quinta-feira, 30 de julho de 2009

Pão: Dize-me o que comes e eu te direi quem és


Pão: Dize-me o que comes e eu te direi quem és
Na Idade Média, a hierarquia da sociedade erarígida até na alimentação. Enquanto os nobres tinham asua disposição uma grande variedade de carnes, oscamponeses viviam à base de legumes e frutas
por Eliza Muto
Ele era uma das poucas unanimidades nas refeições da Europa medieval. Fosse na távola dos senhores ou na mesa dos camponeses, o pão estava sempre presente. Mas havia uma marcante diferença na aparência e no gosto do alimento, que variavam de acordo com o status de quem se sentava para comer. O pão branco, feito com o mais puro trigo, era reservado à alta sociedade. Macio, chegava fresquinho à mesa da aristocracia. Já o pão preto, feito com uma mistura de cereais rústicos e legumes secos (como cevada e ervilha), era o que restava aos plebeus.

A receita dos pobres era dura de engolir: a massa seca, preparada sob cinzas ou sobre uma placa de terracota aquecida, precisava ser mergulhada na água, no vinho ou em algum caldo para ser consumida mais facilmente. Esse tipo de distinção alimentar entre nobres e camponeses era comum na Idade Média, período que se estendeu do século 5 até o século 15. “A alimentação era uma questão social, marcada pelas diferenças entre as classes, especialmente a partir do século 9”, afirma Francisco José Silva Gomes, professor de História Medieval da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

De acordo com as regras da época, os produtos do solo eram reservados aos camponeses. Essa camada mais baixa da sociedade, que correspondia a cerca de 90 por cento da população, tinha que cultivar as terras do senhor feudal, com a obrigação de prestar-lhe serviços e pagar-lhe diversos tributos em troca de proteção. Seus alimentos eram as leguminosas, os legumes e os cereais – com exceção do trigo, um luxo reservado às mesas dos ricos. Já as carnes, associadas à idéia de força e poder, eram praticamente exclusivas das classes dominantes.

O marco do início da Idade Média é o ano de 476, quando o Império Romano do Ocidente sucumbiu às invasões de diversos povos germânicos (como visigodos, vândalos e hunos). A mistura de culturas resultante, consolidada entre os séculos 11 e 13, ficou marcada na culinária medieval. Dos romanos, as principais heranças foram o pão, o vinho e o azeite – esses três alimentos, muito importantes na liturgia cristã, serviam de instrumentos para que a Igreja Católica pregasse sua fé.

Já os rústicos povos invasores, chamados de “bárbaros”, serviram de inspiração para as preferências (e para o comportamento) dos nobres medievais à mesa. A classe dominante tinha prazer em manter uma imagem de “selvageria”, comendo grandes porções de animais grelhados, temperados com especiarias e condimentos, preparados sem o uso de água ou recipientes. Fazendo isso, os nobres acreditavam se tornar mais fortes e viris. Para eles, comer não era a satisfação de uma necessidade fisiológica, mas um meio de reiterar, a cada refeição, a sua superioridade.

A mudança de costumes com a chegada dos germânicos incluiu também a valorização da caça, que era desprezada pelos romanos. Tentando privar os pobres do consumo da carne, a classe dominante transformou as florestas em um lugar reservado a seus exércitos particulares de caçadores. Era uma forma de manter bichos como cervos, porcos selvagens e faisões somente nas mesas da aristocracia. Mas, apesar dessa restrição, a carne às vezes aparecia no menu dos camponeses, graças à criação de animais domésticos – o cargo de guardador de porcos, por exemplo, era uma das ocupações mais valorizadas entre os camponeses da Idade Média. Assim como no caso do pão, o preparo da carne era diferente entre os camponeses e os senhores. “Enquanto os primeiros comiam, basicamente, carne cozida, acreditando assim tirar dela toda a substância possível, a nobreza preferia os assados, as carnes grelhadas diretamente sobre o fogo em grandes espetos ou grandes grelhas”, diz o historiador Massimo Montanari, professor da Universidade de Bolonha, na Itália, e organizador do livro História da Alimentação.

Gostinho de conchavo

O cardápio dos aristocratas era marcado pela abundância e grande variedade de carnes consumidas: desde as mais finas, como a de ganso, até as mais comuns, como a de carneiro. Os animais caçados contavam com a preferência de muitos nobres. Era o caso de Raimundo Berengário IV, marido de Petronila, a rainha de Catalunha e Aragão – territórios que hoje ficam na Espanha. Ele tinha o hábito de devorar tetrazes (aves de porte médio, comuns no hemisfério norte), assadas e inteiras. Entre suas iguarias prediletas estavam também as exóticas coxas e patas de urso.

Além das carnes, a dieta da nobreza incluía ovos e queijos diversos. Já os legumes e frutas eram vistos com profundo desprezo. Entre abril e agosto de 1189, o nobre Guillemette de Montcada visitou várias vezes o castelo de Sentmenat, na atual Espanha. O livro de despesas do local registrou que, durante os 43 dias que Montcada esteve por lá, ele chegou a comer couve e espinafre. Mas foi uma vez só. “As teorias da época consideravam alimentos de origem vegetal como de difícil digestão para os estômagos refinados da nobreza”, diz Antoni Riera-Melis, professor de História Medieval da Universidade de Barcelona.

Nas grandes festas, as refeições eram compostas de vários serviços – até seis – que, por sua vez, incluíam um grande número de pratos diferentes – até 15. Servidas em baixelas de metais preciosos, as receitas eram postas, sucessivamente, à mesa: primeiramente as sopas, seguidas de diversos pratos de assados e grelhados. Enquanto os convidados esperavam pelo próximo serviço de pratos principais, quitutes eram servidos. Munidos de uma faca – na época, o único utensílio de uso individual à mesa –, os convivas serviam-se dos pratos que estavam mais próximos. Naquelas grandes refeições, era praticamente impossível provar todas as numerosas iguarias à disposição.

Como a culinária medieval não era lá muito sofisticada, ninguém esperava pratos saborosos. Muitas vezes, a aparência dos alimentos importava mais para os nobres do que o próprio sabor: cozinheiros lançavam mão de uma ampla gama de cores para seduzir os famintos olhos da classe dominante. Ingredientes como a salsa tingiam os pratos de verde, enquanto os ovos e o açafrão deixavam as receitas douradas. “O vermelho era obtido a partir de produtos exóticos, como extrato de sândalo vermelho e uma resina de árvore chamada de sangue-de-dragão”, diz o historiador Bruno Laurioux, da Universidade Paris VIII.

Naquele mundo de aparências, qualquer ocasião era digna de transformar um jantar cotidiano em um festival gastronômico: as tradicionais datas comemorativas cristãs, as festas familiares ou os acordos políticos entre a classe dominante. Banquetes eram organizados quando indivíduos ou reinos selavam a paz, faziam alianças ou simplesmente reforçavam a continuidade de seus laços de amizade. Se o gosto da comida não era lá essas coisas, tudo bem: o importante era reunir as pessoas para comer e beber. O ato de dividir a mesa era uma reafirmação de lealdade entre os nobres.

Pobreza saudável

Diante das orgias alimentares da nobreza, pode parecer que os servos tinham uma vida miserável. Em matéria de comida, pelo menos, não era bem assim. Um estudo da Universidade Estadual de Ohio, Estados Unidos, verificou que os habitantes do norte da Europa que viveram durante a Alta Idade Média (entre os séculos 5 a 10) tinham, em média, 1,73 metro de altura. Ou seja: eram quase tão altos quanto seus descendentes de hoje – o que indica que sua dieta permitia bom desenvolvimento corporal. “Os pobres da Idade Média tinham uma alimentação muito melhor do que supúnhamos, pois era bem balanceada, à base de legumes, frutas e peixes”, explica o medievalista Ricardo da Costa, professor da Universidade Federal do Espírito Santo.

Se os pratos das classes populares não eram requintados, pelo menos eram muito nutritivos. Nas sopas, preparadas em caldeirões pendurados numa corrente ou colocados diretamente nas brasas, havia um pouco de tudo: leguminosas como favas e ervilhas, legumes como cenoura e cebola e, quando possível, um naco de carne. Era comum o caldo ficar cozinhando durante dias: à medida que ia sendo servido, também ia sendo engrossado com novos ingredientes.

Além do pão, outro alimento de consumo diário que a elite compartilhava com os camponeses era o vinho. Na Idade Média, o consumo da bebida se estendia por toda a Europa cristã. Assim como no caso do pão, a qualidade do vinho também variava de acordo com a classe social – as melhores uvas eram, naturalmente, reservadas aos senhores. Entretanto, na região onde hoje fica a Alemanha, o vinho rivalizava em preferência com a cerveja. Na verdade, ela ainda era uma bebida densa e doce, que só muito mais tarde, com a adição do lúpulo, se tornaria o líquido claro e transparente que conhecemos. De modo geral, os habitantes da Europa medieval ingeriam grandes quantidades de bebida alcoólica. Não só pelo prazer, mas também por questões higiênicas. “A água, portadora de germes e doenças, inspirava pouca confiança”, diz Massimo Montanari. “Toda a literatura medieval revela uma profunda desconfiança a seu respeito.” Na Idade Média, era comum que o vinho fosse misturado à água. O objetivo era purificá-la. “Mais do que um sinal de bom gosto, era uma medida de prevenção sanitária”, afirma Montanari.



O peixe nosso de cada dia
Em boa partedo ano, a carne vermelhaera proibida
A voracidade carnívora dos nobres medievais não era ilimitada. Ela esbarrava nas regras da todo-poderosa Igreja Católica, que proibia o consumo de carne vermelha nos dias religiosos – e, na Idade Média, eles eram muitos. “O jejum da Quaresma, costume que se iniciara no século 4, foi prolongado para 40 dias e, além dele, havia o jejum das sextas-feiras, dia da crucifixão de Cristo”, conta o jornalista Mark Kurlansky no livro Sal: uma História do Mundo. Assim, boa parte do ano estava destinada ao consumo de animais encontrados na água, o que também incluía os mamíferos marinhos. A carne de baleia geralmente era reservada aos ricos (a parte que fazia mais sucesso entre eles era a língua). Para os camponeses sobrava o craspois: uma tira das áreas mais gordas do corpo do animal. Mas esse toicinho de baleia não era lá muito apetitoso. “Diziam que, mesmo depois de passar o dia inteiro no fogo, o craspois continuava duro e áspero”, afirma Kurlansky. Além dos cetáceos, outro habitante dos mares ganhou a simpatia dos europeus medievais: o bacalhau do Atlântico. Sua carne branca é ideal para ser salgada para conservação, já que praticamente não apresenta gordura – tecido que dificulta a fixação do sal na carne. Em tempos em que ainda não existia geladeira, essa era uma questão de grande importância. Por causa dessa característica, o bacalhau entrou no repertório da maioria das cozinhas européias – incluindo os países do sul do continente, onde não se encontrava o peixe fresco.

Como nos velhos tempos
Experimente o legítimosabor da Idade Média
Apesar de serem feitos com ingredientes bastante diferentes, os pratos comidos por nobres e plebeus tinham uma característica comum: a simplicidade. “Naquele período, em que o prazer foi muito oprimido pela religião, os pratos eram básicos, preparados com ingredientes locais, facilmente disponíveis”, afirma o chef Alessandro Nicola, professor de Gastronomia do Centro Universitário Senac, de São Paulo. Exemplo disso eram as sopas dos camponeses, receitas elementares que remetem a uma culinária de poucos recursos. Bastava juntar alguns legumes a uma carcaça de animal e cozinhar tudo por algumas horas (ou dias). O caldeirão ficava na sala, não na cozinha: reunidos em torno do fogo, os camponeses se aqueciam do rigoroso inverno europeu tomando um caldo quente. Do lado dos nobres, o faisão era uma das mais apreciadas iguarias. As aves eram perseguidas e capturadas no interior das florestas. Uma vez abatidas, eram limpas e deixadas de molho na cerveja durante dias, antes de ser assadas diretamente sobre o fogo em espetos. A mistura com a bebida não servia para dar um sabor especial à carne: era apenas um modo de conservá-la por mais tempo. A cerveja evitava que a carne apodrecesse, mas fazia com que ela fermentasse – deixando-a com um sabor intragável para os padrões atuais. A seguir, você vai ter a oportunidade de sentir um gostinho de Idade Média. Se estiver num clima camponês, escolha a sopa. Se preferir dar um ar de nobreza à sua vida, vá de faisão (não estranhe o uso de geladeira no preparo: o clima brasileiro é muito quente para que a ave fique de molho sem estragar). Qualquer que seja sua escolha, uma regra de etiqueta medieval é indispensável: nada de usar garfo.

Faisão marinado em cerveja*

Ingredientes

1 faisão limpo

70 g de aipo-rábano

200 g de cebola picada

1 colher de sopa de zimbro

10 folhas de louro

1 litro de cerveja rústica

1 colher de sopa de sal

200 g de banha de porco

2 pães italianos bem rústicos

Modo de preparo

1. Junte o aipo-rábano, a cebola, o zimbro, o louro e a cerveja. Deixe marinar por, no mínimo, 24 horas em geladeira (o ideal é chegar a 72).

