sábado, 31 de julho de 2010

Chico Xavier

Caricatura do Chico Xavier, cujo centenário é comemorado neste ano, feita para o Estadão.
Cedida por Baptistão Caricaturas
Faça uma visita....http://baptistao.zip.net/


As sínteses do mito Chico Xavier
Bernardo Lewgoy
Professor do Departamento de Antropologia UFRGS

A biografia e obra de Chico Xavier são paradigmáticas dos caminhos e dilemas que o espiritismo percorre em sua relação com a sociedade brasileira no século XX. Religião letrada e racionalista, ela principia por ser adotada pelos segmentos de elite do Brasil pré-republicano. Ainda que alguns de seus pioneiros tenham participado de causas progressistas como o abolicionismo, o espiritismo se populariza não pelo heroísmo ou pelo profetismo de seus pioneiros, mas sim através da oferta de serviços de cura (o chamado "receitismo mediúnico", cf. Damazio, 1994 e Giumbelli, 1997) passando, após, por movimentos de fragmentação interna e concorrência com outras religiões mediúnicas, especialmente a partir dos anos 20, como aconteceu em sua relação com a umbanda38.
Leigo e anticlerical, o espiritismo kardecista sofre transformações no século XX, absorvendo tendências que pareciam correr em leitos ideológicos, culturais e políticos distintos: uma cultura letrada erudita de um pequeno e nunca inteiramente autônomo campo intelectual, cultivada na crítica literária dos jornais, na Academia Brasileira de Letras e nos colégios da República Velha39; um certo modernismo cientificista, meritocrático e nacionalista, que absorvia com um pesado viés militarista o humanismo racionalista do kardecismo e que extravasava suas conseqüências para uma composição com outros segmentos sociais, através da extensão desse modelo pelo corporativismo profissional, que incluía profissões ligadas a um projeto de nação, como a educação e a medicina.
A composição entre determinismo e livre-arbítrio, base da noção de pessoa espírita (Cavalcanti, 1983), pouco espaço ensejou para a autonomia individual como princípio ético e valor religioso, restringida que estava pelos dispositivos doutrinários e rituais no espiritismo brasileiro de boa parte do século XX. Tratava-se, ali, de uma concepção minimalista de indivíduo, não apenas vinculado sincronicamente a espíritos e homens mas também a leis, regulamentos, estatutos e graus de evolução e, é claro, a uma noção cármica de justiça, no interior do que denominei de "sistema da dívida". Havia certamente uma exacerbação da racionalidade no espiritismo, mas não a racionalidade individualista, liberal e psicologizante mas outra, ligada a uma vertente organizada da sociedade brasileira, mais conservadora, cujas bases sociais eram as camadas médias urbanas da população, de onde saíam os funcionários públicos, professores de escola, advogados, militares e médicos, profissões de tradicional expressão no espiritismo. Diferente de certas tendências psicologizantes e new age de parte das camadas médias urbanas da atualidade, uma das fontes do espiritismo de Chico Xavier, dos anos 40 aos anos 70, enraiza-se numa estrutura religiosa formalmente federativa e doutrinariamente ligada a uma visão corporativista de mundo social, próxima, portanto, do pensamento conservador que circulava na sociedade brasileira da primeira metade do século XX.
Ora, se essa concepção religiosa podia ser muito sedutora para setores organizados das camadas médias brasileiras ou mesmo da elite letrada, durante a primeira metade do século XX, ela ainda pouco ecoava entre pessoas que vivenciavam uma religiosidade popular, tão forte junto às faixas sociais subalternas da população, em boa parte marcada pelo catolicismo, pela benzeção e pelos cultos afro-brasileiros e que não dispunha de recursos culturais e simbólicos que lhe permitissem criar uma identidade espírita, mesmo que dela fizessem uso como recurso de cura. É justamente nesses setores sociais que o modelo de espiritismo de Chico Xavier alcançará um sucesso sem precedentes, não obstante a inegável liderança dos segmentos intelectualizados.
Essa dureza racionalista na concepção espírita de Chico Xavier ¾ de resto vinculada à concepção cármica de justiça ¾ é compensada pela força de sua composição com as crenças e práticas oriundas de um catolicismo familiar, de culto aos santos e à figura de Maria, transformadas através da moeda comum do circuito da intercessão e da graça, da relação personalizada com Jesus e com benfeitores espirituais, tudo isto numa construção eminentemente sincrética, ainda que nunca reflexivamente enunciada.
A relação do espiritismo de Chico Xavier com projetos de organização social e de identidade nacional é basicamente datada, circunscrita a conjunturas históricas específicas do Brasil antes e depois da Segunda Guerra Mundial, quando ocorre uma série de transformações sociais sem precedentes em termos de urbanização, industrialização e padrões da sociabilidade, incluindo-se o degelo da autoridade religiosa, fundada no antigo primado da Igreja Católica sobre a identificação da nacionalidade. Se o caminho pavimenta-se no sentido da pluralização das modalidades de crer e participar das religiões, o modelo de Chico Xavier ofereceu uma alternativa religiosa de pertencimento à sociedade brasileira com uma plena identificação com símbolos laicos de ordem, como a nação, bem como com estratégias de prestígio e distinção ligadas à posse de um capital cultural que valorizava a leitura, o estudo, a erudição e a ciência, de indiscutível valor no mundo contemporâneo. Ele viabilizou ao participante viver a integridade de uma relação com um ethos religioso tradicional pleno de hierarquias, mediações e súplicas a santos, mas também de se sentir participando do mundo da "alta cultura", dos saberes escolares, da erudição e dos conhecimentos científicos, ou seja, de tudo aquilo que goza da reputação social conferida pela cultura letrada.
Ora, é a dimensão de Chico Xavier como santo, letrado e informal, mas também caracterizado como "homem coração", que promete realizar uma série de sínteses que foram fundamentais para a implementação do espiritismo no Brasil do século XX. Em DaMatta (1979) a dimensão simbólica do coração é associada ao improviso do malandro, própria à vertente carnavalesca da sociedade brasileira. Em Chico Xavier o coração tem a conotação homóloga de um englobamento hierárquico da razão, mas sob a influência de um código religioso, indicando uma irrestrita abertura para o Outro, encarado basicamente como um "irmão". Ou seja, trata-se de uma alternativa religiosa à carnavalização, por meio de um estilo communitas ou fraternal de ultrapassar diferenças sociais e individuais sem inversão de ordem. Recusando a vertente carnavalesca na cultura brasileira e não havendo espaço para a criação de uma nova alternativa mediadora, o modelo de Chico Xavier sofrerá uma permanente oscilação entre os paradigmas culturais do "santo renunciante" e do "caxias", assim como o espiritismo oscila entre religião e ciência, entre o religioso e o secular e entre fato e ficção em sua literatura. O ethos hierárquico, fundado na face "religiosa" da doutrina ¾ pois a parte "filosófica" e "científica" nunca aboliu a verve deslegitimadora da razão crítica ¾, transita em Chico Xavier entre uma hierarquia relacional ligada à dádiva e outra, do mérito, ancorada na noção de justiça cármica. Trata-se, assim, de tentativas de composição religiosa e ética que expressem dilemas que não são apenas do espiritismo kardecista, mas da ordem da sociedade e da cultura brasileira no século XX.
Como racionalizar o mundo, como pregar a igualdade de todos, como ser moderno sem afrontar as hierarquias estabelecidas, de tão largas raízes no Brasil? Através da combinação de um ideal cívico de religião, combinando a ordem secular com a ordem transcendente, que não implicasse numa exacerbação da verve crítica ou atomizadora do individualismo moderno. Da mesma maneira que criou modelos de pessoa e de cidadão, a literatura de Chico Xavier formatou aos leitores o convívio interpessoal e institucional no chamado mundo espiritual. Ou seja, ao mesmo tempo em que reintegrou o secular num modelo religioso, contribuiu para dessacralizar o além.
Como ser moderno, letrado, científico e laico sem ser ateu, indiferente à caridade, "subversivo" e desprovido de valores? Como ser cristão sem ser católico num país sem uma massiva tradição protestante? Não apenas pregando as concepções de carma e de reencarnação como indistinção da ordem natural e da ordem sagrada, mas também conciliando alguns dos modelos modernos de autoridade e poder, como a encarnada pela burocracia, com a tradicional devoção aos mediadores, que trilham atalhos e personalizam a rigidez dos formalismos do mundo legal brasileiro, este transposto à condição de ordem transcendente no espiritismo, como se vê em Nosso lar. Conciliar o sistema relacional da dádiva com o sistema cármico da dívida, o país tradicional com o moderno, a hierarquia com a igualdade (ainda que sem o individualismo liberal), a tradição familiar e o corporativismo, a linguagem dos espíritos com o culto aos santos, o letramento com a humildade, o coração e a razão, eis as promessas de síntese embutidas no modelo mítico de santidade de Chico Xavier. Ler a matéria em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-77012001000100003&script=sci_arttext

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Herbert Spencer - O ideólogo da luta pela vida

Teórico inglês buscou no evolucionismo os mecanismos e objetivos da sociedade, e defendeu o ensino da ciência para formar adultos competitivos
Márcio Ferrari (Márcio Ferrari)

Foto: Hulton Archive/Getty Images

Tendo vivido num tempo de grandes avanços científicos, o filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903) foi o principal representante do evolucionismo nas ciências humanas. Ele intuiu a existência de regras evolucionistas na natureza antes de seu compatriota, o naturalista Charles Darwin (1809-1882), formular a revolucionária teoria da evolução das espécies. É ele o autor da expressão "sobrevivência do mais apto", muitas vezes atribuída a Darwin.

O filósofo aplicou à sociologia idéias que retirou das ciências naturais, criando um sistema de pensamento muito influente a seu tempo. Suas conclusões o levaram a defender a primazia do indivíduo perante a sociedade e o Estado, e a natureza como fonte da verdade, incluindo a verdade moral. No campo pedagógico, Spencer fez campanha pelo ensino da ciência, combateu a interferência do Estado na educação e afirmou que o principal objetivo da escola era a construção do caráter (leia quadro na página 58). "Ele dizia que os conhecimentos úteis, que serviriam para formar os homens de negócios e produzir o bemestar pessoal, eram desprezados em favor do ensino das humanidades, que davam mais prestígio", diz a professora Maria Angélica Lucas, da Universidade Estadual de Maringá.

Para Spencer, havia uma lei fundamental da matéria, que ele chamou de lei da persistência da força. Segundo ela, a tendência natural de todas as coisas é, desde a primeira interação com forças externas, sair da homogeneidade rumo à heterogeneidade e à variedade. À medida que as forças vindas de fora continuam a agir sobre o que antes era homogêneo, maior se torna o grau de variedade.

Biografia

Herbert Spencer nasceu em Derby, Inglaterra, em 1820, e desde a adolescência mostrou ter uma personalidade anticonformista. Aos 13 anos, tentou fugir da educação oferecida por um tio que era pastor protestante, mas teve que voltar à escola, onde se manteve até os 16. Depois disso, deu continuidade sozinho a sua formação, com leituras que se concentraram acima de tudo em ciências. Queria ser inventor e acabou, pelo conhecimento que adquiriu sozinho, trabalhando como engenheiro ferroviário. Paralelamente, começou a publicar artigos em que já defendia idéias liberais, argumentando que a ação dos governos não deveria ir além de garantir os direitos naturais dos cidadãos. Em 1848, tornou-se subeditor da revista The Economist, onde trabalhou até 1853, quando recebeu uma herança do tio e passou a se dedicar apenas a escrever livros – atividade que manteve até a morte, em 1903. Spencer relacionou-se com os principais intelectuais ingleses de seu tempo e manteve um romance com a escritora George Eliot (pseudônimo de Marian Evans). Sua obra teve enorme repercussão dentro e fora da Grã-Bretanha. Alguns dos principais livros de Spencer são: Filosofia Sintética (que publicou em série, com pagamento de assinatura antecipada por seus admiradores), O Homem contra o Estado, Educação Intelectual, Moral e Física e Autobiografia.

Conhecer, só pela razão

Baseado nessa observação, Spencer deduziu um princípio para todo desenvolvimento, que é a lei da multiplicação dos efeitos, causada por uma força absoluta que não pode ser conhecida pelo entendimento humano. Tratase, para Spencer, de uma lei da natureza, uma vez que ele se recusava a levar em conta, para efeito científico, a possibilidade de forças sobrenaturais. O filósofo, herdeiro da linhagem empirista britânica e também influenciado pelo positivismo, era agnóstico e combatia a influência religiosa no ensino e na ciência. O próprio termo agnosticismo, para se referir a uma postura filosófica que só admite os conhecimentos adquiridos pela razão, foi criado por um amigo e defensor de Spencer e Darwin, o naturalista Thomas Huxley (1825-1895).

