclusive a chamada “Rua das Casas Vermelhas” – assim denominada por ter as únicas residências cobertas com telhas –, onde viviam lideranças ligadas ao Conselheiro e comerciantes que prosperaram com o crescimento do arraial. Já no Contestado estudos revelam a existência de privilégios às lideranças do movimento – às quais se destinavam a melhor parte dos mantimentos obtidos em combates –, além de rígidos códigos de conduta internos que incluíam, por exemplo, açoites e a pena de morte para adúlteras.

Apesar disso, é certo que traços de igualdade, por vezes pioneiros, surgiram a reboque de movimentos messiânicos. Um exemplo remete ao Crato (CE), onde o beato José Lourenço liderou, nas décadas de 1920-30, a comunidade do sítio Caldeirão, que chegou a abrigar 2 mil pessoas. Numa área relativamente pequena, a notória prosperidade lá alcançada explica-se, em grande medida, pela adoção de lavouras em regime de mutirão e outras práticas cooperativistas – que permitiram a construção de açudes e microbarragens, bem como uma organização racional da agropecuária que preservava o frágil solo do semiárido. “No contexto do nordeste, a ideia de produzir coletivamente era uma grande inovação”, afirma o geógrafo Arlindo Siebra.

Canudos também se distinguia de seu entorno ao permitir que, em pleno sertão dos “coronéis”, os recém-chegados lá erguessem casas e plantassem sem pagar nada a ninguém – entre eles muitos eram ex-escravos recentemente libertados pela Lei Áurea e com reduzidos meios de sobrevivência. Manuscritos do Conselheiro revelam, aliás, seu apoio à abolição da escravatura, bem como outros aspectos de um pensamento distante da imagem de delirante tantas vezes a ele atribuída. “Ele não era, apenas, um pregador de feição religiosa. Também versava sobre assuntos de ordem social e política”, atesta em seus estudos José Calasans, importante historiador que se debruçou sobre o episódio do arraial. Segundo relatos colhidos à época, um exemplo dessa militância era sua condenação ao “imposto do chão” – cobrado nas feiras livres em que a população pobre expunha seus produtos.

História viva

Em 1993, cem anos após a chegada de Antônio Conselheiro, foi criado em terras canudenses o Instituto Popular Memorial de Canudos (IPMC), uma espécie de centro cultural que reúne religiosos, pesquisadores, trabalhadores rurais e profissionais liberais. Por meio de seminários e publicações, a entidade busca estimular a reflexão local sobre o “passado conselheirista”, ainda hoje cercado de estigmas na região. “Antes tínhamos até vergonha de falar sobre o assunto”, ressalta Sandorval Macedo, membro do IPMC.

O instituto é um dos apoiadores da romaria anual, que desde 1988 exalta a trajetória do líder religioso e de seus seguidores. O percurso abrange pontos da guerra e segue às margens do açude criado em 1969, que inundou os restos históricos da “cidade santa”. “A partir da experiência de Canudos, discutimos os desafios atuais enfrentados pela população do semiárido”, explica o pastor Djalma Torres, um dos idealizadores do evento, que aborda sempre um tema diferente ligado à realidade do sertanejo – como, por exemplo, a importância da organização popular e a luta pelo acesso democrático à água.

A 250 quilômetros dali, em Casa Nova (BA), outra romaria anual, iniciada em 2003, vem chamando a atenção para a mobilização do sítio Pau-de-Colher, que reuniu milhares de pessoas até ser tragicamente dissolvida em 1938. Mais de 400 pessoas foram mortas, entre policiais, fazendeiros contrários ao grupo e, principalmente, adeptos do movimento.

Em dezembro de 1937, Pau-de-Colher, onde vivia José Senhorinho – um respeitado rezador local –, recebeu um súbito e enorme afluxo de camponeses, que abandonavam suas casas para lá viver imersos num cotidiano de orações. Senhorinho já havia estado no Caldeirão de José Lourenço e tivera contato com Severino Tavares, um dos principais seguidores do beato. Segundo relatos de sobreviventes, o objetivo do ajuntamento era viajar para o Crato e refundar a recém-destruída comunidade, distante centenas de quilômetros – um ano antes, a polícia havia expulsado os moradores e queimado as casas do Caldeirão.

Tais motivações, no entanto, permanecem fonte de divergências. Pesquisador do caso e parente de fazendeiros que confrontaram o grupo, o escritor Marcos Damasceno afirma que a tomada de propriedades alheias era o verdadeiro interesse por trás da mobilização, que manipulou as massas por meio de uma “religião de fachada”. Segundo ele, o líder do movimento queria inclusive “fazendeiros vivos e acorrentados pelo pescoço, levados até o arraial para assinar as escrituras das terras”.

Em Pau-de-Colher, hoje um povoado semelhante a outros da região, ainda vivem indivíduos que integraram a mobilização messiânica, bem como descendentes dos adeptos. Um dos organizadores da romaria, o padre Aloísio Alves afirma que o evento tem como um de seus objetivos resgatar a dignidade dessas pessoas – visto que ainda paira sobre elas o rótulo de “fanáticas”. “Na região persiste a fama de que se trata de gente complicada, perigosa”, diz ele.

Propaganda do medo

Em 1984, a “volta do fanatismo” em Casa Nova foi abordada em jornais da região, que traziam denúncias de políticos e agricultores sobre reuniões secretas e incitação à violência na comunidade de Amalhador. O historiador Gilmário Moreira Brito visitou o lugar à época, onde viu pequenos produtores rurais organizando projetos coletivos para o plantio e a comercialização e envolvidos em discussões sobre a condição das famílias locais. Segundo ele, as coincidências entre Pau-de-Colher e Amalhador ficavam por conta da proximidade entre ambos e da retomada, ainda que em termos diferentes, de um processo de vivência comunitária. “Entretanto, foram motivos suficientes para o recurso a uma memória que se apresentava como ameaçadora”, descreve em sua dissertação de mestrado sobre o Pau-de-Colher.

Na história brasileira, o medo de um “novo Canudos” legitimou a luta contra diversos grupos populares. O mesmo se pode dizer da “ameaça comunista”, evocada, por exemplo, em Caldeirão e Pau-de-Colher – onde até hoje não há evidências consistentes que os liguem a ideologias de esquerda. Não coincidentemente, o massacre de ambos distancia-se apenas alguns meses do advento do Estado Novo no Brasil, ditadura justificada por Getúlio Vargas sob a alegação de um suposto projeto comunista para tomar o poder – o Plano Cohen, que depois se descobriu ter sido forjado.

Por trás dos discursos conspiratórios, demandas de elites locais são parte importante do quebra-cabeça de interesses ligados à repressão de grupos messiânicos, visto que a atração exercida por líderes religiosos representou, por vezes, uma real ameaça ao modo de produção latifundiário. Em 1897, o barão de Jeremoabo – proeminente proprietário de terras no tempo de Antônio Conselheiro – já alertava para o fato de Canudos estar deixando fazendas sem agregados e vaqueiros. “Assim foi escasseando o trabalho agrícola e é atualmente com dificuldade que uma ou outra propriedade funciona, embora sem a precisa regularidade”, afirmou o barão em artigo de sua autoria.

Clima de irmandade

O rótulo “messianismo” remete a uma grande diversidade de episódios no Brasil, que rejeitam explicações e juízos de valor generalistas. No entanto, as conexões entre alguns casos indicam que a busca por uma “alternativa da fé”, longe de ser resultado de “surtos” isolados, perpassa uma teia maior de ideias e ideais em certas regiões do país.

A experiência do sítio Caldeirão – cuja relação direta com a mobilização do Pau-de-Colher já foi explicada –, por exemplo, deu-se em terras pertencentes ao padre Cícero e por ele confiadas a seu protegido, José Lourenço. Décadas antes, segundo relatos, o venerado religioso chegou a enviar um emissário a Canudos de Antônio Conselheiro, mobilização pela qual ele demonstrava bastante interesse.

Olegário Miguez Gonzalez, em seu trabalho de mestrado sobre o povo do Velho Pedro – comunidade formada em Santa Brígida (BA) na década de 1940 em torno do líder católico Pedro Batista –, conta que os romeiros lá estabelecidos eram muitas vezes os mesmos peregrinos que iam ter com o “santo popular” nordestino, morto em 1934. “Pedro Batista preencheu um vazio deixado por padre Cícero, que também é adorado em Santa Brígida”, afirma.

O Velho Pedro, conhecido como “o Conselheiro que deu certo”, diferencia-se de outros líderes por ter dado origem a um arraial religioso tolerado pelo Estado – e que, de certa forma, continua até hoje. O local cresceu com a chegada de romeiros a ponto de virar município em 1962. Pedro Batista morreu em 1967, mas ainda é lembrado e venerado em Santa Brígida.

Seu “sucesso” explica-se em parte pela aliança com líderes políticos locais, de quem obteve inclusive uma fazenda para assentar centenas de peregrinos. Batista também era uma espécie de organizador da produção e do comércio, financiando sem juros as atividades de seus seguidores com as doações recebidas deles próprios. Já no plano espiritual, comandava rezas e difundia valores cristãos, catalisando um clima de irmandade. “Viver em uma sociedade em que havia respeito entre os moradores era considerado, por muitos romeiros, um verdadeiro milagre”, ressalta Gonzalez.

Suas relações com a elite local, no entanto, refletem aspectos clássicos do coronelismo. Ele arregimentava mão de obra para trabalhar de graça nos latifúndios e, nas eleições, determinava o voto nos candidatos indicados por seus aliados. Chama a atenção que, entre os mais de 400 municípios baianos, Santa Brígida ocupe a quarta pior posição no ranking do último Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M), de 2000.

No Rio de Janeiro, outro traço típico do subdesenvolvimento também nos remete à história de uma mobilização messiânica. Ao fim da Guerra de Canudos, alguns soldados que deixaram de receber o soldo instalaram-se num morro da cidade, que foi batizado de Favela em alusão a uma planta de mesmo nome, típica da caatinga. Hoje sinônimo de moradia precária no Brasil, tal termo permanece um lembrete de como nem sempre é tão simples definir de que lado está o “progresso” e a “civilização”.


Episódios marcantes

A história dos movimentos messiânicos no Brasil engloba diferentes circunstâncias e desfechos e reflete a própria diversidade das manifestações religiosas no país. Veja alguns exemplos:

Contestado: na fronteira entre Paraná e Santa Catarina, a construção de uma ferrovia gerou um grande levante social. Sob o comando do monge José Maria, posseiros expulsos pela obra e outras populações excluídas rebelaram-se contra a República brasileira. O resultado foi a Guerra do Contestado, entre 1912 e 1916, que deixou milhares de mortos.

Revolta dos Muckers: no século 19, Jacobina Maurer, chamada de “o Cristo feminino”, reuniu seguidores entre imigrantes alemães do Rio Grande do Sul. Dezenas morreram nos confrontos entre o exército e os muckers – termo que significa “falso santo” em alemão.

Surto do Catulé: em abril de 1955, tomados de forte exaltação, trabalhadores rurais de Malacacheta (MG) sacrificaram quatro crianças, que, segundo eles, estariam possuídas por Satanás. A orientação para essa atitude veio do líder de uma irmandade local.

Profecia indígena: os índios guaranis registram grandes migrações comandadas por xamãs em busca da Terra sem Males – onde o arco e a flecha caçariam sozinhos e ninguém envelheceria.

Borboletas Azuis: exemplo de caso urbano, o grupo dos Borboletas Azuis formou-se em torno de um líder espírita de Campina Grande (PB), que anunciou o fim do mundo por meio de um novo dilúvio.

Revista Problemas Brasileiros

Adoniran, o eterno sambista das malocas

Há cem anos aparecia o autor de “Trem das Onze”, porque “pobre não nasce”

HERBERT CARVALHO


Busto na Praça Don Orione, em São
Paulo / Foto: Herbert Carvalho

Se o senhor não está lembrado, dá licença de contar. Seu nome era João Rubinato. Sétimo e último rebento – como ele mesmo diria – de um casal de imigrantes italianos do Vêneto, nasceu em Valinhos (SP), então distrito de Campinas, no dia 6 de agosto de 1910, conforme consta na certidão de nascimento e na carteira de identidade daquele que se tornaria nacional e internacionalmente conhecido pelo nome artístico de Adoniran Barbosa.

A data centenária está sendo comemorada principalmente nos bairros da cidade de São Paulo imortalizados em seus mais de cem sambas, ainda que não seja isenta de controvérsias, como outros aspectos de sua vida: para alguns ele teria sido “envelhecido” dois anos de forma a poder colaborar no sustento da família, já ao tempo da escola primária, ajudando o pai a carregar e descarregar vagões da São Paulo Railway em Jundiaí, uma das pontas da estrada de ferro construída pelos ingleses para ligar o interior paulista ao porto de Santos.

Nascido e criado numa época em que as ferrovias eram predominantes, Adoniran eternizaria esse meio de transporte em seu maior sucesso, Trem das Onze, reservando profeticamente para o automóvel o papel de vilão, como nas músicas Iracema (atropelada ao atravessar na contramão a Avenida São João) e Tiro ao Álvaro (“Teu olhar mata mais que atropelamento de automóvel”).

Sempre reservado a respeito da própria intimidade, Adoniran cortava as especulações sobre seu nascimento com uma de suas frases típicas: “Não nasci, porque pobre não nasce. Aparece...” A pobreza, de fato, marcou a vida do menino rebelde expulso do grupo escolar, no terceiro ano, apenas com os rudimentos das letras e dos números.

A partir daí ele trabalharia sucessivamente como entregador de marmitas e varredor, ainda em Jundiaí, e depois em Santo André, no ABC paulista, como tecelão, pintor de paredes, encanador, serralheiro, metalúrgico e garçom. Nesta última função, em 1926, serviu à mesa na residência paulista do ministro da Guerra, Pandiá Calógeras.

“Tanta coisa que eu fui e só deu pra fazer samba. Fazia samba no caminho, andando. Vivia batucando, mandavam logo embora. Eu só queria fazer samba”, confessaria Adoniran em 1972 no programa “MPB Especial”, da TV Cultura de São Paulo, criado por Fernando Faro, autor também de “Ensaio”, na mesma emissora. Ambas as séries resultaram na monumental coleção de CDs e livros intitulada A Música Brasileira deste Século por Seus Autores e Intérpretes, editada no ano 2000 pelo Sesc SP em parceria com a Fundação Padre Anchieta, cujo volume 1 é encabeçado precisamente por Adoniran Barbosa.

