domingo, 31 de maio de 2009

O caso Rosenberg revisitado


Em plena Guerra Fria, americanos e soviéticos espionavam um ao outro em sigilo absoluto; a execução do casal Rosenberg em 1953 é um tema que expõe os lados envolvidos no conflito e o ônus histórico da disputa pelo poder.
por Rémi Kauffer


Ethel e Julius Rosenberg momentos antes de serem executados na cadeira elétrica em 1953


Não importa se você é de esquerda ou não, se gosta de histórias conspiratórias ou de descrições factuais: o caso Rosenberg é pura controvérsia. Condenados à pena capital por espionagem e executados na cadeira elétrica em 19 de junho de 1953, Ethel e seu marido Julius Rosenberg são, até os dias atuais, vítimas de diferentes interpretações. Na visão dos americanos, adeptos de Joseph McCarthy, tiveram uma punição exemplar. Para pacifistas do mundo todo, foi um ato de violência e um desafio aos soviéticos. Os documentos da CIA e a opinião daqueles que testemunharam esse período são antagônicas.

Sob o codinome "Antena" e, depois, "Liberal", Julius Rosenberg, ajudado por Ethel, dedicou-se desde 1943 a atividades de espionagem nos Estados Unidos. Essa atividade estava circunscrita a dois domínios estratégicos cobertos pelo mais absoluto segredo: a aeronáutica militar americana e as pesquisas nucleares do Projeto Manhattan, que redundariam na fabricação da primeira bomba atômica.
Em dezembro de 1939, Julius aderiu ao Partido Comunista americano e casou-se com Ethel Greenglass. Três anos mais velha que ele, militante resoluta também oriunda do Lower East Side, bairro de judeus pobres de Nova York, conhecera seu futuro marido numa festa do Sindicato Internacional dos Marinheiros em 1936.

Período de grande agitação no sindicalismo norte-americano e de crise econômica em decorrência da quebra da Bolsa de Valores de Nova York em 1929.

Entre os anos de 1943 e 1944, Julius deixou oficialmente o PC. Sempre conservando uma linha direta com a direção internacional do partido, ele passou para "o outro lado do espelho" para tornar-se chefe de uma rede de conexão e espionagem ligada ao NKVD - polícia secreta soviética precursora da KGB -, que estendia suas ramificações aos estados de Nova York e Ohio. Rosenberg recrutou vários agentes: seu cunhado David Greenglass, que acabava de ser nomeado soldado-mecânico, em julho de 1944, em Los Alamos, no Projeto Manhattan; um amigo pessoal, Morton Sobell; Alfred Sarant e Joel Barr, seus ex-colegas no curso de engenharia no City College of New York, membros do PC americano e um perito aeronáutico, William Perl.

Em fevereiro de 1950, Klaus Fuchs (1911-1988), um dos principais agentes soviéticos infiltrados no Projeto Manhattan, foi preso na Grã-Bretanha. Essa prisão levou o FBI à pista de Harry Gold (1910-1966), seu agente de conexão nos Estados Unidos, e depois, em junho de 1950, à de David Greenglass, irmão de Ethel Rosenberg. Joel Barr fugiu para a Tchecoslováquia. Harry Gold revelou muitos nomes e confessou ser espião há mais de dez anos em favor dos soviéticos. Durante a prisão de David Greenglass, este declarou que roubou segredos atômicos de Los Alamos, mas o fez a pedido de Julius Rosenberg. O círculo se fechou sobre o casal Rosenberg. Em 17 de julho de 1950, o FBI prendeu Julius, já interrogado diversas vezes.

Contrariamente a Fuchs, Gold e Greenglass, ele negou qualquer envolvimento em atividades de espionagem. Ethel negou com a mesma obstinação, colocando o FBI num impasse. Eis o grande segredo do caso Rosenberg: o projeto Venona, fonte das informações iniciais do FBI a propósito das atividades de espionagem de Joel Barr e Julius Rosenberg.

O projeto Venona empenhava-se, desde 1943, na interceptação de radiocomunicações entre as redes de espionagem americana do NKVD e a "central" em Moscou pela U.S. Army Signal Intelligence Division e, sua decodificação por especialistas da agência.

Atualmente, pode-se falar abertamente sobre tudo isso: iluminando as zonas de sombra do caso Rosenberg, uma parte das mensagens Venona foi divulgada em julho de 1995 pela National Security Agency, a agência americana de segurança nacional. Na época, houve um silêncio absoluto por parte do governo americano. Imposição principal: a Guerra Fria. O programa de decodificação de mensagens soviéticas era classificado como ultra-secreto. Daí o mal-estar do FBI ante o mutismo de Ethel e Julius. Se eles confessassem, como fizeram David Greenglass e sua mulher, Ruth, o dossiê judiciário poderia ser encerrado sem a alusão inoportuna a Venona. O casal Rosenberg negou sempre. Era preciso encontrar uma porta de saída. Escolheu-se a melhor saída para o FBI, a morte dos dois suspeitos.

Macarthismo: caça às bruxas à americana
Originalmente aberta em 1938, a Comissão de Atividades Anti-americanas (House Un-American Activities Commitee - HUAC), tinha como missão prevenir qualquer iniciativa subversiva, fascista ou comunista em solo americano. Suas atividades foram suspensas durante a Segunda Guerra Mundial. Com o fim do conflito, em 1945, e o início da disputa entre URSS e os Estados Unidos pela hegemonia mundial, no período conhecido como Guerra Fria, a perseguição aos supostos comunistas ou simpatizantes do Partido Comunista foi retomada com força pela HUAC, sob a direção de J. Parnell Thomas.

Entre 1950 e 1954, os métodos da Comissão para identificar os suspeitos foram levados ao extremo por seu então diretor, Joseph McCarthy (1908-1957), que contava com o auxílio do chefe do FBI, Edgard Hoover e do então presidente Richard Nixon. Não à toa, a também chamada "caça às bruxas" foi batizada de macarthismo, em alusão a seu nome. McCarthy agia no limite da legalidade, pagando testemunhas e levantando acusações sem prova. A imprensa, a intelectualidade, o exército, o Congresso e, principalmente, Hollywood foram seus alvos.

Nomes como Adrian Scott (produtor), John Howard Lawson, Dalton Trumbo, Sam Ornitz, Lester Cole, Ring Lardner, Alvah Bessie, Albert Maltz (roteiristas), Hebert Biberman e Edward Dmytryk integravam a lista negra do macarthismo entre os profissionais de Hollywood. Em 1947, os "Dez de Hollywood", como ficaram conhecidos, foram condenados a penas de seis meses a um ano de prisão por desrespeito ao Congresso por se recusarem a responder à HUAC.

Estar na tal "lista negra" significava que ninguém os empregaria na terra do cinema. Para garantir trabalho, alguns passaram a denunciar colegas de profissão, caso de Larry Parks e Sterling Hayden. Outros, como Charles Chaplin, se exilaram. Quem ficou escondeu-se por trás de pseudônimos. Trumbo, por exemplo, chegou a conquistar um Oscar por Arenas sangrentas (1956), assinando Robert Rich.

