terça-feira, 31 de agosto de 2010

Nefertiti: Mulher Maravilha


Nefertiti: Mulher Maravilha
Ela se casou com o homem mais poderoso do mundo, tornou-se sacerdotisa de uma nova religião e acabou adorada como deusa. No fim da vida, governou sozinha o maior império de seu tempo
por Cláudia de Castro Lima
Poucas vezes durante os quase 10 mil anos da história da humanidade a pessoa mais poderosa do mundo foi uma mulher. No Egito do século 14 a.C., no entanto, uma bela rainha que se tornaria deusa, liderou o mais poderoso império sobre a terra. E por quase 20 anos, Nefertiti foi a pessoa mais poderosa do planeta.
O ano era 1348 a.C. e o Egito encontrava-se em sua 18ª dinastia, uma época de prosperidade e riqueza, sustentadas pela relações comerciais com os vizinhos da Mesopotâmia e da Ásia Menor. Era um tempo de paz, quando a diplomacia egípcia evoluiu a ponto de surgirem impensadas alianças com povos antes belicosos, como o reino Mitani. Mas, se da cerca para fora tudo parecia tranqüilo, em casa um furacão se formava. No quarto ano de seu mandato, o faraó Amenhotep IV tomou a decisão que mudaria a história de sua vida e alteraria completamente a doce vida no Egito.
Amenhotep IV assumiu aos 16 anos a co-regência de seu país ao lado de seu pai no 28º ano de reinado de Amenhotep III. Em 1352, após a morte do pápi, ele iniciou carreira solo e, aos poucos, foi colocando as manguinhas de fora. Sem grandes explicações, o novo faraó resolveu substituir o culto ao deus Amon-Ra, o mais importante da época, pela adoração ao deus-sol Aton, representado simplesmente pelo círculo solar. Trocou seu nome para Akhenaton e proclamou-se o enviado do novo deus, em cuja homenagem mandou erigir uma cidade sagrada, Akhetaton, conhecida hoje como Tell El-Amarna, e para lá transferiu a capital do Egito, para desespero dos sacerdotes de Karnak. Antes, avisou: “Ninguém, nem mesmo minha esposa, me fará mudar de idéia”.

Mulher do rei
A influente esposa citada nos discursos do faraó – fato raríssimo para a época, e que, por si só, já demostra a importância da rainha – era Nefertiti. Não se sabe exatamente quando, nem onde Nefertiti – nome que significa “é chegada a bela” – nasceu. É possível que Ay, um alto funcionário de Amehontep III, pai de Akhenaton, fosse o pai da moça e que ela tenha tido algum grau de parentesco com a rainha Tiye, mãe de Akhenaton e mulher muito influente na 18ª dinastia.
De acordo com o egiptólogo (historiador especializado em antigo Egito) Antonio Brancaglion Junior, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), embora haja quem acredite que Nefertiti veio do reino de Mitani para o harém de Amenhontep III, herdado por Akhenaton, há evidências de que Nefertiti era egípcia. “Isso se reforça pela tese de que Tiye e Nefertiti fizeram uma aliança: a primeira teria escolhido a segunda para ser esposa de seu filho e assim continuar tendo influência no reinado de Akhenaton, após a morte do pai dele”, diz Antonio.
Nefertiti só passa a existir oficialmente após seu casamento com Amenhotep IV, quando ela tinha 14 anos. É quando começa a aparecer eminscrições em estelas e talatats, pequenos blocos de pedra, a base das construções egípcias. Uma das duas mulheres de Akhenaton – a principal, que possuía o título de Grande Esposa Real –, Nefertiti começou sua história como esposa e rainha, mas, ao longo do tempo, sua influência foi aumentando. “Na implementação da nova religião que cultuava Aton, Nefertiti teve um papel fundamental”, diz a historiadora Anna Cristina Ferreira de Souza, que em 2004 defendeu sua tese de mestrado na Universidade Federal Fluminense (UFF) justamente sobre o caráter divino de Nefertiti. Esse fato pode ser visto nas imagens da rainha gravadas nas paredes dos templos em Amarna – entre Tebas e Mênfis, a 590 quilômetros do atual Cairo. A princípio, Nefertiti aparece bem menor que Akhenaton. Com o tempo, no entanto, ela vai ficando cada vez maior, até alcançar o tamanho do marido – uma indicação de que seu status foi também subindo com o passar dos anos (veja quadro ao lado).

Sacerdotisa de Aton
O crescimento atípico da rainha, ao lado do faraó e à frente de seu povo, é costumeiramente associado ao papel de Nefertiti na nova religião criada pelo marido. Pela primeira vez, o deus egípcio era único. Mas, para entender a mudança de religião proposta por Akhenaton e o papel de Nefertiti nessa alteração, é preciso voltar ainda mais no tempo. Até então, a religião do Egito era formada pelo culto a diversos deuses, cujos representantes na Terra eram os próprios faraós. A origem da crença remonta à pré-história, quando tribos locais adoravam deuses e animais. “Eles acabaram sendo incorporados e até superpostos por outros cultos locais, dando origem à religião egípcia”, afirma Anna Cristina. Vários deuses, que apresentavam características masculinas e femininas, eram cultuados, numa forma de politeísmo, mas cada um de uma vez – o que era conhecido como monolatria.
Quando ainda era chamado Amenhontep IV, o faraó já dava indícios de sua nova fé: começou a levantar templos para Aton na cidade de Karnak, lugar de adoração de Amon-Ra. Até que oficializou o culto ao disco solar e ordenou o abandono do antigo deus. No quinto ano de seu reinado, começou a construção da nova capital, Akhetaton, o “Horizonte de Aton”, que ficou pronta três anos depois. A relação com os outros deuses, a partir de então, estava rompida. Segundo Anna Cristina, seria como se alguém hoje proibisse que os católicos adorassem seus santos.
Nefertiti não usava o título de “esposa do deus” – função sacerdotal banida pela nova religião, que era exercida por mulheres virgens da alta nobreza e cujo papel estava relacionado ao nascimento divino do rei: de acordo com a mitologia, o deus Amon-Rá mantinha relações sexuais com a rainha virgem e, assim, gerava o novo rei –, mas assumiu uma posição equivalente como sacerdotisa do culto diário. Entre as funções que desempenhava, ela acompanhava cortejos religiosos e fazia oferendas. “Nefertiti contava com grande empatia e carisma entre a população, dando alguma popularidade ao culto de Aton, que foi combatido pelos poderosos sacerdotes egípcios que preferiam os deuses tradicionais”, afirma a historiadora Deborah Vess, da Universidade de Geórgia, nos Estados Unidos, especialista em mulheres da Antigüidade. “Sua beleza, combinada com o poder que ela adquiriu durante o reinado de Akhenaton e em sua nova religião, a tornou uma das mulheres mais importantes da história”, diz. As outras rainhas foram simplesmente rainhas. Nefertiti não: ela virou uma deusa encarnada.

Deusa do sol
Akhenaton elevou a si mesmo e sua esposa à posição de deuses vivos. A alteração se deu aos poucos. A princípio, o deus-sol Aton era representado com corpo humano e cabeça de falcão. Com o passar do tempo, porém, a iconografia foi substituída por imagens da família real, que estava sempre recebendo sagradas emanações do disco solar. “Houve uma simplificação na hierarquia dos deuses do Egito: só subsistiram as figuras de Aton e do rei, que era o único meio de acesso à esfera divina”, afirma Anna Cristina. “Os cultos privados passaram a ser direcionados à família real, pois só esta conhecia e podia cultuar o deus.” De acordo com essa liturgia, Nefertiti assumiu papel de protagonista da história, pois encarnava todas as deidades femininas que os egípcios estavam acostumados a cultuar.
“Nefertiti foi certamente uma semi-deusa”, afirma Joyce Tyldesley, autora de Nefertiti – Egypt’s Sun Queen (“Nefertiti, a Rainha-Sol do Egito”, sem tradução para o português). “A religião de Akhenaton era muito diferente de tudo o que havia existido até então. O novo deus egípcio era um simples disco solar. Akhenaton precisava de um elemento feminino nessa religião, e usou Nefertiti para esse fim.”
O poder do Egito, um reino em que religião e política se misturavam, antes concentrado nas mãos dos sacerdotes de Amon, passou a ser exclusivo do casal real. “É provável que o status assumido pela rainha tenha ocorrido devido a essa concentração de poder na própria família real”, afirma Anna Cristina – para quem Nefertiti chegou a ser considerada uma deusa viva. “Ao ser retratada com a família, a maioria das cenas relaciona Nefertiti à deusa Tefnut, o que eleva seu status à deusa encarnada, uma verdadeira revolução.”
A família real passou a ser bastante retratada no reinado de Akhenaton. São comuns estelas nas quais Nefertiti aparece ao lado do marido com suas filhas (eram seis ao todo). Cenas inéditas de carinho e intimidade são mostradas: Nefertiti beija o marido, acaricia as filhas, alimenta a prole. “O casal aparece muito junto, em cenas cotidianas, se acariciando. Isso nunca havia sido visto antes”, afirma o egiptólogo Julio Gralha. “A época de Amarna foi intrigante: além do culto mais próximo ao monoteísmo que o Egito já viveu, ela também expôs como nunca a vida cotidiana dos poderosos.”
As mudanças promovidas por Akhenaton foram radicais. De fato, desde o início elas atraíram a oposição dos poderosos sacerdotes. “Quem foi esperto e mudou de religião teve seu emprego garantido”, diz Antonio Brancaglion. “Quem não o fez, acabou perseguido, preso e, às vezes, banido.” Com o tempo, a insatisfação chegou à nobreza, incomodada pela extrema concentração de poder na figura do faraó e de sua família e, finalmente ao povo, afetado pela construção da nova cidade que levou ao aumento de impostos e inflação.
Além disso, o faraó não tinha a menor vocação para a guerra ou a política. Durante seu reinado, o Egito perdeu seus territórios na Ásia para os hititas, o que solapou a coleta de ouro e de impostos. Diante das críticas ao seu governo, Akhenaton reagiu com mais perseguição religiosa e enviou mensageiros a Tebas e Mênfis para destruir qualquer menção a outros deuses que não Aton.