Nome bíblico

Em 1932 João Rubinato chega à cidade em que viveria pelos 50 anos seguintes, até sua morte, em 1982. Com cerca de 1 milhão de habitantes, a São Paulo da década de 1930, com seus primeiros arranha-céus, simbolizava o país que deixava de ser agrário e rural para se urbanizar e industrializar. Na multidão apinhada nos bondes ou que andava apressada pelas ruas Direita e São Bento destacavam-se tanto o português macarrônico dos imigrantes italianos, satirizado pelo humor de Juó Bananére, como a fala estropiada dos interioranos recém-chegados, os caipiras retratados por Cornélio Pires. Dessas vertentes nasceriam obras-primas como Samba Italiano – no idioma de Dante, que ouvia quando criança – e Samba do Arnesto, em cuja casa “nóis fumo e não encontremos ninguém”, emblemático da arte de falar errado (como ele definia), que se tornaria a marca registrada do compositor.

Fazer samba, porém, ainda era um horizonte distante para o jovem que passou a ganhar a vida entregando “pras madamas” os tecidos de uma loja da Rua 25 de Março, enquanto acalentava o sonho de ser artista. E o caminho para a consagração pública, na época, passava obrigatoriamente pelo rádio, que se firmava como o grande veículo de comunicação de massa desde que o presidente Getúlio Vargas autorizara seu financiamento por meio da publicidade.

Foi na Rádio Cruzeiro do Sul, nas imediações da Ladeira Porto Geral – onde vivia, em um quarto de pensão – que João, após vários gongos em um programa de calouros, conseguiu chegar até o fim cantando o samba Filosofia, de Noel Rosa, o mais célebre dos compositores cariocas da primeira metade do século passado, cujo centenário se comemora também neste ano. O feito lhe rende um contrato para cantar em um programa semanal de 15 minutos e o leva à decisão de trocar de nome. “Se eu soubesse que ia ser radioator, teleator e artista de cinema não mudava meu nome. Ficava João Rubinato mesmo. Mas cantar samba com nome italiano não dá”, justificaria. Sobre esse episódio, um de seus biógrafos, Ayrton Mugnaini Jr., conta no livro Adoniran (Editora 34): “Ao saber que João Rubinato queimava o cérebro em busca de um nome artístico incomum e marcante, um colega de boemia, Adoniran Alves, lhe propõe: ‘Por que você não adota meu nome, João?’ ” A sugestão de usar o nome que aparece originalmente na Bíblia como de um dos ministros do rei Salomão foi aceita e completada com o sobrenome emprestado de um sambista carioca famoso na época, morto precocemente, Luiz Barbosa (1910-1938).

Artista multimídia

O ano de 1934 assinala o nascimento do compositor Adoniran Barbosa, com a marchinha Dona Boa, feita em parceria com o carioca J. Aimberê. Gravada por Raul Torres (1906-1970) – um dos pioneiros da música caipira feita na cidade grande –, foi a vencedora do concurso de carnaval da prefeitura de São Paulo, embora estivesse a anos-luz de distância das composições maduras que Adoniran faria 20 anos mais tarde. Classificada por ele mesmo como “uma porcaria”, rendeu-lhe a quantia – significativa na época – de 300 mil-réis, que torrou bebendo com os amigos em uma única noite. Garantiu-lhe, também, um programa exclusivo na Rádio São Paulo, a mesma que abrigava em seu cast a dupla Alvarenga e Ranchinho, a mais popular e ousada da época, por suas sátiras de caráter político. O sucesso encoraja Adoniran a pedir a mão de Olga Krum, bela e jovem descendente de alemães. O casamento dura menos de um ano, mas deixa como fruto a filha Maria Helena Rubinato, que seria criada no Rio de Janeiro por uma irmã de Adoniran. Hoje é sua única descendente direta, já que não houve filhos na união com Mathilde de Luttis, sua companheira por 40 anos, desde 1942, para quem compôs Prova de Carinho, comovente oferta de uma aliança feita com a corda de um cavaquinho.

A inclinação natural de Adoniran pela composição, entretanto, seria postergada por mais de uma década, cedendo lugar, de maneira compulsória, ao intérprete de músicas alheias, gravadas em 1936 em discos de 78 rotações para o selo Columbia. Como na época o compositor não passava de mero acessório para cantores de sucesso como Francisco Alves, ele decide apostar na própria voz, ainda livre do timbre roufenho que permaneceria na memória dos que o ouviram no final da vida. Mas o reconhecimento público não iria para o cantor e só se manifestaria a partir de 1941, quando Adoniran se transfere para a Rádio Record – onde permanece até sua aposentadoria em 1972 – e passa a atuar como ator cômico, além de locutor e discotecário. Na Record, Adoniran conhece o escritor e roteirista Oswaldo Molles, especialista em linguagem popular, que além de seu futuro parceiro em vários sambas criaria para ele personagens radiofônicos como Zé Cunversa e Charutinho, este último o grande sucesso do programa humorístico “História das Malocas”, nos anos 1950.

Como o pagamento na rádio é parco e incerto, Adoniran estreia como ator de cinema em 1945, vivendo o personagem Moisés Rabinovitch, na comédia musical Pif-Paf; no total ele atuaria em 15 filmes, desde O Cangaceiro, de Lima Barreto, primeira fita brasileira a fazer sucesso no exterior, em 1953, até pornochanchadas como A Superfêmea e Elas São do Baralho, nos anos 1970. Verdadeiro artista multimídia, como hoje se diria, Adoniran trabalhou também no circo e em telenovelas de sucesso, como “Mulheres de Areia”, da extinta TV Tupi, em que fazia o papel de um pescador. Gravou ainda comerciais para a TV, como aquele de uma marca de cerveja em que dizia o célebre bordão “Nóis viemos aqui pra beber ou pra conversar?”, que resultaria na marchinha Nóis viemos aqui pra quê?

Trem carioca

Assim como para o Brasil – que veria a construção de Brasília, o aparecimento da Bossa Nova e da indústria automobilística e a conquista do primeiro campeonato mundial de futebol –, a década de 1950 foi decisiva para Adoniran Barbosa, que se transformaria em um dos ícones da cultura paulista. Deixando de lado o estilo de Noel Rosa, que até então imitava, e colocando nas frases e melodias o ambiente das ruas e das malocas que ele próprio ecoava nos programas de rádio, entre 1951 e 1953 Adoniran compõe, entre outros, dois de seus sambas imortais, Saudosa Maloca eSamba do Arnesto, que se tornam sucessos imediatos nas interpretações dos Demônios da Garoa, marcadas pelos característicos quais-quais-quais e cariguduns. Reconhecidos pelo Guinness Book of Records como o grupo vocal-instrumental de música popular de mais longa carreira ininterrupta (desde 1943), os Demônios plasmam sua imagem na de Adoniran e vice-versa, numa simbiose compositor-intérprete tão perfeita quanto havia sido a de Noel/Aracy de Almeida ou seria a de Lupicínio Rodrigues/Jamelão.

A dobradinha Adoniran/Demônios explodiria novamente em 1965 com a gravação de Trem das Onze, que apesar de escolhida pelo público como a música que mais tinha a “cara” de São Paulo, em votação realizada pela Rede Globo no ano 2000 (desbancando Sampa, de Caetano Veloso), fez sucesso inicialmente como campeã do carnaval carioca, justamente no ano do 4º Centenário do Rio de Janeiro.

“Fazia tempo que não havia um samba legal no Rio e quando apareceu Trem das Onze foi aquele delírio. O doutor Carlos Lacerda, que era o governador, me deu dois milhão de cruzeiro de prêmio”, contou Adoniran ao programa “MPB Especial”. Extrapolando o eixo Rio-São Paulo, Trem das Onze torna-se sucesso nacional em 1973, na voz de Gal Costa. Na Itália, gravada por Mina com o nome de Figlio Unico, esteve entre as cem músicas mais tocadas nas décadas de 1960/70.

Voz da cidade

Apesar de ter composto todos os seus principais sucessos entre 1951 e 1972, foi apenas em 1974 que Adoniran Barbosa gravou seu primeiro LP, produzido por João Carlos Botezelli, o Pelão, posteriormente coordenador da mencionada coleção do Sesc SP/TV Cultura. Após tantas décadas de frustrações devido à falta de reconhecimento, o repentino sucesso de público e crítica no outono da existência – a exemplo do que ocorreu com Cartola, Nelson Cavaquinho e Clementina de Jesus, entre tantos outros geniais artistas populares que passaram no limbo a maior parte da vida – não o entusiasma nem altera seu jeito simples de viver. “Só depois de velho vieram dar valor à minha música. Por que não fizeram isso 20 anos atrás?”, desabafou em entrevista ao jornal carioca O Pasquim.

Vivendo no subúrbio distante de Cidade Ademar, na zona sul da capital paulista – longe dos bairros que cantou, mas onde nunca morou, como Brás, Mooca, Bexiga ou Casa Verde –, Adoniran passa os últimos anos de sua vida curtindo o cachorro Peteleco (que usaria como pseudônimo em algumas composições e para quem pagava filés nos restaurantes) e construindo com pedaços de lata e madeira pequenos objetos de ourivesaria popular, como rodas-gigantes, trens e carrosséis.

Foi com uma bicicleta em miniatura feita por ele mesmo que Adoniran retribuiu o gesto de Antonio Candido, um dos intelectuais brasileiros de maior prestígio, que, convidado a assinar um texto na contracapa do segundo LP do compositor, escreveu, em 1975: “Lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, com o encanto insinuante de sua antivoz rouca, o chapeuzinho de aba quebrada sobre a permanência do laço de borboleta de outros tempos, ele é a voz da cidade”.

O professor emérito de teoria literária da Universidade de São Paulo resumia, desse modo, o que outros representantes do universo cultural paulista e brasileiro já sabiam há muito tempo, como os poetas Vinicius de Moraes e Hilda Hilst, que foram seus parceiros, ou o zoólogo-sambista Paulo Vanzolini. O autor de Ronda e Praça Clóvis, entre outras canções que também retratam a metrópole paulistana, não titubeia em ceder ao amigo, que homenageou num samba intituladoSeu Barbosa, o título de principal cronista musical da cidade: “A música que melhor representa São Paulo é qualquer uma do Adoniran. Quando na letra de Apaga o Fogo, Mané a Inês sai para comprar um pavio de lampião, ele está dando uma definição que vale por sete volumes de sociologia sobre a periferia. Adoniran era um gênio”. “Ele conseguiu dar humor e beleza a São Paulo, uma cidade bastante carente”, acrescenta o maestro Júlio Medaglia.

Após ser brindado em 1980 com um disco comemorativo de seus 70 anos, que traz Elis Regina cantando Tiro ao Álvaro– entre outros convidados do porte de Djavan, Clara Nunes e Gonzaguinha –, os muitos cigarros Yolanda fumados desde a adolescência o conduzem no início de novembro de 1982 ao Hospital São Luiz, onde morre de enfisema pulmonar às 17h15 do dia 23. Com o caixão coberto pela bandeira da escola de samba Colorado do Brás, que o homenageara no carnaval daquele ano, foi sepultado no Cemitério da Paz, no bairro do Morumbi, ao som de Trem das Onze entoado durante mais de 30 minutos seguidos pelas 500 pessoas presentes. Faltou, entretanto, a bandeira do Corinthians, time que foi sua grande paixão e que homenageou na música Coríntia – Meu Amor é o Timão.

Palhaço triste

Durante alguns anos, as miniaturas que construiu, seus objetos pessoais e outros referentes à preservação de sua memória foram reunidos no Museu Adoniran Barbosa, que funcionou dentro da antiga caixa-forte de um banco desativado na Rua XV de Novembro, no centro velho de São Paulo. Esse acervo está sendo digitalizado para figurar no website oficial de Adoniran, organizado pela filha Maria Helena e pelo sobrinho Sérgio Rubinato. No bairro do Bexiga há uma rua batizada com seu nome, e seu busto foi erguido sob as árvores da Praça Don Orione, onde aos domingos acontece uma feira de antiguidades.

Cronista dos fatos cotidianos da grande metrópole – como atropelamentos e desocupações judiciais que hoje, 28 anos após sua morte, continuam a ocorrer de forma ainda mais dramática –, Adoniran tornou-se não apenas a “voz da cidade”, como sublinhou Candido. Ele foi, sobretudo, a voz dos sofredores que resgatava da multidão anônima e silenciosa, como os moradores de rua e das malocas, os engraxates, faxineiras, operários e demais seres solitários, fragmentados pela brutalidade da metrópole, aviltados e despojados de sua dignidade. Se vivo fosse, certamente cantaria as desventuras de motoboys e de operadoras de telemarketing, trabalhadores desprezados hoje como em seu tempo foram os operários da construção civil ou as margaridas do metrô.

Apaixonado por São Paulo, apontava seus defeitos, principalmente a vertiginosa velocidade de suas transformações, que podiam deixar mais bonito o Viaduto Santa Ifigênia, mas também desfiguravam a paisagem urbana, como na Praça da Sé, após o advento do metrô. Como nesses dois casos, as músicas que fez com nome dos logradouros públicos permitem comparar a cidade de hoje com a de ontem: a Rua dos Gusmões, que ele atravessava “lendo Ali Babá e os Quarenta Ladrões”, como prova de amor à namorada, depois de pertencer à Boca do Lixo e à Cracolândia agora está no coração da Nova Luz, o bairro que se busca revitalizar entre as estações da Luz e Júlio Prestes (antiga Sorocabana, atual sede da Sala São Paulo).

Como um misto de repórter e dramaturgo, Adoniran narrava tragédias como a de Iracema, mas também comédias, como em O Casamento do Moacir (que já “era casado cinco veiz lá no estado do Rio”) ou Um Samba no Bexiga (onde estoura uma briga e “era só pizza que avoava, junto com as brachola”). Apesar do bom humor que exteriorizava, ele próprio admitia ser “um palhaço triste”, como foi retratado para a capa de um disco pelo artista gráfico Elifas Andreato.

A cidade que nos versos de Adoniran reconhecia pelo nome seus habitantes desapareceu, mas permanece aquela que ainda não sabe responder à pergunta final de Despejo na Favela: “E essa gente aí, hem? Como é que faz?”