Segredos de Venona
Sob o codinome Venona, a National Security Agency (NSA), a mais discreta das agências americanas de informação, empenhou-se durante dezenas de anos em decodificar as mensagens enviadas pelos funcionários da KGB em Moscou durante a guerra. Esse trabalho tornou-se possível graças a um livro de códigos soviético encontrado pelos finlandeses em 1941 e remetido aos americanos em 1945. A partir desse livro, os especialistas da NSA conseguiram decifrar parte das mensagens secretas endereçadas à sede da KGB entre 1943 e 1945. Desde o final dos anos 40, as primeiras decodificações permitiram identificar os espiões "atomistas" que revelaram os segredos da bomba americana à URSS (Klaus Fuchs, Nun May, Bruno Pontecorvo) e neutralizar alguns espiões soviéticos de primeira importância, entre eles Burgess e Maclean, do grupo de Cambridge. Venona permitiu assim confundir o casal Rosenberg, mas na época Washington não queria que Moscou conhecesse a operação em curso: nenhuma mensagem decodificada foi fornecida ao tribunal que os condenou. O casal morreu na cadeira elétrica clamando sua inocência. Os documentos divulgados pela NSA em 12 de julho de 1995 (confirmados em fevereiro de 1996 por um general russo da reserva) mostraram que Julius Rosenberg era o chefe de uma importante rede de espionagem que trabalhava para a URSS. Além disso, uma mensagem de 27 de novembro de 1944 provou que Ethel estava a par das atividades de seu marido. Outras mensagens sugerem que os Rosenberg recebiam dinheiro e material fotográfico da KGB. Pode-se consultar as mensagens Venona na internet.

Por Thierry Wolton

David e Ruth Greenglass - David, hoje com 84 anos, era irmão de Ethel Rosenberg. Trabalhava em Los Alamos como soldado-mecânico. Em 1950, suspeito de espionagem, disse que fazia tudo a mando de Julius Rosenberg, seu cunhado. Em 2001, David admitiu na rede de televisão americana CBS ter mentido ao dizer que sua irmã, Ethel, havia datilografado suas anotações de espionagem para enviá-las a Moscou, assim como de incriminar Julius de espionagem atômica, sabendo que seu perjúrio foi a grande razão que levou à condenação do casal.

Klaus Fuchs (1915-1988) - físico nascido na Alemanha e naturalizado inglês. Passou segredos do Projeto Manhattan aos soviéticos para a construção de armas nucleares.

Harry Gold (1910-1974) - americano de origem suíça. Atuou como mensageiro da inteligência soviética por mais de dez anos. Foi intermediário de Klaus Fuchs, em Los Alamos. Preso, na década de 1950 e, por meio dele, chegou-se a David Greenglass. Foi condenado a 30 anos de prisão.

J. Edgar Hoover (1895-1972) - obcecado em localizar e eliminar do território americano todos os "subversivos," instalou um sistema de espionagem no país com o FBI (Federal Bureau of Inteligence) durante 1924 e 1972, tempo em que dirigiu o FBI.

Irving Kaufmann (1910-1992) - juiz de origem judaica que liderou os trabalhos durante o julgamento do casal Rosenberg.

Saiba mais
Guerra Fria. Período pós-1945 marcado pelo conflito ideológico entre Estados Unidos capitalista e a União Soviética comunista pela supremacia geopolítica e econômica no mundo. A crise não gerou nenhum tipo de conflito físico, mas desencadeou uma corrida armamentista e a perseguição daqueles contrários a qualquer um dos dois regimes. O final da Guerra Fria é marcado pelo colapso do regime comunista no final da década de 1980.

Projeto Manhattan. Esforço para desenvolver armas nucleares durante a Segunda Guerra Mundial pelos Estados Unidos, Reino Unido e Canadá. A pesquisa foi dirigida pelo físico Robert Oppneheimer. Foi desenvolvido em três laboratórios secretos: Hanford, Los Alamos e Oak Ridge. Diversos testes foram feitos com armas nucleares no ano de 1945, culminando no lançamento das bombas de Hiroshima e Nagazaki no Japão.

Rémi Kauffer é professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris

Revista Historia Viva

Coreia do Norte: a republica ermitã

O isolamento internacional e o militarismo norte-coreano tem profundas raízes no passado
por Christophe Courau
©NOBORU HASHIMOTO/CORBIS SYGMA – STOCK PHOTOS

Desfile militar na Coreia do Norte em 10 de outubro de 1995 comemora os 50 anos do fim da dominação japonesa

Han-ung, filho do deus do céu, sente-se aborrecido no paraíso. Ele desce, então, à Terra e surge ao pé de uma árvore de sândalo, sobre o monte Taebaek. Alguns animais, entre os quais uma ursa, pedem a ele que lhes concedam forma humana. O novo rei ordena: Façam um retiro de cem dias no fundo de uma caverna, levando como alimento 20 dentes de alho e um buquê de artemísia. Só a ursa segue as suas instruções e é, assim, transformada em mulher. Han-ung casa-se com ela e lhe dá um filho: Tan-gun, que se torna o primeiro coreano. Este evento é datado com precisão, 2333 a.C., e ainda é comemorado na Coreia com o nome de festa da abertura do Céu.

Esta é a lenda. A realidade é menos poética. Desde o fim da II Guerra mundial, a Coreia dividiu-se em dois países: uma ditadura ao Norte e uma democracia ao Sul. Há mais de 50 anos, o regime despótico estabelecido – com a ajuda da China de Mao – por Kim Il-sung e prolongado por seu filho, Kim Jong-il, não deixou de oscilar entre posições opostas. O último avatar dessa política é a chantagem nuclear, com o anúncio do relançamento de uma central nuclear e de ameaças diretas contra os Estados Unidos. Antes de a Coreia tornar-se um país, a China esteve presente nesta península da Ásia oriental quando, em 108 a.C., o imperador Wou-ti, da dinastia Han, invadiu a região. Wou-ti funda no oeste e no centro da região quatro prefeituras, com o núcleo político em Loiang (perto da atual Pyongyang). Este protetorado chinês não impediu, entretanto, os coreanos de constituir, entre o século I e o início do século IV, o país dos Três Reinos: o Koguryo, ao norte, o Paikche, a sudoeste e o Silla, a sudeste. Esses reinos rivalizaram entre si até o século VII. A supremacia passa de Koguryo para Silla, que atinge o apogeu entre 670 e 780. Fundada em 918, na Coreia Central, a dinastia de Koryo submete o reino de Silla, e unifica a Coreia. A capital passa a ser Songdo (atual Kaesong).

A partir de 1231, inicia-se uma guerra de 30 anos contra os mongóis de Gengis Khan, que dominam os coreanos. Os mongóis estimulam os coreanos a conquistar o Japão, mas duas tentativas nesse sentido, em 1274 e 1281, fracassam. Em 1364, um jovem guerreiro coreano, Li Song-gye, aproveita-se do declínio dos mongóis, expulsa-os da península, e restabelece a unidade coreana. Coroado rei, funda, em 1392, a dinastia Li (ou Yi), que reinará na Coréia até 1910. Conforme explica André Fabre em sua História da Coreia , o país torna-se Choson, ou país da manhã fresca, expressão que uma tradução errônea transformou em país da manhã calma. O poder de Li não mais se apóia no budismo, mas no confucionismo. A nova capital passa a ser em Seul. Desde 1401, o governo emite papel-moeda, abre cinco escolas na capital e institui novo alfabeto de 28 letras, empregado até hoje. Mas a renovação coreana não teve tempo para se desenvolver: os japoneses, em 1592 e 1598, e depois os manchus, em 1627 e 1638, invadem o país. Choson não consegue se restabelecer após essa dupla invasão. A Coreia isola-se do mundo e torna-se o reino eremita que não pode ser visitado por nenhum ocidental.



©KIM KYUNG-HOON - REUTERS NEWMEDIA INC./CORBIS – STOCK PHOTOS

Em agosto de 2003, em Seul, manifestante sul-coreano queima a bandeira da Coreia do Norte em protesto contra o programa nuclear do país.

Um primeiro contato, porém, ocorre em 1653, quando um navio holandês afunda em suas costas. Os marinheiros são bem tratados, mas aprisionados. Em 1668, oito desses marinheiros conseguem escapar e chegar ao Japão. Entretanto, apenas no século XIX outros ocidentais interessaram-se pelo reino eremita. Em 1816, 1832 e 1833, os ingleses propõem o estabelecimento de relações comerciais aos coreanos, que recusam.