Sozinha no poder
Esse era o clima, em 1336 a.C., quando Akhenaton morreu provavelmente de causas naturais, aos 34 anos – a média de vida dos egípcios daquela época, mesmo entre a elite, era de apenas 35 anos. Nessa época, as imagens de Nefertiti mostram-na usando paramentos típicos de faraó, como coroa e bastões. Para a maioria dos especialistas, o fato sugere que ela teria assumido o trono do Egito, primeiro ao lado do marido e, depois da morte Akhenaton, sucedendo-o. “Embora o assunto permaneça controverso atualmente a opinião de que ela tenha governado como rainha única é cada vez mais aceita”, diz Antonio Brancaglion.
Gravações em pedra encontradas em escavações no século 19 em Amarna mostram que, após a morte de Akhenaton, o Egito foi governado por um (ou uma) faraó de nome Nefernefruaton – que seria, na verdade, Nefertiti. A rainha teria governado como co-regente de Akhenaton após o 13º ano de seu reinado – quando o nome “Nefertiti” desaparece das inscrições em Amarna.
Para Zahi Hawass, secretário-geral do Conselho Supremo de Antigüidades Egípcias, não restam dúvidas sobre o poder acumulado por Nefertiti após a morte de Akhenaton. “As imagens de Amarna mostram a rainha sozinha, liderando procissões religiosas e até à frente de exércitos, posições reservadas exclusivamente aos faraós”, diz Hawass. Um dos fatos que reforça a hipótese de Nefertiti ter chegado ao mais alto cargo no Egito é que Nefernefruaton é justamente uma variação mais longa de seu nome. Além disso, vários documentos sugerem que o sucessor de Akhenaton tenha sido uma mulher.
Por outro lado, críticos à tese de que Nefertiti tenha governado sozinha o Egito apontam o fato de que o sucessor de Akhenaton tenha revogado quase tudo que o faraó fez durante seu reinado – o culto a Aton, por exemplo, foi extinto e os antigos deuses retomados menos de cinco anos após sua morte – para sustentar a hipótese de que o sucessor tenha sido outra pessoa. Afinal, por que Nefertiti abandonaria a religião do marido?
Anna Cristina Ferreira de Souza tem algumas hipóteses. “Akhenaton deixou o Egito em crise e após sua morte, vários setores da sociedade se revoltaram contra o trono. O retorno ao culto a Amon-Ra deve ter sido uma forma que a nova faraó encontrou para contar com o apoio do maior número possível de pessoas e pacificar o país”, diz. Segundo a especialista, isso justificaria o fato de Nefertiti ter trocado seu nome e tentado romper os vínculos com o antigo regime. “Foi uma decisão importante, tomada por uma mulher que tinha exata noção de seu papel na política do Estado.” O egiptólogo Antonio Brancaglion, concorda que a motivação de Nefertiti deve ter sido política. “Ela provavelmente percebeu que a nova religião estava levando o Egito ao colapso”, afirma.
Apesar disso, Nefertiti não conseguiu deter a crise religiosa e social que levou o Egito a um período de instabilidade política. Depois de apenas três anos de poder, ela teria morrido em situação nunca esclarecida. O Egito passou a ser governado pelo jovem Tutancâmon, que assumiu com cerca de 9 ou 10 anos e morreu assassinado aos 18 anos. Para quem acredita que Nefertiti terminou seus dias como a poderosa rainha do Egito é difícil aceitar que seu corpo jamais tenha sido localizado – embora uma especialista americana tenha afirmado, em 2003, que a achara. Para explicar o desaparecimento, no entanto, é preciso lembrar que durante o governo de Tutancâmon, Amarna – provável local do sepultamento da rainha – foi abandonada. Os crentes de Aton foram perseguidos e a maioria dos templos construídos por Akhenaton e Nefertiti depredados. Os rostos dos soberanos foram raspados das imagens esculpidas em pedra. É possível que, nessa época, a tumba da rainha tenha sido violada.

Silêncio eterno
Se Nefertiti não reinou como faraó, a outra hipótese é que ela tenha morrido no 14º ano de reinado do marido, quando seu nome desapareceu dos documentos oficiais. “Acredito que a esposa de Akhenaton foi enterrada na tumba real em Amarna, como previsto desde a época da construção da cidade”, afirma Joyce Tyldesley, que estuda as ruínas de Amarna há mais de 20 anos. “Essa tumba foi saqueada na Antigüidade, e novamente no século 19. Muito pouco foi recuperado dela. Mas há uma chance de que a múmia tenha sido resgatada quando Amarna foi abandonada. Nesse caso, ela poderia estar numa tumba do Vale dos Reis, em Tebas.”
Embora o período amarniano seja um dos mais estudados do Egito antigo (há mais de 2 mil livros publicados sobre a época), não há ponto final quando o assunto é Nefertiti. “Desde a descoberta de seu famoso busto, exposto hoje no Museu de Berlim, ela invadiu nossa imaginação”, afirma a historiadora Deborah Vess. “Sua beleza e o enorme poder que parece ter tido instigaram diferentes teses sobre sua vida e seu real papel na história do Egito.”
“Não sabemos quase nada sobre a personalidade dela”, diz Julio Gralha. “Alguns pesquisadores a tratam como mãe devotada e esposa carinhosa, agradável ao público. Outros a tem como uma mulher ambiciosa, poderosa, capaz de matar para ficar no poder.” Há quem defenda a tese de que Nefertiti chegou a matar Kiya, a segunda esposa de Akhenaton e mãe de Tutancâmon, só porque ela teria dado ao faraó algo que a rainha nunca conseguiu dar: um filho homem. Outros acham que foi a própria Nefertiti a cabeça da revolução religiosa que dividiu seu país e o levou à beira do colapso. Há ainda uma versão da história que afirma que Nefertiti não era o faraó sucessor de seu marido – e, sim, sua assassina.
Talvez as respostas para esses e outros enigmas só surjam quando o grande depósito de talatats encontrado em Amarna no século 19 for inteiramente decifrado. O que ainda pode levar décadas. Talvez não apareçam nunca e, então, Nefertiti terá levado seus segredos para a eternidade.

Crescendo e aparecendo
Gravações em Amarna revelam que a importância deNefertiti aumentou com o tempo
À SOMBRA DO REI
Quem disse que tamanho não é documento? Para a arte egípcia, é, sim. Nefertiti é o maior exemplo. No começo do reinado de seu marido, a rainha aparece em tamanho desproporcional ao dele – o que era comum na época, por causa da maior importância política e religiosa do faraó. Também era comum a arte ter uma gama limitada de cores: vermelho, amarelo, azul, verde, preto e branco – eram as únicas que os egípcios conseguiam obter.
OMBRO A OMBRO
Com o passar do tempo, a imagem de Nefertiti vai aumentando em relação à do marido. Até que ambos atingem a mesma altura. Sinal claro de que a importância da rainha também cresceu e atingiu patamares iguais à de Akhenaton. O rei, aliás, não alterou somente a religião de seu país. Ele mexeu em toda a estrutura vigente, inclusive na arte. Durante o reinado de Akhenaton, as linhas curvas passaram a ser valorizadas. Tudo para lembrar o círculo solar do rei Aton.
1. Disco solar
As imagens de Amarna mostram o deus Aton representado pelo círculo solar. Ele geralmente está localizado no centro do desenho, irradiando raios luminosos sobre as cabeças do casal real. Como o deus único agora era o Sol, os cultos se davam em lugares abertos, à luz do dia. A nova religião também era mais branda com os fiéis: assim que morrem, eles se livram automaticamente dos pecados, coisa que não acontecia nos outros cultos.
2. Nefertiti
A rainha Nefertiti foi retratada inúmeras vezes em situações de família ou em rituais ao lado do rei. Também aparece – mais vezes do que o próprio faraó – oficiando rituais a Aton sozinha. Há na arte de Amarna ainda relevos que mostram seu papel importante na política: Nefertiti aparece golpeando inimigos ou na presença de cativos, atitudes que até então eram relacionadas apenas ao faraó.
3. Akhenaton
Akhenaton comumente era retratado com cintura de mulher, coxas grossas e seios, enquanto Nefertiti por vezes aparecia com feições masculinas – figuras bastante andróginas. Isso intrigava os pesquisadores, que achavam que o faraó tinha uma doença, a síndrome de Frölich, uma disfunção glandular que deixava o portador infértil. Só depois percebeu-se que, como seres masculinos e femininos, o casal real se assemelhava ao deus-sol.
4. Crianças
Pela primeira vez na história do Egito – e talvez de todo o Mundo Antigo – as cenas cotidianas da família real foram expostas durante o período amarniano. O casal de soberanos aparece se beijando em frente às filhas, pegando-as no colo, dando comida a elas, fazendo-lhes carinho. Nunca tanta intimidade havia sido mostrada. As crianças aparecem brincando ou chacoalhando instrumentos musicais em cultos a Aton.

Rosto mutilado
Se a vida de Nefertiti é permeada por incertezas, após sua morte ao menos uma certeza há: a de que ela e seu marido incomodaram. E muito. Anos após a morte do casal real, já na 19ª dinastia egípcia, a população não o perdoou e destruiu a antiga cidade Akhetaton e quase todas as imagens do casal. Acusada de herege e de ter renegado os antigos deuses egípcios, Nefertiti teve os olhos de suas imagens riscados – para que ela não pudesse enxergar o paraíso após a morte.
O rei está morto
Ainda existe polêmica sobre a sucessão de Akhenaton
Está longe de ser consenso entre os historiadores que Nefertiti tenha assumido o trono do Egito como faraó. O que não faltam são teorias sobre a sucessão de Akhenaton. Todas elas tentam decifrar quem seria o faraó Nefernefruaton, também conhecido por Smenkhare, que reinou por um breve período, entre a morte de Akhenaton, em 1336 a.C. e a chegada ao trono de Tutancâmon, em 1332 a.C.. Além da teoria que aponta que Nefernefruaton seria Nefertiti, há uma linha de pesquisadores que defende que Smenkhare seria filho de Nefertiti e Akhenaton (embora as imagens egípcias só mostrem o casal rodeado por cinco filhas). “Ele teria governado como co-regente do pai até poucos meses antes de sua morte”, afirma Lanny Bell, historiador da Universidade de Brown, nos Estados Unidos. “Para alguns, Smenkhare teria sobrevivido à morte de Akhenaton e governado por quatro anos antes de morrer e ser substituído no trono por seu irmão Tutancâmon.” Há ainda egiptólogos que afirmam que, após a morte de Akhenaton, Nefertiti teria pedido ajuda a um rei inimigo, do reino de Hatti (dos hititas). Ela temia que, como Tutancâmon tinha apenas 5 anos, uma confusão se instalasse no Egito pelo trono. O rei dos hititas teria mandado um filho seu, que teria se casado com Meritaton, a filha de Nefertiti, e assumido como o faraó Smenkhare. “É possível que o príncipe hitita tenha governado por um tempo, mas, ao tomar atitudes que desagradavam Nefertiti, teria sido morto”, diz Bell. A própria rainha teria assumido o lugar do genro, com o mesmo nome dele. De acordo com o historiador americano, a confusão toda é provocada pelo fato de os egípcios costumarem proteger seus nomes. “Todos os indivíduos tinham seu nome secreto e seu nome público. Mas, no caso dos faraós, o nome público não era o nome real. Por isso, eles possuíam até três nomes”, diz. No caso do sucessor de Akhenaton, outro fato que gera controvérsia é ele ter dois nomes públicos, Smenkhare e Nefernefruaton.