Revista Problemas Brasileiros

Lima Barreto, um autor na contramão

Triste fim de um escritor talentoso e original, marcado pela tragédia

CECILIA PRADA


Lima Barreto / Foto: Reprodução

Pelos idos de 1920, os grupos elegantes de cariocas que costumavam fazer da Avenida Rio Branco o lugar predileto de suas flâneries cotidianas (assim, em francês, língua da moda então), deparavam às vezes com um espetáculo pouco habitual: o de um mulatão desleixado, sujo, ensebado e precocemente envelhecido, mais parecido com um pobre-diabo, quase um mendigo, a quem, no entanto, muitos transeuntes tiravam o chapéu, cumprimentando. Alguns até mesmo se detinham para conversar com ele durante bastante tempo, animadamente. Uma tarde – conta um poeta da época, Dante Milano –, algo mais espantoso ainda acontecera: um elegante carro preto encostara no meio-fio e dele saltara talvez o homem mais importante da cidade, o ex-senador e prefeito Paulo de Frontin, somente para trocar um dedo de prosa com aquele mulato quase negro, de face avermelhada pela bebida, um marginal andrajoso que não dispensava uma palheta amassada assentada na carapinha grisalha – o grande romancista e jornalista que atendia pelo sonoro nome de Afonso Henriques de Lima Barreto.

Infelizmente, o prestígio, o reconhecimento merecido e tardio que a sociedade parecia, enfim, lhe conceder, nada mais puderam fazer para prorrogar sua vida sofrida. Ele faleceria em 1922, aos 41 anos – como Kafka –, com o organismo completamente arruinado pela bebida e por doenças venéreas, marcando com o signo da tragédia uma página das mais importantes de nossa história literária.

Aquele que nunca foi rei

O nome Afonso Henriques não lhe foi dado, como se poderia pensar, em homenagem ao primeiro rei de Portugal. Só para se ter uma ideia da atmosfera racista e preconceituosa em que teve de viver, basta lembrar um fato relatado por seu melhor biógrafo, Francisco de Assis Barbosa: quando Lima cursava a Escola Politécnica (não chegou a se formar engenheiro), ouviu um aluno veterano comentar: “Vejam só! Um mulato ter a audácia de usar o nome do rei de Portugal...” Henriques era nome que lhe vinha de seu pai, João Henriques de Lima Barreto, um mulato que nascera liberto, filho de escrava com português. Sua mãe, a mulata Amália Augusta, era uma “cria” (possivelmente filha bastarda) da importante família Pereira de Carvalho.

João Henriques, aos 14 anos, já era um excelente tipógrafo e trabalhou em alguns jornais. Mais tarde, com a proteção de Afonso Celso de Assis Figueiredo, visconde de Ouro Preto, conseguiria obter um emprego de tipógrafo na Imprensa Nacional (então chamada apenas de Tipografia Nacional). Com o advento da República, porém, seu protetor, que chefiara o último gabinete monárquico, foi obrigado a exilar-se, e seu protegido foi demitido sumariamente por partilhar o credo monarquista. Como já tinha numerosa família, aceitou um emprego de almoxarife na Colônia de Alienados, situada na ilha do Governador. Nesse emprego manteve-se de 1891 a 1902, quando teve um surto psicótico e foi obrigado a aposentar-se. Todo o encargo da família caiu assim sobre os ombros do primogênito, Afonso, que aos 21 anos foi obrigado a interromper os estudos para cuidar dos irmãos, levando até o fim da vida também o fardo do pai esquizofrênico, encerrado em casa, extravasando seus delírios com gritos lancinantes. João Henriques, que tantos sonhos ambiciosos tivera em relação ao filho mais velho, acabou por se tornar o fator mais forte do fracasso de sua vida. Não resistindo à morte do filho, em 1922, faleceu apenas 48 horas depois dele, e ambos foram enterrados na mesma campa.

Lima Barreto não se casou nunca, e enveredou pelo caminho do alcoolismo muito cedo. Era um solitário, revoltado e deprimido, porque, dizia, “nunca amei nem fui amado”. Em tão penosas circunstâncias – pobreza, doença, frustração sexual e afetiva, exclusão social – desenvolveu, porém, os recursos de seu talento para retratar com pleno conhecimento as minúcias do Rio de Janeiro de sua época, uma sociedade eivada de contradições, marcada pela discriminação e pelo preconceito de várias ordens, em um quadro de total injustiça social.

Lima e Machado

O paralelismo entre as condições de vida em que os dois grandes escritores vieram ao mundo tem sido estabelecido por vários historiadores – separadas embora suas vivências pelo espaço de duas gerações, pois Machado de Assis já contava 42 anos quando Lima nasceu, justamente naquele ano de 1881 em que o bruxo do Cosme Velho, que já ajudara a fundar a Academia Brasileira de Letras, lançaria seu primeiro grande romance da maturidade, Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Os dois partilhavam o problema da pobreza, da origem humilde, da cor. Tanto um como outro ficaram órfãos de mãe muito cedo, Machado aos 10, Lima de 6 para 7 anos. Mas se Joaquim Maria encontrou logo na madrasta Maria Inês uma substituta carinhosa, o mesmo não aconteceu com Afonso, mais fundamente atingido pela tragédia e que confessava ter-se fechado irremediavelmente em si depois da morte da mãe, sem ter nunca mais “crises de alegria”. Em relação às mulheres, conservaria sempre uma timidez doentia, e só conseguia satisfazer seu apetite sexual com prostitutas de baixo nível.

Tiveram, ambos, padrinhos bem situados, políticos importantes, que lhes possibilitaram acesso à melhor sociedade. Porém, se Machado foi criado na casa de dona Maria José de Mendonça Barroso (viúva do senador Bento Barroso Pereira), com o maior carinho, da mesma proteção não gozou o afilhado de Afonso Celso de Assis Figueiredo, que até o primeiro prenome dele herdara. Na verdade, o orgulhoso e distante visconde somente aceitara o apadrinhamento usando seu estoque de solidariedade senhorial para com o humilde tipógrafo de cor, que o idolatrava. O menino Afonso muito pouco conheceu o aristocrático xará que lhe custeava os estudos. Sentia-se mesmo profundamente humilhado com essa situação de dependência. Relata ainda seu biógrafo “um encontro desastroso” entre os dois, quando já entre João Henriques e seu protetor político começavam a esfriar as relações de compadrio. Uma cena ficaria marcada como das lembranças mais desagradáveis da vida, na memória do escritor. O visconde havia deixado transparecer, na má vontade com que recebera pai e filho, o profundo desdém em que os tinha. Teria mesmo dito, em relação à grande ambição que João tinha de fazer o filho doutor: “Todo mundo quer ser doutor...” Em seu Diário Íntimo, muito mais tarde, Lima Barreto faria referência a uma antiga doação do benfeitor, nestes termos: “E os 10$000 do tal visconde. Idiota. Os protetores são os piores tiranos”.

Fosse lá como fosse, a generosidade de Afonso Celso, forçada ou não, permitiria ao menino Afonso ter o privilégio de uma educação formal (coisa que Machado de Assis nunca pôde ter) nos melhores colégios, primeiro em Niterói e depois no Rio de Janeiro, onde foi interno do tradicional Colégio Pedro II, criadouro dos rebentos das famílias abastadas e nobres da Corte.

No campo profissional, também não poderiam diferir mais as carreiras de um e de outro, tanto no jornalismo como na literatura – Machado, aos 16 anos, já contava com a proteção de importantes escritores, como Manuel Antonio de Almeida, e foi imediatamente introduzido e empregado na “grande imprensa” da época, onde sempre se manteve. Na literatura, nunca teve dificuldade de publicar e foi sempre respeitado – teve, sobretudo, tempo para amadurecer suas obras, inclusive por ter vivido muito mais que Lima Barreto. Com um emprego público estável, com a felicidade doméstica desfrutada com Carolina, as antigas condições consideradas “difíceis” de sua vida – pobreza, cor, orfandade, gagueira e epilepsia – foram satisfatoriamente minimizadas ou dissolvidas.

Já Lima Barreto, que partilhava com Machado circunstâncias raciais e econômicas, teve de cumprir um destino de “maldito”. Mesmo como jornalista e escritor, enfrentou sempre dificuldades para inserir-se na grande imprensa de seu tempo, sofreu discriminações de toda ordem, foi obrigado a limitar suas colaborações à imprensa alternativa e a publicar às próprias custas a maior parte de seus livros. E mesmo quando já firmava reputação como romancista, viu-se rejeitado duas vezes justamente “na casa de Machado de Assis” – a Academia Brasileira de Letras. Se Machado conseguiu, porém, manter isenção de julgamento com vistas à obra de Lima, este alimentou conscientemente sua posição crítica em relação à literatura machadiana, definindo seu estilo como “chocho” e seus personagens como “figuras ocas”.

Diferenças de temperamento e de sorte acabaram por colocar essas duas figuras de romancistas – considerados hoje os mais importantes de nossa literatura, antes do modernismo – em polos opostos em termos de sucesso/fracasso existencial. Porque, fator preponderante de desgraça, sobre Lima pairou inexoravelmente, desde muito cedo, também o fantasma da loucura familiar, uma terrível herança genética da qual nunca conseguiria se livrar e que terminaria por vitimá-lo.

A casa da loucura

Em importante tese de doutorado defendida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Literatura da Urgência – Lima Barreto no Domínio da Loucura, e publicada em 2009 pela Annablume, Luciana Hildalgo examina em profundidade o relacionamento entre a doença mental e a obra do escritor. Ela concentra seu estudo nos escritos que Lima empreendeu ao ser pela segunda vez na vida internado por alcoolismo em um hospital psiquiátrico, em 1919 – o denominado Diário do Hospício, que depois aproveitaria em um romance que deixou inacabado, Cemitério dos Vivos. Nessa circunstância, a escrita teve uma função mais do que catártica para ele. Representou, como diz Luciana Hidalgo, “uma saída de emergência à abstinência, substituta da bebida”.

Salvo à força do delírio etílico, Lima pôde analisar a si próprio e também descrever a própria instituição psiquiátrica de maneira lúcida – com todas as suas incoerências, injustiças, contradições e abusos médicos, que só seriam totalmente expostos cerca de 40 anos mais tarde, por Michel Foucault e pela corrente da antipsiquiatria de Franco Basaglia.

O Hospital de Alienados da Praia Vermelha – fundado em 1852 por dom Pedro II – era, nas primeiras décadas do século passado, uma instituição de caráter carcerário, onde a violência contra os pacientes, inclusive física, era considerada elemento de cura, em um tempo anterior até mesmo a contenções mais científicas, embora também superadas mais tarde, como o eletrochoque. Nesse ambiente se buscava e conseguia a aniquilação da personalidade do paciente, sua integração no estereótipo do “louco”, um ser desprovido de vontade e discernimento, incapaz de gerir a própria vida.

Felizmente para o escritor, ele fora dotado de um temperamento que via na revolta, na contestação, o meio de lutar pela sobrevivência, pela não dissolução do ego. Assim, desde os primeiros dias desse período de internação – como nos descreve Luciana –, ele não se conformou por ter sido internado “como indigente” e tratado como pária social. Não tendo a princípio obtido apoio da equipe médica para suas reivindicações, usou inteligentemente de outros meios para conseguir uma inserção mais digna nas várias classes de internados – graças a um funcionário que trabalhara com seu pai, passou à seção Calmeil, que funcionava em um pavilhão onde ficava a biblioteca. Assim, não somente obteve um alojamento individual, mais condizente com sua condição, como autorização para passar seus dias lendo e escrevendo.

A reclusão hospitalar acabou por lhe proporcionar tempo e tranquilidade para ressuscitar tesouros enterrados na memória: por exemplo, lembrando-se do livro que mais adorara na infância, Vinte Mil Léguas Submarinas, de Júlio Verne, projetava a si próprio no misterioso e antropófobo herói, o capitão Nemo, do Nautilus – homem mítico, capaz de transformar seu submarino em um mundo paralelo. Como diz Luciana Hidalgo, também Lima, como Nemo, “imaginou-se fora da humanidade, um associal vivendo da ilusão do bem-estar à margem da civilização, sem ligação sentimental alguma no planeta”. Partindo dessa utopia, pôde examinar – aos 39 anos – sua existência até aquele momento, de maneira extremamente lúcida. Privado da bebida, estava livre para mergulhar no sonho lúcido que é a literatura.

O grande escritor

A obra completa de Lima Barreto compreende atualmente 11 livros, sendo quatro póstumos. Em 1919, já havia publicado cinco, entre eles seus principais romances, Recordações do Escrivão Isaías Caminha em 1909, Triste Fim de Policarpo Quaresma em 1915, e no próprio ano da segunda internação, 1919, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. São romances voltados para a realidade social e nos quais transparece a ideologia política que adotara desde cedo, o maximalismo antecessor do comunismo, o credo anarquista que o colocava ipso facto na posição de escritor marginal – para ele, a literatura tinha uma função social e o escritor não podia escapar à missão de combater a injustiça.

Com os dois livros que publicou ainda em vida após o período de internação, em especial o inacabado romance Cemitério dos Vivos (1920), as duas linhas de sua trajetória literária, a social e a introspectiva, convergem, enriquecendo de maneira extraordinária a perspectiva sob a qual toda a sua obra está atualmente sendo avaliada, inclusive no exterior.

Durante mais de três décadas após sua morte, Lima era ainda visto como um vago “predecessor do modernismo” e sua obra tida como malfeita, insatisfatória. Somente em 1956, com a publicação de sua obra completa em 17 volumes, sob a direção de Francisco de Assis Barbosa e com a colaboração de Antônio Houaiss e M. Cavalcanti Proença, Lima Barreto começou a ocupar o lugar que verdadeiramente lhe cabe em nossa história literária. Seus romances e contos têm sido traduzidos para o inglês, o francês, o russo, o espanhol, o tcheco, o japonês e o alemão. Teses de doutoramento o tiveram como tema nos Estados Unidos e na Alemanha. Congressos e conferências foram realizados em todo o Brasil, por ocasião de seu centenário de nascimento (1981), resultando em inúmeros livros publicados, entre ensaios, bibliografias e estudos psicológicos do autor e sua obra.

Pois, como afirma o crítico alemão Berthold Zilly em artigo escrito em 2006, “Lima Barreto e a Cultura Nacional”, por ocasião da comemoração dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, Triste Fim de Policarpo Quaresma redescobre o país, “com sua história, sua cultura, suas excelências, mas também com suas mazelas, seus desmandos e os possíveis meios de combatê-los”. A obra, diz Zilly, é uma grande indagação sobre o Brasil, capaz de estimular uma autorreflexão metacrítica sobre o caráter e os destinos da nação.