O perigo vem também do interior. Uma religião, o catolicismo, importada pelos chineses, ganha adeptos entre os letrados do reino. Chamada de a ciência do Senhor do céu, a nova crença é mal vista pelas autoridades. As obras católicas são confiscadas na fronteira. Em 1791, dois cristãos são executados por terem queimado as inscrições de seus ancestrais, crime supremo aos olhos do confucionismo, explica André Fabre. Em 1801, há nova repressão aos católicos, com 300 mortos. Em 1837, um missionário, o padre Philibert Maubant, é o primeiro estrangeiro a entrar na Coreia e inicia clandestinamente a catequização. Mas, descoberto em 1839, é executado. O governo francês exige justificativas da Coréia, mas não é atendido. Em 1866, ocorre um grave incidente. Uma navio americano, o General Sherman, aparece na embocadura do rio Taedong. Depois de alguns incidentes com a população local, o navio é incendiado e a tripulação assassinada.

No mesmo ano, o almirante francês Roze embarca para a Coreia com sete navios e desembarca na ilha de Kanghwado em 13 de outubro. A fortaleza e a cidade são tomadas após fraca resistência, e, alguns dias mais tarde, os franceses decidem atacar o mosteiro situado numa colina da ilha. Os comandados do almirante Roze não sabem que o mosteiro é ocupado por uma guarnição de caçadores. Os 170 franceses avançam a descoberto e são recebidos por fogo cerrado. Vinte e quatro horas mais tarde abandonam a ilha.

Os ocidentais recuaram, mas a determinação dos japoneses será incansável. Em 1875, um navio japonês ancora perto de Icheon e os tripulantes são atacados pelos habitantes. Um ano depois, os japoneses retornam, mais bem preparados, e obrigam os coreanos a assinar um tratado de comércio. Em 1822, porém, uma insurreição popular os expulsa. Quando os japoneses voltam, a Coréia aceita pagar uma indenização e concede a Tóquio o direito de dispor de uma guarnição militar em Seul. O Império do Sol Nascente afirma, assim, sua presença no “país da manhã fresca”. O Japão apóia o partido reformista, ao passo que a China apóia os conservadores. Após a guerra sino-japonesa de 1894-1895, o Japão, pelo tratado de Shimonoseki, de 1895, afasta a China, que é obrigada a reconhecer a independência da Coreia. Resta ainda um obstáculo para a expansão nipônica: a Rússia. É acordada uma partilha provisória russo-nipônica em 1896, mas, em 1904, as duas potências entram em guerra. O Japão é vencedor e, no tratado de Portsmouth, vê reconhecido seu predomínio na Coreia. Em 1907, os japoneses assumem o controle da administração e, em 1910, pura e simplesmente anexam o país.


©RYKOFF COLLECTION/CORBIS – STOCK PHOTOS

Conflitos entre Japão, Rússia e China: militares do Japão e da China esmagam representante da Coreia, observados por soldado russo (caricatura/1904)

O período da dominação japonesa (1910-1945) é marcado pelo desenvolvimento econômico da Coreia. As elites coreanas, entretanto, são excluídas dos cargos de direção e formam, a partir de 1919, um movimento de resistência nacional. Em conseqüência, criam um governo provisório no exílio, primeiro em Xangai e, depois, em Washington, sob a presidência do Dr. Syngman Rhee. Em plena II Guerra Mundial, durante a Conferência do Cairo (1943), os aliados decidem restaurar a independência da Coreia, projeto executado após a derrota do Japão. Mas a Coreia é dividida em duas zonas de ocupação, uma soviética, ao norte, e outra americana, ao sul, delimitadas pelo paralelo 38.

Assim, o verão de 1948 assiste à criação de dois Estados coreanos antagônicos: ao sul, a República da Coreia, presidida por Syngman Rhee; ao norte, a República Democrática Popular da Coreia, presidida pelo comunista Kim Il-sung. Após a evacuação simultânea das tropas soviéticas e americanas (1948-1949), a Coreia do Norte tenta reunificar o país pela força. Em 25 de junho de 1950, os norte-coreanos iniciam as hostilidades. Obrigados a abandonar Seul no dia 28, os sul-coreanos obtêm a intervenção dos Estados Unidos e de uma força das Nações Unidas, composta essencialmente por americanos. A contra-ofensiva empurra as tropas da ONU para a fronteira com a China. Os chineses contra-atacam e obrigam as forças da ONU a recuar novamente para além de Seul. Progressivamente, os americanos vão ganhando terreno e estabilizam a fronteira no paralelo 38, o que significa o retorno ao ponto de partida. O armistício de Panmunjon (27 de junho de 1953) restabelece a divisão da Coreia em dois Estados separados pela linha de cessar-fogo.

Ao norte, a ditadura comunista retoma a tradição do reino eremita. O déspota Kim Song-ju decidiu trocar seu nome pelo de Kim Il-sung, evocando a figura de um resistente dos primeiros anos da guerrilha contra o Japão. Mais tarde, Kim Il-sung propagará a história de que seu avô estava entre os combatentes que expulsaram a tripulação do General Sherman, assinala Pierre Rigoulot, autor de Coreia do Norte, Estado Rebelde (Buchet Chastel, 2003). Kim Il-sung, o Grande Líder, inspira nova ideologia, a djoutché que, em novembro de 1970, substitui o marxismo-leninismo. Conforme esclarece Pierre Rigoulot, a filosofia da djoutché consiste em afirmar o domínio de si, a independência em relação às influências estrangeiras, a auto-suficiência, mas o país é, nesta época, totalmente dependente da China e da URSS; essa filosofia exalta ainda o ser coreano e a vontade humana, mas acrescenta imediatamente que esta vontade exprime-se por meio do líder.

Após anos de constantes incidentes na linha de demarcação, as duas Coréias decidem cessar as hostilidades. Em 1972, os dois países assinam um acordo pelo qual renunciam a qualquer provocação. Entretanto, em 1987, os norte-coreanos derrubam um avião civil da Korean Airlines ocasionando 117 mortos. Pierre Rigoulot lembra que não foi apenas uma primeira tentativa: em 9 de outubro de 1983, uma bomba explode em Rangun, na Birmânia, na comitiva sul-coreana liderada pelo presidente do Sul, em visita oficial. Vinte e uma pessoas morrem, dentre elas quatro ministros.

Outra particularidade da Coreia do Norte é o culto à personalidade. Quando Kim Jong-il sucede seu pai, morto em 1994, a propaganda continua. A agência de imprensa oficial, a Korean Central News Agency, relata que, em 24 de novembro de 1996, o Bem-Amado Dirigente encontra-se em Panmunjon, a algumas centenas de metros das forças sul-coreanas e americanas. A região, então, é envolvida por espesso nevoeiro, o que permite ao Querido Líder transitar pelas posições inimigas sem ser observado.

Desde o fim da ajuda chinesa e, depois, da soviética, a economia norte-coreana está decadente. A fome teria provocado, em 1995, a morte de 3 milhões de pessoas. O único setor em desenvolvimento é a indústria militar. Em agosto de 1998, o Japão constatou o lançamento de um míssil norte-coreano, cuja trajetória passava através do espaço aéreo japonês e terminava no Pacífico. Pierre Rigoulot aponta que a arma, com alcance de 2.000 km, era, provavelmente, um Taepodong 1, embora a Coreia do Norte tenha dito que se tratava de um lançador de satélites. A partir de então, os especialistas têm certeza de que esses mísseis poderão, em breve, atingir a costa oeste dos Estados Unidos.