Período vitoriano marca fim de uma era

A rainha Vitória: governante de uma época
famosa pelo puritanismo.
Foto: Time Life Pictures /Getty Images

Herbert Spencer foi, com John Stuart Mill (1806-1873), um dos dois mais importantes pensadores ingleses da era vitoriana, e o que melhor encarnou as características tradicionalmente relacionadas ao período. O reinado da rainha Vitória (1819-1901), que subiu ao trono em 1837 e governou até a morte, gerou o adjetivo "vitoriano", ao qual se associam puritanismo, austeridade, otimismo e autoridade. Politicamente, o vitorianismo costuma ser lembrado como um tempo de hegemonia do liberalismo. Na realidade, o período foi bem mais complexo, principalmente depois da década de 1880. A partir dessa época, vieram à tona os contrastes sociais, as revoltas operárias, o questionamento das religiões e do imperialismo e as idéias socialistas, antes mantidas mais ou menos na obscuridade – e que inauguraram uma nova era. O período vitoriano assistiu a um acelerado desenvolvimento científico e tecnológico, com a expansão das ferrovias e do telégrafo. Mas nada se comparou ao impacto da teoria evolucionista de Charles Darwin, que pôs em xeque tanto as explicações religiosas para a criação da vida quanto a idéia de que o ser humano ocuparia posição central no Universo. Um dos méritos do pensamento de Herbert Spencer foi propor novas posturas filosóficas com base nesse conhecimento.

De acordo com Spencer, o processo de desenvolvimento segue a mesma lei em todos os campos, da formação do universo à transformação das espécies. Seu entendimento inicial da evolução biológica se baseava na concepção errônea de que as sucessivas gerações de uma mesma espécie herdam das anteriores as características adquiridas do ambiente. Essa era a teoria do naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829), derrubada por Darwin. Ele mostrou que o mecanismo da evolução é a seleção natural, pela qual sobrevivem as variedades animais e vegetais mais adaptáveis às condições ambientais. Tão logo conheceu as conclusões de Darwin, Spencer reformulou sua teoria.

Perfeição industrial

Aplicado à sociedade, o princípio evolucionista universal do filósofo o levou a perceber um processo de individuação permanente, que levaria à crescente divisão do trabalho nos agrupamentos humanos. Desse modo, hordas primitivas e indiferenciadas evoluem para se tornar civilizações cada vez mais complexas, nas quais especialização e cooperação avançam lado a lado. A história dos povos, segundo Spencer, contrapõe sociedades guerreiras, mantidas coesas à força, e sociedades industriais, fundamentadas na competição, mas também na cooperação espontânea.

Ensino dependia da iniciativa privada

Escola britânica do fim do século 19:
novidades da ciência influenciam uma nova mentalidade.
Foto: Hulton Archive/Getty Images

Ao contrário do que acontecia na Europa continental, na Grã-Bretanha do início do século 19 o ensino era um assunto privado. A primeira ingerência pública na educação foi uma resolução aprovada pelo Parlamento em 1802, pedindo aos empregadores que providenciassem instrução para seus funcionários – como não havia obrigação atrelada, o efeito foi nulo. Quando não era paga, a educação britânica dependia da filantropia. Só na década de 1830 o governo passou a reservar uma parte do orçamento para o ensino. Na virada para o século 20, no entanto, quase toda a formação elementar (equivalente ao Ensino Fundamental) já era provida pelo Estado. Herbert Spencer defendeu a escola privada até o fim da vida, porque considerava que a interferência do Estado, sendo igual para todos, poderia sustentar estudantes que não estariam, por natureza, aptos a competir em sociedade. "De acordo com a filosofia spenceriana, seria fatal se o regime da família, em que a solidariedade faz com que o mais apto ajude o menos apto, regulasse a sociedade, onde o que conta é a luta pela vida", diz a professora Maria Angélica. Seguindo outra tradição britânica, Spencer acreditava que a função principal da educação era formar o caráter. Sua defesa do ensino prioritário da ciência tinha o objetivo de fornecer aos jovens um conhecimento sobre o funcionamento da natureza que lhes desse meios de se ajustar às exigências do mundo.

Um prolongamento da dicotomia entre sociedades guerreiras e industriais, para Spencer, seria o contraste entre o despotismo, associado a estágios primitivos, e o individualismo, associado ao avanço civilizador. A sociedade industrial corresponderia, assim, a um aperfeiçoamento natural do sistema econômico e das instituições.

O pensamento de Spencer corresponde a um desejo, muito vivo em sua época, de explicações globais que organizassem os fatos de modo a simplificá-los. No período, foram produzidas numerosas teorias que hoje chamamos de deterministas, por almejarem, no campo das ciências humanas, a exatidão matemática. A noção de que tudo se encaminha para resultados previsíveis e inevitáveis, uma vez que deixadas ao sabor de seu suposto curso natural, levou Spencer e muitos de seus contemporâneos (e também alguns pensadores de outros tempos, anteriores e posteriores) a supor que esses resultados eram também moralmente desejáveis. Nasce daí a idéia, ainda hoje vigorosa, de que a interferência do Estado na vida cotidiana impede os desenvolvimentos considerados normais. "Spencer acreditava que a lei da oferta e da procura devia estender-se da esfera econômica para a esfera educacional", diz a professora Maria Angélica.

Para pensar

Nos dias de hoje, é difícil encontrar seguidores fiéis do evolucionismo de Herbert Spencer, mas muito se fala de uma tendência de pensamento bem semelhante, que é chamada, um pouco caricaturalmente, de darwinismo social. A educação voltada sobretudo para formar jovens competitivos costuma estar relacionada a essa concepção de mundo. Você já pensou até que ponto sua atuação profissional se vincula à idéia de formar jovens para a competição?
Quer saber mais?

BIBLIOGRAFIA
A História da Filosofia, Will Durant, 482 págs., Ed. Nova Cultural.
50 Grandes Educadores, Joy A. Palmer, 310 págs., Ed. Contexto.

Revista Nova Escola

África de todos nós

Paola Gentile (pagentile@abril.com.br)
Os diversos povos que habitavam o continente africano, muito antes da colonização feita pelos europeus, eram bambambãs em várias áreas: eles dominavam técnicas de agricultura, mineração, ourivesaria e metalurgia; usavam sistemas matemáticos elaboradíssimos para não bagunçar a contabilidade do comércio de mercadorias; e tinham conhecimentos de astronomia e de medicina que serviram de base para a ciência moderna. A biblioteca de Tumbuctu, em Mali, reunia mais de 20 mil livros, que ainda hoje deixariam encabulados muitos pesquisadores de beca que se dedicam aos estudos da cultura negra.

Infelizmente, a imagem que se tem da África e de seus descendentes não é relacionada com produção intelectual nem com tecnologia. Ela descamba para moleques famintos e famílias miseráveis, povos doentes e em guerra ou paisagens de safáris e mulheres de cangas coloridas. "Essas idéias distorcidas desqualificam a cultura negra e acentuam o preconceito, do qual 45% de nossa população é vítima", afirma Glória Moura, coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade de Brasília (UnB).

Negros são parte da nossa identidade

O pouco caso com a cultura africana se reflete na sala de aula. O segundo maior continente do planeta aparece em livros didáticos somente quando o tema é escravidão, deixando capenga a noção de diversidade de nosso povo e minimizando a importância dos afro-descendentes. Por isso, em 2003, entrou em vigor a Lei no 10.639, que tenta corrigir essa dívida, incluindo o ensino de história e cultura africanas e afro-brasileiras nas escolas. "Uma norma não muda a realidade de imediato, mas pode ser um impulso para introduzir em sala de aula um conteúdo rico em conhecimento e em valores", diz Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, membro do Conselho Nacional da Educação e redatora do parecer que acrescentou o tema à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

A cultura africana oferece elementos relacionados a todas as áreas do conhecimento. Para Iolanda de Oliveira, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, se a escola não inclui esses conteúdos no planejamento, cada professor pode colocar um pouco de África em seu plano de ensino: "Não podemos esperar mais para virar essa página na nossa história", enfatiza. Antes de saber como usar elementos da cultura africana em cada disciplina, vamos analisar alguns aspectos da história do continente e os motivos que levaram essas culturas a serem excluídas da sala de aula.

O ensino de História sempre privilegiou as civilizações que viveram em torno do Mar Mediterrâneo. O Egito estava entre elas, mas raramente é relacionado à África, tanto
que, junto com outros países do norte do continente, pertence à chamada África Branca, termo que despreza os povos negros que ali viveram antes das invasões dos persas,
gregos e romanos.

A pequisadora Cileine de Lourenço, professora da Bryant University, de Rhoad Island, nos Estados Unidos, atribui ao pensamento dos colonizadores boa parte da origem do preconceito: "Eles precisavam justificar o tráfico das pessoas e a escravidão nas colônias e para isso ‘animalizaram’ os negros". Ela conta que, no século 16, alguns zoológicos europeus exibiam negros e indígenas em jaulas, colocando na mesma baia indivíduos de grupos inimigos, para que brigassem diante do público. Além disso, a Igreja na época considerava civilizado somente quem era cristão.

Uma das balelas sobre a escravidão é a idéia de que o processo teria sido fácil pela condição de escravos em que muitos africanos viviam em seus reinos. Essa é uma
invenção que não passa de bode expiatório: a servidão lá acontecia após conquistas internas ou por dívidas – como em outras civilizações. Mas as pessoas não eram
afastadas de sua terra ou da família nem perdiam a identidade.

Muitas vezes os escravos passavam a fazer parte da família do senhor ou retomavam a liberdade quando a obrigação era quitada com trabalho. Outra mentira é que seriam povos acomodados: os negros escravizados que para cá vieram revoltaram-se contra a chibata, não aceitavam as regras do trabalho nas plantações, fugiam e organizavam quilombos.

A exploração atrapalhou o desenvolvimento

A dominação dos negros pelos europeus se deu basicamente porque a pólvora não era conhecida por aquelas bandas – e porque os africanos recebiam bem os estrangeiros,
tanto que eles nem precisavam armar tocaias: as famílias africanas costumavam ter em casa um quarto para receber os viajantes e com isso muitas vezes davam abrigo ao
inimigo. Durante mais de 300 anos foram acaçambados cerca de 100 milhões de mulheres e homens jovens, retirando do continente boa parte da força de trabalho e rompendo com séculos de cultura e de civilização.
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Revista Nova Escola

Revolução Industrial


Começa na Inglaterra, em meados do século XVIII. Caracteriza-se pela passagem da manufatura à indústria mecânica. A introdução de máquinas fabris multiplica o rendimento do trabalho e aumenta a produção global. A Inglaterra adianta sua industrialização em 50 anos em relação ao continente europeu e sai na frente na expansão colonial.

Progresso tecnológico
A invenção de máquinas e mecanismos como a lançadeira móvel, a produção de ferro com carvão de coque, a máquina a vapor, a fiandeira mecânica e o tear mecânico causam uma revolução produtiva. Com a aplicação da força motriz às máquinas fabris, a mecanização se difunde na indústria têxtil e na mineração. As fábricas passam a produzir em série e surge a indústria pesada (aço e máquinas). A invenção dos navios e locomotivas a vapor acelera a circulação das mercadorias.

Empresários e proletários
O novo sistema industrial transforma as relações sociais e cria duas novas classes sociais, fundamentais para a operação do sistema. Os empresários (capitalistas) são os proprietários dos capitais, prédios, máquinas, matérias-primas e bens produzidos pelo trabalho. Os operários, proletários ou trabalhadores assalariados, possuem apenas sua força de trabalho e a vendem aos empresários para produzir mercadorias em troca de salários.

Exploração do trabalho
No início da revolução os empresários impõem duras condições de trabalho aos operários sem aumentar os salários para assim aumentar a produção e garantir uma margem de lucro crescente. A disciplina é rigorosa, mas as condições de trabalho nem sempre oferecem segurança. Em algumas fábricas a jornada ultrapassa 15 horas, os descansos e férias não são cumpridos e mulheres e crianças não têm tratamento diferenciado.

Movimentos operários
Surgem dos conflitos entre operários, revoltados com as péssimas condições de trabalho, e empresários. As primeiras manifestações são de depredação de máquinas e instalações fabris. Com o tempo surgem organizações de trabalhadores da mesma área.

Sindicalismo
Resultado de um longo processo em que os trabalhadores conquistam gradativamente o direito de associação. Em 1824, na Inglaterra, são criados os primeiros centros de ajuda mútua e de formação profissional.