Múmia desaparecida
Pesquisadora americana disse, em 2003, ter identificado a múmiade Nefertiti. Exames de DNA realizados há dois meses refutam a teoria
Um dos maiores mistérios da tão misteriosa vida de Nefertiti é o paradeiro de sua múmia. Uma egiptóloga americana, Joann Fletcher, especialista no estudo de perucas egípcias (parece bobagem, mas os apliques de cabelo são uma forma importante de identificar as múmias, já que resistem bem à decomposição), fez o maior barulho entre os estudiosos em setembro de 2003 ao afirmar que havia encontrado a tumba da rainha. Acabou desmentida em alto e bom som. Com uma equipe do canal de televisão Discovery a tiracolo, Joann Fletcher apontou uma tumba do Vale dos Reis, identificada como KV35, como a que guardava o corpo de Nefertiti. De acordo com ela, traduções de textos e algumas imagens dos três corpos guardados na KV35 a fizeram pensar que Nefertiti estava lá. Além disso, a KV35 guarda corpos de tumbas saqueadas – situação da antiga tumba da esposa de Akhenaton. Outra pista apontada pela especialista em cabelos da Antigüidade era justamente a peruca usada por Nefertiti – sim, a rainha era careca, uma forma de se manter longe dos piolhos. Uma peruca parecida com as usadas pelas mulheres da realeza foi encontrada ao lado de uma múmia mutilada em 1898, pelo pesquisador francês Victor Loret. E uma das três múmias da KV35 era exatamente a mutilada. Segundo Joann Fletcher, o fato também seria um indício de que aquela era Nefertiti: a múmia da rainha teria tido seu rosto destruído como vingança pelos seguidores do deus Amon-Ra. Para os egípcios, a destruição do rosto é um sacrilégio e significa, além do fim da beleza, a proibição do acesso pós-morte. Fletcher visitou duas vezes a tumba KV35. Da segunda vez, levou consigo uma equipe de especialistas em radiografia, para tentar provar sua teoria. Para as câmeras da TV, Joann mostrou os dois furos em uma das orelhas da múmia, hábito das mulheres da realeza. A pesquisadora saiu da KV35 com a certeza de que a múmia encontrada era Nefertiti. A comunidade mundial de egiptólogos se manifestou prontamente. Uma das respostas mais contundentes veio de Zahi Hawass, secretário-geral do Conselho Supremo de Antigüidades Egípcias – ele proibiu o acesso de Joann Fletcher ao patrimônio histórico do Egito. E justificou num artigo no jornal Al-Ahram: a pesquisadora havia descumprido o acordo de comunicar qualquer descoberta à organização egípcia em primeiro lugar. “Indo primeiro à imprensa com o que ela considerava uma grande descoberta, a doutora Fletcher quebrou o acordo”, escreveu. Para ele, a americana não se baseou em evidências e provas, e sim em semelhanças faciais. Hawass foi além: encomendou um raro teste de DNA na múmia atribuída à rainha Nefertiti. O resultado foi devastador, ao menos para a tese de Joann Fletcher. O corpo mutilado da KV35 era de um homem.
Saiba mais
Livros

Deuses, Faraós e o Poder, Julio Gralha, Barroso Produções Editoriais, 2002 - Para entender mais sobre a nova religião proposta por Akhenaton Nefertiti, Egypt’s Sun Queen, Joyce Tyldesley, Penguin, 2000 - Com base em documentos e imagens, a autora recria a corte de Amarna nesta biografia de Nefertiti.

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Bruxas: as mulheres em chamas


Bruxas: as mulheres em chamas
Durante mais de 300 anos, a Europa, em plena Idade Moderna, condenou à morte nas fogueiras milhares de mulheres acusadas de feitiçaria.
Durante mais de 300 anos, a mesma Europa que viu nascer a Idade Moderna e presenciou feitos como a conquista do Novo Mundo, a ascensão da burguesia comercial e o fim do domínio feudal, fez das fogueiras um instrumento de repressão e morte para milhares de mulheres condenadas por bruxaria.

Por Cadu Ladeira e Beth Leite

As pilhas de lenhas e gravetos já estavam acesas e a multidão inquieta, aguardava o início do ritual que conhecia tão bem. Afinal, execuções eram espetáculos imperdíveis, que atraiam a atenção de pessoas vindas de vários cantos. Em meio ao ruído abafado dos comentários sobre os horrores que havia cometido, surgiu enfim a condenada. A turba, que já estava agitada, aproveitou para liberar a tensão reprimida: objetos, palavras de ódio, risos e piadas partiam de todas as direções contra a terrível criatura. Não houve muitas delongas. A sentença foi lida rapidamente, o carrasco, num gesto piedoso, estrangulou a condenada para que não enfrentasse as chamas viva e, em poucos minutos, seu corpo ardia, diante da aclamação selvagem da assistência. Durante mais de 300 anos, cenas como essa se tornaram corriqueiras nas praças públicas de boa parte da Europa e o caminho da fogueira se transformou no destino de milhares de mulheres. Nuas, montadas em vassouras, aterrorizando cidades, aldeias e castelos, no imaginário popular e religioso da época, as bruxas estavam por toda parte, semeando o pavor. A perversidade feminina campeava solta, a serviço dos mandos do demônio e precisava ser contida qualquer custo.De 1450 a 1750, poucas pessoas ousariam contradizer essa doutrina, repetida em tom de ameaça nos púlpitos dos pregadores católicos, assim como nos sermões protestantes depois da Reforma religiosa de Martinho Lutero no século XVI. Bruxaria era uma calamidade tão real quanto tempestades ou pestes, e intimamente ligada à natureza feminina. Com exceção de Portugal e Espanha, onde os principais perseguidos eram cristãos novos e judeus, em quase toda a Europa a porcentagem de mulheres excedeu 75% dos casos. Em algumas localidades, como o condado de Namur (atual Bélgica), elas responderam por 90% das acusações. Estima-se que 100 000 processos foram instalados pelo continente afora e pelo menos 60 000 vidas se perderam em meio às chamas.Foi em plena Idade Moderna a mesma que presenciou a descoberta de um novo mundo com as grandes navegações, a ascensão da burguesia comercial, o fim do domínio feudal e a formação dos primeiros Estados nacionais europeus que o temor às forças do mal deixou o campo da crendice popular para se tornar alvo de uma perseguição sistemática de tribunais leigos, religiosos e da Inquisição sob controle papal.Não que as fogueiras tenham sido estranhas à sociedade medieval. A Idade Média também presenciou exibições do poder purificador das chamas, a mais notável delas, sem dúvida, aquela que consumiu a vida da jovem Joana d'Arc em 30 de maio de 1431, na cidade de Rouen, então sob domínio inglês. Heroína nacional, Joana ficou famosa depois que conduziu o exército francês à vitória sobre os ingleses em Orléans e deu início à revanche de seu país na Guerra dos Cem Anos (1337-1453), até aquele momento vencida fragorosamente pelos britânicos. Em 1430, quando caiu prisioneira nas mãos do duque de Borgonha, aliado ao rei inglês Henrique V, seus inimigos aproveitaram a fama das visões que ela costumava ter desde pequena para levá-la à fogueira, mesmo sabendo de sua extrema devoção religiosa. Nesse caso, porém, o cunho político da condenação era tão óbvio, que antes do final daquele século ela seria reabilitada e em 1920 finalmente transformada em santa.Para bruxas menos famosas, no entanto, a chegada da Idade Moderna trouxe uma mudança radical na atitude da igreja e dos tribunais em relação ao universo da superstição, do paganismo e do mito com o qual, havia mais de 1500 anos, a Europa convivia. Na mitologia romana, Diana, deusa dos bosques e dos animais, já costumava guiar amazonas noturnas em cavalgadas celestes. Entre as crenças imemoriais germânicas, acreditava-se que figuras ameaçadoras, conhecidas como streghe, se reuniam na floresta em torno de caldeirões para realizar seus rituais. Depois se volatilizavam e invadiam as casas para chupar a vitalidade das crianças. Mas em meio à insegurança da aurora da modernidade, um tempo marcado por mudanças e desgraças contentes como fomes, pestes, guerras e conflitos religiosos, boa parte dessa tradição fantasiosa do passado acabou associada à certeza de que o demônio e suas seguidoras estavam determinados a dominar o mundo. Feitiços e mulheres voadoras tornaram-se, da noite para o dia parte te de uma grande conspiração demoníaca. Encantos e ungüentos chamados na época de maleficia que antes serviam para ajudar as pessoas se transformavam em passaporte certo para a morte.Não era preciso muito para provar que a ação infernal estava em andamento. Além das tradicionais acusações de possessões diabólicas, crises políticas e sociais, calamidades naturais ou qualquer outro acontecimento anormal eram capazes de detonar a mortandade. Em Trier, na França, uma feroz epidemia de processos contra as bruxas ocorreu entre 1580 e 1599, quando duas grandes colheitas foram dizimadas por alterações climáticas. No principado alemão de Ellwagen, em 1611, em Genebra em 1530,1545,1571 e 1615 e em Milão em 1630, para citar uns poucos exemplos, centenas foram condenadas à morte após um surto de peste. No século XVII, em Cambrai, também na Franca a instalação de novas indústrias no campo gerou uma onda de ansiedade entre os camponeses que logo desembocou numa grande caça.Algumas alegações contra a bruxaria eram tão descabidas, que só mesmo o clima de paranóia coletiva explicava a relação: em 1590, depois que uma tormenta no Mar do Norte destruiu um dos navios da comitiva de Jaime VI da Escócia e de sua noiva, Ana da Dinamarca, os dois países iniciaram uma cruel perseguição a feiticeiras. As grandes caçadas vinham assim: como tempestades de verão, chegavam avassaladoras e de surpresa, mas tinham curta duração. Quase sempre, após um período de frenética perseguição, as comunidades se aquietavam durante os anos seguintes. Era como se tivessem se livrado de um cancro.Escritos da época registram o quase inacreditável. Na diocese italiana de Como, 1000 execuções em um ano. Em Toulouse, na França, 400 cremações são contadas em um único dia. No arcebispado francês de Trier, em 1585, 306 bruxas delataram cerca de 1500 cúmplices. Embora a maior parte das acusadas tenha escapado à morte, isso não impediu que duas aldeias da região ficassem à beira do extermínio: sobraram apenas duas mulheres em cada uma delas.O mais impressionante é que a maior parte dessas mulheres, e mesmo dos homens, condenadas chegaram às fogueiras por confissão própria, graças à tortura. Durante esses quase três séculos de morte, conseguir uma confissão era apenas questão de tempo. Quando acontecia de o acusado resistir muito ,durante uma sessão de maus tratos, isso só aumentava a convicção de culpa dos interrogadores: afinal, tamanha resistência só podia ter por trás o auxílio de forças que não eram apenas naturais. Hoje, sabe-se que o uso indiscriminado desse instrumento macabro se confunde com o próprio mapeamento da caça às bruxas pela Europa.O predomínio do temido Tribunal de lnquisição, por exemplo, serviu para atenuar os casos de condenação à morte de bruxas nos países da Península Ibérica e na Itália. Embora tenha ficado famoso na Idade Média pela prática da tortura, na época em que começou a grande repressão européia, a partir do século XV, os inquisidores já haviam elaborado uma extensa reforma jurídica que garantia não só assistência legal aos acusados como restringia a ação dos torturados a casos muito especiais. Na Inglaterra, onde suspeitos de bruxaria só podiam ser submetidos à tortura com autorização dos conselhos superiores de Justiça, a caça às bruxas também teve pouca expressão. Já na Alemanha, dividida em dezenas de ducados e principados independentes política e judicialmente, a caça às bruxas ganhou proporções assustadoras. Nada menos de 50% dos processos contra elas aconteceram em terras germânicas, e a maior parte resultou em morte.Às vezes, a descoberta de uma fraude conseguia evitar que a perseguição chegasse a um final dramático. Em 1633, o jovem inglês Edmund Robinson denunciou uma mulher que o teria levado a um sabá de bruxas, onde estavam reunidas cerca de sessenta feiticeiras. O menino deu o nome de dezessete delas, todas imediatamente presas e condenadas. Algumas dúvidas sobre o depoimento, no entanto, levaram o bispo de Chester a interrogar Edmund e ele acabou admitindo ter forjado a história por sugestão do pai, que havia indicado todos os nomes por inveja, vingança e desejo de tirar vantagem, descobriram os juízes. Na Escócia, o ensaio de uma grande repressão nacional em 1661 entrou em colapso quando os eméritos caçadores de bruxas John Kincaid e John Dick foram flagrados dando picadas em mulheres acusadas de bruxaria: nos tribunais, essas pequenas marcas eram a prova de que elas haviam feito pacto com o diabo.Foram poucas, porém, as caças detidas por evidência de fraudes. Normalmente, quando uma perseguição se instalava, nada conseguia detê-la e o pânico tomava conta da população. A princípio, todos estavam sob suspeita e a melhor defesa era o ataque. Uma vez iniciada a caça, delações não paravam mais. Assustadas com a perseguição, multas pessoas logo se punham a entregar as vizinhas na tentativa de livrar a própria pele de potenciais acusações. Cada possível bruxa levada a julgamento, por sua vez, não tardava a incriminar mais uma lista de acusadas num efeito dominó que levava grandes levas de pessoas diante dos juízes.Cenas e relatos como esses não só foram realidade como contavam com uma robusta fundamentação teórica de uma obra sinistra. Publicado em 1486, o livro Malleus Maleficarum, escrito pelos inquisidores papais alemães Heinrich Kramer e James Sprenger, foi um eficaz instrumento nos tribunais para consolidar a crença de que uma grande conspiração arquitetada por Satã e suas seguidoras, as bruxas, tomava conta do mundo. Até o final do século XV, o manual já era um best seller, recordista absoluto entre qualquer livro anterior ou posterior sobre demonologia, com mais de uma dúzia de edições.Na detalhada obra, que explicava desde os feitiços mais comumente praticados até como localizar a presença das malignas criaturas no seio da sociedade, Kramer e Sprenger não pouparam esforços para mostrar que a mesma mulher que provocou a expulsão do homem do paraíso ainda era uma ameaça presente. O velho temor católico de monges e padres celibatários estava mais forte do que nunca. A perfídia é mais encontrada nas pessoas do sexo frágil do que nos homens garantiam os dois. Bruxas eram o mal total: renunciavam ao batismo, dedicavam seus corpos e almas ao demônio e, suprema lascívia, costumavam manter relações sexuais com ele. Principalmente durante os sabás, reuniões em que as forças do mal se reuniam para banquetear-se com criancinhas não batizadas e que sempre terminavam em fabulosas orgias. Testemunhos da época davam notícia de sabás reunindo até 1000 bruxas.Para provar a propensão natural da mulher à maldade não faltavam argumentos aos autores do Malleus. A começar por uma falha na formação da primeira mulher, por ser ela criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela no peito, cuja curvatura é, por assim dizer contrária à retidão do homem. A própria etimologia da palavra feminina confirmava essa fraqueza original: segundo eles, femina, em latim, reunia em sua formação as palavras fide e minus, o que quer dizer menos fé.Defender idéias assim não era exclusividade dos dois inquisidores alemães. A aversão à mulher como ser mais fraco e, portanto, mais propenso a sucumbir à tentação diabólica era moeda corrente em todas as regiões da Europa dos pequenos vilarejos camponeses aos grandes centros urbanos. Nos sermões de padres por toda a Europa, proliferava a concepção de que a bruxaria estava ligada à cobiça carnal insaciável do sexo frágil, que não conhece limites para satisfazer seus prazeres. Com seu furor uterino, para o homem a mulher era uma armadilha fatal, que podia levá-lo à destruição, impedindo-o de seguir sua vida tranqüilamente e de estar em paz com sua espiritualidade.O clima de desconfiança em relação às mulheres teve também predileções profissionais. Quando não era o caso de grandes perseguições orquestradas para expurgar males como a peste, certos ofícios tipicamente femininos tinham precedência na lista de denúncias. Curandeiras, vitais para uma sociedade onde a medicina ainda era uma ciência incipiente, tornavam-se herejes e apóstatas da noite para o dia Cozinheiras também viviam sob constante desconfiança, assim como as parteiras.Acusadas freqüentemente de batizar os recém-nascidos em nome do diabo ou de matá-los para usar seus corpos em rituais, elas foram vítimas de anos de suspeita acumulada, numa época em que a taxa de mortalidade infantil era altíssima Em 1587, a parteira alemã Walpurga Hausmannin, foi processada por ter causado a morte de quarenta crianças, algumas com até 12 anos. Entre os métodos que ela empregava, estavam o estrangulamento, esmagamento de cérebro da criança no parto e aplicação de um ungüento do diabo sobre a placenta, de modo que a mãe e a criança morressem juntas. Seu destino foi a fogueira. O mesmo de uma parteira húngara, que em 1728 conseguiu uma marca duvidosa, mas perfeitamente factível para seus contemporâneos: ela morreu queimada por ter batizado nada menos do que 2000 crianças em nome do demônio.Para quem se acostumou a relacionar a figura das bruxas a personagens pitorescas de contos da carochinha como a madrasta de Branca de Neve ou a fada malvada de Cinderela , às vezes fica difícil acreditar em histórias assim. Mas elas existiram e deixaram em seu rastro uma cruel realidade da morte de milhares de mulheres inocentes em fogueiras piamente acesas para limpar o mundo.