Diversos escritores jovens estudam hoje a obra de Lima Barreto em toda a sua complexidade, e são várias as teses já feitas ou em andamento nas universidades, tanto brasileiras como estrangeiras. Sua absoluta diferenciação do estilo de Machado de Assis não mais o coloca em posição de inferioridade, como foi anteriormente feito – mas possibilita que sejam ambos avaliados de maneira diversa, pelo valor e originalidade que apresentam em atitudes antitéticas na descrição da sociedade brasileira de seu tempo: Machado destrói a sociedade com um estilo sobriamente corrosivo e fino, enquanto Lima Barreto faz a mesma coisa com sua virulência passional.

Alfredo Bosi, após lhe consagrar dez páginas em sua História Concisa da Literatura Brasileira, classifica o conjunto de sua obra como “de amplo espectro”, por demonstrar “quanto Lima Barreto podia e sabia transcender as próprias frustrações e se encaminhar para uma crítica objetiva das estruturas que definiam a sociedade brasileira do tempo”. Por isso, acrescenta, “a obra de Lima Barreto significa um desdobramento do realismo no contexto novo da 1ª Guerra Mundial e das primeiras crises da República Velha. Sua direção de coerente crítica social seria retomada pelo melhor romance dos anos 1930.”

Revista Problemas Brasileiros

Noel Rosa, o feitiço de Vila Isabel

Centenário do poeta que não queria choro nem vela

HERBERT CARVALHO


O compositor em autorretrato
Foto: Reprodução

Com sobrenome de flor, ele se chamava Noel, assim batizado pelo pai francófilo porque nasceu às vésperas do Natal. Sua existência de apenas 26 anos, quatro meses e 23 dias, entre 11 de dezembro de 1910 e 4 de maio de 1937, foi breve como a passagem do cometa Halley pelos céus do Rio de Janeiro no ano de seu nascimento. Porém, também foi brilhante como a estrela d’alva que deixou a Lua tonta em uma das quase 300 composições que marcariam a música popular brasileira por meio do encontro entre o ritmo negro do samba de morro e os melhores versos de uma lírica popular boêmia dos botequins, que conquistou para sempre a alma do público ao pedir, em melodia sincopada, ao “seu garçom” para trazer depressa uma boa média e um pão bem quente com manteiga à beça.

Noel de Medeiros Rosa nasceu, viveu e morreu em Vila Isabel, típico bairro de classe média da zona norte carioca fundado pelo barão de Drummond – também inventor do jogo do bicho –, situado entre a quase rica Tijuca e o proletário Andaraí. Seu parto – assim como sua morte – aconteceu no modesto chalé da Rua Teodoro da Silva, paralela ao Boulevard 28 de Setembro (data da assinatura da Lei do Ventre Livre), onde sua mãe, professora, mantinha uma escolinha para ajudar no sustento da família. Dona Marta, porém, tinha a bacia estreita e num movimento de mau jeito do fórceps para a retirada do primogênito ocorre a fratura do maxilar inferior, provocando a falha no queixo que, junto com o cigarro pendurado no canto da boca, chamaria a atenção nas fotografias e caricaturas de Noel.

Embora marcado pelo defeito – chegará a ser chamado de Frankenstein da Vila no título de um dos sambas de sua célebre polêmica com Wilson Batista – e apesar da dificuldade para mastigar, que o levaria a alimentar-se só com ovos quentes, mingaus e sopas, o menino que depois de alfabetizado em casa chega aos 12 anos de idade ao Ginásio São Bento não é triste nem complexado. Ao contrário, é um rebelde que atazana a vida dos monges e professores daquele que ainda hoje é um dos mais tradicionais e rigorosos colégios do Rio. Já é também um líder e um gozador, lembrado pelos colegas – que se tornarão ministros, médicos, generais e intelectuais, como Augusto Frederico Schmidt – como editor de “O Mamão”, que idealizou para se contrapor à revista oficial “A Alvorada”. Com um bebê faminto sugando a mamadeira desenhado por ele mesmo como logotipo – revelando uma habilidade para a caricatura que seria mais um ponto em comum com o cartunista Antônio Nássara, seu futuro parceiro –, é nas páginas do jornalzinho manuscrito, passado de mão em mão por baixo das carteiras, que começa a se desenvolver a verve para a paródia, a sátira e a crítica ferina que caracterizam muitas de suas melhores letras.

Bando dos Tangarás

Avesso a qualquer forma de disciplina – característica que mais tarde será decisiva para frustrar todas as tentativas de cura da tuberculose adquirida nas noitadas boêmias –, Noel teve muita dificuldade para concluir o que na época se chamava “bacharelato em ciências e letras”, necessário para entrar na Faculdade de Medicina, conforme a vontade de sua família. Reprovado em matérias como história do Brasil, ele se salva, por ironia, graças a um episódio histórico, a Revolução de 1930: Getúlio Vargas, recém-empossado chefe do governo provisório, determina em um de seus primeiros decretos a aprovação sumária e sem exceção de todos os estudantes brasileiros daquele ano, que haviam ficado sem aula desde o início do movimento armado, no dia 3 de outubro.

Compelido desde cedo a comprimir num tempo curto um modo de viver intenso, Noel foi precoce em tudo: antes dos 15 anos já fumava compulsivamente, bebia e frequentava bordéis, ao mesmo tempo em que gazeteava aulas. É também nessa época que se envolve com a música, aprendendo primeiro a tocar bandolim com a mãe e depois violão, instrumentos que animam os saraus e as serenatas, principal divertimento de um bairro convertido em celeiro de artistas como Nássara e Orestes Barbosa.

Por essa razão é em Vila Isabel que o tijucano Almirante recruta, em 1929, o já exímio violonista Noel Rosa para integrar o Bando dos Tangarás, quinteto que se dedicará a gravar emboladas nordestinas e toadas sertanejas, em moda no Rio de Janeiro na época. Evocando pássaros que cantam e dançam reunidos em bandos de quatro ou cinco, o nome é uma ideia de Henrique Foréis Domingues, comerciário e pandeirista nas horas vagas, que ganhara o apelido de Almirante quando, ao servir o tiro de guerra naval, desfilara todo posudo ao lado do comandante Mathias da Costa, por ocasião da chegada ao Rio do hidroavião Jaú. Líder e eficiente divulgador do grupo, que não chega a superar as limitações do amadorismo, Almirante ficará com o mérito de iniciador da carreira não apenas de Noel – de quem mais tarde será um dos primeiros biógrafos – mas também de outro jovem tangará, Carlos Alberto Ferreira Braga. Mais conhecido como Braguinha ou João de Barro, pseudônimo que adota para reforçar o espírito de um grupo formado por pássaros, ele será o criador das mais famosas marchinhas de carnaval, entre as quais Pastorinhas, parceria com Noel Rosa inspirada nos ranchos que desfilavam em Vila Isabel no Dia de Reis. Como tentativa de se adaptar ao tipo de música dos Tangarás, as primeiras composições de Noel são a toada Festa no Céu e a embolada Minha Viola, reveladoras de sua capacidade de conciliar diferentes ritmos e melodias com letras de extrema originalidade.

Com que roupa?

É no final de 1929, quando o mundo recebe o impacto da quebra da Bolsa de Nova York e países periféricos como o Brasil ficam à deriva, sem ter para quem exportar suas commodities, que Noel Rosa começa a dedilhar no violão os acordes daquele que seria seu primeiro samba e o grande sucesso do carnaval de 1931, inspirador de anúncios comerciais, paródias, charges, crônicas e entrevistas, além de perenizador da expressão “Com que roupa?” como dito popular. Tanto a letra como a música eram absolutamente surpreendentes. A primeira apontava para a nudez de um país que mais uma vez trocava as oligarquias no poder, deixando o povo na mesma tanga em que se encontrava desde o Descobrimento. E a segunda começava com as primeiras notas do Hino Nacional, o que faria a música ser proibida pela censura e até poderia levar o autor para a cadeia, não fosse a intervenção do maestro Homero Dornellas. Encarregado de passar a melodia para a pauta, ele inverteu as notas que faziam o verso “agora eu vou mudar minha conduta” soar exatamente como o célebre “ouviram do Ipiranga às margens plácidas”.

Rompendo com a poética romântica que privilegiava versos líricos como os de Catulo da Paixão Cearense na música popular, Noel introduz com esse samba pioneiro a temática social que se faria presente em tantas outras de suas letras: a denúncia dos leiloeiros do país, em Quem dá Mais?, o palacete reluzente e o dinheiro que nasce de repente em Onde Está a Honestidade?, a menina que namora, na esquina e no portão, rapaz casado com dez filhos e sem tostão emCoisas Nossas, o João Ninguém que come bastante no almoço para se esquecer do jantar, a mania de exibição dessa gente que não lembra que o samba Não Tem Tradução no idioma francês, o Seu Jacinto que deve sempre apertar o cinto, ou ainda a cama que não passa de uma folha de jornal, em O Orvalho Vem Caindo, são apenas alguns exemplos de uma série de canções que podem ser consideradas precursoras das críticas e sátiras que, entre outros, Chico Buarque de Hollanda e Caetano Veloso fariam da realidade brasileira a partir da década de 1960.

Na linha melódica, Com que Roupa? assinala a opção de Noel por um dos dois tipos de samba que se fazem no Rio de Janeiro desde os fins do século 19. O primeiro, nascido nas casas de Ciata e outras tias baianas que habitavam o que então se chamava Cidade Nova – a região do início da atual Avenida Getúlio Vargas mais os bairros da Gamboa, Saúde, Santo Cristo e Campo de Santana –, pendia mais para o maxixe, ao mesclar ritmos afro a gêneros europeus como polca e mazurca. São expoentes desse estilo os sambas de José Barbosa da Silva, o Sinhô – como Gosto que Me Enrosco eJura –, e o primeiro a ser gravado, Pelo Telefone, de Ernesto dos Santos, o Donga, e Mauro de Almeida.

Apesar de grande admirador de Sinhô, a quem fez questão de conhecer na adolescência em companhia de Hélio Rosa – o irmão mais novo com quem chegaria a compor um foxtrote –, a escolha de Noel recai sobre o ritmo mais próximo da marcha, que o bloco Deixa Falar adotou no Estácio de Sá, bairro situado entre o Rio Comprido e o Catumbi, o morro de São Carlos e a Zona do Mangue. Enquanto na Cidade Nova as festas são animadas por piano, flauta, cordas e metais de conjuntos como os Oito Batutas, de Pixinguinha – que já em 1922 se apresentariam em Paris –, no Estácio o samba marcado por surdo, cuíca e tamborim reflete o modo de vida de uma população negra mantida à margem do mercado de trabalho desde o fim da escravidão, empurrada para a malandragem que se apoia no baralho e na valentia, por um lado, na batucada e na orgia, por outro.

Parcerias

“Esse filho de dona Marta só vive metido com gentinha.” O comentário dos vizinhos indica o progressivo afastamento de Noel do Bando dos Tangarás e demais amizades comportadas de classe média – assim como a desistência do curso de medicina após alguns meses de um vestibular e uma matrícula feitos apenas por insistência da família – e seu envolvimento cada vez maior com sambistas do morro.

Num tempo em que não existiam parcerias inter-raciais na música brasileira – conforme assinala o jornalista João Máximo –, Noel se faz parceiro de 14 sambistas negros, entre os quais se destacam Ismael Silva, do Estácio, e Agenor de Oliveira, o Cartola, da Mangueira. Com o primeiro fará 16 sambas e duas marchas, obedecendo a uma divisão de trabalho em que Ismael faz a primeira parte, e a segunda, tanto letra como música, fica a cargo de Noel, como no grande sucesso Para me Livrar do Mal, gravado por Francisco Alves. Este, conhecido como O Rei da Voz, também entra em muitas parcerias, mas sem criar verso nem melodia: é um “comprositor”, como então se dizia. Com Noel estabelece uma relação mercantil curiosa, vendendo ao poeta um carro que será pago não em dinheiro, mas em sambas. Já Cartola, mais que parceiro, será o grande amigo, cujo barraco o poeta transforma numa segunda casa.

As parcerias mais famosas de Noel, entretanto, não seriam com um sambista de morro, nem sequer com um carioca, mas com o pianista paulista Osvaldo Gogliano, o Vadico, que mais tarde fará parte do grupo de Carmen Miranda e viverá por cerca de 15 anos nos Estados Unidos. A primeira é a obra-prima Feitio de Oração, com letra de Noel – garantindo que “batuque é um privilégio, ninguém aprende samba no colégio” e que “sambar é chorar de alegria, é sorrir de nostalgia, dentro da melodia” – e música de Vadico. Na sequência viriam Conversa de Botequim – a imortal crônica de um freguês abusado desfiando sucessivas ordens ao garçom – e Feitiço da Vila, principal declaração de amor das muitas feitas a seu bairro por Noel. Esta seria contestada por Wilson Batista em episódio da polêmica entre ambos no qual ele garante ser Conversa Fiada “dizer que o samba na Vila tem feitiço”. A contundente resposta de Noel vem em Palpite Infeliz, que pergunta “quem é você que não sabe o que diz?” A briga acaba em samba, ou melhor, na parceria de ambos intituladaDeixa de Ser Convencida.

Mulheres

O conjunto da obra de Noel – que inclui ainda curiosidades como o “samba anatômico” Coração e Gago Apaixonado – se insere como ponto culminante da chamada Época de Ouro da música popular brasileira, entre 1930 e 1945. É nesse período – em que o próprio país deixa de ser rural e agroexportador para se urbanizar, industrializar e expandir seu mercado interno – que se estabelecem as condições materiais para a profissionalização e a massificação da atividade musical por meio do rádio, da gravação eletromagnética do som e do cinema falado. Noel atuou nos três meios, cantando em rádio, gravando discos e compondo músicas para filmes como Alô, Alô, Carnaval e Cidade Mulher. Apesar de ter também cantado até em circo, feito paródias humorísticas no famoso Programa Casé, da Rádio Philips, e composto operetas como Ladrão de Galinha, A Noiva do Condutor e O Barbeiro de Niterói (imitando O Barbeiro de Sevilha, de Rossini), em seus sete anos de carreira recebeu cachês modestos como cantor e quase nada de direitos autorais, vivendo sempre no limite da pobreza.