Em 1833 os trabalhadores ingleses organizam os sindicatos (trade unions) como associações locais ou por ofício, para obter melhores condições de trabalho e de vida. Os sindicatos conquistam o direito de funcionamento em 1864 na França, em 1866 nos Estados Unidos, e em 1869 na Alemanha.
Curiosidade: Primeiro de maio – É a data escolhida na maioria dos países industrializados para comemorar o Dia do Trabalho e celebrar a figura do trabalhador. A data tem origem em uma manifestação operária por melhores condições de trabalho iniciada no dia 1º de maio de 1886, em Chicago, nos EUA. No dia 4, vários trabalhadores são mortos em conflitos com as forças policiais. Em conseqüência, a polícia prende oito anarquistas e os acusa pelos distúrbios.
Quatro deles são enforcados, um suicida-se e três, posteriormente, são perdoados. Por essa razão, desde 1894, o Dia do Trabalho, nos Estados Unidos, é comemorado na primeira segunda-feira de setembro.

Conseqüências do processo de industrialização
As principais são a divisão do trabalho, a produção em série e a urbanização. Para maximizar o desempenho dos operários as fábricas subdividem a produção em várias operações e cada trabalhador executa uma única parte, sempre da mesma maneira (linha de montagem). Enquanto na manufatura o trabalhador produzia uma unidade completa e conhecia assim todo o processo, agora passa a fazer apenas parte dela, limitando seu domínio técnico sobre o próprio trabalho.

Acúmulo de capital
Depois da Revolução Gloriosa a burguesia inglesa se fortalece e permite que o país tenha a mais importante zona livre de comércio da Europa. O sistema financeiro é dos mais avançados. Esses fatores favorecem o acúmulo de capitais e a expansão do comércio em escala mundial.

Controle do campo
Cada vez mais fortalecida, a burguesia passa a investir também no campo e cria os cercamentos (grandes propriedades rurais). Novos métodos agrícolas permitem o aumento da produtividade e racionalização do trabalho. Assim, muitos camponeses deixam de ter trabalho no campo ou são expulsos de suas terras. Vão buscar trabalho nas cidades e são incorporados pela indústria nascente.

Crescimento populacional
Os avanços da medicina preventiva e sanitária e o controle das epidemias favorecem o crescimento demográfico. Aumenta assim a oferta de trabalhadores para a indústria.

Reservas de carvão
Além de possuir grandes reservas de carvão, as jazidas inglesas estão situadas perto de portos importantes, o que facilita o transporte e a instalação de indústrias baseadas em carvão. Nessa época a maioria dos países europeus usa madeira e carvão vegetal como combustíveis. As comunicações e comércio internos são facilitados pela instalação de redes de estradas e de canais navegáveis. Em 1848 a Inglaterra possui 8 mil km de ferrovias.

Situação geográfica

A localização da Inglaterra, na parte ocidental da Europa, facilita o acesso às mais importantes rotas de comércio internacional e permite conquistar mercados ultramarinos. O país possui muitos portos e intenso comércio costeiro.

Expansão Industrial
A segunda fase da revolução (de 1860 a 1900) é caracterizada pela difusão dos princípios de industrialização na França, Alemanha, Itália, Bélgica, Holanda, Estados Unidos e Japão. Cresce a concorrência e a indústria de bens de produção. Nessa fase as principais mudanças no processo produtivo são a utilização de novas formas de energia (elétrica e derivada de petróleo).



Revolução industrial - Parte 2
A revolução industrial caracteriza-se pela produção industrial em grande escala voltada para o mercado mundial, com uso intensivo de máquinas. A Inglaterra é o primeiro país a realizá-la. A economia inglesa começa a crescer em 1780, e, em 1840, a indústria já está mecanizada, há uma rede nacional de estradas de ferro, começa a construir ferrovias em outros países, exporta locomotivas, vagões, navios e máquinas industriais.

Era das Invenções
Nos séculos XVIII e XIX a tecnologia vai adquirindo seu caráter moderno de ciência aplicada. As descobertas e invenções encontram rapidamente aplicação prática na indústria ou no desenvolvimento da ciência. Os próprios cientistas, muitos ainda autodidatas, transformam-se em inventores, como Michael Faraday, Lord Kelvin e Benjamin Franklin.

Benjamin Franklin (1706-1790), estadista, escritor e inventor americano. Nasce em Boston, em uma família humilde e numerosa – 17 irmãos. Aos 10 anos, começa a trabalhar com o pai, um fabricante de sabão. Aos 12, emprega-se como aprendiz na gráfica de um de seus irmãos.
Em 1723, muda-se para a Filadélfia, quando começa a dedicar-se às letras e às ciências. Autodidata, aprende diversas línguas. Em 1730, já é proprietário de uma oficina gráfica e da Gazeta da Pensilvânia. Membro da Assembléia da Pensilvânia, dedica-se à política e à pesquisa científica. Em 1752, inventa o pára-raios. Quinze anos depois, ajuda a elaborar a Declaração de Independência dos EUA. Seu retrato aparece na nota de US$ 100.
Eletricidade – Da primeira pilha, produzida em 1800 por Alessandro Volta, até a lâmpada elétrica de Thomas Edison, em 1878, centenas de pesquisadores dedicam-se a estudar a eletricidade em várias partes do mundo. Suas descobertas aceleram o desenvolvimento da física e da química e os processos industriais.
Thomas Alva Edison (1847-1931) - é um dos grandes inventores norte-americanos. Nasce em Ohio, filho de um operário de ferro-velho. É alfabetizado pela mãe e, aos 12 anos, começa a trabalhar como vendedor de jornais. Durante a Guerra de Secessão instala uma impressora num vagão de trem e inicia a publicação do semanário The Weekly Herald, o qual redige, imprime e vende. Dedica-se à pesquisa científica e é um dos primeiros a criar um laboratório comercial especializado em invenções práticas. Emprega dezenas de cientistas e pesquisadores. Até 1928, já havia registrado mais de mil invenções, como o fonógrafo (1877), a lâmpada incandescente (1878) e o cinetoscópio (1891).

scribd

ENTENDENDO O FOLCLORE


ENTENDENDO O FOLCLORE
Maria Laura Cavalcanti*
março/2002


A palavra Folclore provém do neologismo inglês folk-lore (saber do povo) cunhado por Williem John Thoms, em 1846, para denominar um campo de estudos até então identificado como "antigüidades populares" ou "literatura popular".
Nesse sentido amplo de "saber do povo", a idéia de folclore designa muito simplesmente as formas de conhecimento expressas nas criações culturais dos diversos grupos de uma sociedade. Difícil dizer onde começa e onde termina o folclore, e muita tinta já correu na busca de definir os limites de uma idéia tão extensa. É o frevo, o chorinho, o xote, o baião, a embolada, mas será também o samba, o funk, o rock? É o natal, a páscoa, o Divino, o Boi-Bumbá, mas será também o desfile das escolas de samba? É o artesanato em barro, madeira, trançado, mas será também a arte de Louco ou de Geraldo Teles de Oliveira?
Pensamos e pesquisamos um bocado sobre o assunto. Chegamos à conclusão de que mais importante do que saber concretamente o que é ou não folclore é entender que folclore é, antes de qualquer coisa, um campo de estudos. Isso quer dizer que a noção de folclore não está dada na realidade das coisas. Ela é construída historicamente, e portanto a compreensão do que é ou não folclore varia ao longo do tempo. Para se ter uma idéia, aqui no Brasil, no começo do século, os estudos de folclore incidiam basicamente sobre a literatura oral, depois veio o interesse pela música, e mais tarde ainda, lá para meados do século, o campo se amplia com a abordagem dos folguedos populares. Para entender o folclore é preciso conhecer um pouco de sua história.

I
Os estudos de folclore são parte de uma corrente de pensamento mundial, cuja origem remonta à Europa da segunda metade do século XIX. Ao mesmo tempo em que procuravam inovar, esses estudos são herdeiros de duas tradições intelectuais que se ocupavam anteriormente da pesquisa do popular: os Antiquários e o Romantismo.
Os Antiquários são os autores dos primeiros escritos que, nos séculos XVII e XVIII, retratam os costumes populares. Colecionam e classificam objetos e informações por diletantismo, e acreditam que o popular é essencialmente bom.
O Romantismo, poderosa corrente de idéias artísticas e literárias, emerge no séc. XIX em associação com os movimentos nacionalistas europeus. Em oposição ao Iluminismo, caracterizado pelo elitismo, pela rejeição à tradição e pela ênfase na razão, o Romantismo valoriza a diferença e a particularidade, consagrando o povo como objeto de interesse intelectual. O povo, para os intelectuais românticos, é puro, simples, enraizado nas tradições e no solo de sua região. O indivíduo está dissolvido na comunidade.
A trajetória dos estudos de folclore no Brasil mantém relações com os debates do contexto intelectual europeu. Essas duas tradições são incorporadas pelos estudiosos brasileiros que procuram também conferir cientificidade a seus trabalhos. Entre os pioneiros desses estudos no país, estão autores como Silvio Romero (1851-1914), Amadeu Amaral (1875-1929) e Mário de Andrade (1893-1945). Sílvio Romero é célebre pelas coletas empreendidas na área da literatura
oral e pelo desejo, de origem positivista, de uma visão mais científica e racional da vida popular. Amadeu Amaral enfatiza a necessidade de uma coleta cuidadosa das tradições populares, e empenha-se pelo desenvolvimento de uma atuação política em prol do folclore, visto como depositário da essência do "ser nacional".
Mário de Andrade procura conhecer e compreender o folclore em estreito diálogo com as ciências humanas e sociais então nascentes no pais. Para ele, o folclore, expressão da nossa brasilidade, ocupa um lugar decisivo na formulação de um ideal de cultura nacional.

II
A década de 1950 transforma o patamar em que se encontravam até então esses estudos. Ela marca o início de uma ampla movimentação em torno do folclore reunindo a sua volta nomes como Cecília Meireles, Câmara Cascudo, Gilberto Freire, Artur Ramos, Manuel Diégues Júnior.
Institucionalmente, essa movimentação é articulada pela Comissão Nacional do Folclore, do Ministério do Exterior, e vinculada à UNESCO (organismo da Organização das Nações Unidas). A Comissão é liderada por Renato Almeida, diplomata e estudioso da música popular. No contexto do pós-guerra, a preocupação com o folclore enquadra-se na atuação em prol da paz mundial. O
folclore é visto como fator de compreensão entre os povos, incentivando o respeito das diferenças e permitindo a construção de identidades diferenciadas entre nações que partilham de um mesmo contexto internacional. O Brasil de então orgulhava-se de ser o primeiro país a atender à recomendação internacional no sentido da criação de uma comissão para tratar do assunto.
O conjunto das iniciativas desenvolvidas era designado pelo nome de Movimento Folclórico. A Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB), criada em 1958 no então Ministério da Educação e Cultura, é o apogeu dessa movimentação.
A Campanha é um organismo nacional destinado a "defender o patrimônio folclórico do Brasil e a proteger as artes populares". Ela traz uma proposta de atuação urgente: no folclore se encontram os elementos culturais autênticos da nação, porém o avanço da industrialização e a modernização da sociedade representam uma séria ameaça. Por essa razão, a cultura folk deve ser intensamente divulgada e preservada.
A Campanha participa dos debates intelectuais do país em intercâmbio com as ciências sociais que se institucionalizam no mesmo período. Fomenta pesquisas sobre o folclore em diferentes regiões, bem como sua documentação e difusão através da constituição de acervos sonoros, museológicos e bibliográficos. Data dessa época o embrião do que viria a ser mais tarde o Museu de Folclore Edison Carneiro e a Biblioteca Amadeu Amaral, do atual Centro Nacional de Folclore
Cultura Popular.

III
De lá para cá, os processos de modernização da sociedade se aprofundaram, a televisão entrou decisivamente no cotidiano nacional, e ao contrário do que supunha a Campanha em seus primórdios, o folclore não acabou. O país transformou-se econômica e politicamente. Mudaram também os ideais de conhecimento.
Como já diziam alguns folcloristas, o folclore nasce e cresce também nas cidades: é dinâmico, transforma-se o tempo todo, incorporando novos elementos. O campo dos estudos de folclore transforma-se também acompanhando a evolução do conhecimento no conjunto das ciências humanas e sociais. A noção de cultura não é mais entendida como um conjunto de comportamentos concretos mas sim como significados permanentemente atribuídos. Uma peça de cerâmica é mais do que o material de que é feita, e a técnica com que é trabalhada. Uma festa é mais do que a sua data, suas danças, seus trajes e suas comidas típicas. Elas são o veículo de uma visão de mundo, de um conjunto particular e dinâmico de relações humanas e sociais. Não há também fronteiras rígidas entre a cultura popular e a cultura erudita: elas comunicam-se permanentemente. O compositor erudito Heitor Villa Lobos reelaborou musicalmente cantigas de ninar tradicionais. Muito freqüentemente, o enredo do desfile carnavalesco de uma escola de samba elabora numa outra linguagem temas eruditos. Na condição de fato cultural, o folclore passa a ser compreendido dentro do contexto de relações em que se situa.
Essa abordagem contextualizadora, que faz do objeto um veículo de relações humanas, é a proposta do Museu de Folclore Edison Carneiro, cuja exposição permanente, inaugurada em 1994, se pretende uma pequena mostra do que está vivo e se transformando no dia-a-dia.