A identidade com o pecado original, principalmente na história do cristianismo, foi um fardo pesado para a mulher até o século XVII

Desde os primeiros eremitas cristãos, nos desertos da Síria é do Egito, a busca da austeridade religiosa pelo isolamento ascético tornou-se não só uma regra obrigatória para o aprimoramento espiritual, mas também consagrou o papel da mulher como a principal tentação mundana, capaz de afastar o homem do caminho da purificação. Uma norma que, na Europa, começaria a se consagrar a partir do século VI, quando São Bento de Nursia fundou o mosteiro de Monte Cassino, na Itália, e deu início ao movimento monástico beneditino, que marcaria profundamente a atitude religiosa do continente.

Toda malícia é leve, comparada com a malícia de uma mulher. (Eclesiástico 25:26)Tu deverias usar sempre o luto, estar coberta de andrajos e mergulhada na penitência, a fim de compensar a culpa de ter trazido a perdição ao gênero humano... Mulher, tu és a porta do Diabo. (Quinto Tertuliano, escritor cristão, século III)Dentre as incontáveis armadilhas que o nosso inimigo ardiloso armou através de todas as colinas e planícies do mundo, a pior é aquela que quase ninguém pode evitar: é a mulher, funesta cepa de desgraça, muda de todos os vícios, que engendrou no mundo inteiro os mais numerosos escândalos. (Marborde, monge de Angers, século Xl)Toda mulher se regozija de pensar no pecado e de vivê-lo.

(Bernard de Morlas, monge da Abadia de Cluny, século XII)A mulher é um verdadeiro diabo, uma inimiga da paz uma fonte de impaciência, uma ocasião de disputa das quais o homem deve manter-se afastado se quer gozar a tranqüilidade (Francisco Petrarca, poeta italiano, século XIV)Que se leiam os livros de todos aqueles que escreveram sobre feiticeiros e encontrar-se-ão cinqüenta mulheres feiticeiras, ou então demoníacas, para um homem. (Jean Bodin, jurista, sociólogo e historiador, século XVI)Pois a Natureza pretende fazer sempre sua obra perfeita e acabada: mas se a matéria não é própria para isso, ela faz o mais próximo do perfeito que pode. Então, se a matéria para isso não é bastante própria e conveniente para formar o filho, faz com ela uma fêmea, que é um macho mutilado e imperfeito. (Laurent Joubert, conselheiro e médico inglês, século XVII).