Das muitas mulheres da vida de Noel, três se destacam: a operária Josefina, da América Fabril, para quem compõe Três Apitos, Lindaura, a vizinha menor de idade expulsa de casa após ter passado a noite com ele e com quem acaba se casando, por pressão da polícia e de ambas as famílias, e Juraci Correa de Moraes, a Ceci, seu grande amor, inspiradora de Dama do Cabaré – ela era dançarina de cabarés da Lapa, o bairro boêmio do Rio –, Pra que Mentir – composta quando descobriu que a amante estava nos braços do então jovem compositor, ator e militante comunista Mário Lago – eÚltimo Desejo, samba-canção que tem a força de um testamento, até pela circunstância de ter sido passado para o pentagrama por Vadico com Noel já no leito de morte. Às 11 horas da noite da terça-feira, 4 de maio de 1937, Noel Rosa exala o último suspiro com a cabeça no colo de Lindaura, ao som de uma composição sua, De Babado, que anima uma festa na casa do vizinho. Os presentes a seu enterro no cemitério do Caju dão uma ideia do nível de talentos que aquela geração reuniu: entre os compositores, parceiros e cantores estão Ary Barroso, Lamartine Babo, Almirante, Benedito Lacerda, Pixinguinha, Mário Reis, Orestes Barbosa, Orlando Silva, Vadico, Nássara e João de Barro. Também está lá o jovem repórter do jornal O Globo, David Nasser. Sua matéria de dez laudas sobre a morte do “Bernard Shaw do samba” será reduzida a dez linhas, simbolizando o ostracismo que se inicia no mesmo instante em que o caixão baixa à cova rasa, e que durará mais de uma década.

Fita amarela

“O melhor que se pode dizer de Noel Rosa é que para a maioria dos artistas populares a fama acaba um dia após a morte. A dele só começou dez anos depois.” A frase do historiador e crítico musical José Ramos Tinhorão sintetiza o que ocorreu nos anos seguintes. Seis meses depois do funeral Getúlio Vargas decreta o Estado Novo e o espírito crítico dos compositores se esvai para dar lugar ao samba-exaltação de que Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, será o maior expoente. No pós-guerra inicia-se a invasão da música americana, junto com os produtos e o estilo de vida ianques, que nas décadas seguintes expulsariam o samba e outros ritmos nacionais dos meios de comunicação, confinando-os a guetos como hoje são as rádios e TVs públicas.

A resistência cultural, no entanto, expressa na insistência da principal intérprete da obra de Noel, Aracy de Almeida, em continuar divulgando suas músicas, obtém uma vitória em 1950. É quando a gravadora Continental lança um álbum com três discos de 78 rotações da cantora, inteiramente dedicado aos melhores sambas do poeta da Vila. O álbum se esgota rapidamente e não apenas é reprensado como um segundo é lançado, com mais seis sucessos de Noel. Já na era do LP seria a vez de Marília Baptista reviver a obra do mestre, que em anos mais recentes ganharia belíssimas interpretações de Paulinho da Viola, Maria Bethânia e Beth Carvalho, além de citações em músicas de Chico Buarque, Caetano Veloso, João Nogueira e Martinho da Vila. De autoria deste último é o samba-enredo Noel: a Presença do Poeta da Vila, com que a Unidos de Vila Isabel homenageou o centenário de nascimento de seu menestrel no carnaval de 2010.

Uma outra comemoração, entretanto, terá de esperar mais tempo. O livro Noel Rosa – Uma Biografia, de João Máximo e Carlos Didier, o trabalho mais completo sobre a vida e a obra do compositor, lançado em 1990 pela Editora UnB, não pôde ser reeditado, porque uma sobrinha decidiu embargá-lo judicialmente. Triste ironia para com o autor que no antológico samba Fita Amarela, após dizer que depois de sua morte não queria “choro nem vela”, afirmara: “Não tenho herdeiros, não possuo um só vintém/ Eu vivi devendo a todos, mas não paguei nada a ninguém”.

Revista Problemas Brasileiros

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Semana Cultura

Semana Cultura - 01/12/2010 - 15/12/2010

Estaremos iniciando mais uma semana História Viva com o tema CULTURA.
Boa leitura...

domingo, 28 de novembro de 2010

O perfil instituinte do movimento das beguinas, na Baixa Idade Média

Alder Julio Ferreira Calado

Desafio de monta é o de investigar certas questões relativas à Idade Média. E já foi ainda mais complicado! De fato, vários tópicos desse período histórico se apresentam como terreno escorregadio, cheio de armadilhas à pesquisa historiográfica. Os pesquisadores e pesquisadoras mais experientes são os primeiros a reconhecê-lo. Graças a significativos avanços investigativos recentes – aliás, não apenas no campo historiográfico ; também no campo interdisciplinar -, alguns entraves vêm sendo contornados.

Mas, isso é apenas um primeiro passo. Muitos obstáculos restam a ser enfrentados e vencidos. De um extenso elenco, aqui destacaria apenas dois: a dificuldade de se trabalhar com escritos e documentos imunes a alterações, após terem sido manuseados e copiados por diferentes pessoas, em épocas de intensa censura e perseguição, como a da Inquisição; e a necessidade de se decodificar adequadamente os diferentes discursos, em seus distintos contextos histórico, econômico, político, cultural

Um exemplo emblemático de se lidar com tais desafios incide nos estudos e pesquisas de textos de autoria feminina (suposta ou efetiva) ou que versem sobre seu protagonismo, precisamente numa época tão marcada por práticas e concepções misóginas. (Ver, por ex., FRANCO JÚNIOR, 1986; MACEDO, 1990)

As mulheres não constituíam certamente o único segmento estigmatizado. A elas se somavam todos os contingentes que viviam à margem e que ousavam transgredir os códigos dominantes: camponeses, pobres, doentes, mendigos, errantes, trovadores, críticos e contestadores da ordem imperante… Dificilmente, porém, se contesta terem sido as mulheres as maiores vítimas do período, até porque elas se faziam presentes nos demais segmentos estigmatizados.

Por outro lado, quanto mais se mergulha na pesquisa sobre a Idade Média, mais se dissipam velhos chavões homogeneizadores desse período milenar. Descobrem-se singularidades surpreendentes. Enquanto se navegava tranqüilamente em águas seguras de superfície, mantinha-se a tendência de se confirmar antigos estigmas sobre esse longo «período de trevas». No momento em que se decide revisitar esse «óbvio» por outros ângulos – os propiciados pela navegação das correntezas subterrâneas -, então, vai-se deparar com cenários surpreendentes.

É, por exemplo, o caso dos movimentos sociais de protesto e de contestação àquela ordem hegemônica. (Ver, por ex., CALADO, 1999). Quantos movimentos sociais, grupos e personagens medievais souberam expressar corajosamente a sua palavra dissonante, ainda que por isso tenham pago com a própria vida! Em determinadas circustâncias históricas e existenciais, é a única opção de se afirmar a vida com liberdade e dignidade, na medida em que se constata que a vida dos Humanos, impregnada de natureza e cultura, distingue-se e transcende a vida de outros viventes. (cf., por ex., COMBLIN, 1999). Para os Humanos dotados de consciência e chamados à liberdade, não serve qualquer tipo de vida. Daí a disposição de se lutar e de se resistir à opressão, sob as mais variadas formas.

Da chamada baixa Idade Média, sobretudo do século XII ao século XV, podemos recolher muitas lições de resistência propositiva. Num período em que a nobreza e a alta hierarquia eclesiástica encarnavam a expressão de um sistema totalitário, nas diferentes dimensões da realidade social, é de se perguntar: de onde suas principais vítimas extraíam tanta força para opor-lhes resistência?

E, no entanto, lá estavam os Goliardos, jovens rebeldes – tidos por uns como vagabundos, por outros como subversivos da ordem social em vigor – a percorrerem os caminhos da Europa Ocidental, com seus poemas iconoclastas, com suas sátiras mordazes, mas também com suas canções de amor, todos reunidos numa coletânea: os famosos Carmina Burana…[1] Os Goliardos fizeram da poesia sua arma principal, uma forma própria de afirmar seu espírito de liberdade, como mostram as linhas abaixo citadas de um de seus poemas, intitulado “Versos sobre o dinheiro”:

O dinheiro reina, soberano, sobre a terra/ É admirado por reis e pelos grandes/ A ordem episcopal, venal, lhe rende homenagem/ O dinheiro é o juiz dos grandes concílios/ O dinheiro faz a guerra, e quando quer, obtém a paz/ O dinheiro é que faz os processos, para que sua conclusão dele dependa/ O dinheiro compra e vende tudo, dá e toma de volta o que deu/ (…) Graças ao dinheiro, o idiota se torna incontestável falante/ O dinheiro compra médicos, adquire amigos prestimosos/ (…) torna barato o que é caro, e suave o que é amargo.”[2] (ap. Wolff, 1995:62).

Qualquer semelhança com situações e personagens contemporâneas não é mera coincidência! A exemplo desta, são muitas as poesias de protesto da época. Outra, por exemplo, conhecida como “Canção da camisa”, atribuída a Chrétien de Troyes, por volta de 1180, levanta seu grito contra a situação de exploração de que são vítimas as mulheres tecelãs:

“Nós estamos sempre a tecer panos de seda/ E nem por isso seremos melhor vestidas/ (…) Mas, os nossos salários enricam/ Aquele para quem nós trabalhamos.” (Le Goff, 1983:65)

Há um leque consideravelmente amplo de grupos e movimentos medievais que apresentam variadas formas de resistência. Além dos já mencionados, há muitos outros, dentre os quais: os Cátaros, os Valdenses, os Begardos, as Beguinas, os Espirituais franciscanos, os Dolcinianos, os seguidores de Wycliffe e Huss, os Anabatistas…

Séculos depois das denúncias das tecelãs inglesas, a situação das classes populares inglesas continuava tão ou ainda mais grave. Não sendo ouvidos em suas denúncias, os camponeses e os artesãos ingleses não tiveram outra saída, a não ser organizar um levante contra seus cruéis senhores, marchando sobre as principais sedes do poder feudo-monárquico-clerical, tal como ocorreu ao Movimento dos Trabalhadores da Inglaterra, em 1381, fato precipitado pela famigerada poll-tax, uma decisão do Parlamento inglês de sobretaxar de novo a massa dos trabalhadores. Nessas incursões sediciosas, destacaram-se, entre outras, as figuras de Tylor Wat, que comandou a marcha sobre a Cantuária, e John Ball, um missionário popular ou um pregador itinerante, conhecido por seus sermões inflamados de enorme repercussão popular. Costumava reunir o povo, aos domingos, e pregar assim:

Minha gente, as coisas não podem ir bem na Inglaterra, nem irão melhorar, enquanto as riquezas não forem postas em comum, enquanto houver nobres e servos, e enquanto a gente não se unir.” (…) “Quando Adão cavava a terra com a enxada e Eva tecia, onde é que estavam os nobres?” (Wolff, 1993:192-194).

Nesse período da Idade Média houve, com efeito, não poucos grupos e figuras humanas que preferiram o sacrifício de suas vidas à submissão à tirania. Desse círculo de resistância fazem parte vários protagonistas – coletivos, individuais, mulheres e homens -, dentre os quais: o franciscanismo radicalizado, os cátaros, albigenses, os goliardos, as beguinas.

Aqui elegemos apenas o Movimento das Beguinas como alvo desta reflexão. Nosso propósito se restringe aos seguintes passos: destamos alguns leves traços sócio-históricos do período contemplado (século XII a século XIV); caracterizamos aspectos centrais do Movimento das Beguinas e, como terceiro passo, buscaremos explicitar seus principais traços instituintes, a partir de elementos biobibliográficos relativos a duas figuras expressivas desse Movimento: Hildegard de Bingen e Marguerite Porète. Por último, tratamos de recolher alguns ensinamentos do Movimento das Beguinas, que podem ecoar em algumas experiências da atualidade.

Embates sócio-históricos da chamada Baixa Idade Média

Com semelhanças e singularidades também características de outros tempos e lugares, o período conhecido como «Baixa Idade Média» ocidental, que se estende do século XIII ao século XV, também comporta traços relevantes, nas diferentes esferas da realidade social. Sua principal marca é a de constituir um período de transição do Feudalismo para o nascente Capitalismo comercial. Entram em profunda crise as estruturas feudais. As alterações se davam em todos os planos: da economia à cultura, passando pela demografia, pela política…

Tempo de crescente ambiência urbana (os burgos), época de significativas invenções tecnológicas, na área agrícola (aprimoramento do arado, do moinho hidráulico…). Também na parte econômica, as atividades comerciais conheceram um surto promissor, resultante inclusive de saques de mercadorias trazidas do Oriente, permitindo o surgimento de uma nova classe (a burguesia), empenhada em suas atividades comerciais, impulsionadas inclusive pelas feiras, influindo na formação dos burgos, no processo de urbanização, no êxodo rural, no crescimento demográfico, no surgimento das universidades, o que implicaria modificações no velho sistema feudal em decadência.

Não menos afetada é a grade de valores. Sopra um vento de liberalização de certos valores, afetando o controle rígido das estruturas religiosas ainda em vigor. Mas, os privilégios ainda reinavam, largamente. E de maneira ainda mais visível, despontavam as desigualdades sociais:

O ambiente em que essas novas heresias surgiram era essencialmente urbano. O desenvolvimento das cidades, após o século XI, colocou em evidência as profundas desigualdades sociais e econômicas existentes entre pobres e ricos. Aos olhos dos leigos ficou visível a diferença entre o que os representantes da Igreja pregavam (humildade, amor, fraternidade) e o que faziam (acúmulo de bens, riqueza material. (MACEDO, 1996, pp. 25-26).

Tempo também de retorno das heresias, agora com nova motivação. Se as heresias que haviam marcado o período que se estendeu do séculos IV ao século VII restringiam-se ao dissenso doutrinário, os movimentos pauperísticos medievais levantam-se para combater a alta hierarquia e seus aliados da nobreza, pelo fosso gritante entre suas prédicas e suas práticas…

Misturam-se, por outro lado, situações e ocorrências de intensa dominação por parte de setores hegemonizados principalmente pelas forças da alta hierarquia eclesiástica e seus aliados, mas, ao mesmo tempo, ainda que com intensidade e ritmo diferenciados, fatos e situações marcados pelo protagonismo, pela capacidade de resistência e pela inventividade, em diferentes domínios, por parte dos setores subalternizados, compostos por mulheres, camponeses, trovadores, mendigos, em resumo, os que compunham as maiorias mantidas à margem daquela ordem social.