2. Retire a marinada e seque bem o faisão. Reserve a marinada separada.

3. Cubra o faisão com a banha e leve-o ao forno (160ºC) até começar a dourar.

4. Regue o faisão com a marinada.

5. Continue regando a ave com a marinada e a banha derretida até assar por completo.

6. Sirva a carne quente ou morna, acompanhada de pão rústico (para passar no molho que se formou na assadeira).

*Receitas elaboradas pelo chef Alessandro Nicola e preparadas por Lucas Medina, do centro universitário Senac em São Paulo

Sopa

Ingredientes

50 g de gordura de porco picada

70 g de cebola picada

4 colheres de sopa de vinagre de maçã

300 g de repolho branco ralado

300 g de beterraba ralada

200 g de cenoura ralada

100 g de aipo-rábano ralado

1 pé de porco

3 dentes de alho descascado

3 folhas de louro

2 maçãs raladas

10 sementes de zimbro

3 litros de água

Sal a gosto

Modo de preparo

1. Derreta a gordura e refogue a cebola e o pé de porco.

2. Acrescente os demais ingredientes e cozinhe por 4 horas, sem ferver.

3. Acerte o sal e sirva.


Fome do cão
Em caso de emergência,o melhor amigo do homemacabava indo para a panela
Durante séculos, cachorros encheram a barriga dos habitantes da cidade medieval de Carrickfergus, na Irlanda do Norte. Foi o que verificou o arqueólogo Ruairi O’Baoill, responsável pelas escavações no local, que fica a cerca de 16 quilômetros da capital norte-irlandesa, Belfast. Após analisar centenas de esqueletos caninos encontrados em antigos depósitos de lixo da cidade medieval, O’Baoill descobriu que muitos ossos haviam sido talhados pelas facas de açougueiros. “A presença dessas marcas nos restos dos animais é um sinal claro de que a carcaça era processada para a alimentação”, afirmou o arqueólogo na revista irlandesa Archaeology Ireland. Mas, para a sorte dos cachorros, talvez eles não tenham sido sempre o prato do dia em Carrickfergus. Fontes históricas indicam que a carne desses animais só era consumida em situações extremas, como durante períodos de fome ou guerra prolongada – a cidade irlandesa sofreu diversos cercos e ataques durante a Idade Média. “É possível que a alta concentração de ossos caninos esteja relacionada a um ou mais episódios de conflito”, escreveu O’Baoill.

Saiba mais
Livros

História da Alimentação, Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari (orgs.), Estação Liberdade, São Paulo, 1998 - Constrói uma história geral da alimentação, desde a Pré-história até os dias de hoje. Artigos assinados por historiadores relacionam a alimentação com a sociedade em várias épocas.

Sal: uma História do Mundo, Mark Kurlansky, Senac, São Paulo, 2004 - O jornalista Kurlansky conta como o sal influenciou os hábitos alimentares de diversas civilizações, fosse para temperar, fosse para conservar a comida.

Revista Aventuras na História

Kennedy inventa Kennedy

Seu governo foi efêmero, mas a lenda permanece, apesar das múltiplas biografias que desancam o personagem. Sua vida é cercada de uma aura que ele soube construir na mídia, que lhe garantiu a imagem de homem mais popular dos Estados Unidos.
por André Kaspi

Ainda candidato, descansando no apartamento em Boston


O paradoxo é surpreendente. John Fitzgerald Kennedy se tornou presidente dos Estados Unidos em 20 de janeiro de 1961. Foi assassinado numa rua de Dallas em 22 de novembro de 1963. Exerceu a presidência durante apenas 1.036 dias. O que é muito pouco. Sem ter tido a chance de uma longa permanência no poder, como aconteceu com Franklin Roosevelt, Kennedy, entretanto, permanece na América como uma de suas personalidades mais conhecidas, celebrizadas e mitificadas.

Eventos da maior importância aconteceram durante sua presidência. Por duas vezes, em abril de 1961 e outubro de 1962, Cuba e Fidel Castro ocuparam lugar de destaque na cena internacional. No curso do segundo episódio, a tensão entre os Estados Unidos e a União Soviética esquentou tanto que muitos temeram a explosão de uma terceira guerra mundial, coisa ainda mais assustadora porque o conflito teria oposto duas superpotências nucleares, com arsenais capazes de destruir todo o planeta. Foi também nessa época que os Estados Unidos se envolveram cada vez mais fundo no conflito vietnamita, que a desigualdade entre negros e brancos conflagrou a sociedade americana, que a condição feminina entrou nas preocupações dos políticos, que o governo federal se esforçou para estender a assistência médica dos pobres às pessoas com mais de 65 anos de idade. Seria injusto concluir que nada de importante pontilhou os dois anos e meio da presidência de Kennedy. Da mesma forma seria inexato pretender que o mundo mudou radicalmente, que Kennedy teve tempo de alterar as relações internacionais, a vida econômica e social, e a correlação de forças políticas.

O tempo nada produz por acaso. Mais de 40 anos depois da tragédia de Dallas, o nome de Kennedy prossegue prestigiado. Dois terços dos americanos consideram que ele foi o presidente mais importante do século XX, tendo realizado uma tarefa extraordinária e que encarna uma América vitoriosa e segura de si. Ted Kennedy, o irmão do presidente, é senador por Massachusetts. Até morrer, sua viúva, Jacqueline Kennedy, tornada Jacqueline Onassis, perseguida pelos paparazzi e pelos jornalistas da imprensa popular, não pôde escapar da notoriedade. Kennedys disputam eleições ou apóiam seus cônjuges, como é o caso de Maria Shriver, sobrinha de John Kennedy e esposa de Arnold Schwarzenegger. A morte acidental de John Kennedy Jr., o filho do ex-presidente, comoveu profundamente tanto os americanos quanto outros povos. A explicação para isso é, a um só tempo, simples e complicada.

Existe um mito Kennedy. Convém analisá-lo mais de perto e sobretudo entender suas particularidades.


Kennedy jamais deixou de cuidar de sua imagem. Ele sem dúvida herdara do pai a vontade de cativar a opinião pública. E a carreira política, na qual ingressou em 1946, aos 29 anos, reforçou essa tendência. O patriarca Joseph Kennedy enviara os dois filhos mais velhos a Londres. Na Inglaterra, eles assistiram às aulas de Harold Lasky na London School of Economics, para adquirir indispensáveis conhecimentos e para ostentar a filiação a um dos mais brilhantes economistas da época.

Depois que John redigiu sua tese de doutorado, um jornalista experimentado foi encarregado de reescrevê-la para que fosse publicada e apreciada pelo grande público. As proezas do jovem no Pacífico Sul, durante a Segunda Guerra Mundial, em 1943, foram narradas em termos épicos, e o relato foi divulgado entre os eleitores.

Enfim um congressman (isto é, um membro da Câmara dos Representantes) de 1947 a 1953, senador de 1953 a 1961, depois presidente dos Estados Unidos, John Kennedy manteve relações privilegiadas com os jornalistas. Ele lhes abria informações confidenciais, elogiava seu trabalho ou lhes dirigia críticas amistosas.

Os fotógrafos eram igualmente adulados. Tinham acesso à intimidade da família. Os pais, os irmãos, as irmãs, as crianças proporcionavam excelentes clichês. Na propriedade familiar de Hyannis Port, ao longo do Cabo Cod, em Washington, nos confins da América ou no estrangeiro, nada era mais fácil que obter um flagrante de John, de Jacqueline, com a condição de que a fotografia tivesse a ver com o tema.

Cabelos ao vento, aclamado pela multidão, brincando com o filho ou a filha, em sua lancha, no gabinete da Casa Branca, John Kennedy aparecia nos álbuns consolidando a idealização de juventude, alegria, elegância, responsabilidade.

O nascimento do culto


Além disso, ele sabia usar admiravelmente bem a televisão, como nos debates que precederam as eleições presidenciais de novembro de 1960. Depois, persuadiu Jacqueline a receber uma equipe de televisão para mostrar os novos arranjos da Casa Branca. Todos os momentos da vida pública e a maior parte dos instantes da vida privada construíram a imagem de um homem, de um líder, destinado às mais altas tarefas, decidido a conquistar o coração das multidões. Nesse sentido, Kennedy inventou o mito Kennedy.

O assassínio fez nascer um verdadeiro culto. Uma moeda de meio dólar foi cunhada com a efígie de Kennedy. Ruas, avenidas, o aeroporto principal de Nova York, a base de lançamento de foguetes e naves espaciais da Flórida, escolas e colégios, monumentos foram batizados com seu nome. A América e o "mundo livre" renderam homenagens ao presidente-mártir. Ele se transformou em símbolo da razão, da democracia, do diálogo e do dinamismo abatidos pelas forças do mal. Elevou-se acima de seu tempo, reunindo todas as qualidades da América, ascendendo ao papel de herói. Os contemporâneos ficaram aterrados, questionando como um homem com tal têmpera, um espírito superior, pôde ser vítima do caos, da violência e da intolerância. Ao mesmo tempo, refletiam sobre a espécie de mundo em que todos viviam e o que deveria ser feito para combater os impulsos diabólicos ou, ainda, quais os meios para salvaguardar uma herança tão preciosa. Os primeiros testemunhos da história da presidência contribuíram para esculpir a estátua. A lenda, assim, ganhou corpo.

No próprio coração da lenda, a oposição entre sua juventude e sua morte. Apareceu então uma família unida. Os pais eram descendentes da imigração irlandesa, que foi, durante décadas, vítima de discriminação. Tiveram quatro filhos e cinco filhas. Os meninos eram felizes. Aproveitaram-se com inteligência e determinação da fortuna familiar. Mas a infelicidade andava à espreita. Uma das moças era deficiente mental; outra morreu num acidente de avião. O filho mais velho, em 1944, foi morto enquanto comandava um bombardeiro. John foi encarregado de levar em frente as esperanças do clã. Ele pertencia à nova geração, aquela que fizera a guerra e servira o país. Com a ajuda da família, superou os obstáculos, foi eleito e reeleito em cargos representativos. Entrou para a Casa Branca, pregou o diálogo, exaltou as virtudes de seus concidadãos. Em torno dele, os amigos, os seguidores, os conselheiros constituíram uma espécie de corte do rei Artur, o da legendária Camelot. Eles fizeram de seu tempo um fugaz momento iluminado. Com o presidente Dwight Eisenhower, a tristeza prevalecia. Com Kennedy, a inteligência, a euforia e a beleza triunfaram.

Raio sobre o planeta


Mas que não haja engano! Kennedy acreditava na sua boa estrela e, ao mesmo tempo, tinha senso de humor. Ele sabia também como recolocar as coisas em seu devido lugar. Um dia, um jornalista lhe perguntou: "Como você se tornou herói durante a guerra?". A resposta: "Por acaso. Atingiram meu barco". Nada nem ninguém merece ser levado exageradamente a sério. Ora, de repente, um raio caiu sobre o planeta. Era a morte uma vez mais. Resultou de um ato odioso. Os policiais prenderam Lee Harvey Oswald, o suposto assassino. Em 24 de novembro, 48 horas depois do homicídio, o matador também foi assassinado diante das câmeras de televisão. E o mistério tornou-se ainda mais denso. Os boatos mais estapafúrdios começaram a circular. Interpretações, racionais ou fantasiosas, foram levantadas e em seguida descartadas. Quanto mais o tempo passava, mais impossível tornava-se descobrir a verdade indiscutível. Em 5 de junho de 1968, durante as primárias democratas da Califórnia, seu irmão Robert Kennedy também foi abatido. Uma vez mais os Kennedy foram colocados no meio de uma tragédia, tanto mais traumatizante porque ocorreu no meio do sucesso, no momento em que menos se esperava.

John Kennedy lançou o combate à pobreza, apoiou o movimento dos direitos civis em favor da igualdade de negros e brancos, propôs novas medidas de amparo social. Colocou a América em movimento. Mas não concluiu sua obra. Por isso, o mito compreende um segundo elemento: se tivesse terminado seu primeiro mandato e obtido um segundo, Kennedy poderia ter mudado os Estados Unidos e o mundo. Ele soube conduzir a crise dos mísseis, em outubro de 1962, que o fez entrar em confronto com os soviéticos.

Após o grande espetáculo do enterro começou o tempo das investigações. Mas além das buscas policiais, os jornalistas e historiadores trataram de desenhar o verdadeiro retrato de John Kennedy e o balanço de sua presidência. O mito perdeu brilho.

Kennedy foi um homem de paz, mas nos quadros da Guerra Fria. Diz-se que ele rejeitou o diálogo com Moscou e transformou os Estados Unidos num terrível arsenal de destruição nuclear. Ele não conseguiu livrar Cuba de Fidel Castro, embora tenha tentado por todos os meios. Quanto ao Vietnã, não há como afirmar, com segurança, que ele teria evitado o envio de meio milhão de soldados. Sua vida privada foi passada a limpo. Bom filho, bom marido, bom pai, todas as versões foram examinadas.

Kennedy foi descrito sob uma ótica francamente menos favorável. Suas aventuras extraconjugais (ler o quadro "Escravo da libido"), a atmosfera deletéria que reinava na família, os laços estreitos com personagens duvidosas, até da Máfia, tão logo foram descobertos, comprometeram sua boa imagem. John Kennedy não era mais o James Dean da política. A juventude deixou de ter motivos para lhe dedicar um culto fervoroso. Ele deveria sucumbir ao plano dos ídolos desconstruídos. Os historiadores, entretanto, não conseguiram destruir o mito.