*A antropóloga Maria Laura Cavalcanti, Profª Drª do Depto. de Ciências Sociais/IFCS/UFRJ, ex-pesquisadora do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, participa atualmente da Associação de Amigos do Museu de Folclore Edison Carneiro.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Adam Smith

A ciência econômica é relativamente recente, tem pouco mais de 200 anos. Apesar disso, os antigos tratavam dela sem saber que era de importância fundamental para as relações humanas e sociais. Iniciou-se a Economia com Adam Smith, que poderia ser denominado de patrono da disciplina, já que foi este grande pensador quem lhe deu status de matéria e criou um pensamento sistemático e estruturado em torno dela, publicando a Riqueza das Nações em 1776, na Inglaterra.

Sem medo de exagerar, poderíamos dizer que a Economia é a "Rainha das Ciências Sociais", por ser ela fator determinante nas outras ciências sociais (Sociologia, Política, Estudos Sociais). Seu estudo se tornou obrigatório desde o segundo grau até a universidade. Consta nos cursos de Direito, Engenharia, Psicologia, Administração, Medicina etc... À análise econômica tem se acrescentado instrumentos estatísticos e matemáticos para torná-la mais precisa e, desta forma, poder fazer previsões com maior grau de certeza.

Adam Smith (1723-1790)

Retrato de um Professor Distraído.

"A única beleza que tenho se encontra nos meus livros", esta foi a forma pela qual Adam Smith descreveu a si mesmo. Certamente, o famoso perfil de sua fotografia nos mostra um rosto simples. Além do mais, Smith tinha uma curiosa forma de lento caminhar, cambaleando-se, que um amigo apelidou de "Vermicular" e era propenso a notórios acessos de distração. Esse professor distraído nasceu em 1723 na cidade de Kirkcaldy, na Escócia.

Kirkcaldy orgulhava-se de uma população de 1500 pessoas, e na época em que Smith nasceu, pregos ainda eram usados como dinheiro por alguns habitantes.

Desde os primeiros anos, Smith foi um aluno capaz e com futuro promissor. Era evidente que sua carreira tinha de ser o magistério e, por isso, aos 17 anos, foi para Oxford, graças a uma bolsa de estudos, fazendo uma viagem a cavalo, e ali permaneceu por seis anos. Mas Oxford não era, ainda naquela época, a cidadela do saber que mais tarde se tornou. Havia pouco ou nenhum ensino sistemático e os estudantes ficavam em liberdade para educar-se por si mesmos, contanto que não lessem livros perigosos. Smith quase foi expulso por possuir uma cópia do Tratado da Natureza Humana, de David Hume, um livro que hoje conceituamos como uma das obras de arte filosóficas do século XVIII.

Depois de Oxford, Smith regressou à Escócia, onde obteve o título de professor de filosofia moral na Universidade de Glasgow. A Filosofia Moral cobria um amplo território na época de Smith. Temos apontamentos de suas conferências nas quais falava de direito, organização, impostos e "política". Nesta última palavra se referia à administração de assuntos domésticos, o que hoje denominamos Política Econômica. Em 1750 Smith publicou The Theory of Moral Sentiments, uma notável investigação sobre moral e psicologia.

Depois de regressar à Escócia, em 1776, Smith compôs lenta e cuidadosamente A Riqueza das Nações.

Quando concluiu a obra, enviou uma cópia a David Hume, de quem era grande amigo. Hume lhe escreveu: Euge! (bem feito em grego). Querido senhor Smith: estou encantado com o seu trabalho, você tem escrito uma obra que mudará para sempre o conceito que a sociedade tem de si mesma.

Adam Smith tornou-se famoso por sua obra mestra, Riqueza das Nações, publicada em 1776, ano da declaração de Independência dos Estados Unidos. Levando em conta todas as circunstâncias torna-se difícil saber qual dos documentos possui maior importância histórica. Na declaração de Independência se fez um novo chamado para criar uma sociedade dedicada à "Vida, Liberdade e à Procura da Felicidade". A Riqueza das Nações explicou como trabalha este tipo de sociedade.

A Filosofia de Smith

Devido ao mercado se regular por sua própria conta, Smith se opõe com veemência à intervenção do governo, que acabaria intervindo para satisfazer seu próprio interesse, prejudicando, desta forma, as forças da concorrência. É por isso que o “laissez-faire” (deixar fazer) se converte em sua filosofia fundamental, não porque Smith se oponha a idéia da responsabilidade social, e sim porque está convencido de que isto se conseguirá de forma mais eficiente através do mecanismo da mão invisível, e não por meio da intervenção do governo.

Sua defesa do laissez-faire não fez de Adam Smith um conservador comum, “A Riqueza das Nações” está cheia de comentários críticos sobre os meios ruins e rapinagem industrial. O livro simpatiza abertamente com os trabalhadores e se preocupa com eles, algo não muito popular na época de Adam Smith. Se Adam Smith defende com paixão o “Sistema de Liberdade Natural”, ou seja, o sistema baseado na liberdade econômica é porque ele acreditava que beneficiaria o público em geral e não os interesses mesquinhos de qualquer classe individual.

Smith na Atualidade

Torna-se evidente que Adam Smith escreveu sobre um mundo há muito tempo desaparecido. A fábrica de dez pessoas, ainda pequena, era tão importante na época que era tida como modelo. Nesse mundo, ainda havia vestígios das restrições mercantilistas, e inclusive feudais, determinando quantos aprendizes podia contratar um patrão. Os sindicatos eram considerados ilegais na sua maioria, quase não existia legislação social e a grande maioria da população era muito pobre.

Apesar disso, Smith captou os atributos fundamentais no sistema econômico que ainda não estavam completamente desenvolvidos na sua época:
1. Uma sociedade de pessoas competitivas à procura de lucro, que pudessem assegurar seu ordenado, fornecimento material, mediante o mecanismo auto-regulador do mercado.
2. Este tipo de sociedade tende a acumular capital e, ao fazê-lo, estimula sua produtividade e riqueza.

O interessante das observações de Smith é que muitas delas ainda são de grande relevância para o mundo moderno. Os economistas da atualidade ainda continuam sendo seus alunos.

Livro de Adam Smith: Riqueza das Nações
Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações


(...)
“O crescimento e a riqueza das cidades comerciais e industriais contribuíram para o melhoramento e o cultivo dos países a que pertenciam de três maneiras diferentes.
Em primeiro lugar, oferecendo à produção bruta do campo um mercado imediato e considerável, estimularam o cultivo e melhoramento do mesmo. Esse benefício não se confinou apenas aos países nos quais essas cidades se situavam estendendo-se em maior ou menor grau a todos aqueles com os quais mantinham relações comerciais.
Facultavam a todos eles um mercado para parte ou a totalidade da sua produção bruta ou manufaturada, estimulando consequentemente em todos eles a indústria e a agricultura. Era, no entanto, o país em que essas cidades se situavam que derivava desse mercado os maiores benefícios, em consequência da sua proximidade. Uma vez que o transporte da produção bruta vendida na cidade saía mais barato, os comerciantes podiam pagar por ela aos produtores um preço dos produtos originários de regiões mais distantes.
Em segundo lugar, a riqueza adquirida pelos habitantes das cidades era frequentemente investida na compra de terras que se encontravam à venda, a maior parte das quais estava por cultivar. Os mercados ambicionam geralmente tornar-se proprietários rurais e, quando realizam esse objetivo, fazem-no geralmente com grande eficiência. O mercador é um homem que está habituado a investir o seu dinheiro em projetos rentáveis, enquanto que o proprietário rural tem o costume de o gastar em despesas. O primeiro só abre mão do seu dinheiro quando vê que o recuperará com lucros; enquanto que o segundo, depois de abrir mão dele não espera tornar a vê-lo. Esses hábitos diferentes condicionam naturalmente o caráter e a disposição de um e outro em todos os assuntos de negócios. O mercador é geralmente um empresário ousado, o proprietário rural um empresário tímido. O primeiro não tem medo de investir de uma vez só grandes capitais no melhoramento das suas terras, desde que haja uma probabilidade grande de que o valor dessa terra se eleve proporcionalmente à despesa de que o valor dessa terra se eleve proporcionalmente à despesa com ela feita. O segundo, mesmo quando tem algum capital, o que nem sempre é o caso, raramente ousa investi-lo dessa maneira.”

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Da liberdade dos mares: guerra e comércio na expansão neerlandesa para o Atlântico*


Da liberdade dos mares: guerra e comércio na expansão neerlandesa para o Atlântico*

Heloisa Meireles Gesteira
Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense
Pesquisadora da Coordenação de História da Ciência MAST – MCT



Desde meados do século XV, a expansão ultramarina realizada primeiramente por Portugal e Espanha e, em seguida, por Grã-Bretanha, França e Países Baixos, colocou os Estados recém-formados numa intensa disputa pelo controle de entrepostos e rotas marítimas que garantissem a ligação do continente europeu com os diversos portos das Índias, orientais e ocidentais e com os do continente africano. Dentro desse quadro de concorrência, cada Estado, representando os diversos agentes sociais envolvidos com a expansão – funcionários, missionários, homens de negócios, etc – criou mecanismos institucionais e ideológicos próprios, que deram suporte aos seus projetos.

A colonização da Era Moderna efetuou uma dilatação das fronteiras políticas, econômicas e culturais da Europa, alcançando uma dimensão global. No caso específico da República dos Países Baixos Unidos1, a expansão para o ultramar, que se intensificou no início do século XVII, traduziu-se pela opção feita pelos neerlandeses de bloquear as pretensões universalistas do império espanhol, o qual, nesse período, estendia-se da América até o Oriente, pois havia anexado a coroa portuguesa e, conseqüentemente, as suas possessões no além-mar.

A República das Províncias Unidas surgiu em 1579, quando foi assinada a União de Utrecht, formando uma aliança das províncias situadas ao norte dos Países Baixos contra o avanço do absolutismo espanhol. A região deveria ser um local seguro e atraente para o comércio. Entretanto, não se deve subestimar a ação guerreira das Províncias Unidas na proteção de sua frota mercante e na pilhagem de navios inimigos. O surgimento, no século XVII, das Companhias Privilegiadas de Comércio, uma destinada ao Oriente e outra ao Ocidente, fez parte de toda uma política expansionista.

As províncias que formavam a República – Overijssel, Groningen, Gelder, Frísia, Drente, Zelândia e Holanda – fortaleceram-se como uma região de comércio intenso. A Holanda, voltada para o Atlântico, era a mais rica de todas, com uma economia direcionada para o comércio ultramarino. Ali, Amsterdam destacava-se. Sua riqueza dependia exclusivamente do comércio: além de centralizar as atividades mercantis e creditícias européias durante o século XVII, a cidade controlava também as rotas coloniais do Novo Mundo e do Oriente, através das companhias de comércio que tinham nela suas sedes. Este perfil consolidava o lugar central de Amsterdam na "economia-mundo", que era sempre controlada por uma cidade capaz de trazer para sua órbita um espaço vasto e descontínuo, regiões próximas ou distantes, podendo ser ou não politicamente subordinadas ao seu governo. A cidade que controlava a economia-mundo também ditava o ritmo das trocas internacionais. Importante lembrar, ainda, que a estruturação de uma economia-mundo dependia de outras dimensões sociais, como a política e a cultura, não havendo necessariamente uma hierarquia entre elas, mas complementaridade2.

Os neerlandeses, bem como os franceses e ingleses, precisavam encontrar soluções jurídicas que dessem embasamento ao seu projeto de expansão ultramarina, pois tinham que contrariar acordos – como o Tratado de Tordesilhas, para citar apenas o mais conhecido – que davam aos ibéricos o direito de conquistar as terras por eles descobertas. Na República dos Países Baixos Unidos, a situação despertou intensos debates e estimulou o surgimento de uma produção intelectual que alicerçou tanto a sua independência frente ao império espanhol como também a sua própria expansão. A Universidade de Leiden foi um dos ambientes propícios para a fermentação de tais idéias. As possibilidades e estratégias para a criação de uma nova ordem política e as bases para a expansão ultramarina eram várias e de matrizes muitas vezes opostas. Dois aspectos, porém, prevaleciam, unindo os neerlandeses em torno da independência dos Países Baixos Unidos: a necessidade de acompanhar atentamente a movimentação espanhola no continente e a preocupação de manter as liberdades políticas e religiosas. A escolha do modelo republicano e a convivência entre diversos interesses contribuíram para que se criasse ali um ambiente de tolerância, que propiciou uma certa liberdade para os homens expressarem suas opiniões. No interior da República, a imprensa foi muito utilizada para a propaganda política, o que permitiu a publicidade das opiniões sob a forma de textos e gravuras que circulavam nos principais centros urbanos3.