Não se trata, por conseguinte, de sucumbir a uma leitura determinista, incapaz de dar conta da diversidade de cenários e de tantos segmentos sociais que se opunham, sob vários aspectos, àquele modelo imperante.

Com efeito, trata-se de um período em que a organização eclesiástica se impunha cada vez mais, a modelar suas estratégias de dominação, inclusive por meio da imposição de sua rigorosa grade de valores. Pela secular expropriação dos bens culturais do conjunto da sociedade, os setores da alta hierarquia eclesiástica iam, a ferro e fogo, consolidando seus privilégios. Tudo em nome de Deus… Escândalos se multiplicavam. E para se manterem e ampliar seu controle sobre o conjunto da sociedade daquele período europeu, os setores privilegiados não hesitavam em recorrer aos instrumentos mais cruéis de tortura e perseguição, de que a Inquisição seria o ponto exponencial.

Eram, em verdade, variados e eficazes os recursos e instrumentos de dominação, inclusive os de caráter ideológico, como o apelo ao controle do corpo – principalmente o corpo feminino, o corpo do camponês, o corpo do pobre, enfim. Armou-se uma vasta e complexa trama de castigos e punições, atingindo as raias da autopunição (cf., por ex.: MACEDO, 1996, pp. 64-71; COMBLIN, 2005), ocasião em que tais instrumentos e recursos alcançavam tal eficiência, que eram os próprios dominados a introjetarem as armas dos moninadores.

Foi asssim que o alto clero vai consolidando e ampliando seu poder, em detrimento do das mulheres, dos leigos, dos camponeses, dos artesãos, dos enfermos, dos prisioneiros, dos servos, etc.

Por outro lado, nunca se deve esquecer que, a despeito de toda vigência e de toda eficácia dessas estratégias, nunca faltaram sinais de resistência e de rebeldia por parte pelo menos de certos segmentos dominados, seja em âmbito individual, seja em âmbito coletivo. Disso é prova convincente o leque de movimentos sociais de resistência bem como de figuras que se rebelaram a essa ordem dominante.

Na esteira da resistência irrompem também as Beguinas

O período da Baixa Idade Média caracterizou-se, também, como tempos marcados pela resistência de grupos e de pessoas amantes da liberdade, que se opunham ao sistema totalitário controlado pelo alto clero e seus aliados. Nas palavras de um estudioso do referido período histórico,

Foram dezenas de seitas heréticas que surgiram durante os primeiros séculos da Baixa Idade Média, entre elas podemos citar os joaquinistas, os pseudo-apóstolos, os beguinos e beguinas também conhecidos como Irmãos Pobres da Penitência da Ordem de São Francisco, os arnaldistas, que pregavam uma reforma de clara tendência político-social, os flagelantes, os humilhados, todas elas defendendo uma nova ética cristã e diferindo da igreja na interpretação de algumas de suas doutrinas e dogmas. (PAIS, 1992, p. 58).

Nos diferentes cenários de atuação desses grupos, é considerável a participação das mulheres em quase todos os movimentos de resistência e de protesto contra a dominação totalitária exercida pela alta hierarquia da Igreja e seus aliados. É freqüente, por conseguinte, a presença feminina nos mais diversos movimentos de heresia: dos Cátaros aos “Fraticelli”; dos Valdenses e Albigenses aos Begardos e Beguinas, além de outros de caráter diferenciado, a exemplo dos Goliardos. Neles era notável o nível de participação das mulheres, em alguns dos quais – como no caso das Beguinas – tendo elas exercido um papel de reconhecida influência até sobre membros da hierarquia.

Nos estudos das fontes e documentos relativos a esse período histórico europeu, resulta impactante constatar o grau de protagonismo que se observa, no interior desses movimentos de heresias – alvo maior da perseguição movida pela alta hierarquia – por parte das mulheres, que aliás constituíam um contingente considerável, de variado espectro, incluindo solteiras, casadas, viúvas, camponesas, artesãs, pobres, ricas de nascimento tornadas pobres, sábias, mulheres das letras, leigas consagradas ao serviço dos pobres, entre outras características. (cf., por ex., LE GOFF, 1964; MACEDO, 1990).

Com efeito, nas mais diferentes expressões de resistência a toda aquela estrutura totalitária medieval, as mulheres tiveram um lugar destacado, seja do ponto de vista individual, seja também do ponto de vista coletivo. No que respeita à Baixa Idade Média da Europa Ocidental, por exemplo, elas estiveram presentes entre os membros da corrente radical do Franciscanismo, entre os Cátaros como entre os Valdenses e Albigenses. Protagonismo feminino também fortemente atuante no caso do Movimento das Beguinas, aqui tomado como alvo principal de nosso estudo.

O termo “Beguina” (“Begijnhof”, “Béguinage”) tem origem controvertida. Segundo alguns, estaria ligado a uma antiga tradição do século X, inspirada em Santa Bega[3]. Outros atribuem sua etimologia aos Albigenses: “al-bigen-enses”, enquanto há uma outra versão, segundo a qual teria origem em Lamberto, o gago, um frade de Liège, que teria destinado sua riqueza à fundação de um hospício, em Liège, onde teria acolhido as viúvas e os filhos dos que partiam para as cruzadas. (cf. BIHLMAYER & TUECHLE, 1964, pp. 240-241).

Seja como for, tratava-se de um movimento formado por mulheres devotas, dedicadas à causa dos pobres, com sólida formação humanizadora, de profunda sensibilidade aos valores do Sagrado (“embriagadas de Deus”) e à causa dos pobres, a quem desejavam servir e se consagrar, mas sem o controle rígido dos mosteiros e dar congregações dirigidas por homens, numa sociedade extremamente misógina.

Com relação às Beguinas, afirma um pesquisador nascido nos países baixos, onde tiveram marcante atuação:

As “beguinas” eram moças que não queriam entrar num mosteiro, queriam dedicar a vida ao serviço de Deus e do próximo. Até os 30 anos de idade viviam na casa de uma “beguina” mais velha. Ao completar 30 anos, passavam a viver sozinhas numa casinha. Dedicavam a vida ao trabalho, ao serviço dos pobres, doentes ou anciãos. Realizavam exercício de piedade em conjunto, mas cada uma tinha uma vida independente. Formavam às vezes ruas inteiras de casinhas semelhantes. Em certas cidades formavam uma cidade dentro da cidade (Begijnhof, Béguinage). (…) Em síntese, essas “beguinas” eram leigas, não faziam votos, viviam na pobreza e na piedade. Praticavam a continência, mas podiam sair da vida de “beguinas” quando quisessem. (COMBLIN, 1999, p. 126).

Sem prejuízo de seu trabalho junto aos excluídos da época, convém lembrar que sua atuação se estendia por diferentes campos de ação, inclusive na área das letras e da produção de saberes. Várias delas se notabilizariam como sábias e místicas, com grande influência na formação até de célebres místicos, a exemplo de Ruusbroec, Tauler e Eckhart. Além desse perfil, apresentam outra característica, relativa à sua atuação no campo das letras. E assim, vão se destacando figuras tais como Hildegard de Bingen (1098-1179), Hadewijch de Antuérpia, Hadewijch II, Béatrice de Nazareth (1200-1268), Mechtildes de Magdebourg (1207-1224), Marguerite Porete (1250-1310), Lutgardes de Tongeren, Yvette de Huy, Maria de Oignies, Cristina a Admirável, entre outras.

Convém ainda ter aqui presentes dois aspectos: não apenas a quantidade de nomes femininos ilustres, como sobretudo o caráter de suas produções, valendo ressaltar, como no caso de Hadewijch de Amberes, ter-se tratado da fundadora da língua flamenga, tal o pioneirismo e tal a qualidade atribuída à sua produção literária. (cf. ZUM., 1988; COMBLIN, 1998, ib., p. 127).

No tocante à qualidade dos escritos espirituais das beguinas, tal é sua relevância que, ao debruçar-se sobre as produções místicas dessas mulheres, assim afirma a pesquisadora Émilie Zum:

À medida que são feitas pesquisas nesse domínio, constata-se com maior certeza que esses temas já estavam presentes nos espirituais do século XIII, em particular em nossas beguinas, uma ou até várias gerações antes que Mestre Eckhart os tivesse tomado como seus. (ZUM, 1988, p. 23)[i][4]

Ao nos depararmos com casos tão atípicos, no que diz respeito ao protagonismo dessas mulheres, pelo menos um elemento nos resulta intrigante: como se tornou possível, numa época tão remota e, sobretudo, marcada pelo androcentrismo, encontrar-se elementos de resposta a esse dado? O que se observa é algo paradoxal: a despeito de toda hegemonia androcêntrica, as mulheres – pelo menos aquelas bem nascidas – tinham condições de estudo semelhantes às dos homens. (cf. COMBLIN, 1998, ib.)

Não era raro, àquela época, no caso de famílias de recursos, entregarem algum filho ou alguma filha aos cuidados de um mosteiro, ou mais precisamente, de um monge ou de uma monja. Graças ao acompanhamento desses, pois, os meninos ou as meninas iam aprendendo a ler, a escrever, a rezar os Salmos, a cantar, a tocar algum instrumento musical, aprender o ofício de copistas, além de outras habilidades.

Pelo menos aquelas figuras femininas exponenciais, em que pese toda a adversidade do meio, buscaram e encontraram alguns meios de formação, tendo inclusive tido escolarização, e aprendido o Latim e outras línguas hegemônicas da época, o que lhes permitiu acesso à leitura da Vulgata (com mais freqüência, os Salmos e os Evangelhos), bem como à leitura de alguns clássicos (entre eles, alguns padres da Igreja, a exemplo de Isidro de Sevilha[5], do século VI da era cristã). (cf., por exemplo, PERNOUD, 1996; ÉPINEY-BURGART, 1998).

Nesse contexto formativo, é que passamos a considerar alguns elementos biobibliográficos de algumas figuras femininas identificadas com o ideário das Beguinas, entre os séculos XII e XV, iniciando pela trajetória de Hildegard de Bingen.

Elementos bibliográficos para pesquisar a trajetória de algumas beguinas

Ao longo de mais de três séculos, durante a Baixa Idade Média, é que se deu a atuação das Beguinas, essas mulheres “embriagadas de Deus”, que, sentindo-se tocadas pela Palavra de Deus, tal como os profetas do Antigo Testamento, buscaram atender e ser fiéis aos apelos do Espírito, da “grande Luz”.

Uma consulta especialmente aos textos proféticos e apocalípticos bíblicos (do Antigo Testamento, em particular os livros dos profetas Daniel, Ezequiel, Isaías e Jeremias, mas também o Apocalipse) ajuda a perceber a semelhança dos relatos das visões e profecias produzidos por essas mulheres. Dois aspectos aí se destacam: a forma do chamamento e o relato de visões. É notória, nos relatos vetero-testamentários, a freqüência de expressões como “Ouve e dize”, “Eis o que diz o Senhor”. Trata-se dos aspectos fundamentais componentes do cenário da vocação profética. É constante nas profecias de Isaías, Jeremias e de outros chamamentos, como o feito por Javé a Moisés.

Quanto ao segundo traço a merecer destaque, tem a ver com o relato de visões, expressando a forma como Javé se dirige aos chamados. Na profecia de Joel, por exemplo, lê-se o desejo da parte de Deus, de que os membros do seu Povo – os idosos, os jovens, as jovens – tenham visões, como forma do exercício de profecia. (cf. Livro de Joel, cap. 3).

Com essas observações iniciais, tratemos, a seguir, de fornecer uma breve notícia biobibliográfica de algumas dessas sábias místicas medievais.

A primeira delas é Hildegard de Bingen, região alemã em que viveu, entre 1098 e 1179. Nascida em Bermersheim, de origem de família da nobreza, “filha de baróes”, foi ainda criança entregue pelos pais aos cuidados pedagógicos de Jutta de Sponheim, uma monja beneditina da região, a quem foi confiada a educação da criança. Não se tratava de uma prática estranha à época. As famílias de posse costumavam recorrer a um mosteiro ou a monges ou monjas, para que cuidassem da educação de seus filhos e filhas.

A partir de sua introdução aos ensinamentos religiosos, após os rudimentos da língua, eram-lhes também ministrados conteúdos básicos como cantos, instrumentos musicais, elementos da Sagrada Escritura em Latim, tais como os Salmos e os Evangelhos, inclusive fragmentos dos clássicos, dos padres da Igreja, além de outros ensinamentos e habilidades.

Desde logo, Hildegard revelou-se uma criança talentosa, muito afeita a diferentes áreas de saberes, desde elementos relativos à saúde, aos dotes musicais. Não é à-toa que, já adulta, viria a compor cerca de setenta sinfonias. (cf. PERNOUD, 1988).

Quanto aos seus escritos, Hildegard se apresenta como uma escritora fecunda, havendo produzido um número considerável de obras, versando sobre distintos temas, predominando seus escritos místicos, fruto da revelação divina.

Com efeito, a partir dos seus quarenta e três anos, Hildegard, à semelhança do que se passa com as visões tidas pelos profetas do Antigo Testamento e do Livro do Apocalipse, vai ser constantemente alvo de revelações que lhe são proporcionadas por sucessivas visões, como ordens de Deus. Reagindo a um desses registros, uma pesquisadora comenta: “Não é sem hesitação que se recebe semelhante mensagem. Hildegard fala de sua ansiedade e insiste no caráter muito nítido, imperioso, pode-se dizer, da ordem que lhe é dirigida.” (PERNOUD, 1996, p. 18).

Dentre eles, aqui destacamos: Scivias seu Visiones (“Saiba os caminhos de Deus ou as visões”, produzida entre 1141 e 1151); Liber divinorum operum simplicis hominis (Livro das obras divinas do homem simples, escrita entre 1163 e 1173, e considerada seu trabalho mais completo. São também de sua lavra: Explanatio Regulae Sancti Benedicti (Exposição da Regra de São Bento), Hymnodia coelestis (Hinário celeste), entre outros.