Ainda hoje Kennedy não se coloca no rol dos presidentes comuns, cujos nomes e épocas tempos depois caem nas brumas esquecidas do passado. Os norte-americanos continuam a admirá-lo. O juízo que fazem dele ajuda a esclarecer sua maneira de enxergar os anos 60. Naquele tempo, os Estados Unidos enfrentavam um adversário à sua altura: a União Soviética, a outra superpotência nuclear, que também tinha o poder de destruir o planeta em alguns segundos. Na época da Guerra Fria, os Estados Unidos não tinham se confrontado ainda com as rebeliões urbanas dos anos 60, as violências provocadas pela Guerra do Vietnã, o escândalo de Watergate, a complexidade quase insondável do Oriente Médio, os excessos e frustrações das reformas sociais. A prosperidade não parecia correr riscos. Em uma palavra, a América ainda acreditava no progresso. Sem temores nem inquietações de alma, ela afirmava sua moral e sua legitimidade. A memória nacional, pouco exigente com a verdade histórica, faz desse período uma época abençoada. Por meio do mito que o envolve, John Kennedy encarna a América dinâmica, forte e feliz.

-Tradução de Roberto Espinosa

Escravo da Libido
Por trás da imagem romântica ocultava-se um homem que diziam vulnerável a impulsos amorosos quase incontroláveis.
Durante cerca de 30 anos depois de seu assassinato, em novembro de 1963, John Fitzgerald Kennedy continuaria a encarnar a construída imagem do marido-modelo.

Havia o sorriso luminoso de Jackie, com quem se casara em 1953; havia John John imortalizado brincando no escritório do pai; havia ainda milhares de fotografias do tão simpático presidente. Um chefe de Estado muitas vezes captado pelas lentes com o peito nu, em simbiose perfeita com a reputação de "amante da nação americana" cultivada por numerosos biógrafos. Mas no início dos anos 1990, sob o fogo alimentado por revelações, o mito começou a vacilar. Pior, o vício logo substituiu a virtude: aos poucos passou-se a suspeitar da existência de um JFK "sex addict" (viciado em sexo), pronto para encontros furtivos, tendo como batedores os serviços secretos e sua assessoria.

Preparando-se para o debate televisivo com Richard Nixon - um momento decisivo da campanha presidencial de 1960 -, Kennedy indagou a seu assistente Langdon Marvin: "Já foram providenciadas as moças para amanhã?". O futuro presidente, uma hora e meia antes de entrar no estúdio, esteve num quarto de hotel acompanhado por uma garota de programa. Sua atuação contra Nixon foi memorável. JFK ordenou então "que nós lhe arranjássemos uma garota antes de cada debate", confidenciou Langdon Marvin. Diante dessas revelações, os guardiões do templo do clã Kennedy irritaram-se, atribuindo-as à inveja ou ao sensacionalismo. Mas, no que diz respeito ao lado íntimo, este outro Kennedy passou a prevalecer, trocando a imagem do delicado don-juan pela de um verdadeiro desregrado sexual. Nem mesmo a beleza de Marilyn Monroe eclipsou as estrelazinhas, as call-girls (ou simples prostitutas) e as damas da sociedade, para quem JFK se entregava de bom grado.

Kennedy, na maior parte do tempo, sequer tomava precauções para dissimular as exigências de sua libido. Os conselheiros da Casa Branca chegaram a habituar-se com as portas trancadas e a proibição formal de incomodá-lo durante dez minutos.

Mesmo durante suas viagens, ele obrigava os guarda-costas a inúmeros artifícios para disfarçar suas investidas. Em seu livro A face oculta do clã Kennedy, Seymour Hersch enfatiza que Kennedy "na vida privada dedicava-se quase diariamente a uma libertinagem desenfreada, a ponto de chocar os agentes do serviço secreto. O número de suas parceiras de cama, assim como sua indiferença em relação aos riscos, só cresceu ao longo do mandato". Ele nunca foi molestado, porque à época a pressão dos meios de comunicação era menor. Há quem diga que teve muita sorte, pois o presidente muitas vezes flertava com a inconsciência. Em 1963, foi fotografado em companhia de uma mulher íntima de um diplomata soviético de alto escalão. Ao contrário desta, suas aventuras com Judith Campbell ou ainda Alicia Darr passariam quase à posteridade.

A primeira, que foi também esposa do gângster Sam Giancana, de Chicago, contou como Kennedy e o mafioso se encontraram em 21 de abril de 1961, uma semana após o desastre da baía dos Porcos. Do menu de sua entrevista constaram planos para assassinar Fidel Castro, uma idéia já confiada pela CIA a malfeitores experientes. As lembranças de Judith Campbell trazem para a luz do dia os conluios do clã Kennedy com a Máfia. Tachada de mitômana pelos acólitos de JFK, Judith Campbell calaria seus detratores ao revelar os números dos telefones secretos para os quais ligava a fim de se encontrar com o presidente. Quanto a Alicia Darr, ela causou escândalo ao afirmar que o referido clã lhe teria oferecido 500 mil dólares para silenciar quanto ao fato de que JFK a teria abandonado depois de lhe ter prometido casamento.

Jackie, a esposa ultrajada do presidente, não desconhecia as torpezas do esposo. Aparentemente, ela desconhecia o primeiro casamento de Kennedy, em 1947, com Durie Malcom. Todos os documentos relativos à união haviam sumido.

Por Frédéric de Monicault, escritor
Tradução de Roberto Espinosa

André Kaspi é historiador.

Revista Historia Viva

França - A humilhação das colaboracionistas

Após a Libertação da França, em 1944, quase 20 mil mulheres acusadas de se relacionar com alemães durante a ocupação tiveram as cabeças raspadas em praça pública. E jamais seriam perdoadas por isso.
por Jean-Paul Picaper

Chartres (França), 18 de agosto de 1944

Em um dos célebres instantâneos do conhecido fotógrafo americano Robert Capa, reproduzido ao lado, uma mulher francesa é perseguida pela multidão por ter colaborado com os invasores alemães. Ela carrega um bebê nos braços.

O fotógrafo captou, naquele 18 de agosto de 1944, na cidade de Chartres, uma situação emblemática da época. Vemos que a infeliz anda no meio de uma multidão de mulheres, seguida por algumas moças e homens que a provocam. O espetáculo não é muito comum. A mulher caminha ao lado de um soldado. O uniforme confere à cena um aspecto de legalidade. Sem dúvida, está sendo levada para a prisão.

Testemunha dessa "caça às bruxas à francesa", um repórter questiona os curiosos. Eles não sabem se a mulher foi acusada de ter alguma ligação com um alemão ou de ter denunciado franceses que ouviam a Rádio Londres. Vae Victis (Ai dos vencidos!), essa é a palavra de ordem no verão de 44 numa França libertada. Era suficiente uma mulher ter tido contatos - não necessariamente íntimos - com os militares alemães para ser vítima das delações que proliferavam, para ser exposta ao desprezo público. Acusadas de colaboracionistas, milhares de mulheres foram obrigadas a desfilar pelas ruas, a maioria carecas, às vezes nuas, sob as vaias de uma multidão ensandecida.

Em meu livro Enfants maudits (Crianças malditas, inédito no Brasil), Henriette relata a luta de sua mãe, funcionária de uma cantina. Ela se apaixonara por um ajudante alemão, que desertou por amor a ela. Mas foram descobertos num esconderijo, denunciados pelo próprio irmão da francesa, "resistente de última hora". Contudo, durante a Ocupação (a França ficou sob domínio alemão de junho de 1940 a agosto de 1944), o trabalho da irmã lhe havia sido bastante conveniente. "Entre os invasores sempre havia o que comer e tabaco. Ele, que fumava como uma chaminé, aproveitou bem. E não foi minha mãe quem tomou a iniciativa de ir trabalhar na cantina dos alemães. Eles tinham necessidade de pessoal e haviam encarregado a Câmara Municipal de encontrar trabalhadores", contou Henriette. O alemão tinha 30 anos, e a mãe de Henriette, 16. Ele tocava piano e violão. Ela escutava escondida. Ele era gentil. Os soldados chegaram a tempo de evitar que fossem linchados pela multidão.

"Minha mãe", continuou Henriette, "não foi conduzida imediatamente para a prisão. Eles foram levados pelos americanos para uma casa da aldeia que ficava diante da igreja e que na época era um hotel. Para ser mais precisa, acho que eram canadenses, pois foram eles que libertaram esse pedaço de terra. Finalmente, graças a eles, foi possível a ela não ter a cabeça raspada como outras mulheres da vila que haviam se ligado de alguma forma com os alemães. Essas pobres mulheres foram conduzidas ao tribunal da Câmara Municipal, onde suas cabeças foram raspadas antes de elas serem lançadas às ruas completamente nuas sob as vaias da multidão. Disseram-lhe até que na prisão, quando algumas dessas mulheres ficavam menstruadas, o sangue corria entre suas pernas. Minha mãe sempre disse que devia muito \\'aos americanos\\' que haviam evitado que passasse por essa humilhação."

Os soldados aliados - e por vezes a prisão - evitaram que muitas mulheres tivessem a cabeça raspada e fossem exibidas em praça pública. No entanto, havia também quem raspasse as cabeças nas prisões, comissariados e prefeituras. O desejo de vingança estava entranhado no povo francês. O historiador Fabrice Virgili (autor de La France virile - Des femmes tondues à la Libération, Payot, 2000, não traduzido no Brasil) produziu um estudo bastante consistente a respeito desse capítulo da história francesa.

Um grande número de mulheres foram sumariamente executadas nas horas que se seguiram à Libertação, cometeram suicídio quando iriam ser presas ou na prisão. Elas tinham os rostos pintados com cruzes, algumas eram marcadas com ferro quente. Os interrogatórios eram um pesadelo. "Eu não me lembro mais de nada", disse a mãe de Henriette. "Minha cabeça caía de um lado para outro de tanto ser golpeada. Faziam sempre as mesmas perguntas. Queriam saber como ele, o alemão, se comportava na cama. Eu não respondia. E recebia uma nova bofetada.

Minha cabeça caía para a esquerda. Eles me perguntavam quantos centímetros media seu sexo. Eu não respondia de novo. Então continuavam a me bater. E a minha cabeça caía para a direita. Não dá para contar tudo que esses homens queriam saber, meus compatriotas."

As mais afortunadas escaparam às perseguições escondendo-se longe de seu bairro, de sua cidade, ou protegidas pelo silêncio dos vizinhos. Outras ocultavam seus amores culpados, visto que a Wehrmacht [forças armadas da Alemanha nazista] proibia, por questões de segurança e de "higiene", a sexualidade "livre" de seus homens, aos quais se aplicavam também os regulamentos eugênicos editados pelos nazistas que proibiam o casamento de soldados alemães com mulheres francesas, declaradas coletivamente "não-arianas".

Fabrice Virgili relatou que com a chegada das tropas aliadas em uma pequena localidade da região da França [Chantilly, ao norte de Paris], em 30 de agosto de 1944, os resistentes se dividiram em dois grupos. Um saiu à caça dos boches [designação pejorativa com que os franceses se referiam aos alemães], e o outro, dos amigos franceses dos boches. Esses "caçadores de escalpos", incontestavelmente, viveram nesse dia uma aventura excitante. O miliciano [que combatera a resistência francesa a mando do governo de Vichy] com o rosto inchado pelos golpes e o soldado alemão desarmado de camisola curta desabotoada, baleados à queima-roupa para pagar pelos crimes dos SS e da Gestapo, são exemplos do quadro da caça.

As mulheres que se ligaram aos invasores, às vezes oficiais, foram o primeiro alvo. Essas exações se multiplicaram no vazio administrativo resultante da queda do governo de Vichy e da partida dos nazistas, enquanto as tropas aliadas, que encontraram uma resistência alemã inesperada, não ocupavam o terreno. Entregue a bandos armados, a França foi, durante algum tempo, tomada pela anarquia.

Os "colaboracionistas" seriam submetidos em seguida aos tribunais de exceção da época, as câmaras cívicas. Um total de 18.572 mulheres seriam lançadas em caráter irrevogável à "indignação nacional", que iria privá-las de todos os seus direitos e em seguida colocá-las na prisão. Isso representava 26% das condenações (de um total de 71.507). Essa prescrição, revogada sete anos depois, constituía um simulacro de justiça, pois era retroativa, o que contradiz os princípios do direito. Os juristas da Resistência a conceberam para criar uma sanção equivalente a uma morte política e evitar assim o banho de sangue que ameaçava o país. Os amores culpados não figuravam na prescrição, mas esse "delito" podia dessa forma ser reprimido "por extensão". E os juízes e jurados geralmente cediam à pressão da opinião pública.

Houve um pico de perseguições nas semanas que se seguiram à Libertação, diante de multidões "que vinham de todas as partes". Em suma, tratou-se de uma reedição da caça às bruxas e da guilhotina revolucionária, seguida de um movimento repentino de desaprovação à raspagem das cabeças. Mas elas não deixaram de existir e conheceram um recrudescimento no início de 1945 até que os poderes públicos se posicionaram. Embora tivesse a intenção de desaprovar essas punições improvisadas, o Comitê Francês de Libertação Nacional e depois o Governo Provisório da República Francesa fecharam momentaneamente os olhos, para dar vazão à ira popular. A "depuração" seria o grande ato purificador da França. A palavra origina-se dos "ritos depuradores" instituídos sob a Revolução Francesa e que lembravam o Terror de 1793, mas também os totalitarismos stalinista e hitlerista [em que a pena capital era implementada arbitrariamente].

Quem eram essas mulheres que acabaram sendo punidas? Francesas empregadas pela Wehrmacht, essencialmente nos serviços de saúde, na manutenção dos alojamentos e das cozinhas, remuneradas, bem tratadas e em contato permanente com o invasor. Como ressaltou Fabrice Virgili, foi na área da saúde e dos serviços que houve o maior número de mulheres com as cabeças raspadas. Aí, a porcentagem das que foram rejeitadas mostrou-se muito elevada em relação aos efetivos femininos: 12% das mulheres francesas estavam ocupadas nesses serviços; elas totalizaram mais de 30% das mulheres com cabeças raspadas. Nos setores administrativos e nos meios intelectuais, essa proporção foi respectivamente de 19% e de 15% dos efetivos.