Revista Superinteressante

As mulheres de Picasso


As mulheres de Picasso
O genial pintor espanhol foi um marido infiel, ciumento e, dizem, um amante eclético. Ele adorava as mulheres. E elas o amavam
por Mariana Balboni
Poucos viveram paixões tão intensas como Pablo Picasso. Um dos maiores gênios da pintura contemporânea, ele transpôs para as telas seu fascínio pelas mulheres, exaltando sensualidade e erotismo. Protagonizou inúmeras conquistas, foi o namorado amoroso, o amante infiel e o marido cruel. Suas mulheres passavam de deusas, quando apaixonado, a monstros torturados, no fim da relação. Poucas sobreviveram ao término do romance. Mas de uma forma ou de outra, todas influenciaram seus traços, especialmente as sete mulheres com quem conviveu: Fernande, Eva, Olga, Marie-Thérèse, Dora, Françoise e Jacqueline.
Alguns críticos afirmam que o trabalho do pintor está tão relacionado ao seu apego pelo sexo oposto que as fases de sua carreira poderiam ser definidas de acordo com as amantes com quem esteve envolvido. Assim, o neoclassicismo dos anos 20 são os “anos Olga”, as banhistas do começo dos anos 30 marcam a “era Marie-Thérèse”, os retratos do fim dos anos 40, o “período Françoise”.
“Nem tudo em Picasso, é claro, se explica por suas amantes”, diz Carlos von Schmidt, crítico de arte e autor de Na Cama com Picasso. Para ele, as mulheres eram personagens que o autor dispunha de acordo com sua vontade. “As mudanças de estilo do pintor podem ser atribuídas à chegada de um novo amor, ao fim de um antigo romance, ou aos dois ao mesmo tempo.” E isso não é pouco.
Fernande Olivier é a primeira da lista. Conheceu o pintor em 1904, no Bateau-Lavoir, como era chamado o cortiço de madeira que abrigou o primeiro ateliê do artista em Paris. Com 23 anos, era quatro meses mais velha que ele. Elegante, bonita e determinada, viveu com Picasso os anos de pobreza e boemia.
“Mesmo sem influenciar diretamente a obra do artista, foi ela quem lhe proporcionou a estabilidade para fazer a transição entre a chamada fase azul (1901-1904), caracterizada pela tristeza, miséria e morte, e a fase rosa, mais lúdica e alegre, repleta de figuras circenses”, afirma Dominique Dupuis-Labbé, curadora do Museu Picasso em Paris. “Sensual e voluptuosa, ela trouxe felicidade e apaziguou os tormentos de Picasso.”
Fernande viu o jovem indeciso tornar-se o artista que conquistaria o mundo. Em casa, no entanto, ele permanecia inseguro. Ciumento, adorava exibi-la em público, mas a deixava trancada (literalmente) quando saía sozinho. Separaram-se em 1912, quando Picasso já se encontrava com Eva Gouel, uma jovem de 25 anos, casada, que havia conhecido em um circo.
Eva foi, ao que tudo indica, o grande amor do pintor. E ele deixou pública essa paixão, escrevendo em seus quadros da época frases como “Eu amo Eva” e “Minha Formosa”, nome de uma canção que ouvia nas boates de Montmartre nas noites que saía para cortejá-la. O caso de amor foi interrompido prematuramente: Eva morreu de tuberculose, em 1915, deixando o pintor arrasado.
Schmidt, entretanto, afirma que Picasso não foi assim tão devoto a esse amor. “Nos anos com Eva, continuou a ter outras amantes, até mesmo nos meses que antecederam a sua morte”, diz.
Em 1917, Picasso conhece a bailarina russa Olga Koklova, com quem se casa um ano depois. A união com a jovem de 27 anos surpreendeu aos amigos mais próximos, pois era a primeira vez que o pintor se submetia aos caprichos de uma mulher. Possessiva, ciumenta e fútil, Olga queria um universo de luxo que Picasso sempre ridicularizou. Enquanto esteve com ela, o indomável touro espanhol se acalmou, passou a freqüentou a alta sociedade parisiense e a retratar condes, princesas e baronesas.
No início do casamento, ele pintou Olga e o filho Paulo, nascido em 1921. Mas logo veio a crise conjugal e os reflexos sobre suas pinturas. “Aparecem as primeiras marcas das deformações da década seguinte”, diz Dominique. Com brigas e reconciliações, a relação durou até 1935, quando Picasso a deixou. Mas eles nunca se divorciaram. Olga morreu de câncer em 1955.
Marie-Thérèse Walter entrou na vida do pintor numa tarde de janeiro de 1927, quando passeava perto das Galeries Lafayette, lojas de departamento parisienses. Com 17 anos e muito simples, não tinha a menor idéia de quem era o artista, nem de como ele viria a transformar sua vida. Era atraente e loira, com lindos olhos azuis. No dia em que completou 18 anos, Picasso, com 46, a levou para cama. Tornou-se sua eterna amante, a menina-mulher que realizou todos os seus desejos eróticos e fantasias sexuais. Segundo Schimidt, ela era submissa e dependente, satisfazia-o sem complicações, experimentando do sadismo ao masoquismo. Nunca moraram juntos, mas mantiveram uma relação pelo menos até 1943. Costumava visitá-la toda semana, com o consentimento da mulher que estivesse ao seu lado oficialmente. Escreveu-lhe cartas de amor diariamente, por longos períodos. Em 1935, tiveram uma filha, Maria de la Concepcion, apelidada de Maya e nunca reconhecida.
A amante clandestina teve forte presença nas obras de Picasso, que exaltou as linhas e formas sensuais de seu corpo em obras de grande erotismo. Inspirou também duas figuras femininas de Guernica, o célebre painel que denuncia as atrocidades da guerra civil espanhola. Enforcou-se em 20 de outubro de 1977, quatro anos depois de Picasso morrer.
No inverno de 1936, uma mulher morena de cabelos pretos e olhos verdes, sentada no Deux-Magots, restaurante que o pintor freqüentava, lhe chamou a atenção. Dora Maar era atraente e não convencional. Pintora, fotógrafa e inteligente, foi amante de Picasso por sete anos. Incentivou-o a assumir posicões políticas contra os governos de força, e em 1937 teve papel fundamental na execução de Guernica. Ela fotografou passo a passo a produção, ajudou a concebê-lo e até a pintá-lo.
Passaram juntos os anos de ocupação da França na Segunda Guerra, quando Picasso foi proibido de realizar exibições. No período, Dora aparece em vários telas. As mais marcantes mostram uma mulher desfigurada, chorando.
Foi a amante que mais sofreu com a separação. Trocada por Françoise Gilot, entrou em processo esquizofrênico e foi internada num hospital para doentes mentais. Depois, passou anos reclusa num convento. Morreu sozinha em seu apartamento, em Paris, aos 90 anos.
Picasso conheceu sua nova companheira, Françoise, em 1943, no restaurante La Catalan, enquanto jantava com Dora. Encantou-se com a estudante de cabelos ruivos e grandes olhos verdes. Ela tinha 21 anos. Picasso, 62. Tiveram dois filhos, Claude, nascido em 1947, e Paloma, em 1949. Retratada como a mulher-flor, Françoise era sua nova modelo, a deusa da luz e da fecundidade.
A vida com Picasso trouxe momentos apaixonantes e extremamente criativos, mas também lhe apresentou a angústia e a frustração. Dominador, possessivo e mulherengo, continuava pregando o amor livre. Ela conviveu com as visitas semanais de Picasso à Marie-Thérèse, com as loucuras de Olga e a autodestruição de Dora Maar.
A crescente indiferença do pintor e a tensão entre o casal colocaram um ponto final no relacionamento de dez anos. Em 1953, fez as malas e partiu com as crianças, deixando um Picasso perplexo. Foi a única mulher que mostrou determinação para abandoná-lo. Em 1964, publicou Life with Picasso – The Love Story of a Decade (Vida com Picasso – A História Romântica de uma Década). Em suas memórias, ela se retrata como uma jovem seduzida, manipulada e traída por um sádico Picasso. Ultrajado, o pintor tentou proibir a circulação do livro. Não conseguiu, mas desde aquele momento nunca mais recebeu os filhos.
Jacqueline Roque foi a última mulher de Picasso. Moraram juntos por 20 anos, até a morte do pintor, em 1973. Conheceram-se quando Picasso ainda vivia com Françoise, em 1952. Era jovem e bonita, como todas as musas do artista.Tinha cabelos negros, olhos azuis e feições marcadas por traços fortes. Para Schmidt, Jacqueline foi “arrumada” para Picasso pelo casal Remié, amigos de longa data do pintor : “Com 71 anos, ele era um ótimo partido para uma mulher de 26, divorciada e com uma filha”. Em 1961, casaram-se.
Jacqueline tornou-se secretária, agente, enfermeira, protetora e controlou a vida do pintor, isolando-o de amigos e familiares. Cultivava uma veneração doentia pelo marido, tratando-o respeitosamente de monseigneur (meu senhor). Musa dos últimos anos, foi a mulher que Picasso retratou de forma mais obsessiva e com quem mais produziu. Para ela, Picasso deixou em testamento, uma fortuna estimada em 250 milhões de dólares. Mas o dinheiro não lhe poupou de um fim trágico. Matou-se em 1986, com um tiro na cabeça.
Picasso exercia um magnetismo tão grande sobre suas amantes que a vida realmente deixava de fazer sentido sem ele. Costumava se retratar como um minotauro, um ser monstruoso, fruto de amores que vão além do entendimento, protagonista de relações violentas, eróticas e cruéis. Foi essa sexualidade selvagem que transpirou pelo desenho de suas mulheres. Na Paris do século passado, Picasso devorou pessoas e eventos com grande paixão, e transformou-as em arte.

Na cama e na tela
As musas que fizeram a cabeça de Picasso
Fernande Olivier (de 1904 a 1912)
Elegante, bonita e determinada, tinha 23 anos quando conheceu Picasso. Viveu com ele os anos de pobreza e boemia. Deixou-o em 1912, mas nunca superou a separação. Morreu pobre e sozinha em 1956
Nu deitado (Fernande), 1906
Além de posar para Picasso, ela lhe proporcionou estabilidade e segurança para experimentar novas cores e estilos, o que acabou sendo a transição entre a fase azul, caracterizada pela tristeza, miséria e morte, e a fase rosa, mais lúdica e alegre, repleta de figuras circenses. Foi sua musa até o início da fase cubista
Eva Gouel (de 1911 a 1915)
Tinha 25 anos quando conheceu Picasso. Era delicada, sensível e casada. Mas logo trocou o marido pelo pintor. Morreu de tuberculose, em 1915, deixando Picasso arrasado
Violão “Eu Amo Eva”, 1912
Eva não chegou a posar para Picasso que, nessa fase, não retratava pessoas. No entanto, ele não deixou de manifestar sua paixão escrevendo em vários quadros cubistas “Eu amo Eva”
Olga Koklova (de 1917 a 1935)
Casou-se com Picasso em 1918, aos 27 anos. Possessiva, fútil e ambiciosa, manteve a união estável até a chegada do filho, Paulo, em 1921. As brigas violentas levaram à separação. Desequilibrada, por anos perturbou o pintor e suas amantes. Morreu de câncer em 1955
Olga Koklova em uma Poltrona, 1917
Quis transformar Picasso no artista da alta sociedade parisiense. Durante os “anos Olga”, ele chegou a retratar condes, princesas e baronesas, retornando ao período clássico
Marie-Thérèse Walter (de 1927 a 1943)
Marie-Thérèse Walter conheceu Picasso aos 17 anos. Atraente, loira e com lindos olhos azuis, foi a eterna amante do pintor. Em 1935, tiveram uma filha, Maya. Sempre dependeu do artista. Enforcou-se em 1977, quatro anos após sua morte
Moça em frente do espelho, 1932
A amante clandestina teve forte presença nas obras de Picasso, que exaltou as linhas e formas sensuais de seu corpo voluptuoso em obras de grande erotismo. A “era Marie-Thérèse” marcou a fase lírica, sensual e surrealista
Dora Maar (de 1936 a 1944)
Amante de Picasso por oito anos, era inteligente e bonita. Morena de olhos verdes, foi musa dos surrealistas e também pintora e fotógrafa. Das mulheres do artista, foi a que mais sofreu com a separação. Chegou a viver internada em sanatórios e conventos, e morreu sozinha aos 90 anos
A Mulher Chorando, 1937
Teve papel fundamental na execução de Guernica. Acompanhou, fotografou e até chegou a ajudar Picasso a pintar o mural. No início dos anos 40, suas feições estão presentes em vários trabalhos, principalmente os que mostram uma mulher desfigurada, chorando
Françoise Gilot (de 1943 a 1953)
O pintor com 62 anos, encantou-se pela estudante de 21, cabelos ruivos e olhos verdes. Com os dois filhos, Claude e Paloma, viveram uma serena união familiar por dez anos. Mas, em suas memórias, diz-se uma jovem seduzida, manipulada e traída por Picasso
Mulher numa Poltrona, 1946
Retratada como a mulher-flor, foi sua modelo durante o fim dos anos 40, que ficaram conhecidos como “período Françoise”
Jaqueline Roque (de 1952 a 1973)
Foi a última mulher de Picasso. Moraram juntos por 20 anos, até a morte do pintor, em 1973. Era jovem e bonita, tinha cabelos negros, olhos azuis e feições marcadas por traços fortes. Cultivava uma veneração pelo marido e afastou-o de familiares a amigos. Suicidou-se em 1986
Retrato de Jaqueline Roque com as Mãos Cruzadas, 1954
Musa dos últimos anos, foi a mulher que Picasso retratou de forma mais obsessiva e com quem mais produziu. Era também sua secretária e agente, cuidava das exposições, das galerias e dos marchands

Saiba mais
Livros

Na Cama com Picasso, Carlos von Schmidt, Artes/Digital, 1997 - Leitura agradável, com passagens picantes
Life with Picasso, Françoise Gilot & Carlton Lake, Anchor, 1989 - Memórias da ex-mulher de Picasso sobre a vida do casal. Dá para entender porque o pintor tentou impedir a publicação do livro
Site

www.musee-picasso.fr
Inclui análises de especialistas sobre a influência das mulheres na vida e na obra do artista. Em francês