Tudo começa, quando completa 43 anos, e recebe uma visão, instando-a a registrar a ordem divina:

Eis que no quadragésimo ano do meu curso temporal, toda trêmula de emoção, vi um magno esplendor e ouvi uma voz do céu que me dizia: “Ó homem frágil, cinza da cinza, podridão da podridão, diz e escreve o que vês e ouves (…) diz e escreve, não segundo a boca do homem nem segundo a inteligência de uma invenção humana, nem segundo a vontade de compor humanamente, mas segundo o que vês e ouves de celestes maravilhas vindas de Deus. (Hildegard, in Scivias, ap. Hildegard segue a explicar por que somente então passa a tornar público o que, desde criança, vinha tendo, bem como a descrever o caráter dessas visões:

Não tive as visões em estado de sonolência ou dormindo, nem em êxtase, nem por meus olhos corporais nem por meus ouvidos humanos exteriores (…) mas é estando acordada que eu as vejo com meus olhos e com minhas orelhas humanas, interiormente. (Ib., p. 18).

Que mensagens da parte de Deus lhe são confiadas? Uma delas, por exemplo, traz um tom de denúncia contra o clero, em suas ações desregradas:

Os que velam por mim, ou melhor, os padres, que deveriam tornar o meu semblante rutilante como a aurora, e graças aos quais minha vestimenta deveria brilhar como o relâmpago, e meu manto cintilar de pedras preciosas, e meus calçados irradiar a alvura, eis que eles espargiram pó sobre o meu rosto, rasgaram minha vestimenta, ensombrearam meu manto e enegreceram meus calçados. Esses que deveriam ornar cada parte de mim arruinaram-me em cada coisa. (Ib., ap. PERNOUD, p. 120).

O quadro geral alvo dessas denúncias proféticas iria agravar-se sensivelmente, nas décadas ulteriores, justificando o aumento e a intensidade das denúncias por parte de vários movimentos e figuras que se seguiriam a Hildegarde de Bingen.

Um desses movimentos, por exemplo, se notabilizaria a partir de meados do século XIII, percorrendo áreas de vários países europeus (Itália, França, Inglaterra, Espanha). Trata-se do movimento dos chamados Apostólicos, os “Fraticelli”, de forte inspiração franciscana, animado por figuras tais como Geraldo Segarelli e por Frei Dolcino. Insurgindo-se contra os crescentes abusos e escândalos do alto clero e da ordem então dominante, esse movimento tratou de denunciar esse modelo e, ao mesmo tempo, ensaiar, jnnto aos pobres, um projeto alternativo, com base nas primitivas comunidades cristãs. Pregavam contra a alta hierarquia, experienciavam uma vida de pobres entre pobres, na solidariedade, na partilha, na oração, no serviço aos pobres:

A seita dos Apostólicos fundada por Segarelli por volta de 1260 compõe o quadro dos movimentos pauperísticos e milenaristas que floresceram, em grande número, naquele período. Levavam uma vida de muito jejum e roação, trabalhando ou pedindo esmolas, não praticavam o celibato obrigatório. A cerimônica de admissão dos novos seguidores previa o despojamento das vestes em público, para representar a pórpia nudez perante Deus, como Francisco havia feito. Pregavam a obediência às Escrituras, que implicava a desobediência aos pontífices; exercitavam a pregação intinerante pelos leigos. Pregavam a iminência do castigo celeste provocado pela corrupção dos costumes eclesiásticos, a observância dos preceitos evangélicos e a pobreza absoltua. Este último ponto acarretou obviamente a ira da igreja de Roma (http.it.wikipedia.org/wiki/Fra´_Dolcino).[6]

Antes e depois dos Apostólicos, surgiram várias outras místicas, direta ou indiretamente ligadas ao Movimento das Beguinas. Como se sabe, mesmo afinadas com o ideário das Beguinas, nem todas essas mulheres tiveram o mesmo caminho. Nem todas viveram foram dos conventos, algmas até votos formais pronunciaram. O caso de Beatriz de Nazareth evoca esse estilo misto.

Para sublinhar outro relevante aspecto relativo ao percurso existencial de Hildegart de Bingen, convém chamar a atenção para o pioneirismo de suas idéias em relação à Modernidade. Focando justamente esse caráter precursor dessa beguina, e aludindo a duas miniaturas (atribuídas a Leonardo da Vinci), “representando um homem de pé, braços estendidos, destacando-se o círculo que simboliza o mundo”, afirma uma respeitada pesquisadora de sua obra:

Mais de três séculos antes do nascimento de Leonardo, esta visão do homem, braços abertos sobre o globo da Terra, está presente na obra da pequena abadessa das margens do Reno. Entretanto, quanto mais Leonardo da Vinci é estudado, pesquisado, enaltecido e divulgado nos tempos clássicos e modernos, mais a obra de Hildegard – e a de sua época em geral – são esquecidas.(PERNOUD, 1996, p. 69).

Algo parecido também ocorre, aliás, em relação à pretensa exclusividade de autoria dos ocidentais, quanto a descobertas e invenções da Modernidade. O que aí tem havido de omissão ou de usurpação acerca da verdadeira autoria de descobertas e invenções por parte de povos não-europeus é algo espantoso. Sobre isso ver, por exemplo, o recentíssimo estudo realizado por Eduardo Galeano, em seu livro intitulado Espejos. Una historia casi universal, publicado pela Siglo XXI, que ajuda a colocar muitos pontos nos is: acerca da verdadeira autoria de invenções como a da escrita, a da álgebra (ambas inventadas no Iraque)… E o quê dizer sobre o fato de que “As três novidades que tornaram possível o Renascimento europeu, a bússola, a pólvora e a imprensa, haviam sido inventadas pelos chineses, que também inventaram quase tudo que a Europa reinventou.”?

Mas, vejamos um segundo exemplo de beguina: Marguerite Porète, nascida na França, em Valenciennes. Estima-se que tenha vivido entre 1250 e 1310. Pouco se sabe de seus traços biográficos. À semelhança de outras figuras amantes da liberdade, nesse período, o sistema totalitário então vigente encarregou-se de apagar vestígios. O pouco que se sabe, dela e de outras figuras semelhantes, é graças a registros de seus inimigos. Como lembrava um estudioso marxista, seria como pretender-se saber da vida dos opositores de Stalin por meio dos registros produzidos pelos seus apoiadores… Grande desafio! Mas, até esses registros podem atestar elementos de verdade que se quis esconder.

No caso de Marguerite Porète e de outras beguinas, observa-se o furor da alta hierarquia eclesiástica contra a enorme coragem profética de mulheres livres que ousavam compartilhar relatos de suas visões. É o que acontece também a Marguerite Porète, que pertence à mesma corrente das beguinas que sacudiram os fundamentos da cristandade, mesmo tando que pagar caro: Marguerite de Porète seria queimada viva, em Paris, no dia primeiro de junho de 1310, por haver escrito Le Miroir des âmes simples anéanties, uma obra-prima da literatura mística de todos os tempos, que passaria a influenciar figuras místicas como Mestre Eckhart, João da Cruz, entre outras.

O livro produzido por Marguerite Porète é constituído de 139 capítulos, cuja extensão varia entre algo como sete páginas (é o caso, por exemplo, do cap. 118) e meia página (a exemplo do cap. 138). Trata-se de breves relatos circunstanciando, com arte, beleza e profundidade, diferentes dimensões dialogais resultantes da relação amorosa entre o Amor (a Deus) e a Alma (a figura humana, que ela personifica).-Diálogos que nos remetem ao estilo do Livro do Cântico dos Cânticos, muito escanteado, até hoje. “Et pour cause!”

Quê diálogos são aí relatados por esssa mística extraordinária? Vejamos alguns trechos.

Já de início, percebemos algo profundamente impactante. A Autora adverte – e assim se lê em outras passagens – de que se trata de um diálogo aberto e interligível apenas para quem se põe em sintonia com o Amor:

Voz do Amor: Escutai, ó vós, ativos e contemplativos, talvez mesmo aniquilidados por verdadeiro amor, vós que ides escutar alguns prodígios do puro amor, do amor nobre, do amor educado, da alma liberta, vós que ides escutar como o Espírito Santo nela pôs sua vela como em seu navio, peço-vos por amor: escutai com grande empenho e com esse entendimento sutil que tendes em vós, e que se acha bem atento! Do contrário, por não estarem com essa disposição, todos os que ouvirem isso, irão comprender mal! (PORÈTE, 1997, p. 51).[7]

Quem se põe, por exemplo, do ponto de vista estritamente racional, não logrará alcançar a mensagem, apenas acessível a quem se mune com as lentes do coração, do Amor que é o prórpio Deus. Eis por que, no capítulo 5, por exemplo, se acha um dos elementos de profundo entrave na relação com a alta hierarquia que, atribuindo-se qualidades divinas, não tolera o exercício de nenhum dom que não passe pela sua autorização: referimo-nos à relação direta de Deus com as pessoas, sem intermediários. Falando do desejo da Alma, eis o que relata Porète:

Essa alma tem seis asas como os Serafins. Ela não não quer nada que venha por um intermediário, o que é do próprio estado dos Serafins: não há nenhum intermediário entre o amor deles e o amor divino. Recebem sempre a mensagem d´Ele sem intermediário. Do mesmo modo, esta alma a recebe, porque não busca a ciência divina entre os senhores deste mundo, mas com verdadeiro desprezo desse mundo e dela própria. Meus Deus! Como é grande a diferença entre um dom que o Bem-Amado concede à sua bem-amada, por um intermediário, e o que é feito sem intermediário! (PORÈTE, 1997, p. 55).[8]

Para alcançar tal nível de liberdade, há de se dispor ao aniquilamento de si, para que aí reine a própira Liverdade: Deus. Este mesmo Deus que se apresenta para a Alma como um “Longe-Perto que a põe continuamente em união com o seu querer, sem desgosto do que quer que lhe possa suceder.” (PORÈTE, 1997, pp. 230-231).

Deus passa a ser o único soberano, como o assinala um dos estudiosos da Autora:

A soberania do Um exige o aniquilamento de toda forma de alteridade suscetível de apequenar sua plenitude. É isso que a bondade de Deus espera da alma: que ela Lhe confie sua própria existência, ou seja: “toda a diferença” que a distinga do divino. Deus, esse ser ciumentíssimo, só tem um desejo: que ela Lhe entregue gratuitamente – “sem nada questionar” – o seu ser, que se confunde, para Porete, com a essência da humanidade: uma vontade livre. (RICHIR, 2003).[9]

Vários elementos que se recolhem desta Autora podemos encontrar em outras do mesmo período. Aspectos como a liberdade, a linguagem amorosa, a relação direta com Deus, entre outros, podem ser observados em outras, também. Além dos textos impressos, já se encontra algum material em páginas eletrônicas. Inclusive a propósito de Marguerite Porète:

Assim, deixando seu ego tornar-se “fogo de Amor”, a alma descobre-se tal qual é e sempre foi: unida ao Amor. Doravante, ela “nada mais quer, porque é livre”. Totalmente realizada num Amor que escapa à razão, ela sobrevôa acima de todas as referências, dos rituais, da oração, da virtude, dos dogmas. Eis por que Marguerite faz a distinção entre a “pequena-igreja… feita de gente governada por Razão” e a “Grande-Igreja” formada pela comunidade de almas livres. São tantas as passagens que suscitaram o furor da autoridade eclesiástica já irritada pelo alto conhecimento espiritual das Beguinas.

Vendo essas idéias uma oposição intensa e um sacrilégio à instituição católica, a Inquisição condena e queima a obra, julgada herética, em 1306. Mas, Marguerite continua a propagar suas idéias entre religiosos e leigos, mas vendo-se isolada como nunca. Porque, se sua mística singular lhe valeu a perseguição por parte da Igreja, ela permaneceu também marginalizada no seio das próprias Beguinas. Em pouco tempo transportada a Paris, em 1310, ela é condenada por heresia e perece dignamente na fogueira. [10]

( http://www.fraternet.com/magazine/etr_0802.htm)

Por meio desses curtos trechos recolhidos de sua obra preciosa, pode-se entender o perfil profundamente místico, ético e profético dessa Autora, o que nos ajuda sobremaneira a compreender toda a carga de ira de que foi vítima da parte da alta hierarquia eclesiástica. Seu processo não deixa dúvidas a esse respeito.

Vale, por último, reter dessa mulher “embriagada de Deus” alguma palavra que nos convida à reflexão:

Eis o que de melhor tenho a dizer e a aconselhar a todos os que vivem sob minha obediência. Assim, digo a todos que ninguém queira ler este livro com a minha inteligência, mas que todos o leiam pela virtude da Fé e pelo poder do Amor, que são minhas senhoras. Eis por que em tudo eu lhes obedeço. Além disso, quero dizer, assim fala a Razão, quem tiver essas duas cooisas em sua vida, isto é, a luz da Fé e o poder do Amor tem permissão para fazer tudo o que lhe agrade, por mercê do próprio Amor que diz à Alma: Meu amor, ame e faça o que quiser.”[11]



Outras mulheres se notabilizaram, nesse período. Tivemos aqui – e rapidamente – ocasião de nos ater a apenas dois casos. Não passam de um aperitivo, a nos convidar a vôos mais ousados. Revisitando seus relatos, suas cartas, seus escritos, não tardamos a chegar a entender por que, por exemplo, não apenas elas, como outras figuras desse e de outros movimentos de resistência, amplamente influenciados pelos Franciscanos radicais, foram proibidos de pregar e de atuar como missionários e missionárias. A alta hierarquia chegou a proibir o povo até de dar-lhe esmolas. Mas, também é certo que ousaram levar a sério a palavra da Sagrada Escritura, de que “é preciso obedecer, antes a Deus, do que aos homens”(At 5, 29).

Considerações sinópticas

Dos rápidos elementos acima trabalhados acerca da contribuição dos movimentos medievais, em especial o das Beguinas, convém sublinhar alguns pontos a recolher como inspiração às lutas e aos desafios dos dias presentes.

Um primeiro ponto que destacaríamos é precisamente a força revolucionária da experiência de luta libertária, quando feita em movimento. Não é por acaso que, em todos os tempos, são os movimentos sociais populares, com seus parceiros e aliados, os protagonistas mais relevantes das mudanças sociais conquistadas.

Também, no caso da Baixa Idade Média européia, essas iniciativas instituintes, inclusive por meio de mobilizações e levantes, a despeito de haverem sido duramente reprimidas, deixaram suas lições. Quando se afirma que liberdade que se preze não vem de graça, nem como dom dos poderosos, mas, sendo uma conquista, só se consegue com muita luta, não é à-toa que se diz. A História está aí a atestar…

Isso não quer dizer que baste uma única iniciativa, nem que elas sejam todas bem sucedidas. De modo nenhum. É preciso saber que arrancar uma conquista social relevante quase sempre supõe um acúmulo de iniciativas, a maioria das quais frustradas, mas chega um dia em que uma começa a dar certo, e compensa as frustrações amargadas e o alto preço social pago.