E quanto à carga lançada? Os norte-coreanos assinaram, em 1985, o tratado de não-proliferação nuclear; e até aceitaram, em 1994, desativar duas centrais nucleares em troca do fornecimento, pelos Estados Unidos, de 500 mil toneladas de petróleo por ano. Mas, em dezembro de 2002, Pyongyang enviou de volta os inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica, alegando que a ajuda era insuficiente: Em 2001, a Coreia do Norte, embora tenha ameaçado regularmente os seus vizinhos de mergulhá-los em um ‘oceano de chamas’, é o país que mais recebe ajuda em todo o mundo. A chantagem funciona a contento. No final de fevereiro, Washington anunciou o envio de 100 mil toneladas de alimentos para Pyongyang.


OS EUA AO ALCANCE DOS MÍSSEIS
©KRIKA/ARTES MAPAS

Desde 1986, a Coreia do Norte fabrica mísseis. Segundo os especialistas, os lançadores Taepodong 3, disponíveis antes de 2015, poderão atingir os EUA. O que é confirmado por Ri Kwang-hyok, alto funcionário norte-coreano de Relações Internacionais: “Em caso de medida de autodefesa, o ataque pode atingir qualquer comando militar dos Estados Unidos no mundo”.


DOS TEMPOS DE SILLA À ERA DAS CENTRAIS NUCLEARES
©KRIKA/ARTES MAPAS

50 ANOS DE DIVISÃO
Em 1953, após a guerra (3,5 milhões de mortos, entre coreanos, chineses e americanos), a divisão da Coreia é oficializada.

O MATERIAL NUCLEAR CIVIL E MILITAR
A unidade de Yongbyon é capaz de produzir urânio militar. Segundo o diretor da CIA americana, a Coreia do Norte dispõe de uma ou duas bombas. O secretário de Defesa americano anuncia cinco ou seis para antes do verão.
Christophe Courau é historiador e jornalista.

Revista Historia Viva

Mécia, Matilde e Beatriz: Imagens Femininas Refletidas nas Rainhas de Portugal do Século XIII*

Adriana Zierer (UEMA)

Resumo
Apresentação da importância da mulher medieval através de crônicas portuguesas dos séculos XIV ao XVI sobre três rainhas: D. Mécia Lopes de Haro, D. Matilde de Bolonha e D. Beatriz. As crônicas de que nos valemos foram redigidas para tratar dos governos dos maridos destas damas, respectivamente Sancho II, rei deposto de Portugal em 1245 e seu irmão Afonso III, autor da deposição e monarca até 1279, ano de sua morte. Nas entrelinhas das crônicas podemos ver o papel dado à mulher. Enquanto Matilde e Beatriz representam a mulher-mercadoria, elemento da nobreza para garantir aos varões terras e títulos — motivo pelo qual Afonso III se casa pela segunda vez mesmo já sendo casado — Mécia exerce o papel da mulher-diaba, a Eva-pecadora, que graças aos "feitiços" e "maus conselhos" teria levado à deposição do marido.

Abstract
Presentation of the importance of medieval woman by the study of portuguese cronicles from the 14th to 16th centuries about three queens: Mecia Lopes of Haro, Matilde of Bologne and Beatriz. These cronicles had been written to explain the governation of the ladies’ husbands, respectively Sancho II, king deposed of Portugal in 1245 and his brother Afonso III, responsible for the deposition and king from 1248 until 1279, year of his death. It is possible to see a little of these women in the interlineation of the texts. While Matilde and Beatriz represent the woman-merchandize, as elements of the nobility to garantee to men properties and titles – reason by which Afonso III has got married for the second time when he was already married – Mécia represents the role of the devil-woman, the Eve-sinner, who thanks to her "whitchcrafts" and "bad advises" has taken his husband to be deposed from the power.

Mulheres Medievais
Sabemos pouco sobre as mulheres da Idade Média. Quase tudo o que lemos sobre elas nos foi deixado pelos homens e é através dos olhos deles, filtradas pelo o que pensavam é que as vislumbramos.

A visão da mulher medieval era muito influenciada pelo relato bíblico contido no Gênesis. Eva, a primeira pecadora e que levou toda a humanidade ao pecado era associada a todos os representantes do sexo feminino. Seu oposto e modelo ideal era Maria, mãe de Jesus, a qual engravidou virgem e foi escolhida para ser a mãe do Salvador e redentor da humanidade.

Dividia-se assim a imagem feminina entre esses dois modelos. De modo geral, a mulher, descrita pelos clérigos como ser fraco e inferior ao homem era vista com grande suspeita, pois a ela eram atribuídos como naturais diversos vícios: a mentira, a luxúria, os feitiços. Era considerada inferior por ter sido feita através da costela do homem e por isso deveria submeter-se a ele. Adão, neste caso teria assumido uma posição divina, aproximando-se de Cristo, pois através de seu corpo Deus deu origem a outro ser que, embora associado a Adão, deveria ser controlado por este. Adão representaria o princípio racional e Eva o princípio animal manifestado pela sensualidade e pelo desejo de igualar-se ao homem.

Para Santo Agostinho, a subordinação da mulher está ligada à criação, pois enquanto o homem foi feito por Deus da argila (Gen 2,7), a mulher veio do homem, através de sua costela. Segundo a Bíblia:

Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e fez crescer carne em seu lugar. Depois, da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem. Então o homem exclamou: ‘Esta, sim, é osso de meus ossos/ e carne de minha carne!/Ela será chamada ‘mulher’,/ porque foi tirada do homem. (Gen 2, 21-23).

Assim, a desigualdade na criação dos corpos havia garantido ao feminino a sujeição ao masculino. Houve no período medieval uma tendência a assimilar a mulher ao seu corpo; segundo se acreditava, ela era auxiliar do homem e inferior a ele; sua função seria a de procriar. Para Agostinho a harmonia do casal se dava com base na obediência ao marido e esta obediência existia desde o Éden. (KLAPISCH-ZUBER, 2002: 141-142)

Santo Tomás de Aquino via o feminino como um macho imperfeito e incompleto. Acreditava que a mulher funcionava apenas como receptáculo na procriação, sendo somente o homem o agente ativo no momento da concepção, motivo pelo qual a mulher seria subordinada ao homem. Ele via a sujeição feminina como algo benéfico uma vez que o feminino estaria associado ao corpo, à carne e ao corruptível, ao passo que o masculino estava ligado ao conhecimento e à cultura (KLAPISCH-ZUBER, 2002: 144)

Numa sociedade voltada para Deus e controlada ideologicamente pelo pensamento dos oratores, a mulher só poderia ter valor pela virgindade — e nesse caso estavam as santas e mártires. Quanto ao casamento, havia grandes controvérsias. Se este havia chegado à condição de sacramento e era defendido por uma parte dos religiosos, como santo Agostinho, outros o condenavam. Para São Jerônimo, justificando que poucos seriam aqueles capazes de levar uma vida casta, esta seria a melhor forma de se atingir a Deus, pois "o casamento enche a terra, a virgindade o paraíso"(Nuptiae terram replent, uirginitas paradisum) (BROOKE, 1989: 64).

Outros religiosos defendiam o casamento como forma de controle da mulher, essa Eva enrustida que habitava todo o ser feminino pela crença da época. Casada estava submetida ao marido e exercia como tarefa positiva à procriação. Enquanto era jovem a mulher era motivo de desconfiança e ao envelhecer era menos temida por perder os encantos que podiam "enfeitiçar" os homens.

A cupidez atribuída à mulher e sua tendência à luxúria e ao adultério nos é mostrada amplamente nas obras literárias como os fabliaux, narrativas de cunho cômico-satírico que mostram os truques femininos para trair o marido sem que ele percebesse. No fabliau Duas Tranças mesmo após a descoberta do adultério, a mulher consegue lograr o marido e convencê-lo de que este havia sonhado com a falta praticada (MACEDO, 2000: 187-221).