Os panfletos destacavam-se em meio a essa produção, circulando em abundância e constituindo um instrumento de divulgação de opiniões políticas variadas. Na maior parte das vezes, estes textos eram escritos por homens públicos ou acadêmicos que viam neles uma maneira de expressar seu posicionamento diante dos acontecimentos e também um modo de divulgar seus próprios projetos. Embora não seja nosso objetivo reconstruir o debate que fundamentou a investida neerlandesa em direção ao Atlântico, a leitura de alguns desses textos permite identificar características da expansão ultramarina da República dos Países Baixos Unidos e a importância da criação de um entreposto no Brasil.

Assim, um dos pontos de partida desta reflexão é Mare Liberum, de Hugo Grotius, publicado em 1609. O texto faz parte do livro Jure Praedae que só ficou conhecido na íntegra quando seus manuscritos foram descobertos em meados do século XIX e a obra finalmente publicada em 1864. O formato e o conteúdo desse escrito levam a crer que ele tenha circulado primeiramente como panfleto. Buscaremos demonstrar que em Mare Liberum é possível identificar as bases filosóficas que sustentaram a aventura neerlandesa no ultramar, bem como a montagem de um Império colonial articulado por duas companhias de comércio. De modo complementar, a leitura de um panfleto escrito por Ian Andries Moerbeeck além de esclarecer os objetivos da invasão do Brasil pelos neerlandeses, permite também identificar os aspectos econômicos e políticos desta investida.

1.1 - Hugo Grotius e a liberdade dos mares

"A presente disputa não tem por objeto um golfo, um estreito, nem mesmo uma extensão de mar tal que seja distinguível desde a praia: os portugueses reclamam toda a extensão dos mares que separam dois mundos, (...) e, se os espanhóis, que têm idênticos interesses nesta causa forem admitidos na partilha, pouco faltará para que o oceano inteiro fique assim sujeito a dois povos, e os demais confinados às extremidades setentrionais. Será então uma grande decepção para a natureza, que, ao espalhar este elemento em torno de nós, julgou que bastaria para o uso de todos".4

Hugo Grotius, nascido em 1583 em Delft, iniciou sua vida pública numa conjuntura de permanente tensão entre a República e o absolutismo espanhol. De família tradicionalmente ligada à vida política de Roterdam, Grotius passou a freqüentar a Universidade de Leiden aos doze anos de idade. Ali realizou seus estudos durante dois anos, tendo contato com os textos sobre protestantismo e com a tradição aristotélica. Em seguida, partiu para Orleans onde aprofundou seus conhecimentos em teologia jurídica de cunho protestante. Grotius identificava-se com a facção menos ortodoxa do calvinismo neerlandês, a dos arminianos. A tolerância religiosa sempre esteve presente em suas reflexões. Sua vida pública foi marcada pela constante defesa da liberdade de navegação e de comércio entre os povos, princípio que deveria ser preservado mesmo que isso significasse a necessidade de uma guerra. Foi também pensionário por Roterdam, representando os interesses desta cidade nos Estados Gerais5.

Em 1619, com o Sínodo de Dordrectht,6 os calvinistas mais ortodoxos saíram vencedores. A vitória dos gomaristas advogava a volta da guerra contra a Espanha para garantir a independência da jovem República. Essa postura era frontalmente oposta à de Grotius, que defendia a trégua com a coroa espanhola como forma de manutenção dos negócios neerlandeses. Em conseqüência desse conflito de idéias, Grotius foi condenado e banido dos Países Baixos. Conseguiu abrigar-se em Paris, onde prestou serviços diplomáticos. Em 1625 fez publicar, na França, seu De Jure Belli ac Paci. Posteriormente, seguiu para a Suécia, onde também participou da vida pública. Desde seu exílio, Hugo Grotius não pôde mais retornar à sua pátria. Faleceu em 1645, não assistindo ao reconhecimento da independência da República neerlandesa, que também ajudara a formar, particularmente através de seus escritos Parallela Rerumpublicarum (1602) e De Antiquitate Reipublicae Batavicae (1610). Nestes trabalhos, segundo Jonathan Israel, Grotius defende que a "liberdade, estabilidade, virtude e prosperidade são melhor preservadas quando o governo é organizado de forma consultiva e reservado a uma oligarquia"7. O legado intelectual de Hugo Grotius é vasto, incluindo reflexões sobre literatura, religião, história e direito.

Nosso argumento é de que em Mare Liberum podemos encontrar princípios que legitimam a expansão marítima neerlandesa na primeira metade do século XVII, princípios estes articulados com os conflitos que levariam à independência dos Países Baixos. A discussão do texto de Grotius remete também ao debate acerca da soberania dos Estados, pois, ao discutir o problema da jurisdição nos oceanos, fundamental para o controle das rotas marítimas e das novas terras descobertas no início da Época Moderna, este autor questiona a própria extensão da soberania dos Estados, tema importante para a incorporação de novas regiões à órbita do ocidente europeu. A partir de autores que se dedicaram a discutir o Antigo Regime, e seus aspectos jurídicos, buscaremos situar o caso particular dos Países Baixos e aspectos relevantes do pensamento de Grotius como partes da tensão entre o processo de centralização dos Estados e as resistências locais ante tal processo.

Ao identificar dois paradigmas políticos existentes na tradição do pensamento jurídico ocidental, o corporativista e o individualista, António Manuel Hespanha indica as principais divergências existentes entre eles e os debates gerados por essa oposição. Valorizando o contrato como elemento político constitutivo do Estado Moderno, o autor demonstra, em cada uma das duas tradições, o que fundamenta o pacto político entre os homens. Identifica ainda no paradigma individualista, o germe para se considerar a presença de um contrato entre os homens, baseado na vontade, condição necessária para a vida em sociedade. A faculdade de querer torna-se indispensável para se pensar o estabelecimento do poder, na "vontade soberana de Deus, manifestada na Terra, também soberanamente, pelo seu lugar-tenente, o príncipe (providencialismo, direito divino dos reis) ou pela vontade dos homens que, levados pelos perigos e insegurança da sociedade natural ou pelo desejo de maximizar a felicidade e o bem estar, instituem por acordo de vontades ou 'pacto', a sociedade civil (contratualismo)"8.

Foi a partir da identificação de duas esferas distintas, a esfera da vontade divina, natural e eterna, e a da vontade do homem, que é mutável – como também o podem ser a sociedade e suas leis – que Grotius fundamentou a expansão marítima neerlandesa e sustentou com ênfase a liberdade dos povos para o comércio e a navegação, indo de encontro às pretensões de uma monarquia universal guiada pelos Estados ibéricos, em particular a coroa de Espanha. Para sustentar de sua argumentação, Grotius recorreu à concepção de direito natural, neste caso evocado para justificar os limites da jurisdição dos Estados com projetos imperiais.

Em sua investigação sobre o Estado Moderno, Maravall relaciona uma série de dispositivos jurídicos que serviam para limitar a ação do Estado, entre os quais encontrava-se o da propriedade privada. "É necessário afirmar e manter rigorosamente o particular, o privado, como zona fechada ao poder, para definir com clareza e amplidão, a zona em que o poder pode reivindicar plenamente sua condição de soberano", afirma o autor. Concepções de posse, de domínio, também apareceriam no texto de Grotius para limitar a ação do Estado. Quando o jurista aludia ao apropriado, ao particular, referia-se ao direito de posse garantido pelo uso de um determinado objeto da natureza, por uma pessoa ou mesmo por um Estado, que não pode ser utilizado por outro ao mesmo tempo. Este direito de posse não era, como no capitalismo moderno, inalienável: a posse era garantida pelo uso, no caso de um objeto, ou pela ocupação, no caso de terras9.

A valorização do comércio é destaque em Mare Liberum, onde se encontra uma defesa de seus aspectos positivos como atividade capaz de conquistar e garantir a independência e soberania da República diante de outros Estados europeus. A expansão mercantil para o ultramar, controlada pelas Companhias de Comércio seria o elemento ordenador do colonialismo neerlandês, que deste modo não se engrandeceria apenas a partir da conquista efetiva de territórios, mas também da ocupação de entrepostos estratégicos para o controle das trocas entre diferentes povos.

A organização republicana dos Países Baixos e a idéia de uma expansão marítima mais voltada para o controle de rotas mercantis e entrepostos dissimulavam as suas pretensões imperialistas. Afinal, o modelo republicano adotado inspirava-se em Gênova e Veneza, cuja grandeza deveu-se ao comércio e não às conquistas territoriais, como ocorrera com Roma10. Entretanto, o republicanismo dos Países Baixos não pode ser entendido fora do contexto das lutas contra o absolutismo espanhol que, durante toda a primeira metade do século XVII, considerava "rebelde" aquela região11. Embora os neerlandeses não fizessem da conquista territorial sua meta primeira, consideravam legítimo o combate e a destruição dos obstáculos para o crescimento do comércio. Eis aqui a "guerra justa" defendida por Grotius:

"Ora, a causa dos holandeses ainda é mais justa, porque está ligada a de todo o gênero humano; os portugueses nem mesmo podem, para tornar seu empenho mais simpático, aduzir que apenas por espírito de rivalidade sustentam as suas pretensões, porque em tal caso a rivalidade seria uma emulação salutar, a melhor de todas, e como diria Hesíodo, vantajosa aos mortais.
Mas isso não se dá, e haverá nada mais iníquo de que a sujeição tributária do globo inteiro aos povos da Espanha?! Em todas as nossas cidades perseguimos com o ódio e oprimimos com o castigo os monopolistas. Vamos então deixar que os espanhóis absorvam o mundo inteiro?" 12

Ao longo do texto, Grotius dirigia-se mais aos portugueses do que aos espanhóis. Apenas no último capítulo ele explicitava a legitimidade da guerra contra estes últimos. Ao defender a liberdade do comércio, o autor questionava a própria soberania da monarquia espanhola, ao negar o direito de controle do comércio e do livre trânsito no mar por parte de um povo, baseando-se na premissa do direito natural de que o mar era livre à navegação. O conteúdo ambíguo da idéia defendida por Grotius em Mare Liberum – a defesa do comércio livre entre os povos – muitas vezes serviu de suporte para a expansão neerlandesa, mesmo que isto significasse entrar em guerra com outros povos. Esta ambigüidade enriquece ainda mais a escolha do texto para a presente argumentação.

Examine-se, por exemplo, a idéia de direito natural ali exposta.13 O direito natural era a origem de todas as leis humanas. A organização social resultava da vontade imputada aos homens pela natureza que, por sua vez, era expressão da vontade de Deus. A partir dessa vontade original surgia, então, o contrato que dava fundamento ao Estado. Este deveria ser guiado por um conjunto de leis positivas criadas pelos juristas e governantes, mas sempre visando ao respeito pelo direito primitivo das gentes. Grotius recorreu sempre à idéia de que a vontade da natureza, expressão direta da vontade divina, devia ser salvaguardada pelos Estados, que tinham aí sua função primeira.

O autor partia da premissa de que justo e injusto diferiam por natureza e não pela opinião dos homens, principalmente aqueles poderosos que tentavam persuadir os outros para subjugá-los. Para Grotius, existiam homens livres e capazes de compreender os fenômenos naturais e sociais através da razão, uma razão que brotava, sobretudo, da sensibilidade e da capacidade de observação humana. Tais homens, dizia Grotius,

"Ensinavam então que havia um Deus, fundador e diretor do universo inteiro, e acima de tudo pai da humanidade, que por esta razão não havia separado em espécies diferentes, sujeitas a sortes diversas. Sob uma mesma denominação, proveniente de uma mesma origem, havia ele compreendido que possuía a mesma disposição de órgãos, a língua e outros meios de comunicação, que levava evidência de que todos os indivíduos eram partes de uma única sociedade e tinham pela natureza um parentesco imutável.(...) ensina ainda que Deus, este altíssimo príncipe, decretava algumas leis, tanto para o lar quanto para a nação, não no bronze e nas pedras, mas na alma e nos sentidos de cada um, ali onde se impõem à leitura daquele mesmo que as evitam e desprezam-nas; que estas leis tanto dirigem os grandes como os pequenos, e, se os direitos de cada povo e de cada cidade originam-se de tal fonte, pergunta-se, não lhe receberam a majestade e santidade?"14

A partir da idéia de que havia uma lei natural e divina igual para toda a humanidade, o jusnaturalista contestava a imposição de leis extensivas ao globo terrestre que fossem mais voltadas para benefício de um príncipe ou de um Estado. A concepção contrapunha-se às pretensões imperiais espanholas, inspiradas em Roma, cujo modelo político baseava-se no alargamento do poder pelas armas, na conquista de territórios e na conseqüente incorporação de novos Estados à sua órbita15.