O arquétipo que acionou as máquinas de raspar as cabeças remonta a idades remotas, a prejulgamentos arcaicos e a suplícios igualmente antigos. O cortar de cabelos que tirou a força de Sansão retira da mulher um atrativo essencial do eterno feminino, fonte de poder sobre o outro sexo e objeto de reverência da cultura ocidental, como provam séculos de pintura e como o confirmam hoje a incompatibilidade dos costumes europeus com o uso de véu islâmico. Raspar a cabeça significou excluir da comunidade nacional, expulsar da sociedade civil, "desfeminilizar".

Entre as falhas e erros cometidos pela França, como o destino indigno reservado às mulheres acusadas de cumplicidade amorosa com os invasores e, mais tarde, a seus filhos, não é um capítulo de um passado do qual os franceses possam se orgulhar. Os filhos das mulheres que tiveram as cabeças raspadas ainda esperam pelo pedido de desculpas.

Saiba Mais
Governo de Vichy. Governo francês de influência nazista formado após a tomada da França pela Alemanha, entre 1940 e 1944. Oposta à resistência francesa e sediada na cidade de Vichy, a sudeste de Paris.

Libertação. Conjunto de ações que levaram à libertação da França do domínio alemão, entre os quais se destaca a invasão da Normandia pelas tropas aliadas e o levante das forças de resistência francesa que o precedeu.

Jean-Paul Picaper é jornalista e co-autor de Enfants maudits: Ils sont 200 000, On les appelait les "enfants de Boches" (Editions des Syrtes, 2004).

Revista Historia Viva

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Febre Tifóide: Guerra bacteriológica no Peloponeso


Descoberta a doença que matou 30 mil atenienses na guerra da Antiguidade
por Bruno Tripode Bartaquini
Atenas, 430 a.C. Enquanto o exército espartano sitia a cidade, milhares de camponeses se amontoam dentro de suas muralhas. Subitamente, uma peste se instala entre a população. Ela causa febre, inflamação nos olhos e na garganta (que provoca um bafo fétido), refluxos de bile, calores terríveis, insônia e convulsões violentas. Se sobreviver, o pobre coitado ainda tem de suportar uma diarréia aguda e conviver para sempre com marcas no corpo. Em poucas semanas, milhares de vidas são ceifadas e, estranhamente, nem os cães nem os urubus se alimentam dos corpos insepultos. Que doença seria capaz de tamanha desgraça em plena Guerra do Peloponeso, na Grécia?

A resposta veio agora, 24 séculos depois. Pesquisadores da Universidade de Atenas acabam de descobrir que foi a febre tifóide a responsável pela tragédia que resultou em 30 mil mortes – número duas vezes maior que o de atenienses mortos em batalha. Partindo de relatos do historiador Tucídides (460 - 400 a.C.), Manolis Papagrigorakis e sua equipe examinaram o DNA de bulbos dentários de esqueletos encontrados na cova de Karameikos, datando de 430 a.C. E descobriram que a vilã foi a bactéria Salmonella typhi.

A peste matou cerca de um quarto da população total da cidade e fomentou um estado de caos nunca antes visto. Ela afetou tanto os costumes dos atenienses que eles, contrariando o hábito religioso de cremarem os corpos, se viram obrigados a enterrar seus mortos em covas coletivas como a de Karameikos. “O funeral foi conduzido em um estado de pânico em uma cova com poucas oferendas, o que parece razoável se você considerar que milhares de corpos jaziam pelas ruas”, diz Papagrigorakis.

Mesmo não tendo sido o fator decisivo na guerra (que foi, principalmente, uma desastrosa derrota na Sicília, seguida pela perda da frota em Aegospotami), a epidemia foi o primeiro grande revés de Atenas na guerra. Produziu um imenso choque moral para seus supersticiosos habitantes e os privou da liderança insuperável do governante Péricles, vitimado pela doença.



Tanta briga por nada
Esparta e Atenasse engalfinharam pelasupremacia grega
A Guerra do Peloponeso, península no sul da Grécia, foi travada entre 431 e 404 a.C. No fim, Esparta ganhou, mas a luta fez mal para as duas cidades, que acabaram perdendo seu poderio para uma nova potência, a Macedônia.

1. E começa a guerra

A disputa por Epidamnos, em 432 a.C., foi o estopim para a guerra. Atenas, apoiando seus aliados da ilha de Córcira, derrota a frota de Corinto, aliado de Esparta. Os espartanos consideram que o tratado de paz entre as cidades-estados fora rompido.

2. Menos é mais

Uma das vitórias navais mais espetaculares de Atenas foi em 429 a.C. Com 20 trirremes, embarcação com remos colocados em três níveis, os atenienses derrotam uma frota de 77 barcos coríntios e espartanos.

3. Soldados reféns

Seis anos após o início da guerra, os atenienses obtêm uma vitória importante: capturam 400 hoplitas espartanos – soldados de infantaria armados com lança e couraça. Os reféns servem como moeda de troca e para desmoralizar o adversário.

4. Chacina

Em 413 a.C., Atenas resolve tomar a maior cidade da Sicília e envia sua maior força até então: 134 trirremes e 4 000 hoplitas. Mas a cidade-estado é derrotada pelas forças combinadas de Siracusa e Esparta. Cerca de 40 mil homens são mortos.

5. Xeque-mate a atenas

Na batalha de Aegospotami, segundo o historiador grego Xenofonte (427-355 a.C.), navios peloponésios capturaram os trirremes atenienses enquanto os marinheiros de Atenas, espalhados e desorganizados, procuravam comida.

6. Fome no fim da guerra

Após a perda de 168 trirremes na batalha de Aegospotami, Atenas se vê sem sua última força naval e sem seu suprimento de grãos. A cidade-estado, tomada pela fome, capitula em 404 a.C., perdendo todas as suas possessões ultramarinas.

Revista Aventuras na Historia

Simplesmente Betinho


Simplesmente Betinho
O mineiro Herbert de Souza fez da vida uma luta permanente contra a doença, o autoritarismo e as injustiças sociais e se transformou num símbolo nacional de solidariedade e cidadania
Carla Rodrigues

Herbert José de Souza, simplesmente Betinho, encarnou, nos seus quase 62 anos de vida, no corpo franzino e no olhar expressivo, a expectativa de um projeto de Brasil democrático, humanista, solidário. Nasceu em 1935, quarto filho da família Figueiredo Souza, formada a partir do casamento de Henrique Souza e Maria da Conceição Figueiredo. Foi o segundo filho homem e o primeiro que vingaria. Antes dele o casal já tinha duas filhas nas quais o fantasma da doença da hemofilia não poderia ter se manifestado. Os Souza ainda estavam assustados com a perda de um menino que, antes de completar dois anos, morrera num acidente doméstico, porque não se conseguiu estancar o sangramento dos cortes provocados por um jarro quebrado. Até ali, ninguém em Bocaiúva – norte do estado de Minas Gerais, sertão mineiro onde, reza a lenda, viveram os personagens de Guimarães Rosa – tinha ouvido falar em hemofilia.

Dali até a adolescência teria sido uma vida quase normal, não fossem as restrições físicas para as brincadeiras infantis e algumas peculiaridades no trabalho do pai. A família trocou Bocaiúva por Ribeirão das Neves, onde seu Henrique foi chefiar o almoxarifado de uma prisão agrícola. Ali, no quintal da penitenciária, o menino conheceu a vida rural que sustentava as abastadas famílias mineiras. Dona Maria queria morar em Belo Horizonte, capital recém-construída por JK, pólo de atração para uma vida urbana num estado que era, até então, principalmente agrícola. Na cidade estaria, além de melhores oportunidades de trabalho, tratamento para a frágil saúde dos filhos. A essa altura já eram dois meninos hemofílicos: Betinho e Henrique, que mais tarde ficaria conhecido como o famoso cartunista Henfil. Aos dois ainda se juntaria Chico Mário.

Em Belo Horizonte, a família se instalou no que hoje é chamado “quarteirão médico”: de um lado, a Santa Casa de Misericórdia; de outro, a funerária que seria chefiada por seu Henrique. E Betinho, o menino que nasceu sob o espectro da morte iminente, divertia-se brincando entre os caixões, correndo nos intervalos entre um enterro e outro. A morte que rondava a família Souza bateu mais forte à porta quando os médicos diagnosticaram tuberculose em Betinho. O ano era 1950 e ainda não havia cura para a doença, tratada com isolamento e repouso.


Foi isolado num quartinho nos fundos da casa, embora o hospital ficasse a apenas um quarteirão, que Betinho viveu três longos anos de juventude: dos 15 aos 18 anos. Tocou violão, fez esculturas, leu tudo o que lhe caiu nas mãos e foi apaixonado por uma enfermeira, a Dinha, que o visitava diariamente. Lá fora, a vida fervilhava. A irmã mais velha, Zilah, já estava engajada na Ação Católica, que pretendia expandir a presença da Igreja Católica na sociedade. Ser solidário, unir religião, assistência social e militância fazia todo sentido no cotidiano de uma família que já era, na origem, fervorosamente católica (como são as famílias mineiras até hoje).

Quando a cura chegou, meio por acaso – Betinho leu numa revista sobre a descoberta do remédio hidrazida, primeiro tratamento eficaz contra tuberculose –, o doente ansiava por recuperar não apenas a vida, mas o tempo perdido. A experiência da perspectiva da morte, mais concreta com a tuberculose do que com a hemofilia, acentuou um traço de urgência em relação à vida que marcou toda a trajetória do personagem. Foi essa urgência que levou Betinho para a JEC (Juventude Estudantil Católica) e para a JUC (Juventude Universitária Católica), organizações formadas em 1950 pela Ação Católica Brasileira com o objetivo de difundir a doutrina da Igreja no meio escolar e universitário. Em 1960, Betinho ajudou a fundar a Ação Popular, braço laico e marxista da Ação Católica. Composta basicamente por membros da JUC e da JEC, seu objetivo era formar voluntários que pudessem participar de uma transformação radical da sociedade brasileira em sua passagem para o socialismo.

Esse mergulho de cabeça na política levou Betinho a deixar Belo Horizonte, apoiar a Marcha da Legalidade, em 1961, para garantir a posse de João Goulart (o vice de Jânio Quadros), resistir ao golpe militar que derrubou Jango, em 1964, e trocar o Brasil pelo Uruguai em busca de exílio. Betinho viveu um ano no Uruguai em meio às articulações políticas que pretendiam restabelecer a democracia brasileira. Como esse percurso de volta à normalidade seria muito mais longo, e com a primeira mulher, Irles, grávida de seu primeiro filho, Daniel, Betinho voltou ao Brasil na clandestinidade. Assim, o irmão do Henfil, imortalizado na voz de Elis Regina como símbolo da anistia, viveu quase tanto tempo clandestino no país quanto no exílio: foram quase seis anos de clandestinidade e oito de vida no exterior.


Seguindo as orientações da Ação Popular, integrou-se ao trabalho operário, atuando numa fábrica de porcelanas em Mauá, no ABC paulista. Para passar na seleção, foi obrigado a recorrer ao apoio de amigos, todos do Partidão (Partido Comunista Brasileiro), descendentes dos imigrantes italianos que trouxeram o comunismo na bagagem quando desembarcaram no Brasil no começo do século XX. Em São Paulo, numa vida precária para quem carregava uma doença que exigia tratamento constante, entre 1969 e 1970 Betinho quase morreu numa cirurgia que lhe tirou metade do estômago para curar uma úlcera. Depois, fugiu para o Chile quando, na virada entre os anos 1970 e 1971, a Operação Bandeirantes, um dos principais instrumentos de repressão do governo militar, endureceu o jogo em São Paulo. Betinho, sabia-se, não resistiria a um tapa. Proteger-lhe a vida foi, para muitos jovens militantes da Ação Popular, gesto máximo de coragem naqueles tempos difíceis.

De São Paulo para o Chile, o caminho foi longo, mas a hospitalidade chilena valia o risco. A cidade de Santiago tornara-se a base da Ação Popular, que se desmantelava no Brasil. Ali, o movimento estava ancorado sobretudo na atuação do atual prefeito de São Paulo, José Serra, que era não apenas militante de AP, mas vivia legalmente no país desde 1964. Betinho chegou sem passaporte, sem um tostão, sem perspectivas e, àquela altura, as coisas na Ação Popular não estavam lá muito tranqüilas. A adesão de alguns membros ao maoísmo – uma das correntes de pensamento das esquerdas, inspirada em Mao Tsé-Tung, líder da Revolução Chinesa de 1949, e que tinha como lema “comer junto, trabalhar junto, lutar junto” – havia provocado divisões no interior da organização, que enfrentava mais uma das suas inúmeras crises desde a fundação, mais de dez anos antes. Betinho, mentor do primeiro documento-base da Ação, escrito a quatro mãos com Padre Henrique Vaz (teólogo e teórico que deu consistência filosófica aos ideais marxistas-cristãos dos estudantes), estava longe do poder dentro da organização. Estava, sobretudo, traumatizado com o centralismo democrático que o obrigara a ser operário e abrir mão das duas coisas que lhe eram mais caras: liberdade e autonomia.