Por isso, esses seres misteriosos e temidos pelos homens deviam sofrer ampla vigilância e manter as suas mentes ocupadas. Se as camponesas eram obrigadas a uma vida penosa de trabalho doméstico e no campo, as nobres deveriam ser confinadas a um recinto determinado, o quarto, onde deveriam fiar, pois mantê-las no ócio poderia aumentar o seu desejo de pecar (DUBY, 1990: 90).

Por serem vistas como seres irresponsáveis, o marido poderia castigar a esposa como lhe aprouvesse para corrigir seus desvios, inclusive com a aprovação da legislação canônica, a qual aprovava a prática dos espancamentos (RICHARDS, 1993: 36, COUTINHO e COSTA, 2003). Os maridos tinham direito ainda de punir as adúlteras com a morte. Nos romances da época, é possível ver Isolda ou Guinevere conseguindo escapar desta penalidade por diversas atitudes.

Isolda, por ter sua reputação ameaçada e ser acusada de traição, seria julgada por um tribunal no qual estaria presente o rei Artur. A prova consistia em segurar um ferro em brasa. De acordo com o costume medieval do ordálio, se ela fosse inocente, não se queimaria. Assim, a adúltera convence o amante Tristão a vestir-se de leproso. O mesmo leproso a leva nas costas para que não se sujasse de lama no dia do seu julgamento, uma vez que nenhum nobre quis carregá-la. Na hora da prova, ela afirmou a seguinte artimanha: (...) juro que jamais homem algum entrou nas minhas coxas senão o rei Marcos, meu marido, e aquele leproso que, há pouco, me trouxe às costas como um animal de carga." (Tristão e Isolda, 1982: 133). Assim, por falar uma meia-verdade, não se queimou com a brasa e foi declarada inocente pelos juízes.

Quanto a Guinevere (ou Genevra, na versão portuguesa), quando a traição cometida por ela e Lancelot é descoberta, o rei Artur e seus conselheiros decidem que sua pena seria queimar na fogueira. Mas a adúltera é salva pelo amante, que a resgata, iniciando-se uma guerra entre a Linhagem de Artur e a poderosa linhagem de Lancelot, a Linhagem de Bam. Lancelot vence o combate, a rainha é salva, e posteriormente, segundo a versão portuguesa contida em A Demanda do Santo Graal (1970, II: 449), o soberano é aconselhado por um bispo a aceitar a adúltera de volta. Como o rei não concorda, o bispo da Cantuária, parente da rainha, ameaça o reino de excomunhão e o rei acaba por obedecer ao religioso:

E acima perdera i el-rei todo, se o arcibispo de Contúrbe nom fôsse, que era parente da ra~ia, e escomungou todo o reino de Logres, porque el-rei nom queria tornar a sa molher; mas quando el-rei viu que a santa igreja o constrangia assi, filhou-a. (DSG, II: 449)

Os exemplos de Guinevere e Isolda, mulheres muito conhecidas na literatura medieval e ambas adúlteras, era mais um indício do pensamento da época de que nunca se deveria confiar no sexo feminino.

As mulheres valorizadas no medievo estão geralmente ligadas a algum homem. São vistas como a filha, irmã ou mulher de alguém importante e por isso as mulheres ricas têm por vezes a sua biografia narrada pelos cronistas (DUBY, 1989: 41-58). As biografadas casadas são consideradas como dotadas de aspectos de virilidade porque muitas vezes exercem um papel ativo, governando suas casas e bens enquanto os maridos estiveram fora, nas Cruzadas, por exemplo, o que era justificado pelos clérigos, como uma forma de ultrapassar o seu sexo, normalmente fraco e tentado ao mal.

Aos olhos da época, todas as mulheres teoricamente guardam uma mácula, o pecado original, causado por Eva ao comer a maçã. Já a culpabilidade masculina é minimizada. Eva queria transgredir, queria o poder e duvidara de Deus. Os pensadores do século XII, como Pedro Abelardo, afirmaram que Adão ao contrário, não duvidara do Criador e que tinha aceitado a maçã entregue por Eva para não desgostá-la (DUBY, 2001: 57).

Os primeiros manuais de confissão consideravam como tarefa do homem controlar a mulher. Já a partir do século XII ela é vista como responsável por seus próprios pecados. Cabia aos padres e ao marido exortá-la para que se voltasse para o bem. Aliás, o único meio dos leigos resistirem as Evas e evitar as fornicações e o concubinato era o casamento, mas mesmo após a este, a "pecadora" em potencial deveria ser vigiada para que não cumprisse sua principal tendência, a do adultério.

Nos manuais de confissão aparecem as punições para o infanticídio, o sexo fora dos dias estipulados pela igreja, os feitiços exercidos pelas mulheres para se tornarem mais belas ou diminuir a potência dos homens, as práticas abortivas, mostrando, na verdade, que todas estas ações eram realizadas e por isso a Igreja buscava controlá-las ou reprimi-las. Quando se trata de pecado, as punições aos homens eram inferiores às impostas às mulheres.

A forma mais sublime de amor entre um homem e uma mulher, para os clérigos, é o amor espiritual. André Capelão em seu Tratado do Amor Cortês (1180) apesar de discorrer sobre as formas de conquista, aconselha no final de seu tratado que o amor não consumado é o mais desejável. Georges Duby relata que a Igreja louva aquelas noivas ou viúvas que não chegaram à consumação do casamento. Segundo os padres, poderiam continuar amando espiritualmente o ente querido sem haver contaminado os seus corpos. Desta forma, chegariam ao verdadeiro esposo, Jesus, purificadas (DUBY, 2001: 81-83).

O casamento no período feudal era um contrato realizado pelos pais. As mulheres desempenhavam um papel importante na política de alianças. Os noivos não tinham direito de fazer escolhas e o contrato baseava-se na conveniência da família. A mulher representava terras. Muitos nobres secundogênicos resolviam o problema da terra através do casamento, mas não havia mulheres para todos. Também era comum que as famílias esperassem que os primogênitos fizessem casamentos com mulheres de linhagem superior a sua.

A partir do IV Concílio de Latrão (1215), para que o casamento se efetivasse era necessário o consentimento mútuo, mas as uniões nobres continuaram a ser feitas pelos interesses das linhagens. Considerava-se que o amor estava separado do casamento, pois no casamento havia obrigações (o marido é dono do corpo feminino e vice e versa) e a liberdade só era possível em relações extra-conjugais. De acordo com André Capelão:

o amor não pode estabelecer seus domínios entre cônjuges. Porque os amantes concedem-se tudo mutuamente a título gratuito, sem serem impelidos por obrigação nenhuma. Os esposos, ao contrário são obrigados por dever a obedecer às vontades recíprocas e não podem recusar-se um ao outro. (ANDRÉ CAPELÃO, 2000: 137)

Desta forma, de acordo o pensamento medieval era impossível conciliar amor e vida conjugal, que era marcada por relações de obrigação e por isso o amor só poderia existir fora do casamento.

Era comum o repúdio, principalmente a esposas estéreis e também para aquelas que não gerassem uma descendência masculina. Mulheres adúlteras eram punidas quando podiam interferir nos interesses dos familiares próximos em suas terras. Também eram comuns as anulações dando por justificativa algum parentesco entre os cônjuges (a Igreja proibiu num primeiro momento o casamento entre parentes até o sétimo grau e depois baixou a exigência para o quarto grau).

Este estudo versa sobre as mulheres do topo da escala social: as rainhas. É claro que essas mulheres foram fundamentais para consolidar alianças e garantir bens aos maridos.