Apesar da incontestável importância do pensamento de Hugo Grotius para a fundação do direito internacional, Mare Liberum traz uma interpretação das relações interestatais subordinada ao direito natural, sinônimo da vontade do Criador, não sendo possível o surgimento de um Estado detentor de tal direito. O direito natural diferenciava-se ainda do direito positivo, presente nas leis humanas, por sua imutabilidade: sendo vinculado à Providência, era eterno. As leis humanas, ao contrário, estavam em constante transformação, fosse em função da variedade de nações, fosse em conseqüência das mutações internas de cada povo. Dessa forma, não poderiam existir leis criadas pelos homens que fossem superiores às leis divinas.

Por outro lado, Grotius apresentava um caminho possível para o estabelecimento de um direito entre os Estados. Não havendo ordem humana que fosse superior ao Estado, os costumes, calcados no direito das gentes, convertiam-se em fontes para o conhecimento dos desígnios da natureza. A tarefa, então, era observar as práticas existentes entres os homens, desde a Antiguidade. Para tal, a Bíblia, os textos clássicos da cultura ocidental produzidos por gregos e romanos, o legado da teologia jurídica medieval e, também, os autores contemporâneos eram as fontes que sustentavam sua argumentação, permitindo a observação minuciosa dos costumes. É interessante notar que a argumentação de Grotius acerca do direito natural e do direito das gentes é muito próxima das idéias presentes nos teólogos espanhóis ligados à Salamanca, uma vez que constrói uma teoria do Estado a partir da noção de leis naturais16.

É preciso considerar também o ideal de "guerra justa", em que se baseava a ação neerlandesa, principalmente contra aqueles que desejavam ultrapassar seus limites de soberania:

"É um princípio preliminar dos direitos das gentes o que permite a uma nação aproximar-se da outra e com ela negociar. Deus não viu conveniência em dotar cada região da terra com todos os artigos imprescindíveis à existência de suas criaturas; o seu desígnio não podia ser outro além daquele de fazer com que as amizades humanas se mantivessem pela abundância de alguns e pela escassez de outros, porque, se assim não fosse, haveria grande risco de ficarem os homens insociáveis. Uma nação supre a outra daquilo que falta a esta outra, por lei da justiça divina, (...) abolir este princípio é abolir a sociabilidade, que tanto honra o gênero humano, é ir de encontro à própria natureza, porque o oceano, navegável em todos os sentidos, soprando suas ventanias em todas as direções, indica claramente que a natureza permitiu a qualquer povo aproximar-se de outro povo.
Sêneca fez ver que a dispersão dos produtos da natureza sobre a terra significava a necessidade de comércio entre os homens, e o contrário desta inclinação natural foi causa de muitas guerras"17.

O comércio entre os povos era uma das condições fundamentais para a formação das sociedades. A dispersão dos objetos naturais pelo globo terrestre seria também sinal da vontade de Deus para que as sociedades entrassem em contato umas com as outras pelo comércio. A necessidade dos homens se organizarem em sociedade era igualmente determinada pela natureza humana. Grotius conduziu seu texto reafirmando que o intuito de proibir o contato entre povos para estabelecer relações comerciais, significava contrariar o desígnio do Criador e, portanto, devia ser combatido. A guerra era, sob esse ponto de vista, inteiramente legítima. Comércio e guerra justificavam-se igualmente: assim é que, ao fim de Mare Liberum, vemos Grotius convocar os holandeses para a missão de impedir que espanhóis e portugueses, unidos pela mesma coroa, monopolizassem o comércio com as Índias, o que seria prejudicial à livre troca entre os povos, como expressa no título do último capítulo: "Os Holandeses devem manter seu comércio com a Índia na paz, nas tréguas, ou na guerra, contra aqueles que a isto se opuserem" 18.

Os descobrimentos de novas rotas e regiões inflamavam nos círculos intelectuais europeus a discussão sobre o direito de posse e manutenção de vastos domínios para além dos limites territoriais do reino. Neste debate, as concepções acerca do direito natural e do direito das gentes tiveram lugar de destaque, já que serviram muitas vezes para legitimar a posse, acompanhada de controle sobre uma determinada região, que passava a ser considerada como dominium, ou seja, propriedade particular de uma pessoa ou de um reino, e não mais comunium, algo referido à coisa pública.

Em Grotius, a diferenciação entre dominium e comunium era fruto de um longo processo que devia ser cuidadosamente observado. Por isso, ele procurava recuperar o significado original da noção de dominium, sob a perspectiva do direito natural, segundo a qual, originariamente não existiam objetos da natureza que pertencessem exclusivamente a alguém, mas a todo o gênero humano. Nada impediria que muitos fossem donos de uma mesma coisa, não havendo, na idéia original de domínio, a noção de posse ou propriedade. Uma primeira transformação no significado se opera quando a palavra começa a ser aplicada aos objetos que podiam ser apropriados por uma pessoa que deles fazia uso, impedindo que outro assim o fizesse. Portanto, a idéia de domínio brota do uso que os homens fazem das coisas. Os alimentos, por exemplo, espalhados pela natureza, ao serem apropriados por um, não podem mais ser utilizados por outrem. Essa idéia de possessão estendeu-se aos campos. Em Mare Liberum, Grotius aplica essas idéias para refutar o direito de exercer o dominium sobre os mares: primeiramente justifica porque o oceano, por sua própria natureza, não pode ser apreendido; em segundo lugar, porque pode ser usado, navegado, por mais de uma pessoa ao mesmo tempo:

"Com efeito a água corrente, considerada somente nesta qualidade, e não como rio, é citada pelos jurisconsultos e poetas entre as coisas comuns.
(...)O ar que nos cerca está compreendido nelas, podendo ser ocupado, mas sendo de uso comum a todos. E pela mesma razão o mar, imenso em demasia para ser possuído por este ou por aquele, e, além disso, maravilhosamente disposto para o uso de todos, tanto para a navegação como para a pesca. O direito aplicado ao mar também se aplica a alguns outros elementos, como as areias, as praias, as costas, as linhas do litoral"19.

Em última instância, baseando-se no direito das gentes primitivo, que era expressão do direito natural, Grotius sustentou a tese central: a navegação oceânica era livre para todos os povos. Dessa forma, o autor não contestou diretamente as pretensões imperiais de Espanha, mas constituiu um argumento suficientemente forte para legitimar a guerra, oferecendo um suporte teórico ao questionamento do poder dos impérios, que viam no controle do mar um ponto nevrálgico para sua sobrevivência, como pretendiam, por exemplo, os portugueses20.

Havia, entretanto, a possibilidade, pelas condições naturais do lugar, para o exercício da jurisdição: a construção de fortalezas e portos em praias abria espaço para um Estado exercer justiça e proteger suas construções, mas não para exercer o domínio, ou proibir o acesso a outros povos. Nesse ponto, Grotius mostra a necessidade da existência de um contrato entre as diferentes nações para regulamentar e garantir a liberdade de navegação, colocando-se, ainda, contra a pirataria. Enquanto o contrato que fundamenta o Estado expressava-se nas leis positivas, criadas pelos homens a partir da necessidade de se organizarem socialmente, o contrato entre os Estados subordinava-se ao direito natural, sendo, portanto, fruto da vontade divina. Assim, quando as questões ultrapassavam os limites de um Estado, o direito natural tornava-se a lei que podia ser compreendida pela razão do homem, mas não imposta por alguém.21

Por fim, a idéia de contrato também contestava o direito dos portugueses controlarem os mares das Índias a partir da doação pontifícia. Grotius discute os limites da partilha feita pelo papa Alexandre VI. Em primeiro lugar, porque o papa era árbitro apenas da disputa entre Portugal e Espanha e sua sentença não era válida para outros povos. Além disso, o poder do papa limitava-se ao controle espiritual sobre os homens que pertencessem à sua igreja e não a toda a humanidade:

"Compreende-se facilmente, – não se seguindo a regra do interesse próprio e observando-se somente os princípios do direito divino e humano, que uma doação desta natureza não tem valor algum, porquanto foi feita doação de alguma coisa que pertence a outrem".22

O direito de ser dono, de exercer dominium, não poderia ser estabelecido pela doação, mas pela tradição ou entrega. Segundo Grotius, Deus não concedeu ao papa o direito de exercer o controle de todas as terras existentes. Neste momento, o autor refere-se pela primeira vez ao Novo Mundo, não exatamente questionando as possessões de espanhóis e de lusos, mas mostrando que estes só têm o direito de exercer o domínio sobre as terras descobertas porque estabeleceram contrato com os naturais da terra, o que, em última instância, garantia o poder do imperium. O autor recorria então à citação de juristas católicos espanhóis, entre eles o dominicano Francisco de Vitória, para reforçar esta argumentação.

A idéia do contrato entre os naturais da terra foi fundamental na teoria jurídica da Península Ibérica para legitimar a soberania régia em suas novas conquistas. Francisco de Vitória e Francisco Suárez a mparavam a autoridade da coroa espanhola no controle dos territórios anexados, na idéia da existência de uma monarquia universal, superior a todos os Estados, ainda que fosse necessário o contrato. A particularidade de Grotius foi o não reconhecimento de uma autoridade entre os homens, que fosse superior aos Estados – o imperium.

Ao tematizar o direito de propriedade sobre oceanos e adjacências, Grotius abriu caminho para os neerlandeses fundamentarem suas pretensões no ultramar. O título de descobridor em si não dava direito a um Estado de exigir exclusividade sobre uma região e a ocupação só seria juridicamente permitida se esse território não fosse anteriormente ocupado por outro, não podendo ser tomado sem uma causa justa. Grotius recorria ao próprio Francisco de Vitória, quando este assegurava que:

"Os cristãos, leigos ou eclesiásticos, não podem despojar os infiéis do poder civil e da soberania, somente porque são infiéis. S. Tomás observa que a fé não prejudica o direito natural e humano, de que deriva o domínio temporal; é uma verdadeira heresia acreditar-se que os infiéis não são donos de seus bens. Arrebatar-lhes o que possuem não é mais do que o roubo e a rapina, tal como se a violência fosse feita a outros cristãos".23

Ao citar Vitória, mais uma vez Grotius utilizava o direito das gentes primitivo para questionar a soberania portuguesa nas paragens das Índias. Nesse caso, a guerra como legitimadora da posse poderia ser um argumento para assegurar a conquista de um território. Mas, ponderava Grotius, não houve uma situação de guerra com os indianos: esses não se opuseram a comerciar, não cometendo assim injustiça com os portugueses. Portanto, estes últimos não tinham justa causa para declarar guerra aos povos da Índia, impondo ali sua soberania.

Grotius encerrava seu texto mostrando aos holandeses a importância de se declarar uma guerra contra os abusos portugueses e espanhóis nos mares das Índias. O autor retomava, então, os dois direitos fundamentais: o da liberdade dos mares e o da liberdade do comércio, ambos dados aos homens pela vontade divina. Entrar em guerra para garantir o cumprimento de uma lei natural seria mais do que valoroso para um povo, e esta seria, na sua opinião, a grande missão dos neerlandeses nas Índias. Além disso, o confronto justificava-se pelo desejo de salvaguardar a vontade de Deus: muitas vezes, era através da guerra que a justiça divina se manifestava, o que dava à vitória um significado especial.

Ao escrever Mare Liberum, Grotius estava preocupado com a conjuntura das tensões nos mares das Índias Orientais, sendo os portugueses o foco da atenção do autor. Ele não era favorável ao reinício da guerra contra a Espanha, que foi retomada em 1621. Esse posicionamento de Grotius- como já dissemos- contribuiu para o seu banimento da República, mas algumas de suas idéias permaneceram vivas entre os neerlandeses24. O que nos interessa mostrar a partir de agora é como as argumentações de Grotius aparecem nos partidários da expansão neerlandesa para o Ocidente e da manutenção das guerras contra a monarquia espanhola.

1.2 - A expansão em direção ao Atlântico

Em 1608, o negociante Willem Usselincx publicou um panfleto cujo título era Demonstração das necessidades e proveitos para os Países Baixos Unidos de preservar a liberdade de manter o comércio com as Índias Ocidentais durante a trégua com o Rei de Espanha 25.

Movido pelo sucesso que alcançara a recém-fundada Companhia das Índias Orientais, Usselincx deixava claro que seu objetivo era organizar uma associação mercantil voltada para o Ocidente. Ele propunha a instalação de colônias neerlandesas em terras americanas26, argumentando que as riquezas do Novo Mundo não se restringiam apenas aos metais preciosos, como ouro e prata. Outros produtos poderiam ser cultivados ou extraídos pelos neerlandeses, tais como anil ou cochonilha, couro, pedras preciosas, açúcar, madeiras de tinturaria e gengibre. Para atingir esse objetivo era necessário investir no povoamento das terras, visando, principalmente, ao incremento das trocas entre os Países Baixos e o Novo Mundo. Desta forma, os neerlandeses ficariam livres da intermediação dos negociantes ibéricos.