Revista Aventuras na História

As outras Chicas da Silva


As outras Chicas da Silva
por Eduardo França Paiva
A América portuguesa viveu enormes transformações a partir do século 18. Houve intenso processo de urbanização e aumento populacional, principalmente entre escravos e aqueles que tinham adquirido a carta de alforria, chamados de forros. Etnias encontraram-se, conviveram, coexistiram e, também, sustentaram conflitos. Nas cidades, muito mais que nas áreas rurais, a mobilidade física e social foi marcante. Aí, o universo cultural brasileiro consolidou-se baseado na diversidade, no hibridismo e na impermeabilidade dos costumes e das tradições, mesmo que, nesse último caso, mais no discurso que na prática. Homens e mulheres, livres, libertos e escravos construíram esse ambiente e dele usufruíram o quanto puderam e como puderam.
O ouro, de início, fomentou as mudanças, mas não foi ele o único elemento responsável por elas. Já nas primeiras décadas de ocupação das terras das Minas Gerais, gente de variada origem tentou fazer fortuna não apenas minerando, mas plantando roças e criando animais, oferecendo serviços de todo tipo e, sobretudo, praticando algum comércio. Nas vilas e arraiais das Minas tudo isso existiu, e nunca os escravos estiveram excluídos dessas possibilidades. Ruas, vielas, chafarizes e becos hospedaram milhares e milhares de escravos de ganho, de negras de tabuleiro, de coartados – cativos que pagavam sua alforria em parcelas, durante três ou quatro anos – e de forros. Enquanto alguns sobreviviam a duras penas, outros, e não foram poucos, conseguiam ganhar dinheiro, com o qual compravam a liberdade, casas, roupas, ferramentas de trabalho, jóias e também escravos.
As mulheres ocuparam lugar destacado nesse mundo urbano colonial. Quando escravas, várias conheciam, além de autonomia, alguma fortuna. Depois de libertas, muitas outras ascendiam social e economicamente, transformavam-se em importantes comerciantes e proprietárias de escravos, e engrossavam a camada média urbana que habitava a antiga capitania. Mulheres como essas foram responsáveis por grande parte do consumo de tecidos produzidos na Índia especialmente para o Brasil.
Ignácia Ribeira, forra, moradora no arraial do Pompeu em 1777, possuía uma venda de secos e molhados, um escravo, ouro lavrado em barra, um colar de corais e tinha pago uma quantia avultada por sua liberdade: cerca de 300 mil réis. Izabel Pinheira, angolana, morreu viúva, no arraial da Roça Grande, em 1741, possuindo sete escravos que ficaram alforriados e coartados no testamento deixado por ela. Entre as mais afortunadas, estava a crioula Bárbara de Oliveira, natural da Bahia, que se mudara para Sabará, onde morreu em 1766. Ela possuía 22 escravos (mais mulheres que homens – um conjunto de grande porte, incomum até mesmo entre proprietários brancos). Também tinha muitas jóias e roupas guardadas em canastras, como “uma saia de primavera de seda, uma de droguete preto e uma de seda passado de ouro”. Ela possuía, ainda, ouro lavrado e em pó e muitos créditos na praça.
É provável que a origem de sua fortuna estivesse ligada, de alguma forma, à prostituição e, talvez, por isso, ela, em testamento, alforriasse e coartasse quase todas as suas escravas e os filhos delas. Um último exemplo: a crioula Bárbara Gomes de Abreu e Lima, que morreu em Sabará, em 1735. Depois de comprar sua alforria, ela formou uma invejável fortuna e montou uma impressionante rede de relações sociais com alguns dos homens mais ricos e importantes da vila. Bárbara morava em um sobrado imponente, na rua principal, mas possuía outras casas. Tinha muito ouro em pó e lavrado, créditos às dezenas e negócios que não ficaram revelados espalhados por várias regiões de Minas e pela Bahia, de onde viera ainda cativa. De Sabará, ela tudo controlava. Tinha apenas sete escravos, o que não condizia com sua riqueza.
Já entre berloques e balangandãs, sua posição social aparecia mais explicitamente: dezenas de cordões de ouro, vários com corais engranzados, como se dizia na época; além de tecidos de várias partes do mundo. Bárbara era uma das muitas negras que, como Chica da Silva, a amante do contratador João Fernandes, ajudaram a decidir os rumos de Minas. Cada vez mais a nova historiografia demonstra que essas mulheres não eram exceções nem gente alienada. Elas não lutaram contra a escravidão dos irmãos de cor e de raça, mas, ao atuarem no dia-a-dia, ajudaram a constituir uma sociedade diferente.

Eduardo paiva é Professor da Universidade federal de minas gerais e autor de escravidão e universo cultural na colônia, da editora ufmg.

Revista Aventuras na História

Camille Claudel - Arte, paixão e loucura


Camille Claudel - Arte, paixão e loucura
Com apenas 17 anos, Camille chegou a Paris, onde conheceu um dos maiores artistas de seu tempo, Auguste Rodin, de quem se tornou assistente, musa e amante. A partir daí, seus destinos estariam para sempre entrelaçados
por Bia Baldim
Camille Claudel morreu em 1943, aos 79 anos de idade, pobre, sozinha numa cama de hospício, onde ficou por mais de 30 anos. Em vida, ela foi atormentada por um amor impossível, pelos preconceitos da sociedade francesa do século 19 e pela doença que a levou ao isolamento. A própria família a renegou. A sobrinha-neta de Camille, Reine-Marie Paris, autora de uma tese sobre a vida da artista (Camille Claudel, de 1984), conta que brincava entre as esculturas guardadas na casa do avô, Paul, irmão de Camille. “Até pouco tempo atrás, a família tinha vergonha da escultora e o nome de Camille sequer era pronunciado”, diz. Mas o que essa artista brilhante fez de tão grave? Por que suas obras ficaram escondidas e esquecidas por tanto anos?
Para entender a vida de Camille é preciso voltar à sua infância, na discretíssima Villeneuve-sur-Fère, na região de Champanhe, no sul da França. Ali, entre brincadeiras e pequenas aventuras ao lado de Paul, Camille foi uma criança fora dos padrões e alheia ao que se esperava de uma menina no século 19. Numa época em que as mulheres eram criadas para afazeres domésticos, ela estava sempre suja de barro e descabelada. Ela e o irmão caçula fugiam de casa para se aventurar nas montanhas que cercavam a aldeia. Paul Claudel, que mais tarde se tornaria um dos grandes escritores da França, descreveu o cenário de sua infância no livro Mémoires Improvisés (“Memórias Improvisadas”, sem versão em português), de 1954: “Vivíamos em terra agreste e selvagem, uma paisagem extremamente austera, com ventos e chuvas freqüentes”.
Para o desespero da mãe e orgulho do pai, Camille descobriu cedo o gosto pela escultura. Começou moldando argila, quase como uma brincadeira. Eram figuras inspiradas em Napoleão, Davi e Golias, além de membros da família. Na adolescência, um de seus professores foi o escultor Alfred Boucher. Foi ele que sugeriu ao pai de Camille, Luis-Prosper Claudel, que levasse a menina a Paris, onde ela poderia participar de grandes salões de arte e conhecer a nata intelectual e artística da época.
O pai de Camille acreditava na vocação da filha. E, apesar dos gastos que isso representava, em 1881 levou toda a família para Paris. Eles chegaram em uma charrete emprestada por um vizinho. “Todos estavam exaustos, apenas Camille, então com 17 anos, e a empregada Eugènie irradiavam alegria”, escreveu a francesa Anne Delbée, no livro Camille Claudel, Uma Mulher, biografia publicada na França em 1982.
Mas em Paris as dificuldades eram enormes para uma jovem artista. A escultura, além de ser uma atividade prioritariamente masculina, exigia materiais caríssimos como o mármore e o bronze. E mais: era preciso pagar um espaço relativamente amplo – os aluguéis em Paris, já naquela época estavam entre os mais caros do mundo – e o salário do trabalho de fundidores, auxiliares e modelos. Camille alugou um ateliê com mais três jovens artistas, todas inglesas. Uma delas, Jessie Lipscomb, tornou-se sua amiga para o resto da vida e uma das poucas pessoas que a visitariam no hospício. Elas dividiam também os pagamentos para o professor Alfred Boucher, que as orientava de vez em quando. Foi numa dessas visitas que Boucher apresentou o trabalho de Camille para Paul Dubois, diretor da Escola Nacional de Belas-Artes. Dubois notou a semelhança da obra da jovem com a de outro artista, que começava a despontar para a fama. “A senhorita já teve aulas com Auguste Rodin?” Camille nunca tinha ouvido falar no sujeito.
O encontro
“Na época, Rodin ainda não era famoso, mas já iniciara a experimentação conceitual e estilística que viria a caracterizar sua forma inusual de esculpir. Por isso, era odiado pelos críticos e amado pela vanguarda de Paris, ou seja, os impressionistas”, diz Jacques Vilain, historiador do Museu Rodin e co-autor de Rodin: A Magnificent Obsession (“Rodin: Uma Magnífica Obsessão”, inédito no Brasil). Se Camille ficou curiosa para conhecer o tal que esculpia igual a ela, esse sentimento durou pouco. “Apenas algumas semanas depois, Boucher viajou à Itália e pediu para um amigo assumir suas aulas particulares. Assim, numa tarde de maio de 1883, Rodin batia às portas das jovens escultoras”, diz Vilain.
Camille tinha 19 anos. Rodin, 45. Segudo Reine-Marie, Rodin teria entrado cheio de si no ateliê e não fez um só elogio sobre as obras expostas. Muito pelo contrário: apontou defeitos.
Mas ele gostou do que viu. Tanto que passou a freqüentar o local e, depois de dois anos, chamou Camille para trabalhar com ele. O convite coincidiu com um momento particularmente importante na carreira de Rodin. “Ele acabara de receber uma encomenda do governo francês para fazer As Portas do Inferno e Os Burgueses de Calais, obras de grande porte que precisariam de ajudantes para ser feitas”, afirma Vilain. “Camille era uma artesã habilidosa e por isso ficou incumbida de fazer os pés e as mãos das estátuas. Além disso dava opiniões e discutia idéias sobre as obras com Rodin.” Não se sabe quando a convivência entre o mestre e a aluna se tornou um caso de amor, mas as cartas que trocavam em 1886 são reveladoras da paixão e do ciúme que Camille, desde o início, já sentia. “Minha Camille, esteja segura de que não tenho nenhuma outra amiga e toda minha alma lhe pertence”, escreve Rodin. Camille responde: “Deito-me nua para imaginar que está ao meu lado, mas quando acordo já não é a mesma coisa”.
Rodin não estava sendo sincero. Nessa época, ele já vivia com Rose Beuret, com quem tinha um filho. Além disso, ostentava a fama de mulherengo. Mas Camille estava apaixonada e, em 1888, deixou a casa dos pais e passou a viver numa casa alugada por Rodin, que eles chamavam de “retiro pagão”. “Eles passam a freqüentar lugares públicos, tornando-se amantes assumidos. O que era um escândalo para a época”, afirma Liliana Wahba, psicóloga brasileira autora de Camille Claudel: Criação e Locura. Essa fase da vida de ambos é marcada por obras de intensa sensualidade.
No entanto, com o tempo (ah, o tempo, esse eterno vilão dos casos de amor!), Camille passou a se sentir sozinha. Vivia à espera de Rodin, que nem sempre aparecia. O relacionamento começou a deixá-la deprimida. Ela queria que Rodin se casasse com ela. Mas ele nunca chegou a deixar Rose. Jurava amor a Camille, mas dizia que não podia abandonar a mulher que havia estado ao seu lado nos momentos difíceis. Para a historiadora Monique Laurent, ex-diretora do Museu Rodin, em Paris, no entanto, isso não passava de uma desculpa. “Ele tinha medo de Camille. Sua inteligência e talento faziam dela uma artista que poderia suplantá-lo.”
Em 1892, Camille sofreu um aborto. Não se sabe se foi natural, mas o drama certamente a abalou. Ela abandonou o “retiro pagão” e decidiu se afastar de Rodin. Para recuperar o tempo perdido, se concentrou no trabalho para desvincular sua arte da do amante. É sua fase mais produtiva. Ela estuda a arte japonesa e dessa influência surgem algumas das suas mais belas obras, como As Bisbilhoteiras e A Onda. Apesar das críticas favoráveis, sua arte não era apreciada pelo grande público. “Em parte pelo preconceito por ser mulher. E, em parte, porque diziam que ela copiava Rodin”, afirma Liliana Wahba.
Rodin e Camille continuaram a se encontrar até 1898, quando romperam definitivamente. Camille passou então a viver trancada em seu estúdio, cercada por seus gatos. Ela estava com sérios problemas financeiros. Usava roupas e sapatos velhos, não comia direito e começou a beber. Depois que A Idade Madura, considerada sua obra mais autobiográfica, foi recusada pela Exposição Universal de 1900, Camille, com 36 anos, passou a achar que havia um complô de Rodin contra ela. Mas, apesar das suspeitas, ele continuava a intervir por ela, assegurando-lhe novas encomendas. Mas Camille foge de todos. Prefere viver sozinha, no silêncio e na escuridão. Sua última escultura é de 1906. Depois desse ano, destrói tudo o que esculpe. Os moldes de gesso ela joga no rio Sena ou os enterra, e proíbe que vejam o que faz. “A partir de então, suas angústias se tornam idéias fixas, até instalar-se a psicose”, diz Liliana.
Seu irmão estava longe, em missão diplomática na China. Seu pai estava velho, doente. Ela não tinha mais ninguém, nem dinheiro, nem saúde, nem inspiração. Restava-lhe o abandono e o medo. No dia 10 de março de 1913, uma semana após a morte do pai, a pedido da família, que arranjou uma certidão médica (ela foi diagnosticada como portadora de delírio paranóico), Camille foi levada à força para um hospício. Ela não sairia do hospital até o dia de sua morte, 30 anos depois, e jamais voltou a esculpir.