O período chileno foi curto e intenso. Um casamento desfeito, um casamento novo, agora com a nipo-brasileira Maria Nakano. Com a derrubada do presidente Salvador Allende pelo exército chileno liderado pelo general Augusto Pinochet em setembro de 1973, os dois se abrigaram na Embaixada do Panamá, um apartamento de sala e três quartos no qual viveram mais de trezentas pessoas, todas aguardando condições seguras para deixar o país. Panamá, primeiro destino, Canadá, segundo, este de maior fôlego, onde Betinho e Maria viveram cerca de quatro anos e experimentaram algum tipo de estabilidade. Lá, Betinho trabalhou numa dissertação de mestrado que nunca chegou a concluir, articulando política e estudos sobre a situação econômica da América Latina. Estava aí o embrião do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), organização não-governamental que ele e os companheiros de exílio Carlos Afonso e Marcos Arruda fundariam no Brasil em 1981, na esperada “volta do irmão do Henfil”.


A figura magricela simbolizou, como ninguém, a campanha pela anistia. Antes de voltar ao Brasil, Betinho e Maria ainda viveram no México, onde o sociólogo deixou para trás uma perspectiva de concluir o mestrado e cursar o doutorado. O Brasil falava mais alto. O ex-aluno da Face (Faculdade de Administração e Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais) não fazia mesmo o estilo acadêmico. Tinha ansiedade demais pela ação para viver debruçado sobre os livros. Formado num grupo de alunos brilhantes, que reuniu nomes como Bolivar Lamounier, Fabio Wanderley Reis, Simon Schwartzmann, Paulo Haddad e Vinicius Caldeira Brandt, Betinho certamente não era o melhor da sua turma. Nem por isso menos brilhante. A atração pela política, a necessidade de dar um sentido público e transcendente à vida, a personalidade forte e o estilo carismático o levaram por caminhos pouco ortodoxos aos olhos dos que prezavam o rigor da academia.

Na volta ao Brasil, os laços com Minas Gerais já eram tênues demais. Maria e Betinho decidiram instalar-se no Rio de Janeiro, mais precisamente em Botafogo, bairro onde também funcionava o Ibase. Rua Vicente de Souza, 29. Uma casa colonial, branca de janelas azuis, pé-direito alto, alugada de uma organização católica. Curioso, foi exatamente da Igreja que vieram os impulsos iniciais para a formação do Ibase. Os objetivos eram apoiar os movimentos sociais em suas demandas, gerar informações, democratizar a comunicação. Dessas metas um tanto vagas brotaram iniciativas concretas sobre reforma agrária, meninos de rua, combate ao racismo, democratização da informação e até a criação do primeiro provedor de acesso à Internet, o Alternex, um avanço tecnológico praticamente incompreensível no universo das ONGs no comecinho da década de 1990 – quando seu amigo Carlos Afonso fazia as primeiras experiências que resultariam no projeto de conectividade para a ECO-92, a conferência que reuniu grandes chefes de estado no Rio de Janeiro em torno do tema do meio ambiente e desenvolvimento.

Em 1987, a hemofilia enfim tinha dado uma trégua, os primeiros anos de Brasil e de Ibase tinham sido difíceis, mas a vida parecia estar tomando seu rumo. Betinho e Maria agora tinham Henrique. O adolescente Daniel, filho de Irles, sua primeira mulher, depois de anos de exílio longe do pai, já fazia parte da família. Foi quando, primeiro em Henfil, depois no caçula Chico Mário, foi diagnosticada a Aids. Em pouco mais de um ano, em 1988, a doença matou os dois irmãos de Betinho, que tinham, como ele, resistido à hemofilia com transfusões de sangue que, descobriu-se então, estava contaminado pelo HIV.


Com sua extraordinária capacidade de transformar tudo à volta em causas públicas, Betinho assumiu a doença, fundou a Abia (Associação Inter-disciplinar de Aids), mudou a lei de doação e transfusão de sangue no Brasil, lutou pela distribuição de remédios gratuitos para os pacientes soropositivos e ainda influiria, anos depois, na política de medicamentos e patentes do governo brasileiro. E mais: começou a, novamente, se preparar para a morte. Escapara da hemofilia na infância, da tuberculose na adolescência, da ditadura na vida adulta, mas agora o tempo marchava inexoravelmente contra ele.

O vírus que lhe consumia a saúde parecia oferecer efeito inverso na disposição: a urgência aumentou e foi com pressa, com muita pressa, que Betinho viveu seus últimos dez anos. Primeiro, houve a militância pelo impeachment do presidente Collor, no Movimento pela Ética na Política. Depois, a criação da Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, que em 1993 fez com que o país inteiro se mobilizasse para a doação de alimentos, e ainda a fundação do Viva Rio, movimento até hoje engajado no combate à violência e voltado para a justiça social.

A Ação da Cidadania levou Betinho de volta ao início – o sociólogo que discutira as grandes reformas estruturais deu lugar ao homem que pregava solidariedade, como nos tempos de juventude e militância católica em Belo Horizonte. Com a popularidade da campanha contra a fome, virou celebridade nacional. Era parado na rua, santificado pela dedicação aos pobres, sacrifício máximo de quem lutava com a morte todos os dias. Nada disso alterou sua rotina de mineiro simples, que gostava de pescar no Aterro do Flamengo aos sábados, quando estava no Rio, e de “contar mentira” em torno da fogueira, quando passava os finais de semana no refúgio de Itatiaia, construído quase a contragosto. Como vivia com pressa, achava que a casa não ficaria pronta a tempo e que a morte chegaria primeiro. Hoje suas cinzas estão espalhadas no jardim. E seu legado político, imortalizado na história do país.

Carla Rodrigues é jornalista, articulista da revista www.nominimo.com.br e professora do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio. Foi assessora de Betinho a partir de 1993, na criação da Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, até 1996.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Mensagens do abandono


Mensagens do abandono
Bilhetinhos presos às roupas de bebês do século XVIII ajudam a esclarecer um antigo drama da infância brasileira: o das mães que abandonam os próprios filhos
Renato Pinto Venâncio

Em termos mundiais, o tema da infância conquistou adeptos entre historiadores profissionais desde a década de 1960. Um pioneiro nessa pesquisa foi Philippe Ariès, que traçou um quadro fascinante a respeito da condição da criança no Antigo Regime, sugerindo que o sentimento e valores de nossa época não se aplicam ao passado. No Brasil, investigações semelhantes a essa começaram a ser registradas nos anos 1980, embora haja casos isolados, como o de Gilberto Freyre, que no clássico Casa-grande & senzala (1936) traça um interessante painel da meninice senhorial e escrava, recorrendo a fontes documentais inéditas.

Um dos feitos dessa história social da infância foi o de descobrir que o abandono de crianças, sobretudo de recém-nascidos, tem raízes antigas. Na Europa, tal prática foi abundantemente registrada na literatura clássica. No final da Idade Média, principalmente após a Peste Negra (1348), o problema se agravou. O número de bebês pobres e órfãos se multiplicou, exigindo uma intervenção das instituições dos burgos e cidades medievais. Em Portugal, antes mesmo da colonização do Brasil, câmaras municipais e hospitais, como as Santas Casas da Misericórdia, começaram a criar formas de auxílio destinadas às crianças abandonadas. Por volta de 1550, os jesuítas dão início, no Novo Mundo, a uma ação pioneira junto às crianças indígenas, criando Colégios de Órfãos para receber curumins sem família.

Nos séculos seguintes, o problema se generaliza entre a população livre das vilas e cidades coloniais. Várias câmaras coloniais, conforme ocorreu nas capitanias da Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais, começam a pagar famílias para acolher os denominados enjeitados ou expostos. Os hospitais, por sua vez, como se registra na Santa Casa de Salvador (1726) e na do Rio de Janeiro (1738), importam as portuguesas rodas dos expostos – tonéis de madeira giratórios, presos no meio da parede, unindo a rua ao interior do imóvel e preparados para acolher recém-nascidos abandonados.


Como é possível perceber, tratava-se de serviços assistenciais complexos e que podiam se estender até os meninos e meninas completarem sete anos de idade, quando então deviam ser empregados em serviços remunerados ou em troca de alimento e moradia. O abandono dizia respeito, fundamentalmente, às crianças brancas e pardas, de ambos os sexos. Além dos órfãos pobres, havia aqueles nascidos fora do casamento – em decorrência de relações fortuitas ou incestuosas, assim como de adultérios –, que eram deixados nas calçadas, entregues a vizinhos, ou ainda enviados a hospitais. As mães escravas raramente abandonavam os filhos, pois estes eram propriedades dos senhores, que encaravam no gesto uma forma de fuga e a perda de uma valiosa propriedade.

Um aspecto central dos estudos sobre a história da infância diz respeito ao “amor materno”. As mulheres que abandonavam os filhos manifestariam desamor em relação a eles, ou o gesto decorria de uma imposição de natureza econômica ou moral? A questão é delicada, pois na sociedade colonial quase todas as mulheres – na maior parte africanas ou destas descendentes – eram analfabetas, não deixando por isso mesmo relatos a respeito de seus sentimentos; ademais, é bastante provável que muitos bebês fossem órfãos, sendo enjeitados justamente por não terem mães que deles cuidassem.

Os raros indícios de que dispomos dizem respeito aos bilhetes presos às roupas das crianças abandonadas. Trata-se de uma fonte documental bastante interessante, mas que deve ser analisada com olhos críticos. É muito provável que os bilhetes fossem escritos por homens, principalmente padres, sensibilizados com a situação da criança desamparada.


Esse monopólio eclesiástico da escrita – infelizmente para os historiadores – apaga as marcas do multiculturalismo inerente à sociedade colonial, formada por europeus, africanos e indígenas. Além disso, esses bilhetes talvez não fossem, por assim dizer, “sinceros”, e pretendessem apenas neutralizar as péssimas expectativas dos vereadores ou dos administradores de hospitais coloniais, que viam no abandono uma mostra de irresponsabilidade e de falta de amor materno. Uma idéia expressa na escrita de um provedor da Santa Casa carioca, no início do século XIX, que falava a respeito da roda dos expostos: dando jazigo aos meninos, favorecem os desvarios das mães, e concorrem para apagar de seus corações o amor filial -- origem de todos os cuidados -- de que necessita a infância.

Mesmo que as mensagens do abandono não tenham sido escritas pelas mães, ou tenham sido influenciadas pelas expectativas institucionais, é impossível que não refletissem minimamente os sentimentos maternos. De outra forma, por que as mulheres se dariam ao trabalho de procurar homens alfabetizados para escrever o texto que acompanharia seus filhos?

Trata-se, portanto, de testemunhos indiretos, mas reveladores de um aspecto crucial da história da infância, conforme veremos nos textos transcritos desses bilhetes, colhidos nos Arquivos das Santas Casas da Misericórdia de Salvador e do Rio de Janeiro. Essas instituições, entre 1726 e 1938, acolheram milhares de crianças na roda dos expostos, embora um número ínfimo delas tenham sido acompanhadas por bilhetes.

Em quase todos os escritos clamava-se pelo bom tratamento dos filhos. Muitos se inquietavam diante do futuro espiritual dos pequeninos. Era comum a solicitação de que o batismo fosse administrado ou confirmado, por ter sido aplicado de maneira incompleta. Eis, por exemplo, o que afirma um bilhete de 9 de janeiro de 1759: “(...) esta menina chama-se Rita, está batizada em casa por sacerdote e se lhe faltam os Santos Óleos (...)”.


A garantia do precoce batizado não era apenas um gesto religioso, como também de amor. De acordo com a mentalidade da época, as crianças que faleciam logo após a cerimônia iam direto para o céu e se tornavam anjinhos. Em seus sermões e confissões, os padres não se cansavam de repetir esse princípio. Alexandre de Gusmão, pregador jesuíta e autor da Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia (1685), afirma em relação a um casal muito pobre, que batizou os filhos e resistiu a abandoná-los: “Cousa maravilhosa! Foram-lhes morrendo pouco a pouco todos os filhos, que Deus levou para si quase todos na idade da inocência (...) e eles ficaram muito agradecidos a Deus por tão assinalada Mercê”.

A preocupação dos familiares de enjeitados também se expressava através da indicação do nome da criança. No Brasil dos séculos XVIII e XIX, a transmissão dos “sobrenomes” não era regulamentada. Os pais, manifestando preocupação em relação ao futuro espiritual dos seus descendentes, utilizavam a liberdade para atribuir sobrenomes religiosos aos filhos. Eis o que dizem dois escritos, datados de 29 de maio de 1782 e de 13 de outubro de 1783: “(...) vai esse menino que já é batizado, chama-se Antônio José de Deus; (...) trouxe um bilhete que dizia já estar batizado, chama-se Antônio de Santa Bárbara”.

O nome também podia ser um meio de facilitar a futura localização da criança. Para tanto, bastava escolher uma onomástica que fugisse à monótona cadência de marias, josés e joões, comum à tradição popular colonial: “(...) trouxe bilhete em que dizia estar batizado com o nome de Praxedes”; “(...) trouxe carta em que declara se achar batizada em perigo de vida com o nome de Leopoldina”; “(...) trouxe bilhete em que declara se achar batizado com o nome de Sérvulo (...)”. Muitos escritos guardam ainda as angústias e sofrimentos dos corações daqueles que eram obrigados a recorrer à roda dos expostos: “(...) remeto este menino branco chamado Antônio José Coelho, para tratá-lo e tê-lo com o maior cuidado que puder”; “(...) morreu sua mãe e por pobreza e falta de leite se enjeita esta batizada chamada Joaquina, e por cita esmola ficamos pedindo a Deus pela saúde e vida decente”.