Segundo o projeto, a expansão dos Países Baixos em direção ao território americano não significava continuação dos conflitos com a monarquia espanhola. Muito pelo contrário, Usselincx defendia que, no acordo de paz, era mister a manutenção da liberdade de comércio entre o Novo Mundo e os Países Baixos Unidos. Havia apenas uma ressalva: o tráfico e o comércio deveriam ser feitos somente nos locais e cidades onde o rei de Espanha não fosse soberano27. Os espanhóis não ocupavam toda a extensão da costa e ilhas das Índias Ocidentais, e isso comprometia a soberania do rei de Espanha sobre todo o continente americano. Como se pode notar, o descobrimento não garantia o domínio sobre o território americano e os espaços "vazios" eram considerados livres para os neerlandeses estabelecerem seu comércio pacificamente.

Sem entrar no âmbito dos debates que resultaram na Trégua dos Doze Anos, que finalmente foi assinada em Antuérpia em abril de 1609, cabe salientar o que ficou decidido em relação à expansão ultramarina da República: esta manteria o controle das áreas até o momento anexadas pela Companhia das Índias Orientais, comprometendo-se a cessar os ataques, o que só foi respeitado até 1613. Em contrapartida, a mesma República ficou obrigada a abandonar o projeto de uma companhia voltada para o Ocidente. Dessa forma, os defensores da expansão para o Atlântico tiveram que esperar uma conjuntura favorável para reacender a idéia de uma companhia de comércio voltada para as Índias Ocidentais.

O momento da fundação da Companhia das Índias Ocidentais, conhecida pela sigla WIC, foi politicamente significativo para a história dos Países Baixos Unidos, pois em 1621 expiravam os doze anos de trégua com a Espanha. O reinício dos conflitos foi marcado por uma atmosfera na qual a ortodoxia calvinista ganhara espaço nos Países Baixos do Norte, o que fortaleceu ainda mais os partidários da retomada da guerra contra os Habsburgos espanhóis, representantes do catolicismo pós Concílio de Trento, que apresentavam a monarquia espanhola como defensora universal da Igreja católica28.

Contudo, os interesses mercantis prevaleceram na criação de uma companhia de comércio voltada para o Atlântico. Desde o século XVI, os flamengos participaram das navegações lusas com intensas relações comerciais com Portugal. A indústria pesqueira dos Países Baixos dependia do sal de Setúbal, o açúcar que vinha do Brasil era refinado em Flandres e dali distribuído para outros países da Europa. A crescente atuação dos inquisidores no sul dos Países Baixos fez com que muitos homens de negócios, calvinistas ou não, migrassem para Amsterdam, para onde transferiram seus capitais29.

O fortalecimento da Inquisição na Península Ibérica durante o século XVI também contribuiu para que muitos judeus e cristãos novos emigrassem de Portugal, e, junto com eles, suas empresas. Alguns desses homens dirigiram-se para Amsterdam e também se mostraram favoráveis à fundação da Companhia das Índias Ocidentais, pois muitos deles estavam ligados à empresa açucareira. Entretanto, não se deve superestimar o capital dos judeus nos primórdios da WIC. Segundo Herman Watjen, os principais homens a investirem na formação desta companhia foram os calvinistas mais ortodoxos que se viram obrigados a abandonar Antuérpia30.

Em 1621, sob um clima favorável, a Companhia das Índias Ocidentais recebeu finalmente sua carta patente, por meio da qual lhe era concedido, durante 24 anos, o monopólio comercial do continente americano e da costa ocidental da África, desde o trópico de Câncer até o Cabo da Boa Esperança. A WIC tinha o direito e o dever de firmar alianças e tratados de comércio com os principais homens dos territórios que fosse ocupar, tinha a prerrogativa de construir fortificações e nomear funcionários e governadores, os quais deveriam obediência aos diretores da WIC e aos Estados Gerais. Ao Estado, por sua vez, cabia o fornecimento das tropas necessárias para as realizações da Companhia.

A administração da empresa estava distribuída entre as cinco câmaras de comércio que foram criadas. Amsterdam detinha quase 40% das ações e Middelburgo ficava com 20%. O restante era distribuído entre as Câmaras do distrito do Mosa (Rotterdam, Dordrecht e Delft), do distrito do Norte, (Enckhuizen e Hoorn), e a câmara de Groningen. A direção geral cabia ao Conselho dos XIX, composto por representantes das diversas câmaras, que se reunia em Amsterdam e Midelburgo, alternadamente. Amsterdam, como cidade mais próspera da República, tinha o direito de nomear oito representantes para o Conselho; Midelburgo tinha direito de indicar dois e os outros eram nomeados pelas Câmaras restantes. O décimo nono conselheiro era indicado pelos Estados Gerais.

1.3 - O panfleto de Moerbeeck e o Brasil

Na reunião dos Estados Gerais dos Países Baixos Unidos, ocorrida em Haia, em abril de 1623, houve um pronunciamento favorável à invasão do Brasil pela Companhia das Índias Ocidentais. No ano seguinte, quando os soldados da WIC já tinham sitiado a cidade de Salvador na Baía de Todos os Santos, este discurso circulou sob a forma de panfleto. Intitulado Razões pelas quais a Companhia das Índias Ocidentais deve tomar as terras do Brasil do Rei de Espanha31, o documento surgiu na cidade de Amsterdam, com a assinatura de Ian Andries Moerbeeck. O panfleto expressava também a opinião de um dos defensores da WIC, tornando-se, assim, uma maneira de se conhecer o projeto político dominante na Companhia das Índias Ocidentais.

Moerbeeck dirigia-se a Sua Alteza Maurício, Príncipe de Orange e aos Senhores Comissionados dos Altos e Poderosos Estados Gerais dos Países Baixos, reunidos em Haia. Segundo o autor, a iniciativa de transformar seu discurso num panfleto confundia-se com a vontade de divulgar e fortalecer a posição de que os neerlandeses, através da WIC, deveriam continuar investindo na conquista das terras que formavam o Brasil, neste momento pertencente ao monarca espanhol. Conforme Moerbeeck, esta situação era útil à República e muito nociva ao rei de Espanha32.

Ao longo da argumentação de Moerbeeck nota-se que o Brasil ia se transformando numa peça importante no contexto das lutas na Europa. A busca de aliança local contra o rei de Espanha entre outros argumentos era um indício de que o conflito contra os espanhóis foi deslocado para esta parte da América. A transformação dos habitantes do Brasil em aliados devia ser aproveitada pela Companhia para fortalecer a posição dos Países Baixos Unidos na Europa. Percebe-se o peso que as colônias tinham nas transações entre os Estados europeus. O complicado cenário político que trouxe os neerlandeses para o Brasil também emergia das páginas do folheto. A seguinte passagem demonstra a estratégia sugerida pelo autor:

"Visto como o rei da Espanha, nosso inimigo, possui ilegalmente estas terras e cidades, tendo destituído de modo inconveniente e pouco cristão o verdadeiro dono do reino de Portugal (ao qual pertence o Brasil) e também os legítimos herdeiros deste, isto é, S. ex. o Príncipe de Portugal, que atualmente reside em Haia, há razões de sobra para esperar a assistência da Divina Justiça na obra da Companhia do Brasil, que pertence à Coroa Portuguesa".33

Moerbeeck referia-se ao príncipe de Portugal, D. Manuel, então casado com uma das filhas de Filipe Guilherme, Emília, e, portanto, cunhado do stadhouder Maurício de Nassau, Príncipe de Orange. D. Manuel era filho do Prior do Crato, D. Antônio, que fora candidato à coroa portuguesa, contrariando os interesses de Filipe II de Espanha. A menção ao possível sucessor por direito da coroa – conseqüentemente dono das terras do Novo Mundo – servia aqui para legitimar a ação da Companhia. O raciocínio era astucioso: remetendo-se à questão sucessória, ocorrida quarenta anos antes, Moerbeeck apropriava-se do argumento jurídico corrente na época, invocando, inclusive, o auxílio da justiça divina34 para a realização do empreendimento, a guerra contra Espanha.

Um outro conjunto de justificativas referia-se aos lucros que os neerlandeses alcançariam com a tomada do Brasil. Em primeiro lugar, havia naturalmente o produto das pilhagens. Em segundo lugar, ao apoderar-se das cidades, a WIC teria direito ao confisco das mercadorias armazenadas, pertencentes ao Rei de Espanha, ao clero e aos negociantes particulares de Portugal. Depois da conquista, a WIC teria ainda o direito de fixar impostos, o que se desdobrava em mais um mecanismo para conseguir fundos para a guerra. Dos habitantes do Brasil os homens que cuidavam da produção e participavam do comércio – a Companhia passaria a cobrar um imposto por cabeça. Plantando cana, produzindo açúcar, tabaco, gengibre, semeando outros frutos e vendendo todos esses gêneros aos negociantes de Portugal ou, então, mandando-os para cá35,esses homens enriqueceriam os cofres da República. Moerbeeck concluía que todas as terras e vendas confiscadas ao Rei e ao clero deverão produzir, anualmente, de três a quatro toneladas de ouro36.

Note-se que tanto o direito de pilhagem quanto a possibilidade de cobrança de impostos tornavam-se, assim, elementos estratégicos da guerra contra o rei de Espanha. Afinal, grande parte das receitas utilizadas pela coroa, inclusive para o sustento dos conflitos no continente, era proveniente das possessões ultramarinas. Na seqüência, o autor discute o destino dos lucros adquiridos, que deveriam sustentar a guerra em proveito da República, armando os navios e garantindo o pagamento dos soldados. Desse modo, os Países Baixos Unidos assumiriam os negócios do açúcar na Europa, tomando o lugar de Portugal. A conquista desse negócio seria benéfica para a sociedade neerlandesa, pois traria oportunidades para os artífices, operários e tripulantes, que, eventualmente se interessassem em emigrar para o Novo Mundo, pois além de continuarem sob jurisdição de Vossa Alteza, poderiam ali lucrar e retornar à pátria, a exemplo dos portugueses e espanhóis. Finalmente, a conquista do Brasil abriria caminho para o controle do comércio entre esta região, Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Angola. O comércio de escravos seria realizado pelos navios da WIC, ou, em caso de terceiros, a Companhia teria o direito de cobrar impostos sobre cada escravo embarcado. E Moerbeeck encerra:

"Além disso, não somente a República obterá, assim, maior brilho e esplendor, sendo mais estimada pelos reis, príncipes e potentados, quando possuirmos esse grande país, como seu estado ficará totalmente garantido, em vista do grande prejuízo que com isto sofrerá o Rei da Espanha e, também, em vista dos grandes inconvenientes em que ele cairá (...). Ele dificilmente poderá atingir-nos, ao passo que nós, pelo contrário, nos tornaremos mais fortes, mais dispostos e mais ricos para nos defendermos o que virá garantir a vitória final na guerra"37.

Um pouco depois da publicação do panfleto de Moerbeeck, a Espanha enviou uma armada, que saiu vitoriosa, expulsando os neerlandeses da Cidade de Salvador. Os anos que se seguiram foram marcados por várias incursões dos Neerlandeses nas costas americanas. Na República, continuavam os debates sobre os benefícios e prejuízos da conquista do Brasil. A captura de uma frota com carregamento de prata em 1628, no Mar do Caribe, reacendeu os ânimos e novamente os Países Baixos prepararam uma armada para atacar as possessões portuguesas na América.

Finalmente em 1630, os Neerlandeses conseguiram exercer o domínio sobre parte da região da América que pertencia a Portugal, ocupando-a até 1654, quando foram expulsos pelos colonos portugueses que habitavam o local. O controle teve início na capitania de Pernambuco, estendendo-se ao sul até o Rio São Francisco e, ao norte, aos limites da capitania do Rio Grande.

A leitura do panfleto demonstra novamente que a guerra aparece como represália à proibição do livre comércio, tema recorrente entre os defensores da WIC. O tema do livre comércio retornou em 1644, no livro publicado por Johannes de Laet, um dos mais ativos defensores da Companhia das Índias Ocidentais, da qual chegou a ser um dos diretores. Este homem desfrutou de uma posição privilegiada, tendo acesso aos relatórios que eram enviados à WIC e, ao mesmo tempo, aos editores deste gênero de compilação.

1.4 - As viagens de Marte e Mercúrio

Oferecida aos senhores dos Estados Gerais – ou seja, aos representantes do governo central dos Países Baixos Unidos – 38 a História ou anais da Privilegiada Companhia das Índias Ocidentais desde seu começo até o ano de 1636, texto de Jan de Laet, se dirigia também ao Conselho dos XIX. A obra deveria servir para manter diretores e acionistas da Companhia bem informados, sendo assim comprometida com a fidelidade dos fatos. Mas a História ou anais também fazia uma defesa da WIC diante dos Estados Gerais: Laet pretendia realizar uma descrição verdadeira da situação e também destacar o potencial mercantil das conquistas realizadas até 1636, fazendo um balanço dos ganhos e dos prejuízos na América e na costa ocidental da África, áreas a serem anexadas e controladas pela Companhia.