Camille pelos olhos de Rodin
Musa
Em 1888, Camille Claudel esculpiu Sakountala. Segundo Antoinette Romain, historiadora francesa especializada em arte do século 19, em resposta, Rodin fez O Eterno Ídolo (1889). Essa obra foi criada para integrar As Portas do Inferno, mas Rodin não a colocou no monumento. “Provavelmente porque a obra é muito delicada e sensível”, afirma a historiadora Monique Laurent. Quando Rodin finalizou esta obra, Camille já vivia, havia um ano, na casa que ambos chamavam de “retiro pagão”. “Eles estavam no auge da paixão e a obra reflete isso”, afirma Monique.
Modelo
Além de aluna, ajudante e amante, Camille costumava posar para Rodin. A Danaide, realizada em 1885, é uma das obras para a qual ela serviu de modelo. A peça é extremamente sensual e coincide com o início do relacionamento amoroso entre os dois. Rodin apresentou a escultura em mármore, pela primeira vez, em 1889, durante uma exposição que realizou junto com o pintor Claude Monet. Para Monique Laurent, não há dúvidas de que este trabalho está ligado com a memória íntima do escultor.
Influência
Camille foi convidada por Rodin para trabalhar com ele em 1885. Ela era a única mulher no time de escultores contratados para auxiliar o mestre a esculpir uma de suas obras mais monumentais, Os Burgueses de Calais. O conjunto começou a ser esculpido em 1884 e demorou cerca de dois anos. “Com o tempo, Camille ganhou a confiança da equipe e Rodin passou a consultá-la para quase tudo”, afirma a historiadora francesa Monique Laurent. Era Camille a incumbida de esculpir pés e, principalmente, mãos. “E era por meio das mãos que Rodin definia a emoção dos personagens”, afirma.

Saiba mais
Livros

Camille Claudel: Criação e Loucura, Liliana Liviano Wahba, 1998, O livro fala da família, de Rodin e da personalidade de Camille para avaliar a doença que a acometeu.
Camille Claudel, uma Mulher, Anne Delbée,1988, Traz trechos de cartas da escultora para o irmão.
Rodin, Monique Laurent, 1988, A historiadora francesa, ex-diretora do Museu Rodin, comenta a relação entre as obras de Camille e Rodin.
Filme
Camille Claudel, Bruno Nuytten, 1989, Baseado na biografia escrita por Raine-Marie, sobrinha-neta de Camille, o filme foi o responsável pelo “renascimento” das obras da escultora.
Site
www.camille-claudel.org, Mantido por Reine-Marie, informa sobre exposições e relaciona os museus onde estão suas obras.

Revista Aventuras na História

Mona Lisa


Mona Lisa
Quem vê seu discreto sorriso certamente não sabe pelo que passou a pobrezinha, nesses últimos 500 anos: atormentada, atacada, roubada e até seqüestrada por um ditador. Depois de tudo isso, só nos resta perguntar:
por Sérgio Miranda
Todos os anos o Museu do Louvre, em Paris, recebe cerca de 5,5 milhões de visitantes. Cada um deles espera encontrar muitas surpresas em um museu tão grandioso. Mas todos têm a mesma certeza: é ali que está La Joconde (em francês, como está escrito na etiqueta fixada na parede) ou a Mona Lisa, uma pequena tela de 77 x 53 centímetros, pintada por Leonardo da Vinci há exatos 500 anos. Resguardada atrás de um vidro de segurança e afastada do público por um cordão de isolamento, a obra, que já causava admiração e espanto quando seu autor era vivo, é a mais conhecida obra de arte do mundo.
A razão desse sucesso, em grande parte, deve-se à personalidade genial de Leonardo da Vinci que, ao contrário da maioria dos artistas ao longo da história, obteve o reconhecimento de sua genialidade ainda em vida. O retrato de uma mulher sentada, de vestes simples e de sorriso enigmático, foi logo reverenciado como mais um trabalho do mestre florentino e sua qualidade técnica é inquestionável. A obra já nasceu admirada pelo público, na época formado sobretudo pelos abastados cidadãos de Florença, Milão, Roma e Paris.
Leonardo pintou o retrato entre 1503 e 1506. Era uma época em que os artistas nem sempre assinavam seus quadros e, na maioria das vezes, deixavam para seus assistentes a tarefa de terminar a pintura. Sobre a Mona Lisa, porém, jamais se suscitou qualquer dúvida quanto a sua autoria. Apesar de não apresentar a assinatura do artista, é exemplar na técnica criada por Da Vinci – o sfumato, que elimina linhas de contornos e molda as figuras apenas com luz e sombras.
Outro grande artista da época, Rafael de Urbino, foi testemunha ocular do nascimento de Mona Lisa. Ele esteve em Florença entre 1504 e 1506. Então pouco mais que um aprendiz, o jovem Rafael produziu um desenho e um retrato inspirados na obra de Da Vinci. A mesma atitude, a mesma posição das mãos, até as duas colunas ao lado da composição (que hoje não se vêem mais no quadro, depois das seguidas emoldurações). Não há dúvida de que ele viu a obra de Da Vinci ainda em execução e tentou imitar (ou homenagear) o mestre.
Mas a certidão oficial de nascimento são as anotações de Giorgio Vasari. Escritor e pintor quinhentista, ele foi autor de duas biografias de Da Vinci (1550 e 1568). É ele que nos dá a primeira pista de quem é a moça retratada na tela e, de certa forma, tornou-se seu padrinho, já que é o responsável pelo seu batismo. Segundo Vasari foi Lisa del Giocondo que posou para Da Vinci, daí o nome do quadro: La Gioconda (La Joconde, para os franceses) e Mona Lisa (uma derivação de Madonna Lisa, em italiano). Embora haja outras versões para a identidade da retratada, o nome ficou esse mesmo. (Leia o quadro na página 52.)
Mas o próprio pai jamais falou ou se referiu à sua criação. Da Vinci registrou centenas, milhares de notas sobre seus trabalhos. Seus cadernos contendo idéias, esboços, rascunhos e até um tratado sobre a pintura são amplamente conhecidos e, até hoje, servem de fonte de pesquisa para artistas, cientistas e historiadores. No meio de toda essa papelada, ele não mencionou uma só vez sua obra mais famosa.
Mas ele devia gostar da obra. Tanto que não se desfez dela. Da Vinci jamais entregou o quadro a quem quer que fosse. Nem à retratada ou a quem a encomendou (e pagou?). No livro Símbolos e Mitos na Pintura de Leonardo da Vinci, o crítico de arte italiano Angelo Guido defende a idéia de que a predileção do artista pela tela fosse estética. Segundo ele, Leonardo sabia ter alcançado com a Mona Lisa algo além das perfeições matemáticas que aplicava em seus trabalhos e talvez por isso tenha guardado a tela consigo e levado-a aonde foi.
Da Vinci viveu numa época em que os artistas peregrinavam pelas cortes européias para atender encomendas ou oferecer seus serviços. Já famoso e consagrado, em 1517 ele foi convidado à disputadíssima corte do rei Francisco I. Foi assim que Mona Lisa chegou a Paris. Mas Da Vinci não usufruiria por muito tempo da fama e da glória. Ele morreu apenas dois anos depois, no dia 2 de maio de 1519.
Quase que imediatamente, seus herdeiros venderam o quadro ao próprio rei Francisco por 12 mil francos e Mona Lisa foi morar no castelo em Amboise, residência oficial do monarca. Logo depois ela seguiu para o Gabinete dos Quadros do castelo de Fontainebleau, criado especialmente para abrigar a coleção de obras de arte da casa real francesa. Em 1693, a tela passou a pertencer ao acervo pessoal de Luís XIV e, em 1709, Mona Lisa se muda com a corte para o Palácio de Versalhes.
A revolução francesa e suas idéias liberais puseram o mundo de cabeça para baixo. Políticos do antigo regime foram mortos e seus símbolos, destruídos sob a onda de liberdade, igualdade e fraternidade. Durante cerca de 250 anos, o quadro só fora visto pela nobreza francesa. Agora ele teria de servir ao povo. Em 1793 – apenas quatro anos após os primeiros gritos da revolução – um antigo castelo, o Louvre, que foi sede do governo no tempo de Henrique II e Catarina de Médici, foi transformado em museu e aberto ao público.
Aos poucos as coleções espalhadas pelos castelos franceses foram reunidas. No entanto, antes de chegar ao Louvre, Mona Lisa sentiria a mão forte de Napoleão Bonaparte. Em 1800, o general em ascensão rumo ao poder absoluto tomou para si o quadro e mandou pendurá-lo em seus aposentos pessoais no Palácio das Tuileries. Napoleão se tornou imperador, travou batalhas, ganhou muitas, perdeu algumas, foi amado e odiado e nesse tempo todo Mona Lisa permaneceu à sua cabeceira, como a lhe embalar os sonhos de poder.
Apenas com a queda de Napoleão, em 1815, Mona Lisa seguiu para seu definitivo lar, no Louvre. Em meio a alguns dos maiores tesouros artísticos de todos os tempos, ela parecia, enfim, ter encontrado a segurança e a tranqüilidade que uma velha senhora, afinal, merecia. E assim foi, por quase 100 anos. Até que no século 20 uma outra onda de mudanças estourasse. Em vez de conturbações políticas, essa trouxe uma revolução no mundo das artes. Mona Lisa e o Louvre se tornaram símbolos da arte e do estilo que se queria superar. “Brûler le Louvre” (“queimar o Louvre”) se tornou um lema da geração de novos artistas, entre eles o pintor Pablo Picasso e o poeta Appolinaire. Picasso dizia que seria preciso incendiar o velho museu para que dele nascesse uma instituição mais moderna, que atendesse aos anseios dos artistas da época.
Em 21 de outubro de 1911, algo pior que um incêndio aconteceu. Mona Lisa foi roubada. Picasso e Appolinaire chegaram a figurar entre os suspeitos e foram interrogados. Até hoje permanecem as suspeitas de que soubessem de alguma coisa, mas nada se provou contra eles. Dois anos depois, a polícia prendeu o pintor italiano Vincenzo Peruggia quando este tentou vender o quadro para o governo italiano por 95 mil dólares. Em todo esse tempo, Mona Lisa esteve trancada em um baú, escondido no pequeno apartamento de Vincenzo (que, aliás, conhecia Picasso e morava a poucas quadras dele, em Paris). Durante o julgamento, Vincenzo disse ter sido motivado por patriotismo: queria devolver Mona Lisa à Itália. Acabou recebendo uma pena de prisão de um ano e 15 dias e o quadro foi devolvido a Paris, onde foi recebido com honras de chefe de Estado
Mona Lisa começava sua fase de superstar. Ela ficou tão em evidência e passou a ser tão assediada que, em 1956, acabou vítima de pelo menos dois atentados. No primeiro, um visitante jamais identificado lançou ácido sobre a tela e a parte inferior da pintura, danificada, precisou ser restaurada. Às 16h15 do dia 30 de dezembro, o estudante boliviano Ugo Unzaga Villegas jogou uma pedra na tela. O impacto descascou a pintura perto do cotovelo esquerdo de Mona Lisa. Ele foi preso e encaminhado pelas autoridades francesas para tratamento psiquiátrico. A obra foi restaurada.
Apesar dos ataques, o Louvre decidiu atender a um outro tipo de assédio. Museus do mundo todo queriam expor a obra e, em 1963, Mona Lisa deixou pela primeira vez a Europa e seguiu para os Estados Unidos. Para a viagem, foi feito um seguro, o que exigiu que, de forma inédita, o quadro fosse avaliado: se algo acontecesse a ele, o preço a ser pago pelo seguro seria de 100 milhões de dólares. Mas ela voltou sã e salva de sua temporada na América. Tanto que, em 1974, ela deixou novamente a França, dessa vez para um tour pelo Japão. A visita fez tamanho sucesso que até hoje é retribuída por um número enorme de turistas japoneses.
A tela de Da Vinci virou ícone da cultura pop. Se Picasso odiava a Mona Lisa, grandes artistas do século 20, como Andy Warhol e Duchamp, a utilizaram para criticar a sociedade de consumo e também ajudaram a eternizá-la: Mona Lisa tem sido uma das imagens mais disseminadas ao longo desses cinco séculos e, hoje, é um dos rostos mais reconhecidos em todo o mundo. E, como se ela soubesse disso, parece satisfeita, nos espiando por trás de seu sorrisinho enigmático e malicioso.