Rainhas de Portugal e seu Papel nas Crônicas

Antes de explicar as imagens das rainhas de Portugal de meados do duzentos, é necessário falar dos reis, os centros dos relatos cronísticos produzidos no final do período medieval.
Portugal no século XIII é um reino independente, que surgiu de Castela, o reino gerador. Para manter-se assim precisava ter um papel de destaque na Reconquista, expulsando os inimigos dos cristãos da Península Ibérica. Assim foram fazendo todos os reis portugueses, iniciando-se com Afonso Henriques (1139-1185), o que lhes conferia autoridade frente à nobreza. Ser rei era manter a ordem interna, garantindo a paz entre os bellatores e aumentar os territórios portugueses, expulsando de lá os muçulmanos que os ocupavam.

Sancho II (1223-1248), quarto rei de Portugal, deu continuidade à política de seus antecessores. Governou por vinte e dois anos antes que estourasse em Portugal a guerra civil (1245) quando seu irmão Afonso, conde de Bolonha, foi nomeado pelo papa regedor do reino e o antigo monarca, deposto e excomungado.

Todas as crônicas a partir de Afonso III (1248-1279) afirmam que Sancho não conseguiu controlar as turbulências da nobreza, que realizava roubos e guerras privadas em decorrência da própria crise deste grupo social no século XIII, ocorrido especialmente com os secundogênitos que não tinham terras.

O rei perdeu a guerra civil. O seu irmão assumiu o governo, resolveu os problemas internos (as lutas entre a nobreza) e aumentou o território português pela guerra e pelo casamento. Era, pois, relevante no campo das idéias, uma justificativa para deposição do legítimo monarca. Se as crônicas da época de Sancho II valorizaram o seu governo, em especial a participação na Reconquista (Toledano e a Primeira Crónica General de España), as narrativas posteriores ao seu reinado encarregaram-se em desqualificar a atuação política do soberano, o que justificava que este fosse substituído e que um novo ramo na Dinastia de Borgonha se iniciasse com Afonso III (ZIERER, 1999: 143-196).

Dos mais de vinte anos do reinado de Sancho II, as crônicas centram-se nos últimos anos do governo, a partir de 1240 quando a crise entre a nobreza começou a se refletir em instabilidade social e o clero se interferiu nos problemas do reino, depondo o rei. É como se o governo de Sancho fosse todo ele um período de Crise e como se a Reconquista tivesse parado, havendo um vácuo após a morte de Afonso II (pai de Sancho e Afonso), que só teria sido preenchido com Afonso III. Por coincidência o casamento de Sancho II com Mécia foi realizado justamente na época da crise, isto é após 1240. Talvez por este motivo a mulher tenha sido responsabilizada pelos problemas do governo.

Figura 1: Afonso III e Sancho II.
(À Esquerda) "Afonso III". In: Serrão, Joel (Dir.). Dicionário de História de Portugal. Porto: Figueirinhas, 1976, v. I, p. 40. (À Direita) "Sancho II". Pintura do século XVIII. In: ZÚQUETE, Afonso Eduardo. (Dir.). Nobreza de Portugal. Lisboa: Editorial Enciclopédia, 1960, v. I, p. 159.

A escolha da imagem destes dois reis de meados do século XIII foi feita para exemplificar como as imagens régias podem estar associadas nas crônicas aos casamentos e mais especificamente a relação entre bom/mau governo e boa/má esposa. Analisarei estas representações em relatos dos séculos XIV ao XVI, conforme pode ser visto no quadro abaixo.

Crônicas a serem estudadas:

CRÓNICA GERAL DE ESPANHA DE 1344 (Cr.1344)
atribuída ao Conde D. Pedro, influenciou as posteriores

CRÓNICA DOS SETE PRIMEIROS REIS DE PORTUGAL OU CRÓNICA DE 1419

(Cr. 1419)
atribuída a Fernão Lopes, dá seqüência a eventos da Crónica de 1344, desenvolvendo-os com mais detalhes

CRÓNICA DE D. SANCHO II E D. AFONSO III (CRP)
de autoria de Rui de Pina, escrita por volta de 1519, baseada nas anteriores


Além destas crônicas também será consultado o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro (1340). É atribuído ao Conde D. Pedro, neto de Afonso III, a autoria não só da Crónica Geral de Espanha de 1344, como também deste nobiliário. A diferença é que a crônica era voltada aos feitos dos reis e o nobiliário aos da nobreza, porém em ambos podemos ver um pequeno resumo sobre os reinados de Sancho II e Afonso III.

As imagens dos dois monarcas em todas as obras citadas aparecem como cada um sendo o contraponto do outro, os atributos positivos dirigidos a apenas Afonso III, apresentado como bom rei, justo e guerreiro. Já Sancho II, o perdedor da guerra, é descrito nos mesmos relatos como fraco e mal aconselhado. Nestas narrativas pode-se perceber o papel fundamental exercido pela figura feminina na construção de cada um como bom ou mau rei.

Alguns relatos do próprio século XIII como De Rebus Hispaniae (também conhecido como Toledano), a Primeira Crónica General de España e algumas cantigas de escárnio e mal dizer mostram uma imagem diferente acerca de Sancho II, e no caso das cantigas, criticam inclusive a tomada do poder por Afonso III, assunto do qual tratei na dissertação de Mestrado (ZIERER, 1999: 182-191). A imagem sobre este rei na historiografia portuguesa contemporânea é ainda muito negativo (ZIERER, 1999: 176-181).

Porém neste artigo o embate entre bom/mau rei visa mostrar que a maior justificativa para Sancho II ser considerado um monarca ruim, fraco, teria sido a "má influência" de uma mulher, isto é, de sua esposa. Pode-se notar que o mesmo acontece com a construção da imagem de outro rei português nas crônicas, D. Fernando (1367-1383). Para engrandecer a figura de D. João I (1385-1433), primeiro monarca avisino, procurou-se também nas crônicas escritas por Fernão Lopes no século XV contrapô-lo àquele rei, mostrado como um fraco, devido, em primeiro lugar, à má influência de sua esposa, D. Leonor Teles, que também, segundo as narrativas, tal qual Mécia Lopez, teria enfeitiçado o soberano (SARAIVA, 1997: 76).

Assim, na Crónica de D. Fernando o cronista sugere que segundo os mais sábios D. Fernando havia agido por "sandice" (SARAIVA, 1997: 80) uma vez que desagradou a população ao casar-se com uma dama cujo primeiro casamento foi anulado para que pudesse contrair matrimônio com o monarca.

No leito de morte, D. Fernando aparece arrependido por seus pecados: "(...) creio que ele [Deus] me deu estes reinos para os manter em direito e justiça, e eu por meus pecados fiz de tal maneira que lhe darei deles muito má conta." (SARAIVA, 1997: 138). Obviamente, as faltas deste rei, segundo Fernão Lopes, estão diretamente ligadas a um casamento que não era aprovado por muitos, de forma que, o fato de não conseguir vencer as guerras contra Castela empreendidas no seu reinado foi diretamente associado à fraqueza pelo "mau casamento".

Importante dizer acerca dos pares Sancho II/Afonso III, D. Fernando/D. João I é que a imagem do rei fraco que governa mal devido à influencia feminina aparece nas crônicas portuguesas desde o século XIV. O final de cada reinado é que foi diferente. Sancho II foi deposto pelo irmão. Já D. Fernando, morreu pacificamente e sem herdeiros masculinos, porém, após a sua morte iniciou-se o que ficou conhecido mais tarde como Revolução de Avis (1383-1385), com o início de uma nova dinastia no poder. Podemos concluir que, de acordo com a lógica das crônicas, o mau casamento, em virtude da má esposa, levava à instabilidade política.