No caso das Beguinas, como foi analisado, sua ação de resistência se dá mais expressamente no plano cultural, a exemplo dos Goliardos. Desejosas de exercitar sua religiosidade de modo alternativo, isto é, por fora do figurino ditado pelas normas das congregações religiosas, as Beguinas trataram de assegurar as condições para, como se dizia à época, “extra religionem religiose vívere”, ou seja: viver a experiência do Sagrado, fora dos quadros institucionais.

Trataram – pelo menos, várias delas -, por conseguinte, de não aderir a nenhuma congregação, nem à vida em claustro, nem à profissão solene permanente de votos perante a autoridade eclesiástica. Foram viver sua experiência do Sagrado junto aos pobres, a quem se dedicaram, solidárias, em serviços múltiplos, junto aos excluídos da época, junto às “ovelhas sem pastor”: os enfermos, os idosos, os órfãos, as mulheres abandonadas pelos maridos, as concubinas, as vítimas da prostituição…

Eram mulheres livres, ciosas de sua independência, trabalhavam para se manterem. Independentemente de sua origem social – algumas vinham de condições econômicas privilegiadas -, faziam questão de manter um padrão de pobreza como estilo de vida, como testemunho do caráter de sua espiritualidade, em sinal de sua solidariedade aos excluídos da época, e em protesto contra os desmandos e o monopólio clerical da pregação, ao que opunham sua ousadia de pregar publicamente.

Algumas delas se notabilizaram pela sua erudição, como poetisas, como escritoras, a exemplo de Marguerite Porète, francesa, autora de um tratado de espiritualidade escrito em vernáculo, cujas idéias lhe custaram o sacrifício da fogueira pela Inquisição, em 1310; Hadewijch de Amberes, a quem se atribui a fundação da língua flamenga escrita. (cf. Falbel, 1977:81; Comblin, 1998:125-129; Rezende, 1999). Pelo menos sob certos aspectos, o movimento das Beguinas comporta alguns elementos de contribuição ou de certo pioneirismo instituinte quanto a valores feministas, especialmente os que se caracterizam pela valorização da condição feminina.

Nesse sentido, alguns pontos podem ser destacados, como aspectos a serem recolhidos desse rápido exercício investigativo.

Em que pese alguma variação de circunstâncias histórico-existenciais e de estilos, tratou-se globalmente de um movimento de mulheres leigas que buscavam viver a sua fé para além dos muros dos conventos e mosteiros. Isso implicou para uma parte expressiva daquelas mulheres viverem em pequenas comunidades, em casas simples, dedicando-se à oração, ao trabalho (intelectual e manual), e ao serviço dos excluídos daquela época, sem que para tanto se sentissem obrigadas a professar votos perpétuos ou a se integrar organicamente numa instituição eclesiástica, sob o controle masculino da alta hierarquia.

Algumas dessas mulheres se notabilizaram sobremaneira pelo caráter instituinte do seu trabalho e pela qualidade de sua produção intelectual, em diferentes áreas de saberes: da teologia à medicina, da cosmologia à condição humana, em geral. Em alguns casos, foram, sob vários aspectos, precursoras de valores da Modernidade, a despeito da manutenção de um longo e incômodo silêncio.

Seu caráter instituinte ecoa até os dias de hoje. Ficou bem conhecida, especialmente no Nordeste brasileiro, a fecunda experiência das Comunidades Religiosas Femininas Inseridas no Meio Popular (as PCIs), tão bem estudas na pesquisa de dissertação, a Socióloga e Educadora Valéria Rezende (cf. REZENDE, 1999). Eram formadas de religiosas de diferentes congregações que, ousando “romper muros”, trataram de sair dos seus confortáveis conventos para irem fazer a experiência da vida junto com os pobres, nas periferias das cidades e na zona rural: as beguinas do novo tempo.

Referências

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CALADO, Alder Júlio Ferreira. Memória Histórica e Movimentos Sociais: ecos libertários de heresias medievais na contemporaneidade. João Pessoa : Idéia, 1999.

COMBLIN, José. Vocação para a Liberdade. São Paulo: Paulus, 1998.

______________. Cristianismo e corporeidade. In: SOTER (Org.) Corporeidade e Teologia. São Paulo: Soter e Paulinas, 2005, p. 7-20.

______________. Vida em busca de Liberdade. São Paulo: Paulus, 2007.

ÉPINEY-BURGART, Georgette (Org.). Femmes Ttoubadours de Dieu. Bruxelles: Éditions Brepols, 1988.

FALBEL, Nachmann. Heresias Medievais. São Paulo : Perspectiva, 1977.

_________________, Os Espirituais Franciscanos. São Paulo : EDUSP-FAPESP-Editora Perspectiva, 1995.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. Idade Média : o nascimento do Ocidente. São Paulo : Brasiliense, 1986.

HADEWICH DE AMBERES. Deus Amor e Amante. São Paulo: Paulinas, 1989.

LE GOFF, Jacques (Org.). Hérésies et sociétés dans Europe pré-industrielle. 11e.-XVIIIe. siècles. Paris: Mouton & Co et École Pratique des hautes Études, 1964.

MACEDO, José Rivair. A Mulher na Idade Média. São Paulo : Contexto, 1990.

_________________. Religiosidade e Messianismo na Ida Média. São Paulo: Moderna, 1996.

MARIANI, Ceci Baptista. Marguerite Porete, um corpo que se fez espelho de Deus – Estudo sobre o problema da inacessibilidade do transcendente e do ideal de inalterabilidade na obra mística de Marguerite Porete, Le Miroir des âmes simples et anéanties. In : Veritas, revista da PUC – RS, vol. 48, n. 3, 2003, pp. 427-440.

PAIS, Marco Antônio de. Oliveira. O Despertar da Europa. A baixa Idade Média. São Paulo : Atual, 1992.

PERNOUD, Régine. Hildegard de Bingen. A consciência inspirada do século XII. Tradução de Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

PORETE, Marguerite. Le Miroir des âmes simples et anéanties. Introduction, traduction et notes de Max H. Longchamp. Paris: Michel Albin, 1997.

REZENDE, Maria Valéria. Vidas rompendo muros : as pequenas comuunidades religiosas inseridas no meio popular no Nordeste. Dissertação de Mestrado. João Pessoa, UFPB/PPGS, 1999.

ZUM, Émilie. Introduction, in ÉPINEY-BURGART, Georgette (Org.). Femmes Ttoubadours de Dieu. Bruxelles: Éditions Brepols, 1988.

WOLFF, Philippe. O Outono da Idade Média ou a Primavera dos Tempos Modernos? São Paulo : Martins Fontes, 1988.

——- Les béguines au Moyen Age (XIIe – XIVe. siècle) Des Femmes livres de Dieu, in:

http://calenda.revues.org/nouvelle2335.html

Alder Julio Ferreira Calado é sociólogo e educador popular, membro do Grupo Interdisciplinar de Estudos Medievais. Autor de, entre outros, Memória Histórica e Movimentos Sociais: ecos libertários de heresias medievais na contemporaneidade. João Pessoa: Idéia, 1999.

Notas:
[1] Ver cuidadosa tradução de parte da extensa obra Carmina Burana, feita por Maurice WOENSEL, Maurice van (Introd. e trad.). Carmina Burana. São Paulo: Ars Poetica, 1994.

[2] Repare, neste item, a semelhança com os versos que dizem “Poderoso cavalheiro é dom dinheiro”, também oriundos da poesia medieval espanhola, salvo engano. Karl Marx, em citação do Fausto de Goethe, em seu manuscrito Terceiro, no item intitulado DINHEIRO (Manuscritos Econômicos e filosóficos de 1844, in Erich Fromm, Conceito Marxista do Homem, Rio de Janeiro, Zahar Editores), também situa a mediação universal do dinheiro (torna o coxo o mais veloz dos corredores, por exemplo) como inversor de valores e de relações humanas com as coisas, as pessoas, o mundo e a realidade como um todo. Rolando Lazarte

[3] “Die Herkunft des Namens Beginen oder Begarden ist bis heute nicht eindeutig geklärt. Erzählungen in Verbindung mit dem Namen der Hl. Begga die in einer späteren Epochl.” (http://de.wikipedia.org/wiki/Beginen)

[4] “Au fur et à mesure des recherches en ce domaine, on constate avec plus de certitude que ces thèmes étaient présents chez les spirituels du treizième siècle, en particulier par nos béguines, une ou même plusieurs générations avant que Maître Eckhart ne les ait fait siens.” (E.ZUM, 1988, p. 23).

[5] Isidro de Sevilla constitui uma das figuras de referência dentre os chamados Padres da Igreja, homens sábios, teólogos, que tiveram grande influência para muito além do seu tempo. De Isidro, afirma-se que “sus ideas filosóficas se encuentran expuestas, principalmente en los Libri Sententiarum y en las Etimologías; el Liber de viris illustribus es altamente interesante como repertorio de personajes de la época y el Chronicon y la Historia de regibus gothorum, wandalorum et suevorum, sus obras históricas más notables. Mas ninguna de las obras del sabio arzobispo es tan representativo como Originum sive etymologiaum libri XX, denominada vulgarmente Etimologías, resumen admirable dela cultura clásica, fruto de vastísima y fecunda asimilación, que se convirtió en indispensable en toda biblioteca de la Edad Media. Las Etimologías, se convirtieron en el texto pedagógico más importante de su época. Los libros I y II están dedicados al Trivium; el III, al Quadrivium; el IV, a Medicina; el V, a Derecho y Cronología; VI, VII, y VIII, a Teología y Cánones; el IX, a Política y Sociología; el X, a Lexicología; XI y XII, a Zoología; XIII y XIV, a Geografía; XV, a Arquitectura y Agrimensura; XVI, a Mineralogía; XVII, a Agricultura; XVIII, a Milicia; XIX, a Marina, y XX, a Artes Manuales. El arzobispo de Sevilla fue canonizado en 1598 y el Papa Inocencio XIII, en 1722, lo declaró doctor de la Iglesia. Y como dijo el sabio de Sevilla: “Perdona para que se te perdone, olvida para que se te olvide”. (Francisco Aria Solis, in http://www.analitica.com/va/arte/documentos/3143478.asp

[6] “Essi conducevano una vita con frequenti digiuni e preghiere, lavorando o chiedendo la carità, senza praticare il celibato forzoso: la cerimonia di accettazione dei nuovi seguaci prevedeva che pubblicamente si spogliassero nudi, per rappresentare la propria nullià davanti a Dio, come aveva fatto san Francesco; predicavano l’ubbidienza alle Scritture, che portava alla disobbedienza ai pontefici, la predicazione ambulante dei laici, l’imminenza del castigo celeste provocato dalla corruzione dei costumi ecclesiastici, l’osservanza dei precetti evangelici e la povertà assoluta. Quest’ultimo punto, ovviamente, portò alle ire della Chiesa di Roma ed i dolciniani stessi furono accusati di depredazioni e accaparramenti decisamente maggiori di quelli strettamente necessari a garantire la loro semplice sopravvivenza”. (http.it.wilipedia.org/wiki/Fra´_Dolcino).

[7] “Amour dit ici: O vous, actifs et contemplatifs, peut-être même anéantis par amour véritable, vous qui allez écouter quesques-uns des prodiges de l´amour pur, de l´amour noble, de l´amour élevé, de l´âme libérée, vous qui allez écouter comment le Saint-Esprit a mis sa voile en elle comme en son navire, je vous en prie par amour: écoutez en grande application de cet entendement subtil qui est en vous, et qui est en grande diligence! Autrement, faute d´être ainsi disposés, tous ceux qui entendront cela, le comprendront mal.” (Porète, 1997, p. 51)

[8] «La souveraineté de l’Un exige l’anéantissement de toute forme d’altérité susceptible d’amoindrir sa plénitude. C’est ainsi que la «bonté» de Dieu attend de l’âme qu’elle lui sacrifie son existence même, à savoir «toute la différence» qui la distingue du divin. Dieu, ce «Trés Haut Jaloux», n’a qu’un désir : qu’elle lui fasse gracieusement don – «sans pourquoi» – de son être, lequel se confond, pour Porete, avec l’essence de l’humanité : une volonté libre. (Commentaire de Luc RICHIR, dans son livre : « Marguerite Porète, Le Miroir des âmes simples et anéanties. Titre de son livre : Marguerite Porèste : une âme au travvail de l´Un. Bruxelles: Ousia, 2003.).

[9]

[10] “Ainsi, en laissant son ego devenir lui-même « feu d’Amour », l’âme se découvre telle qu’elle est et a toujours été : unie à l’Amour. Désormais, elle « ne veut plus rien puisqu’elle est libre ». Totalement accomplie dans un Amour qui échappe à la raison, elle vole au-dessus de tous repères, des rituels, de la prière, de la vertu, des dogmes… C’est pourquoi Marguerite fait la distinction entre la « petite église… faite de gens gouvernés par Raison » et la « Grande Eglise » formée par la communauté d’âmes libres. Autant de passages qui ont suscité les foudres de l’autorité ecclésiastique déjà agacée par la haute connaissance spirituelle des Béguines. Voyant dans ces propos une opposition farouche à la morale et un sacrilège de l’institution catholique, l’Inquisition condamne et brûle l’ouvrage jugé hérétique en 1306. Mais Marguerite continue à propager ses idées parmi religieux et laïcs, plus seule que jamais. Car si sa mystique singulière lui a valu la persécution de la part de l’Eglise, elle demeura somme toute assez marginalisée au sein même des Béguines. Bientôt transportée à Paris en 1310, elle est condamnée pour hérésie et périt dignement sur le bûcher.” ( http://www.fraternet.com/magazine/etr_0802.htm)

[11] “… This is the best, says Reason, that I know how to say and consel all those who live by my obedience. Thus I say to all, that none will grasp this book with my intellect, unless they grasp it by the virtue of Faith, and by the power of Love, who are my mistresses because I obey them in all things. And moreover I wish to say, says Reason, whoever has these two strings in his bow, that is, the light of Faith and the power of Love, has permission to do all that pleases him, by the witness of Love herself that says to the Soul: My Love, love and do what you will.” (http://www.geocities.com/ganesha_gate/porete.html)

http://www.consciencia.net