Quem foi Mona Lisa?
Lisa del Giocondo, embora empreste seu nome ao quadro, não é a única que concorre ao posto da mulher que está no retrato mais conhecido do mundo. A biografia de Da Vinci escrita por Giorgio Vasari conta que foi o marido de Lisa, Francesco del Giocondo, quem encomendou seu retrato ao artista. Depois de quatro anos, como Da Vinci não terminava a tela, Francesco proibiu a esposa de continuar posando e não pagou ao artista. No entanto, a primeira menção ao quadro é anterior ao texto de Vasari. Em 1517, Antonio de Beatis relatou a visita do cardeal Luiz de Aragon a Da Vinci, em Paris: “Ele mostrou a sua excelência três quadros, um dos quais era de uma certa mulher florentina, pintada por encomenda do falecido Giuliano de Medicis”. Das três obras, só uma era um retrato: Mona Lisa. Foi essa descrição de Beatis que abriu uma série de hipóteses para a identidade da jovem retratada. Pois, se Beatis tem razão, é pouco provável que Lisa del Giocondo seja a mulher do retrato.
Em 1503, quando Leonardo começou o quadro, Giuliano, filho da família mais poderosa de Florença, estava exilado em Roma desde 1494 e só voltou à cidade em 1512. É mais provável que Da Vinci, na visita do cardeal, tenha usado o nome de Giuliano – morto em 1517 – para justificar a posse da obra ou apenas para dar mais prestígio ao quadro. Mas o estrago foi feito. Até hoje, escritores, historiadores e curiosos se apegam à afirmação de Beatis para formular teorias alternativas sobre quem seria a Mona Lisa. O fato de Leonardo não ter entregue a obra também é um prato cheio para interpretações. Especula-se que a modelo seria uma amante do próprio artista. Por volta de 1493, Da Vinci estava em Milão, onde conheceu e pintou Cecilia Galerani. O artista, então com 32 anos, encantou-se com a jovem de 17 anos e com ela viveu, se não um caso amoroso, uma afeição que pode ser vista na série de cartas que trocou com ela.
Nessa linha ainda figuram Isabella D’Este, cunhada de Ludovico Sforza (o todo-poderoso local). Em 1500, Da Vinci fez um perfil de Isabella que é muito parecido com a Mona Lisa. Em 1987, a artista gráfica Lillian Schwartz criou sua própria Mona Lisa sobrepondo as imagens do desenho sobre a tinta da tela – identificado em exames de raios X – e o célebre auto-retrato de Da Vinci, chegando à mais imaginativa explicação sobre a identidade da moça. Ela concluiu que a tela é um retrato do artista. Embora haja semelhanças, elas podem ser explicadas: Da Vinci utilizava em suas obras proporções matemáticas constantes. Por isso quase todas se “encaixam”.

Saiba mais
SITE

http://www.louvre.fr
Obrigatório para quem gosta de arte, o site traz um ótimo conteúdo sobre a Mona Lisa (“Les Visages de la Joconde”).
LIVROS
Símbolos e Mitos na Pintura de Leonardo da Vinci, Angelo Guido, Sulina, 1969
Artista e crítico de arte italiano radicado no Brasil, o autor discute várias obras de Da Vinci. O capítulo dedicado a Mona Lisa é recheado de fatos históricos sobre os mistérios que envolvem a obra.
Les Classiques de l’Art, Flammarion, Paris, 1968
Difícil de encontrar, mas vale a pena procurar em bibliotecas. O volume dedicado a Da Vinci apresenta a mais detalhada analise da Mona Lisa e diversas interpretações da obra.
Leonardo da Vinci, Kenneth Clark, Ediouro, 2003
Relançamento da coleção “Vidas Ilustradas”, traz a biografia completa do artista. O original é de 1939.
O que faz de um Da Vinci um Da Vinci?, Richard Mühlberger, Cosac & Naify, 1994
Livro introdutório da série criada pelo Metropolitan Museum de Nova York. Ricamente ilustrado, analisa, comenta e conta a história de Mona Lisa e de mais 11 obras de Da Vinci.


Revista Aventuras na História

Triste destino de Inês

Triste destino de Inês
por Celso Miranda
Hoje, quando queremos dizer que uma situação é irreversível referimo-nos ao triste destino de Inês. Sua história é a de um amor impossível, como o de Romeu e Julieta, mas a diferença é que Inês existiu de verdade: ela e Pedro viveram no século 14. Oitavo rei de Portugal, Pedro reinou de 1357 a 1367. Quando era príncipe, em 1340, ele se casou com Constança, princesa de Castela, num acordo político comum na época. Porém, Pedro e Inês, dama de companhia de Constança, mantiveram um romance por anos e chegaram a ter quatro filhos.
“Não eram raros os casos de adultério de reis e nobres”, afirma o historiador Jaime Corrêa, da Universidade de Lisboa. “O romance, no entanto, nunca contou com o apoio do pai de Pedro, Afonso IV, e do clero, os fiadores do acordo entre Castela e Portugal.” Após a morte de dona Constança, no entanto, a ligação entre o casal se tornou mais estreita e a nobreza passou a temer que um dos filhos de Inês reivindicasse o trono.
Em 1355, essa tensão alcançou o ponto máximo e, aproveitando que Pedro estava caçando, o rei Afonso ordenou a morte de Inês. Pero Coelho, Álvaro Gonçalves e Diogo Lopes Pacheco executaram a sentença, cortando-lhe a garganta. Quando recebeu a notícia, Pedro avançou em direção à cidade do Porto, pretendendo enfrentar o próprio pai. Porém, foi demovido da idéia pela mãe, dona Beatriz, e pelo seu primo, o bispo de Braga. Resignado, teria dito: “Agora, Inês é morta”.
Assim que se tornou rei, no entanto, Pedro mandou prender os assassinos. Pacheco escapou para a França, mas Coelho e Gonçalves foram capturados em Castela e depois torturados (ambos tiveram o coração arrancado) na presença do rei. “A segunda providência foi ainda mais macabra. Alegando ter se casado com Inês às escondidas, Pedro fez com que ela fosse coroada rainha. Seu corpo foi desenterrado e colocado no trono. Durante a cerimônia, Pedro teria ordenado que toda a nobreza e membros do clero presentes ajoelhassem diante do cadáver e beijassem os ossos da mão de Inês”, diz Corrêa.

Revista Aventuras na História

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Balzaquiana, a mulher de 30 anos

Balzaquiana do sec XIX, por Renoir

Balzaquiana, a mulher de 30 anos
Romance do escritor Honoré de Balzac retrata a jovem senhora do século 19
por Angélica Moura
Que balzaquiana é sinônimo de mulher de 30 anos, ninguém discute e nunca discutiu, nem nos tempos do francês Honoré de Balzac (1799-1850). O que é discutível de lá para cá são os adjetivos que compõem o estigma - ou o elogio - que o termo representa. Em 20 de maio, comemoram-se os 210 anos de nascimento do escritor, dono de um respeitável conjunto de obras que inclui ficção e filosofia. De todo seu legado, nenhum foi tão perene quanto a expressão "balzaquiana", que nunca envelheceu, ao contrário das mulheres de 30, que inevitavelmente tiveram ou terão que se despedir do apelido literário para serem chamadas de quarentonas, cinquentonas ou coroas.

Balzac duplicou a idade do amor. Até então, na ficção ou na vida real, o amor era privilégio das jovens. "Balzac valorizou a mulher mais velha, expressando sua vitalidade e mostrando-a como sedutora", explica Maria Cecília Queiroz de Moraes Pinto, professora de Literatura Francesa da USP.
A Mulher de 30 Anos é um romance escrito entre 1828 e 1844, época em que a sociedade francesa assistia ao período de Restauração, após a queda de Napoleão Bonaparte, em 1815, e início das mudanças sociais provocadas pela Revolução Francesa. Os valores burgueses aparecem na literatura. Os personagens Carlos de Vandenesse e Julia D’Aiglemont apaixonam-se perdidamente. Ambos têm 30 anos, mas Carlos é um "homem jovem" e Julia uma mulher "mais velha". Ela é tão submissa que seu recato e resignação encantam o rapaz. Ele tece uma vasta lista de comparações entre jovens e maduras e, em todos os quesitos, a balzaquiana é superior.

Universo feminino
As transformações em dois séculos

Vida longa à Rainha do lar

Hoje parece estranho dizer que uma mulher de 30 anos está velha. Mas, no século 19, não haveria nada de anormal em um comentário assim.A expectativa de vida da francesa era de 40 anos. No Brasil, a balzaquiana estaria literalmente com o pé na cova, pois vivia somente até os 27 anos. Fatores como a descoberta da penicilina, a cura da tuberculose e avanços da ciência dobraram a longevidade feminina. Hoje mulheres de todo o mundo vivem, em média, até os 75 anos de idade.

Amor e castidade

Na aristocracia, fidelidade e recato não eram qualidades indispensáveis a uma moça de família. Os casamentos eram por conveniência e ter amantes era normal. A sociedade burguesa instaurou a união por amor. Castidade e submissão passam a ser o maior tesouro das mulheres. Elas protagonizam romances, como explica Sandra Vasconcelos, professora de Literatura Inglesa da USP, mas “confinadas à esfera privada. Na literatura e na ficção, elas eram modestas, humildes e delicadas”.

Do espartilho à plástica

No século 19, o espartilho ainda era soberano. A moda era usar vestidos colados na cintura que exaltassem os quadris, o busto avantajado, no chamado perfil em “S”. O embelezamento se prestava mais a dignificar e elevar o status da mulher que a fazer com que ela se sentisse efetivamente mais bonita. Hoje, a busca da beleza independe do status e está intimamente ligada a brigar contra o tempo. Silicone e botox são as atuais fontes da juventude.

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