A preocupação com o futuro das crianças também se refletia na menção à origem racial das mesmas. Em alguns casos, chegava-se mesmo ao extremo, indicando-se a ascendência não-judaica (não-cristã-nova) do enjeitado: “por esmola e caridade me recebam este menino (...) porque é branco, legítimo e cristão-velho”. O temor em relação à escravidão, por sua vez, levava mães a explicitarem a condição de ex-escravo, ou seja, “forro”, do recém-nascido: “(...) trouxe bilhete do teor seguinte (...) Theodora Maria da Glória, filha natural já batizada com quatro meses, forra. Deus a tenha para seu Santo Serviço”; “(...) o mande batizar que é forro que Deus lhe dará o pago”; “(...) trouxe bilhete de teor seguinte (...) Esta crioula de nome Bernarda já está batizada na Freguesia da Penha, é forra”.

Os melhores exemplos do abandono como forma de amor talvez sejam os de escravas que enjeitavam os próprios filhos na esperança de que eles fossem considerados livres. Conforme mencionamos, tais casos foram raramente documentados, mas existiram: “(...) se entregou esta criança ao Senhor Mestre de Campo Antônio Estanislau, por se averiguar ser verdadeiramente seu Senhor e ficar esta Santa Casa livre de pagar sua criação, por fugir a Mãe da Casa do dito Senhor e parir fora, pela confissão que a dita fez”; “(...) mandou-se entregar a Júlia Telles da Silva Lobo, um seu escravo menor de nome Thomé que fora lançado à roda dos expostos”.

O abandono não era encarado como uma manifestação de falta de responsabilidade. Alguns escritos chegavam ao paradoxo de apresentar o gesto como uma forma de amor, em nada prejudicial à vida da criança. É o que lemos em um bilhete datado de 19 de agosto de 1760 : “(...) rogo a Vossa Mercê queira ter a bondade de mandar criar este menino com todo o cuidado e amor (...)”; “é este menino filho de Pais Nobres e Vossa Mercê fará a honra de lhe criar em casa que não seja muito pobre e que tem escravas que costumam criar essas crianças (...)”.


Eventualmente, tais bilhetes atribuíam o abandono à impossibilidade moral de pais e mães solteiras, adúlteras ou religiosas, manterem o filho. A confissão dos “amores ilegítimos” era, no entanto, feita de maneira velada, conforme se registrou na mesma data acima mencionada: “(...) acompanha a esta a um menino para Vossa Mercê (...) a quem por mercê e honra de Deus pertence tomar conta dessas crianças quando nascem de pessoas recolhidas e que são família que tem Pai e por causa deste impedimento se não podem criar”. Reconhecia-se discretamente o nascimento ilegítimo, antevendo-se como tal situação era constrangedora: “(...) trouxe uma carta pedindo que por seus pais serem impedidos, e estarem para casar, se crie a dita menina com todo zelo, que breve a mandarão buscar, e que igualmente lhe pusessem o nome de Antônia”.

Os impedimentos morais, a condenação à mãe solteira certamente contribuíam para a multiplicação de abandonados, contudo, esse estava longe de ser o único motivo para se justificar o recurso à roda nos expostos. Nos três exemplos a seguir, registrados entre 1758 e 1830, enjeitados considerados brancos foram acompanhados de escritos alegando pobreza e indigência como causa do abandono: “(...) vai esta menina já batizada e chama Ana e pelo Amor de Deus se pede a Vossa Mercê a queira mandar criar atendendo a pobreza de seus pais”; “(...) vai este menino para essa Santa Casa pela indigência e necessidade de seus Pais”; “(...) as duas meninas portadoras desta carta foram deixadas por necessidade de sua mãe em casa de uma pobre, que vive de esmolas dos fiéis, e por isso que elas vêm agora procurar asilo desta Casa da Santa Misericórdia”.

Por ocasião do parto de gêmeos, a simples menção ao duplo nascimento era apresentada como justificativa do abandono: “(...) trouxe bilhete (...) declara ser gêmeo e pede-se chame Manoel”. Além de acolher bebês pobres e bastardos, a roda dos expostos também recebia numerosos órfãos: “(...) remeto esta menina para a Santa Casa da Misericórdia para se criar, é forra e não tem pai nem mãe, nem pessoa que se doa dela, ainda não está batizada, está pagã; “(...) trouxe bilhete dizendo (...) a menina já é batizada e chama-se Bibiana e por sua mãe morrer é que chegou a este destino”; “(...) este menino já foi batizado pelo Reverendo Cura da Sé e chama-se Izidio, e por falecer sua mãe, roga-se aos Senhores que por caridade o queiram criar”.


Os testemunhos acima mostram que o abandono de crianças decorria de imposições morais e econômicas. Assim, os enjeitados tinham origem na moral patriarcal dos senhores de engenho da Bahia e do Rio de Janeiro e também eram frutos das conseqüências do sistema econômico que sustentava estes segmentos sociais; conseqüência da miséria comum à vida da imensa maioria da população livre e liberta da época. Mulheres brancas da elite e ex-escravas sofriam ao abandonar os próprios filhos. O gesto não expressava, por assim dizer, um modelo familiar alternativo, em que o amor maternal estivesse verdadeiramente ausente. H

Renato Pinto Venâncio é professor da Universidade Federal de Ouro Preto (MG), diretor do Arquivo Público Mineiro, doutor pela Universidade de Paris IV – Sorbonne e autor de Famílias abandonadas – Assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX (Papirus, 1999).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

O bê-á-bá no caos


O bê-á-bá no caos
Relatórios antigos mostram que o ensino primário da rede pública, na época do Império, funcionava muito mal, mas abrigava crianças pobres e pequenos escravos
Maria Luiza Marcilio

Em geral o interior de nossa escola mais se assemelha a uma prisão (...) meia dúzia de bancos, uma mesa no chão, o clássico pote e mais nada; as paredes sujas e esburacadas, manchas de tinta por toda parte, ausência completa dos diversos objetos indispensáveis para o ensino (...)”. Assim José Marcelino Cavalheiro, um conceituado professor de Bragança, no interior paulista, descrevia, no seu relatório de 1878, o estabelecimento onde ensinava as primeiras letras. Ele reclamava da “falta de um edifício apropriado para as escolas onde possa o professor desenvolver todos os preceitos da ciência pedagógica” e recomendava, para compensar aquela situação de “desordem”, o emprego de enérgicos meios disciplinares: “Vê-se o professor na penosa alternativa de ou deixar os alunos entregues à anarquia, acarretando a si as censuras de seus superiores e do povo, ou a fazer uso da férula [vara de açoite], transgredindo assim disposição que deveria ser o primeiro a respeitar”.

Este e outros relatórios de mestres de primeiras letras, bem como os elaborados pelos presidentes de províncias sobre a instrução pública, guardados em sua maior parte no Arquivo Público de São Paulo, nos permitem reconstituir o que era o ensino básico brasileiro no final do Império. Primeira constatação: não havia prédios escolares. As aulas de primeiras letras funcionavam num cômodo da casa do professor, geralmente alugada, e cujo aluguel, em bem poucos casos, era pago pelo governo. O professor, para poder ensinar, acabava por subtrair parte de seus magros proventos para alugar a casa onde morava e onde dava suas aulas. Em seu relatório anual de 1847, o presidente da província do Rio Grande do Norte mostrava a situação de uma das escolas de sua região, que funcionava “num miserável quarto que não tem mais de 12 palmos de fundo, dez de largo e outros tantos de altos, todo cheio de fendas, ameaçado de ruína, úmido, coberto de limo, asqueroso, indigno, era o lugar em que o respectivo professor lecionava o crescido número de seus alunos, a maior parte dos quais iam escrever em suas casas, tendo os poucos que ficavam de escrever de joelhos sobre os desgraçados e poucos bancos em que se sentavam”.

Não era uma situação excepcional. Em todas as províncias da época, como então se chamavam os estados, das mais ricas às mais pobres, são encontradas descrições semelhantes. O presidente de São Paulo, centro da produção cafeeira do país, escrevia: “As escolas públicas da província permanecem, na generalidade, funcionando em local impróprio, muitas vezes sem condições higiênicas e desprovidas de tudo quanto lhes é indispensável”. Outro problema generalizado, já apontado pelo professor José Marcelino, dizia respeito à extrema precariedade, e ausência mesmo, de mobiliário e material escolar. Fica difícil entender como poderia haver aprendizagem naquelas condições. Numa época em que as crianças se iniciavam nas primeiras letras com giz de pedra, em suas lousinhas individuais, para só depois escreverem em papel, que era raro e caro, inicialmente a lápis e depois à tinta, usando penas de ganso ou de pato e, nos melhores casos, penas de aço acopladas em canetas de madeira, esses objetos raramente eram fornecidos pelo governo. No caso dos alunos pobres, quando os pais não os podiam comprar, acabava sendo o professor que mais uma vez subtraía, de seu minguado salário, uma parte para comprar material.


Escreveu o diretor de Instrução Pública da Bahia, em 1881: “Sobre as escolas da província, algumas sei em que por falta de bancos, enquanto uns meninos estão assentados, outros estão em pé. Os alunos das escolas públicas sentar-se-iam no chão raso, se o zelo de alguns pais não os livrasse, dando alguns bancos para seus filhos, e se os mestres não privassem de seu último tamborete. A escola também não possui um só traslado de escrita, nem livros para os meninos pobres”. Na escolinha de Botucatu, no interior de São Paulo, pouco antes da queda do Império, o professor João Pereira e Oliveira Penteado reclamava ao presidente da província: “Nesta aula só tem duas toscas tábuas sobre dois caixões que servem de mesa, e outras duas de bancos. A falta que sofre esta aula desses objetos muito prejudica o ensino primário desta vila”.

Seria cansativo reproduzir aqui relatos similares, datados do começo ao fim do Império. Uma terceira marca caracteriza a educação primária pública de então: a falta de método de ensino, ou melhor, a prevalência do método “individual”. O professor atendia a seus alunos um por um, ensinando-lhes de acordo com o seu nível de aprendizado. Enquanto atendia um, os demais ficavam sem ter o que fazer. Daí a anarquia, a indisciplina. Para manter alguma ordem, o professor só conhecia a arma dos castigos físicos, particularmente a palmatória. Nessas condições, a alfabetização e o ensino primário resumiam-se no seguinte, como descrevia em 1839 um professor da escolinha de Santa Ifigênia, na cidade de São Paulo: “gastará o mestre o tempo que for necessário, de forma que fique o discípulo pronto, sabendo ler perfeitamente, sabendo escrever com boa forma de letra e segundo as regras da ortografia, sabendo não somente as quatro operações de aritmética mas também os problemas ordinários da caixaria e contas mercantis, além dos conhecimentos da doutrina cristã”. Era tudo. O processo de alfabetização poderia durar meses, até anos. E, assim mesmo, poucos foram os alunos declarados “prontos” pelos professores.

Outra marca da escola primária do Império: a falta de assiduidade e a grande evasão de crianças. Os alunos entravam na aula em qualquer época do ano; e saíam também. As faltas eram numerosas. Como a população brasileira do Império era dispersa em fazendas, sítios e roças, e como as escolinhas se concentravam preferencialmente em cidades, vilas e povoados mais densos, ficava difícil para os filhos de lavradores freqüentarem as aulas. Seus pais os deixavam em casas de parentes ou amigos das cidades, geralmente por pouco tempo. Antes de completarem o primário, seus “pais ou tutores os obrigavam a sair da escola, quer para auxiliá-los nos misteres mais rudes do trabalho agrícola, quer para empregá-los em nossa primitiva indústria de transportes por terra e por água, quer para exercitá-los em algum ofício mecânico”, como escreveu o inspetor-geral da Instrução Pública de Alagoas (1875). Era uma situação que se repetia em toda parte.


Compreensivelmente, os professores não apontaram nos seus relatórios outra característica importante do ensino na sua época: a falta de preparo dos mestres de primeiras letras. Boa parte destes sabia pouco mais que seus alunos.

As escolas normais, sempre lembradas nos relatórios dos presidentes de províncias como a solução para o atraso da educação, custaram a aparecer, e as poucas implantadas o foram em condições materiais e humanas muito precárias. Em São Paulo, por exemplo, a primeira delas foi criada em 1846, sem verba, com “um banco, uma pedra de geometria e uma mesa”, um único professor, Manoel José Chaves, bacharel em direito, e recebendo apenas alunos do sexo masculino. O curso seria de dois anos. Tendo um único professor, este resolveu só abrir matrículas em anos alternados. A escola durou 21 anos. Foi fechada quando seu professor se aposentou, em 1867, e só conseguiu formar quarenta professores, isto é, nem dois por ano.

As faltas e as licenças freqüentes do professor foram outra praga do ensino, que por sinal perduram até hoje. As denúncias dos presidentes de província são constantes, como esta do Rio Grande do Sul, datada de 1835: “Além de diminuto número de aulas em exercício, acresce ainda que a maioria dos professores ou por ineptos ou por omissos não cumprem como deveriam as suas obrigações (...)”. O presidente da Bahia, em 1854, também vituperava: “Urge principalmente que as faltas dos professores sejam punidas (...)”.

Nem todas as crianças alfabetizadas durante o Império saíram das escolas públicas de primeiras letras. Muitas aprenderam os rudimentos da escrita e da leitura em sua família, com suas mães, pais, avós ou, as que podiam, com preceptores especialmente contratados para isso. Outras freqüentavam escolas particulares que guardavam as mesmas marcas da escola pública: ensino na casa do professor, individual, precário. Em alguns casos, essas escolas mantinham alguns alunos em regime de internato e acrescentavam alguns elementos extras, para atrair os pais: aulas de piano, de francês e de trabalhos manuais para as meninas.