O texto de Laet confirma a idéia de que, para os neerlandeses, comércio e guerra não eram ações mutuamente excludentes. A sugestão criativamente sintetizada por Simon Schama na referência metafórica a Marte e Mercúrio, foi, por isso, incorporada aqui39. Conforme Laet, as guerras, ainda mais quando justas, tinham a função de assegurar a conquista, o que significava a posse das terras e o controle do comércio da região anexada. Aliás, no momento da edição de História ou anais..., em 1644, a Europa ainda estava vivenciando a Guerra dos Trinta Anos. A Companhia não tinha apresentado os lucros esperados por acionistas e diretores. Assim, ao publicar o texto, Laet – um dos fundadores da WIC – realizava também uma defesa apaixonada da empresa para a República que, hoje se sabe, estava prestes a ter sua independência reconhecida pelos outros Estados europeus.

"Desde que foi fundada e começou a funcionar a Companhia Privilegiada das Índias Ocidentais, começou-se a notar quanto têm diminuído os cabedais e as rendas daquele rei e quanto tem decrescido o seu antigo poder. (...) e atualmente manifesta a fraqueza daquele grande reino, corpo cujos braços já pendem inertes, abatido por um tão fraco adversário. (...) Esta breve relação dos feitos anuais da Companhia das Índias Ocidentais, que submeto a Vossas Nobres e Altas Potências, será disto um atestado. A conquista de tão vastas e ricas regiões tomadas ao Rei de Hespanha, a perda de enormes tesouros, a captura e destruição de vários navios, a ocupação e arrasamento de muitas praças fortes, tudo realizado por uma fraca Companhia mostra suficientemente quanto se teria conseguido com maiores recursos"40.

Nesta apresentação de História ou anais..., Laet deixa transparecer uma das principais funções que a Companhia deveria desempenhar em benefício da República: enfraquecer e limitar o poder do rei de Espanha, pois este vetara aos neerlandeses o direito de navegação em seus portos, inclusive no ultramar. Por essa razão, o Novo Mundo aparecia, ao longo da narrativa, como palco onde se projetavam as disputas européias. A conquista da América convertia-se, assim, no principal trunfo para o enfraquecimento do reino espanhol. Afora isso, os gastos da guerra eram retirados também do ultramar, tanto pelo comércio de produtos (prata e gêneros tropicais) quanto pela cobrança de impostos aos habitantes da América. Assim, os lucros da Companhia eram detalhadamente calculados e demonstrados ao longo da narrativa. Laet procurava valorizar ao máximo o lucro, pois cada ganho representava efetivamente um prejuízo para a Espanha. O balanço minucioso dos ganhos e das perdas, que encerrava a História ou anais..., demonstrava o esforço de atrelar cada ponto positivo da contabilidade a uma derrota espanhola41.

História ou anais... está dividida em treze livros, organizados cronologicamente. Os temas são recorrentes: narrativas de confrontos entre neerlandeses e "inimigos"; identificação de cada área abordada pelos navios neerlandeses; longas e detalhadas descrições da costa localizando fortificações, portos e cidades existentes; registro de todas as fortificações ocupadas e das que eram erguidas pelos neerlandeses nas áreas anexadas.

Depois de assegurada a posse do lugar, pela guerra, seguiam-se informações sobre as possibilidades de comércio que se desdobravam em registros sobre diversos assuntos, desde as condições geográficas, de navegação, aos produtos existentes (tanto para o comércio quanto para a vida no lugar) e aos habitantes naturais. Entre os artigos para o comércio, a menção ao açúcar e aos negros africanos aparecia com mais freqüência do que a referência aos metais preciosos (ouro e prata). Esta recorrência demonstra o interesse pela região americana ocupada pelos portugueses, o Brasil, especialmente as capitanias do nordeste, pois ali concentrava-se parte da produção açucareira na América e, também, um dos principais mercados consumidores de escravos africanos.

Os limites espaciais que apareciam na narrativa de Johannes de Laet eram vastos e não se restringiam às regiões efetivamente conquistadas pelos neerlandeses. A guerra narrada acontecia principalmente no Atlântico e era travada, segundo os termos de Laet contra os ibéricos, que poderiam ser espanhóis ou portugueses. Os navios inimigos, depois de abatidos, tinham suas cargas confiscadas. Uma vez vencida a batalha, Laet apresentava ao leitor uma lista das pilhagens. Entre os produtos apreendidos encontramos açúcar – branco, mascavado e panela – tabaco, vinho, gengibre, farinha, óleo, couro, peixes secos, chocolates, prata, anil, pau-brasil e escravos africanos. Nos navios capturados pelos neerlandeses, ao lado dos artigos apreendidos, eram interceptadas também as cartas que deveriam seguir levando informações para a Espanha. A apreensão dessa correspondência possibilitou a criação de uma rede de espionagem, garantindo aos neerlandeses a apropriação dos registros das riquezas tomadas aos espanhóis bem como o acesso a assuntos estratégicos.

Entre as atribuições das companhias de comércio neerlandesas estava o compromisso de selar alianças com os principais da terra. No caso específico da WIC na América, essa aliança muitas vezes traduziu-se na busca de aliados locais: os habitantes naturais deveriam ser recrutados para as tropas em terra. Assim, os neerlandeses procuravam entender as relações já estabelecidas entre o antigo colonizador e os índios, identificavam as tribos inimigas dos portugueses e faziam contato com elas, com o objetivo de transformá-las em aliadas nas batalhas para a conquista do território.

"...Disse mais aquele índio que o rei Jandovi e Oquenou o haviam mandado ver se os "tapotingas" (nome que dão aos holandeses) estavam ainda em Pernambuco, pois queriam aliar-se a eles. (...)e garantiu que os Tapuias, logo que recebessem notícias dos nossos, avançariam para atacar os Portugueses e que, se os nossos quisessem tentar alguma coisa no Rio Grande, teriam prova da sua sinceridade"42.

Além do aspecto bélico, História ou anais... também contém uma importante avaliação da situação e das possibilidades de comércio para a Companhia. Em cada capítulo, depois de relatar como foi concluída a guerra e a conquista assegurada, Laet passava a descrever as condições concretas de cada localidade tomada pelos neerlandeses.

O primeiro movimento dos neerlandeses foi de, pela guerra, tomar uma parte das terras da América portuguesa, fazendo com que elas passassem para a sua jurisdição, formando, portanto, um território conquistado no Brasil e estabelecendo, desta forma, um domínio. Seguindo esse raciocínio, o "Brasil" ganhava limites específicos e um sentido particular para os neerlandeses, como o conjunto de áreas por eles conquistadas até o ano de 1636, ou seja, as capitanias de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte.

Voltando a Laet, era necessário dar prosseguimento ao projeto. Para que continuasse a gerar riquezas, era imprescindível que se investisse na ocupação produtiva das capitanias conquistadas, aproveitando o que a terra já possuía e introduzindo novos produtos, afinal, a fertilidade da terra dependia também do trabalho do homem, cultivando-a. Apesar dos esforços, os neerlandeses acabaram mais por exercer um domínio sobre o Brasil. Assim, permaneceu o modelo neerlandês de controle do ultramar: uma rede de entrepostos que se ligavam a Amsterdam. Aí está uma das funções do Recife holandês.

* * *

No texto de Gaspar Barléus, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, reapareciam algumas das idéias de Grotius, no momento em que esse autor justificava a ação beligerante implementada pela Companhia das Índias Ocidentais no Atlântico. Barléus foi responsável por escrever as memórias do Conde João Maurício de Nassau-Seigen logo que este retornou à República. Humanista e, historiador de renome nos Países Baixos Unidos, foi dessa maneira que Barléus explicou porque os neerlandeses dirigiram-se para a América:

"O espírito mercantil, frustrado na esperança do ganho, acirra-se e incita-se com os próprios perigos. Pensava-se assim: que não é lícito, por uma lei pessoal dos soberanos, impor servidão ao mar, franqueado a todos; que se carecerá no país das coisas necessárias se não for buscar a outras partes; que ainda mesmo na Índia engendra o Criador produtos úteis aos neerlandeses,(...)
A liberdade comercial foi sempre o baluarte de uma grande potência.(...) Por isso os nossos navios mercantes, comboiados por nossas armadas, navegaram primeiro para o Oriente, depois para o Ocidente, fundando fora da Europa, como que dois impérios, sustentados por duas companhias. O holandês tentou no Oceano derrotas tanto mais extensas quanto mais enclausurado se sentia nas acanhadas fronteiras de seu país, espalhando seu tráfico e poderio por toda a parte onde brilha o sol"43.

Mais uma vez, a ação dos neerlandeses foi interpretada como uma reação às pretensões ibéricas de exercer controle sobre o mar, que pertencia a todas as nações, conforme vontade de Deus. A liberdade de comércio evocada nessa passagem sustenta-se no fato de que os produtos necessários à vida foram dispersos pelo mundo pela Providência. Tal fazia da troca entre os povos uma utilidade que visava ao bem dos homens na terra.

Finalmente, a guerra justa fornecia os argumentos jurídicos necessários para os neerlandeses exercerem domínio sobre a área conquistada aos portugueses, como se pode notar no trecho abaixo:

"Discutiram os castelhanos e os portugueses se era isso jurídico, como se, após as batalhas e a guerra, houvesse lugar para as leis e para as incertas controvérsias dos jurisconsultos (...) Não obstou a tais empreendimentos nem a doação feita pelo papa Alexandre VI aos portugueses e aos espanhóis, pois é permitido a alguém ser liberal do seu e não do alheio; nem a prescrição aquisitiva, inaplicável às coisas pertencentes a todo o gênero humano; nem o descobrimento, o qual nenhum direito dá sobre as terras que sempre tiveram donos; nem o direito de guerra, o qual foi para nós tão justo contra os portugueses quanto o foi para estes contra os índios"44.

Na última passagem em epígrafe, o humanista e historiador Gaspar Barléus aborda um dos temas centrais de nossa análise: o questionamento do direito de posse fundamentado apenas no descobrimento, algo também refutado por Hugo Grotius, como vimos em Mare Liberum. Barléus sugere que o estado de guerra podia transformar uma dada situação, mesmo que esta fosse juridicamente fundamentada, permitindo, por exemplo, que um território passasse da jurisdição de um para outro Estado. Nesse momento volto ao texto de Laet, para atribuir um significado à sua narrativa minuciosa dos confrontos entre neerlandeses e ibéricos. Para ele, conquistar uma região era sinônimo de ter vencido a guerra e expulsado o inimigo, pois o descobrimento não garantia o direito de um soberano sobre um território como pretendiam os portugueses. Neste caso, era relevante a descrição exaustiva do ritual de construção ou tomada de uma fortaleza logo após o desembarque.

O procedimento pode ser explicado pela refutação da idéia de descobrimento como garantia para o domínio sobre uma região. Para os homens da República, o que estava em jogo como garantia para o domínio, não era a chegada a um lugar "novo" ou "desconhecido", nem mesmo o registro de uma "descoberta" ou "achamento" (Godinho, 1994 ),45 sobretudo, quando se leva em consideração que um dos objetivos da expansão para a América era atingir a soberania do Rei de Espanha, Filipe IV, III de Portugal. O descobrimento não garantia o direito de conquista sobre as novas terras encontradas pelos portugueses e espanhóis, como propunham as bulas papais do século XV, especialmente depois da Reforma e conseqüente quebra da autoridade papal entre os cristãos, como bem assinalou Hugo Grotius. Aliás, a garantia de posse pelo descobrimento era questionada mesmo pelo jurista ibérico Francisco de Vitória, por exemplo, que defendia a soberania do Rei de Espanha no ultramar. A idéia de descobrir (ontdekken) não tinha, portanto, peso nos relatos neerlandeses. Na maior parte das vezes, quando se referia aos primeiros descobridores (eerst ontdekkers) Laet estava apenas reconhecendo que usava o primeiro relato existente sobre o lugar que desejava descrever.

Nesse caso é reveladora a mudança dos nomes dos lugares tomados aos espanhóis. Ao conquistar a Paraíba, em 1635, os neerlandeses trocaram o nome da principal cidade, de Filipéia para Frederica, em homenagem a Frederick Hendrick, Príncipe de Orange, prática recorrente que podemos encontrar nos mapas, entre outros registros das conquistas neerlandesas.


* Este artigo é uma versão de parte da minha tese de doutoramento. O Teatro das Coisas Naturais do Brasil: conhecimento e colonização Neerlandesa na América, 1624/1654. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2001. Agradeço ao CNPq o apoio concedido durante o meu doutoramento.

Notas
Revista de História - USP