Voltemos a Sancho II e D. Mécia. Na Idade Média a monarquia era considerada a forma ideal de governo, desejada por Deus na Terra, seguindo o que se encontrava na Bíblia, onde os bons monarcas como Davi, Salomão e Josias eram tementes a Deus e empreenderam uma política expansionista.

Para depor um monarca que, conforme se acreditava, havia sido escolhido por Deus para governar, era necessário uma forte justificativa, pois a culpa pelo mau governo não poderia ser do monarca, mas sim de seus auxiliares próximos, os "maus conselheiros".

Além disso, alguém já ligado ao pecado teria tido um papel negativo com relação ao rei, e este alguém no nosso caso, só poderia ser a esposa de Sancho II, D. Mécia Lopes Haro.

Na história de Sancho II tudo ligado à mulher é apresentado de forma negativa. Além de esta ser uma viúva castelhana (dois aspectos negativos: não era virgem e provinha de Castela, que queria teoricamente dominar Portugal), lhe é atribuído um parentesco com o monarca, o que impediria o casamento. Além disso, como não tiveram filhos, a união pôde ser vista como não agradável aos olhos de Deus. É interessante a citação abaixo, associando o mau governo atribuído a Sancho II com o casamento na Crónica de 1419:

Segundo alguns dizem, começou de ser boom Rey, e depojs por sua synpreza e maos comselheyros ya se a terra toda a perder, fazendo todo mal em ela. (...) casou-se com Dª Meçia Lopiz (...). A qual cousa os pouos ouuerom por estranha (...), mormente seu diujdo aquem do quarto grao e não aver por elo despemçação, e por esto fose gramde mjmguoa de sua omrra. (...) E daly em diante foy ajmda o Reyno majs pera mal, em gujsa que matauom e roubauom, furtando e poendo foguo, asy os grandes como os pequenos (...). E ele leyxava pasar estas cousas, não tomando a elo, nem fazendo nemhuma justiça, com fraqueza de coração (Cr. 1419: 211-212). (os grifos são meus)

Um terceiro fator é que D. Mécia foi raptada durante a guerra civil, não se sabe se com o seu consentimento ou não. O Livro de Linhagens do Conde D. Pedro (1340) e outras fontes nos deixam na dúvida sobre o caso, sugerindo que Mécia teria aderido à causa do cunhado, o Conde de Bolonha. Assim, de acordo com o Nobiliário, foi raptada contra a sua vontade por João Raimundo de Porto Carrero (LL,II/2,44D6), que era aliado de Afonso III.

O que importa dizer é que Sancho II não conseguiu reavê-la, o que é mais um indício para que ele fosse considerado "fraco".

Vemos assim que nas construções cronísticas acerca de Sancho II e Afonso III as mulheres ocupam um papel secundário, porém importante para justificar aqueles governos como bons ou maus. O "mau casamento" de Sancho é apresentado nas crônicas como o principal motivo que levou em primeiro lugar à consolidação do mau governo e depois à deposição.

Quanto a Afonso III fez não apenas um, mas dois casamentos que revelaram ser muito positivos ao monarca: o primeiro com a condessa de Bolonha, que lhe garantiu territórios na França (que depois ele deixou após ter repudiado a mulher) e o segundo com Beatriz Guzman, filha bastarda do rei de Castela, Afonso X, que garantiu a posse da terras do Algarve para Portugal.

A justificativa do mau governo de Sancho associada ao casamento com Mécia vem das crônicas e nobiliários desde o século XIV, mas o processo da Mécia-diabólica completa-se na crônica de Rui de Pina, do século XVI, a qual baseou-se nos relatos anteriores e que no seu tece uma rede de oposições, comparando Mécia não só com as esposas de Afonso III, mas também com a tia de Sancho II,

D. Berenguela, que na narrativa aparece como boa e contrária ao casamento.

A oposição Berenguela/Mécia, que atinge um alto grau de sofisticação com Rui de Pina, já evidencia-se em relatos anteriores, como no Nobiliário do Conde D. Pedro:

[Sancho II] Começou mui bem de seer mui boo rei e de justiça, mas houve maos conselheiros, e des ali adeante nom fez justiça. E saio de mandado da rainha dona Biringuela, sa tia, e casou-se com Micia Lopez, e des ali foi pera mal (LL,7C4). (os grifos são meus)

Já em Rui de Pina, a tia aparece como próxima de Maria, mãe de Jesus, possuídora de grande juízo e que por isso desaconselha o casamento, no que não é atendida. Segundo o cronista, Dona Berenguela era "Princeza de muy singulares virtudes, e Reaaes perfeyções, e muyta prudencia (...) ella muitas vezes enviou a conselhar ha seu sobrinho assi bem." (CRP: 132). (os grifos são meus)

Porém, maus conselheiros levam o monarca a casar-se com D. Mécia, "Dona fermosa, e viuva, filha de Don Lopo, senhor de Biscaia" com quem o monarca tinha parentesco, o que teria levado ao "grande escandalo e nojo dos do Regno" (CRP: 132) (o grifo é meu). O cronista atribui uma série de adjetivos negativos associados à esposa do rei:

El Rey andava em poder della enfeytiçado, e ceguo do juízo seem se poder apartar, e que ajudavam muito ho maao conselho, daquelles, que sostinham ha parte da Rainha Dona Mecia, por cujo favor em que ha esse tempo havia o poder, e authoridade com grande desoluçam elles tomavam e destruyam do Regno todolo que queriam (...) hos quaees males ElRey por fraqueza de coraçam nom castiguava (...) e assi teve ElRey D. Sancho esta molher alguum tempo sem della aver alguua geraçom, nom cessando no Regno estes insultos, e desoluções, antes crecendo cada vez mais. (CRP: 132-133) (os grifos são meus)

Podemos exemplificar esta oposição entre as duas mulheres através do seguinte quadro:

Primeira Oposição: Berenguela x Mécia

ASSOCIAÇÃO A MARIA ASSOCIAÇÃO A EVA

Berenguela: tia, irmã da mãe do rei Mécia: viúva, parente em quarto grau do rei

Prudente Formosa

singulares virtudes Feitiços


De acordo com as crônicas, Sancho II não conseguiu separar-se de Mécia, apesar das súplicas "dos Prelados, e poovo de Portugal, lhe enviava continuas amoestações, e sanctos conselhos, ha qual el nunca quis inteyramente obedecer (...) ha Rainha Dona Mecia sua molher, e aqueles que seguiam sua vontade ho desviavam de seu boom propósito, espiciaalmente em ha nom querer, nem poder leyxar por molher, sobre que muytas vezes, foy pelo Papa aconselhado, e amoestado, e excommungado (...) (CRP: 134) (os grifos são meus).

Isso explica, portanto, nos relatos cronistícos, a deposição de Sancho II e a "alegria dos do reino" com a chegada em Portugal do seu irmão, o Conde de Bolonha, o que deu início à guerra civil entre ambos. Como forma de justificar a intervenção ao governo do legítimo monarca, os relatos afirmam que a maioria da população concordou com a posição de Afonso III como regedor:

Ca diz a Coronjqua que tam grande prazer ouuerom as gemtes do Reyno, quamdo o Comde emtrrou em Portugal, emtendendo que por ele sejom releuados de todolas tribulações em que erom postos, que muytas as vilas e lugares que hy auyom, se lhe dauom de boa memte". (Cr.1419, v. I: 230).

Quanto à esposa de Afonso III, D. Matilde, com quem ele casou em 1238, era uma viúva, tal como Mécia, mas como garantiu-lhe inicialmente terras na França que o tornaram conde, foi assim louvada por Rui de Pina, numa segunda oposição com Mécia: "(a) Cõdessa de Bolonha sua mulher, avia nome Dona Matildes, la qual fora jaa outra vez cazada, e era da linhagem dos Rex de França, em que avia singulares boondades, e virtudes, e tinha muitas teerras, e grande fazenda." (os grifos são meus)(CRP: 139).