Estamos acostumados a ler nos livros sobre a história da educação que às escolas de então só tinham acesso os mais ricos. As listas de alunos das aulas de primeiras letras nos mostraram, no entanto, que nelas ingressavam crianças ricas e pobres, brancas, pretas e mulatas, crianças de grandes famílias, mas também filhas de mães solteiras e até expostas (abandonadas) e, em alguns casos, escravas. A presença de crianças cativas nas aulas de primeiras letras é uma completa surpresa. Entre os 23 alunos do professor Carlos José da Silva Telles, da cidade de São Paulo, no ano de 1841, estava matriculado João, de 13 anos, escravo do capitão Ignacio Camargo Francisco, que “entrou sem saber nada, mas já escreve mal, lê sílabas de três e mais letras, assenta números de dezenas”, como anotava o professor. Na lista de alunos do padre Joaquim Gomes Monteira, professor régio de primeiras letras da mesma cidade e no mesmo ano, constam quatro escravos: Joaquim, de 12 anos, Bonifácio, de nove, Salvador, de 11, e Inocêncio, de sete. Não era um fato generalizado, é bem verdade. Além disso, provocava constantes debates, reações contrárias e incertezas. Como a reação do professor José Mário Delfim, de Mogi das Cruzes, que, junto à lista de seus alunos, encaminhou ofício ao presidente da província indagando: “(...) aproveito a ocasião de pedir a V. Exa. me esclareça se sou ou não obrigado a aceitar pessoas cativas (...)”. Com certeza, alguns dos senhores necessitavam que alguns de seus escravos pudessem trabalhar como caixeiros, ou controladores das mercadorias de seus negócios, o que exigiria uma iniciação rudimentar na escrita e na leitura.

O ensino primário só teve condições de apresentar melhoras depois da Abolição da escravatura, que era o grande freio contra o desenvolvimento da instrução no Brasil, e da Proclamação da República. Mudanças profundas se deram então a partir de São Paulo, que passou a ser modelo de instrução para o país. Começava a era dos grupos escolares, das escolas normais e dos jardins-de-infância, bem instalados e em prédios escolares monumentais. Mudaram as condições materiais, mudaram os métodos de ensino.

Maria Luiza Marcílio é professora titular de história contemporânea da universidade de são paulo (USP) e autora de história da escola em são paulo e no brasil (imprensa oficial do estado/instituto braudel, 2005).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

terça-feira, 28 de julho de 2009

Hiroshima - O abominável mundo novo



Hiroshima - O abominável mundo novo
Seis de agosto de 1945. Uma superbomba explode sobre o Japão, matando cerca de 100 mil pessoas. As repercussões daquela manhã de sol mudariam as regras do jogo. A eliminação da raça humana era uma possibilidade real
por Leandro Narloch
Sol, calor, nada para fazer: um baita domingo de verão na base aérea de Tinian, uma das ilhas Marianas, no Pacífico. De folga, os soldados americanos do 509º Grupo Misto aproveitaram para tirar um cochilo, bater papo, se divertir. O major Tom Ferebee, de 26 anos, passou o dia com a luva e a bola de beisebol – ex-jogador do Boston Red Sox, uma espécie de Flamengo do tradicional esporte americano – e não via a hora de voltar para casa. O sargento Bob Caron, de 21 anos, limpou sua máquina fotográfica. Muitos jogaram pôquer. No fim da tarde, a moleza foi interrompida com a convocação para uma reunião. O capitão da Marinha William Parsons queria dar uma notícia: no dia seguinte, 6 de agosto de 1945, aquele grupo de jovens lançaria sobre Hiroshima, no Japão, a arma mais terrível da história. “A bomba que vocês vão jogar é uma coisa nova nas guerras. É a mais poderosa arma já produzida. Vai destruir uma área de cinco quilômetros quadrados.”

Até aí, a missão para a qual os soldados do 509º estavam se preparando havia um ano era desconhecida mesmo para eles. Envolvera milhares de pessoas, entre cientistas e militares, três anos de trabalho e dois bilhões de dólares. Tudo para construir uma bomba inédita, tecnologicamente revolucionária e com o poder de 12 mil toneladas de dinamite. Mas por que os americanos precisavam de uma arma tão poderosa? Em maio de 1945 a guerra na Europa havia terminado. Hitler estava morto, e Berlim, em ruínas, ocupada pelo Exército Vermelho. Os aliados já discutiam o mundo pós-guerra e dividiam os territórios libertados pelos nazistas. Só que, enquanto a Europa era fatiada, o Japão resistia.

No dia 25 de julho, em seu gabinete improvisado no cruzador USS Augusta, no meio do Atlântico, o presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, tomou sua decisão e ordenou o ataque nuclear ao Japão. Tinha na mão uma lista de cidades-alvo, feita pelo secretário de Guerra, Henry Stimson: Hiroshima, Kyoto, Kokura, Niigata e Nagasaki. Segundo a biografia oficial de Truman, da jornalista Nancy Lewis, o presidente excluiu uma, Kyoto, que fora capital imperial do Japão, e insistiu na escolha de um alvo militar. Hiroshima, com 40 mil soldados e 220 civis, tornou-se, assim, o alvo prioritário. No navio, o presidente escreveu em seu diário: “A arma finalmente será usada contra o Japão. Parece a coisa mais terrível já descoberta”.

Restava escolher o homem certo para a missão. O piloto da marinha Paul Tibbets, um comandante nascido em Quincy, era o favorito. Apesar de seus 30 anos de idade, já acumulava grande experiência em combate. Sua ficha, no entanto, ficou três meses nas mãos do FBI. Sua vida familiar, seus parentes e amigos da faculdade, suas preferências partidárias, tudo foi vasculhado. Afinal, Tibbets teria sob seu comando a mais mortal arma de guerra jamais construída. Nada poderia dar errado. E se desse, o comandante da missão deveria estar preparado. Tibbets receberia cápsulas de cianureto para toda a equipe. Se alguém se negasse a tomá-las, ele deveria executar o colega. Isso, porém, ainda era segredo naquele domingo de sol.

O tempo também estava claro e calorento a 2700 quilômetros dali, em Hiroshima. Mesmo sendo domingo, o trabalho não parava: a cidade era um dos poucos centros industriais do Japão que não tinham sido atacados pelos bombardeios dos B-29, que incendiavam quarteirões inteiros. “Todos sabiam que seríamos os próximos”, lembra Takashi Morita, policial militar japonês que sobreviveu ao ataque e que, hoje, aos 82 anos, é comerciante e mora no bairro Jabaquara, em São Paulo. Ao som dos rotineiros alarmes antiaéreos das últimas semanas, os moradores gastaram o dia levando móveis para casas de parentes longe do centro ou improvisando abrigos. Grupos de meninas estudantes – os meninos com mais de 12 anos estavam no Exército – desmontavam as casas de madeira para minimizar os incêndios quando a cidade fosse bombardeada.

Em Tinian, onde o sol se punha magnífico nas águas azuis do Pacífico, os soldados inteiravam-se da missão. Partiriam em três aviões: o primeiro, apelidado de Straight Flush, examinaria o clima em Hiroshima e daria sinal verde para o ataque. O segundo lançaria a bomba e o terceiro avaliaria e registraria os resultados. O avião da bomba foi batizado pelo capitão Tibbets com o nome de sua mãe, Enola Gay, provocando a ira de Robert Lewis, que geralmente pilotava aquele B-29, mas que foi apenas co-piloto da missão. “Perguntei a ele que diabos estava fazendo. Era o meu avião e eu é que deveria escolher o nome”, diria Lewis ao historiador britânico Gordon Thomas, autor de Enola Gay: Mission to Hiroshima (Enola Gay: Missão Hiroshima, inédito em português).

Lewis e Tibbets não se falaram mais até a hora do vôo. Às duas da manhã, a bomba de cinco toneladas, apelidada de Little Boy (“garotinho”), foi colocada no avião. “Com quase sete mil galões de combustível, a bomba e 12 homens a bordo, o bombardeiro estava perigosamente pesado”, afirma o historiador americano Malcolm McConnell, autor de A Última Missão. Um acidente na decolagem, coisa comum, poderia fazê-la explodir ali na base. O jeito era levar a bomba desarmada e montar o dispositivo de disparo a bordo, trabalho que ficou a cargo do capitão Parsons. Às 2h45 do dia 6 de agosto, o Enola Gay decolou de Tinian rumo aos livros de história.

O avião levaria cinco horas e meia para chegar ao destino, mas durante toda a madrugada soaram alarmes antiaéreos em Hiroshima. O fotógrafo Yoshito Matsushige passou a noite revelando as fotos que tirara no dia anterior para o jornal local, o Chigoku Shimbun. De manhã, às 7h30, ele ouviu mais um alarme antiaéreo. “Pela janela, vi o avião americano. Ele me pareceu enorme”, diz Matsushige. Era o Straight Flush verificando o clima na cidade. Se houvesse nuvens e pouca visibilidade, o alvo mudaria para Kokura ou para Nagasaki. Mas a manhã era de sol. “As nuvens cobrem menos de 3/10 em todas as altitudes. Aviso: alvo primário”, foi a informação que chegou ao Enola Gay.

Se permitiu que os aviões americanos avistassem seu alvo, o céu claro sobre Hiroshima também possibilitou que seus habitantes percebessem a aproximação de seus algozes. Perto das oito horas, o médico Masakazu Fujii resolveu ler o jornal no terraço de seu consultório, de onde viu o grupo de meninas retornando ao trabalho do dia anterior. No avião, o major Thomas Ferebee ajustou os aparelhos e mirou para que a bomba atingisse uma ponte que cortava um dos sete rios da cidade. A jovem Ayako, de 20 anos, que depois se tornaria esposa do militar Takashi, olhava para o relógio do seu escritório: 8h15. Nesse momento a bomba foi lançada, livre do peso, o B-29 deu um salto para cima. O “garotinho” estava a caminho. Em segundos, um clarão silencioso foi visto na cidade. Do avião, o sargento Bob Caron fotografou o enorme cogumelo. Espantado com o impacto da explosão, o co-piloto Lewis escreveu em seu diário: “Meu Deus, o que fizemos?” Essa é a versão mais conhecida. Segundo o historiador Gordon Thomas, porém, essa frase veio depois que o coronel Tibbets pediu que ele reescrevesse algo mais educado. A frase verdadeira teria sido algo como “Caramba, que filha-da-puta!”



Por quê?

Sessenta anos depois que aquele flash gigantesco e silencioso disparou a 580 metros de altura, Hiroshima é hoje uma cidade moderna e tranqüila. Tem 2,8 milhões de habitantes, é conhecida por abrigar a fábrica de carros Mazda e um dos melhores e mais populares times de beisebol do país, o Hiroshima Carps. Tem estacionamentos verticais, canteiros de azaléias e placas Enjoy Coca-Cola pela rua. A maioria dos habitantes fala inglês e é comum as clínicas de cirurgia plástica oferecerem a chamada ocidentalização das pálpebras, intervenção que transforma olhos puxados em arredondados. Da destruição da cidade, restou uma ruína, o Domo de Hiroshima, antigo palácio de exposições. E uma pergunta: por que fazer um ataque nuclear ali?

Em agosto de 1945, a guerra contra o Japão estava quase vencida. Desde março, o país vinha cedendo o domínio de ilhas importantes no Pacífico sul, como Iwo Jima, diante do avanço dos americanos comandados pelo general Douglas MacArthur. Cidades importantes como Nagoya e Okinawa estavam arrasadas. A capital Tóquio havia sido destruída por um bombardeio de 334 aviões B-29. Oitenta mil habitantes foram mortos. “Em julho, a guerra no pacífico estava ganha”, afirma o professor Justin Libby, especialista em Relações Internacionais da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos. “A rendição, porém, era um tema polêmico tanto para japoneses, quanto para americanos. Mas, pelo menos quatro tentativas de rendição negociada foram feitas por japoneses antes de Hiroshima.”

Duas delas aconteceram por iniciativas de embaixadores japoneses na Europa impressionados com o caos na Alemanha. “Em maio de 1945, o representante japonês na Alemanha, Yoshiro Fujimura, trocou telegramas secretos com autoridades de Tóquio, apresentando as propostas de paz defendidas pelo diretor do Escritório de Serviços Estratégicos na Europa, Allen Dulles, e outros oficiais americanos na Suíça”, diz Libby. Como o cargo de Fujimura era pequeno demais para negociar o fim da guerra, ele foi ignorado por japoneses e americanos. O mesmo aconteceu com o adido militar japonês em Estocolmo, Makoto Ono. Ele entrou em contato com o rei Gustavo V, que mantinha boas relações com o imperador japonês. A idéia era chegar até o governo britânico e convencer Churchill a interceder pela paz. Ono não foi feliz. E acabou investigado por militares japoneses por querer a paz enquanto seu país queria a guerra.

A tentativa de paz mais consistente envolveu o primeiro-ministro japonês Suzuki Kantaro e foi feita via Moscou. A União Soviética e o Japão, mesmo em lados opostos, não estavam em guerra, e o japoneses acreditavam que poderiam usar a diplomacia e a força de Stálin para impor a paz negociada aos Estados Unidos. Mensagens dessas tentativas foram decodificadas pelos americanos, que as utilizaram para pressionar os soviéticos a declarar guerra aos japoneses. As mensagens mostram também que muito antes do ataque nuclear os americanos sabiam da possibilidade de rendição.

No Japão, todo mundo sabia que a guerra estava perdida. Com sua indústria de guerra paralisada, os aviões americanos B-29 passeavam pelo espaço aéreo do país quase sem resistência. Mas render-se era demais para os militares. Seria o fim do sonho expansionista que começara nos anos 30, com o Japão estendendo seus braços sobre Coréia e China. Significaria, ainda, a primeira derrota em séculos e poderia derrubar o imperador Hiroito, considerado o arahitogami, “sucessor direto dos tempos eternos”.

Por isso, os manda-chuvas do Conselho japonês, incluindo o primeiro-ministro, estavam divididos. Alguns aclamavam a população para lutar a ketsu-go, a “batalha decisiva pela pátria”. Entre eles estava o ministro da Guerra, Korechika Anami, um fanático pela tradição guerreira do país, que, como um antigo samurai, escrevia poesia clássica e dominava o kendo, luta em que um sujeito dá pauladas no outro com uma vara de bambu. Em Kyushu, no sul do país, Anami mantinha 570 mil homens à espera dos americanos. Ele também ordenara a convocação de 13 milhões de crianças e velhos que estavam sendo treinados às pressas para lutar.

O próprio imperador Hiroito assumira uma posição aparentemente contraditória: apoiava as iniciativas de paz dos embaixadores, mas também aplaudia os esforços militares de resistir à invasão, o que lhe daria melhores condições de negociar.

Mas militares e políticos americanos tinham seus próprios problemas em aceitar a paz. A opinião pública apoiava a guerra total contra o Japão e exigia a rendição absoluta. O ataque à base militar de Pearl Harbor, no Havaí, em dezembro de 1941, quando 2,4 mil americanos morreram, não fora esquecido. Uma pesquisa do Instituto Gallup de 29 de junho de 1945 revelou que 70% dos americanos queriam o Japão destruído e o imperador Hiroito retirado do cargo e julgado como criminoso de guerra. Mais: a maior parte, 33%, queria a cabeça do homem. Harry Truman, sucessor de Franklin Roosevelt, reconhecia a importância dos números. Entre os documentos liberados recentemente pelo governo americano, há um bilhete do ex-secretário de Estado Cordell Hull dirigido ao presidente e datado do dia da partida de Truman para a Europa: “Concessões aos japoneses poderão causar repercussões políticas terríveis em casa”. Hull era um dos signatários de um estudo que a guerra contra o Japão poderia durar até 1946, ano de eleições para o Congresso.

Só que Truman tinha ainda outros números com que se preocupar. Desde que assumira, a quantidade de soldados mortos era quase a metade do total dos três anos de guerra do Pacífico. Em junho, os militares apresentaram um plano de invasão ao Japão. Seriam duas operações: a Olympic e a Coronet. O presidente pediu um cálculo das baixas na empreitada. A projeção do Pentágono foi de 220 mil soldados mortos e 150 mil feridos. “Depois da guerra, essas estimativas foram ‘corrigidas’ por Washington, primeiro para 500 mil e depois para um milhão de mortos à medida que se tornou preciso justificar a bomba atômica”, diz o historiador Samuel Walker, da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos e autor de Prompt and Utter Destruction – Truman and the Use of Atomic Bombs Against Japan (Destruição total e imediata – Truman e a utilização das bombas atômicas contra o Japão, inédito no Brasil).

Para Walker, o maior empecilho para a paz com os japoneses estava longe do Japão. “Apesar da guerra continuar no oriente, em julho, duas semanas antes de Hiroshima, o foco de Truman era outro: ele estava em Potsdam, na Alemanha, onde se reuniria com os líderes da Grã-Bretanha e da União Soviética”, afirma. “Se ao sair dos Estados Unidos, Truman ainda tinha dúvidas, em Potsdam ele selou o destino de Hiroshima.” Na tarde do dia 16, Truman recebeu uma notícia que havia muito aguardava. Num ultra-secreto experimento no deserto do Novo México, militares e cientistas do projeto Manhattan realizaram com sucesso a primeira explosão nuclear. Truman não se conteve e durante o encontro com Churchill e Stálin, cochichou no ouvido do ditador soviético: “Temos um explosivo muito poderoso que iremos usar contra os japoneses e pôr fim à guerra”.

Segundo David S. Painter, professor de história da Universidade de Georgetown, em Washington, foi aí que nasceu a tese de que o ataque a Hiroshima foi um recado para Stálin. “Pôr a bomba em prática mostrou a Stálin que, apesar de ter vencido a guerra na Europa, levando sua influência a boa parte do continente, ele não ditaria as regras. E, do ponto de vista militar, a bomba atômica mostrou que havia algo mais poderoso que o Exército Vermelho”, diz Painter. “Não é à toa que muitos apontam a detonação da bomba – e não a construção do Muro de Berlim –, como o marco inicial da Guerra Fria.”

Não deixa de ser irônico: a Guerra Fria, o conflito velado entre americanos e soviéticos que marcou a segunda metade do século 20, começou com uma arma cujo núcleo chegou a 50 milhões de graus centígrados.



Memorial de guerra
Em desenhos simples, vítimas eternizaram a tragédia
8h15, dia 6

“Um flash de luz prata como se dezenas de milhares de câmeras tivessem sido disparadas ao mesmo tempo iluminou a área. Surpreso, eu virei e, no instante seguinte, ouvi um estrondo que parecia forte o suficiente para arrancar a Terra de seu eixo. Então, uma coluna gigante de fumaça subiu ao céu. Sirenes começaram a soar por toda a ilha enquanto o grande avião de bombardeio fugiu para o sul.”

Eiji Horio

Idade na época: 32 anos

Distância da explosão: 5 km

9h10, dia 6

“Eu engatinhei desesperado para sair de baixo da minha casa. Alguns dos vizinhos estavam cambaleando pela rua com feridas enormes, com pedaços de pele pendurados pelo corpo. Outros eu nem reconheci, estavam sentados no chão, olhando para o nada. Ver as pessoas naquele estado vai além da nossa imaginação.”

Mitsuko Matsutomi

Idade na época: 13 anos

Distância da explosão: 1,2 km

11h15, dia 6

“No meio de um monte de ruínas a gente via corpos queimados e inchados.”

Michie Matsushima

Idade na época: 17 anos

Distância da explosão: 450 metros

13h15, dia 6

“Vi os corpos carbonizados de uma mulher e de uma criança que pareciam que estavam tentando sair do bonde. Foi o que mais me impressionou.”

Miyoshi Kokubo

Idade na época: 26 anos

Distância da explosão: 1,2 km

17h, dia 6

“Entre as pessoas anônimas queimando, eu achei meu tio chamando minha tia com uma voz fraca. Ele deu seu último suspiro quatro horas depois.”

Yukiko Migitani

Idade na época: 22 anos

Distância da explosão: 1,7 km

6h30, dia 7

“Andei com a minha bicicleta pelas ruínas. No nariz, cheiros muito esquisitos.”

Yoshio Kawata

Idade na época: 23 anos

Distância da explosão: 2,3 km

14h, dia 8

“Me lembro de ter seis anos de idade e estar procurando por minha mãe, que estava desaparecida. Vi um corpo com o rosto queimado todo vermelho e inchado, apenas a área ao redor dos olhos ainda era branca. Sob o sol do verão, o cheiro era insuportável.“

Katsuko Kuwamoto

Idade na época: 6 anos

Distância da explosão: 1,7 km


A cara do horror
Sobreviventes relembram o dia mais longo de suas vidas
“Eu tinha acabado de tomar café-da- manhã e me preparava para ir ao jornal onde trabalhava. De repente, o mundo ao meu redor ficou branco e brilhante, como se tivessem disparado um flash na minha cara. Depois, veio a explosão. A sensação era de centenas de alfinetes me penetrando ao mesmo tempo. Após cerca de 40 minutos, peguei minha câmera, vesti uma roupa que achei no meio dos escombros e saí para a rua. Na ponte Miyuki, encontrei estudantes do Colégio para Mulheres de Hiroshima, mobilizadas para derrubar casas. Estavam cobertas de queimaduras. Puxei minha câmera, mas não consegui apertar o botão. Eu tinha sofrido apenas ferimentos leves causados por estilhaços de vidro, e aquelas pessoas estavam morrendo. Hesitei por uns 20 minutos, até tomar coragem. Lembro que o visor da câmera ficou embaçado pelas minhas lágrimas. Endureci o coração para fotografar. Depois, vi um bonde queimando. Dentro estavam 15 ou 16 passageiros, mortos uns sobre os outros, com as roupas arrancadas. Meus cabelos arrepiaram e as minhas pernas tremeram. Caminhei para tirar uma foto. Não consegui. Havia outros fotógrafos lá, mas nenhum deles conseguiu fotografar. É uma pequeno consolo ter sido capaz de tirar pelo menos cinco fotografias que se tornaram registro daquela atrocidade”.

Yoshito Matsushige

Único fotógrafo a registrar o cenário desolador logo após a explosão da bomba.

Idade na época: 32 anos

Distância da explosão: 2.7 Km

À flor da pele

“Posso até dizer que tive sorte dupla naquele dia. Eu trabalhava em um departamento do governo a 500 metros do epicentro da explosão. Mas, por estar doente, estava cumprindo o expediente em outro prédio, mais distante do local da bomba. E, no momento exato da explosão, eu tinha ido beber água. Longe da janela, fiquei protegida da radiação. Saí do prédio coberta de sangue por causa dos ferimentos causados pelos estilhaços de vidro e fui correndo para casa, que não estava mais lá. No caminho, vi uns meninos pendurando alguma coisa no corpo. Quando cheguei perto, percebi que seguravam a própria pele. Nos dias que se seguiram, diziam que viveríamos apenas dois anos, e que nenhuma planta nasceria em Hiroshima. Como o capim começou a crescer, pensamos que também sobreviveríamos. E sobrevivemos. Um ano depois, conheci meu marido e viemos para o Brasil. Estamos juntos há quase 60 anos e temos dois filhos saudáveis. Mas eu ainda sonho com aquele dia.”

Ayako Motita

Estudante

Idade na época: 20 anos

Distância da explosão: 1.2 Km

Chuva negra

“Eu estava levando 15 prisioneiros americanos para construírem um abrigo antiaéreo. Caminhávamos, quando senti uma luz nas minhas costas que me jogou uns 10 metros para frente. Depois, caiu uma chuva negra. Corri para o abrigo em construção e fui enviado pelo meu superior para saber o que estava acontecendo. Levei três horas para percorrer um quilômetro, vendo pelo caminho gente pegando fogo. A cena que mais marcou foi a de um bonde cheio de corpos carbonizados. Dava para ver a expressão de susto nos cadáveres. Eu já tinha presenciado o bombardeio a Tóquio meses antes, que matou muita gente, mas parecia bem pior. Os rios estavam cheios de corpos. Eu e meus colegas militares lutaríamos até a morte naquela guerra. Pode ser até que merecêssemos a morte. Nunca nos renderíamos aos americanos. Mas nossas mulheres e crianças não tinham nada a ver com isso.”

Takashi Morita

Policial militar

Idade na época: 22 anos

Distância da explosão: 1.3 Km

“Quantos nós matamos?”

“O clarão foi terrível. Quando viramos o avião e pudemos observar os resultados da nossa ação, vimos a maior explosão que o homem já testemunhou. Mais de 90% da cidade estava coberta de fumaça, e por uma coluna de nuvem branca que em menos de três minutos alcançou 30 mil pés. Tenho certeza que toda a tripulação experimentou uma sensação maior do que qualquer ser humano podia suportar. É impossível de compreender. Quantas pessoas nós matamos? Meu Deus, o que fizemos? Se eu viver 100 anos, nunca vou tirar aqueles poucos minutos da minha cabeça.”

Robert Lewis

Co-piloto do enola gay. O depoimento foi tirado do seu diário de bordo.

Idade na época: 26 anos

Almas penadas

“Eu tinha acabado de chegar no hospital e dizia ‘bom dia’ para as pessoas, quando um brilho vermelho invadiu a sala. Fiquei inconsciente por 30 segundos. Acordei atordoado e caminhei até a janela, de onde vi um cogumelo de fumaça perto da companhia de gás. Nesse momento alguém me chamou para atender feridos. Comecei a trabalhar, com a ajuda de enfermeiras e residentes. Aí ouvimos um barulho. Eram dezenas de pessoas caminhando na direção do hospital. Estavam queimadas e tinham vidros quebrados ou madeira no corpo. Pareciam fantasmas. Eu vi fantasmas. Uma hora, quando parei o trabalho para respirar, uma mulher grávida pegou na minha perna e disse: ‘Eu sei que vou morrer, mas posso sentir meu filho se mexendo. Se eu fizer o parto agora, ele se salva’. Mas não dava para fazer um parto aquela hora. Tudo que eu pude fazer foi dizer que voltaria. A imagem daquela mulher nunca saiu da minha cabeça. Naquele dia atendi 200 ou 300 pacientes. Foi o dia mais longo da minha vida.”

Hiroshi Sawachika

Médico

Idade na época: 28 anos

Distância da explosão: 5.1 Km
Saiba mais
Livro

Prompt and Utter Destruction, J. Samuel Walker, The North Caroline Press, 1997 - Para o professor David S. Painter, da Universidade Georgetown, esse é o melhor livro sobre o assunto. Mostra como o uso da bomba atômica foi justificado na época e também traz análises posteriores

Revista Aventuras na Historia