Figura 2 – D. Matilde, Condessa de Bolonha, 1ª esposa de Afonso III. In: "Rainhas de Portugal": http://7mares.terravista.pt/hcesarop/Rainhas.htm

A oposição entre os vícios de Mécia e as virtudes de Matilde podem ser assim exemplificadas:

Segunda Oposição: Mécia x Matilde

Matilde: esposa de Afonso III Mécia: esposa de Sancho II

Virtuosa "Bruxa"

fornece terras: amplia os domínios do marido fornece maus conselhos: leva o reino para o mal


No entanto, esta mesma Matilde é repudiada mais tarde quando após a morte de Sancho II e já como rei, Afonso III contrai um segundo casamento em 1253 com a filha bastarda de Afonso X, de Castela, D. Beatriz Guzman, que ainda não estava em idade núbil, pois tinha ainda onze anos ou menos (a idade núbil para o casamento era quatorze anos para os meninos e doze para as meninas). O casamento é de grande importância política por garantir acordos com Castela que garantiriam a posse das terras do Algarve, obtidas na Reconquista, para Portugal.

O segundo casamento mostra como era comum o repúdio nos meios nobres principalmente quando a mulher não dava ao homem uma descendência masculina, ou mesmo quando o marido conseguia um casamento melhor, como no caso de Afonso III. Seguindo o pensamento da época, as crônicas demonstram surpresa com o novo casamento e colocam numa fala de Afonso III, a explicitação da posição masculina da época e sua justificativa:

E forom as gemtes muyto maravelhadas daquele casamento, por quamto elRey D. Afonso era casado com a Comdesa de Bolonha. E elRey lhe deu em resposta, dizendo que se em outro dia achase outra molher que lhe dese outra tanta terra no Regno, pera o acreçemtar, que loguo casarja com ela. (Cr.1419, v. I: 248) (o grifo é meu)

As crônicas descrevem a ida de Matilde a Portugal para reclamar os seus direitos e a reação explosiva de Afonso III expulsando-a do reino. Ao receber os emissários da rainha, o monarca afirmou que: "se maravilhaua muyto deles, como foram ousados de chegarem a ele, (...) e que se não forem homems a que tão grande bem querja, e de que avya recebidos mujtos serujiços, que lhe mandaua cortar as cabesas (...)." Segundo o texto, a ameaça continuava, dizendo que a Condessa "se partise loguo d aly e que tonase pera sua terra, e não fose ousada de sajr em seu Regno". Do contrário, Afonso III teria com ela uma atitude "que muyto lhe pesarja." (Cr. 1419, p. 250) (os grifos são meus). Desta forma, D. Matilde não pôde tomar outra alternativa senão retornar à França.

A seguir, a esposa legítima escreve ao papa, que excomunga o reino português. Pouco mais tarde, porém, Matilde falece e Beatriz, nesta época já mãe, é reconhecida como mulher do rei.

As narrativas da época procuram apresentar um papel positivo e ativo da nova esposa de Afonso III, que vai pessoalmente falar com o pai para pedir que desse as terras do Algarve para Portugal, no que, segundo os relatos pesquisados, ele consentiu porque "amava muito a filha" (Cr.1419: 248 e 272).

Em alguns relatos como a Crónica Geral de Espanha de 1344, o primeiro casamento de Afonso III não é sequer mencionado, louvando-se apenas o casamento com Beatriz que representou terras e filhos ao monarca. Esta crônica "esqueceu" convenientemente o casamento com D. Matilde, esposa repudiada e trocada por um outro casamento mais vantajoso. O primeiro casamento está subentendido quando se fala que Afonso III era conde de Bolonha. A seguir a crônica menciona que "depois per tempo", ele contraiu matrimônio com Beatriz Guzman, isto é, após ter repudiado D. Matilde, cujo nome não é sequer citado no documento.

Sobre Afonso III:

E este rey dõ Affonso, ~e seendo conde de Bolonha ouve muytas batalhas ~e França e sempre foy vencedor. Depois per tempo casou com dona Beatriz, filha del rey dõ Affonso de Castella e Leon e de dona Mayor Guillhelme, e deulhe el rey de Castela todo o que avya no Algarve. E este rey dom Affonso ouve daquella re~ynha dona Beatriz estes filhos: o iffante dõ Denis, que depois foy rei (...). (Cr. 1344: 242).

Portanto, fica claro na imagem de Beatriz na crônica que a boa esposa é aquela capaz de procriar e garantir territórios aos nobres, pois devido ao casamento seu pai "deulhe todo o que avya no Algarve", o que serviu para aumentar os territórios do monarca português, seu marido. Assim, a mulher repudiada, como Matilde, não merece nem sequer ser mencionada. Já a má, como Mécia, é a que "enfeitiça" o marido e lhe dá maus conselhos, com conseqüências terríveis para o rei e o reino, conforme o pensamento da época.

Conclusão
Através das informações sobre três rainhas de Portugal do século XIII, Mécia, Matilde e Beatriz, é possível verificar que a imagem delas também correspondia à visão que se tinha da mulher na época, dividida entre os espectros de Maria e de Eva. A misoginia medieval foi utilizada para justificar a deposição de um monarca, Sancho II, sendo atribuído a Mécia, todos os males do governo e os motivos de sua queda. Enquanto Matilde e Beatriz representam a mulher-mercadoria, que era importante nas alianças para a obtenção de títulos e terras, Mécia representa a mulher-diaba, o motivo encontrado nos relatos cronísticos para justificar a deposição do monarca legítimo.

Assim, a mulher boa segundo o pensamento medieval é aquela que garante terras e descendência à nobreza, que se "conforma" com o repúdio como Matilde, que serve aos verdadeiros interesses da sociedade dirigida por homens, como o foram Matilde num primeiro momento e depois Beatriz.

Como elas eram na verdade, conhecemos pouco, mas sabemos também que não foram esses objetos passivos que os homens desejavam. Matilde reclamou com a instância máxima da época: o papa. Beatriz serviu aos interesses do marido, mas também aos seus próprios, pois de bastarda passou a mãe do futuro rei de Portugal, D. Dinis.

Quanto à Mécia, qual o destino desta mulher que é espicaçada nas crônicas? A nossa Eva deixou de ocupar lugar preponderante nos relatos após a morte de Sancho II e somente o silêncio ficou em seu lugar. Certamente ela voltou para Castela e ficou com os seus bens, livre do marido. Mas se Sancho II não tivesse perdido a guerra, Mécia não seria Eva e sim Maria, apresentada nas narrativas da época como uma mulher virtuosa e piedosa.

A mulher da sociedade ocidental vem carregando culpas há muito tempo devido aos escritos cristãos. É tempo de revisar este papel procurando uma nova imagem feminina ou valorizando a sua importância ao longo da história. Nem Ave, nem Eva, apenas seres humanos.

Bibliografia

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* Trabalho apresentado no I Congresso Internacional "A Representação da Imagem Feminina" (Londrina, Universidade Estadual de Londrina, 2000), com alguns acréscimos para esta publicação.

Revista Mirabilia

Considerações acerca da ética aristotélicanas tragédias sofoclianas: o caso de Édipo Rei


Tito Barros Leal de Pontes Medeiros
Professor da Universidade Estadual do Vale do Acarau
Resumo
Este artigo procura compreender a produção sofocliana questionando a tradicional temporalização da história grega no Período Arcaico (XII – VI a.C.) e no Período Clássico (V – IV a.C.), propondo o século V a.C. como transição entre estes períoodos. São analisados também alguns conceitos aristotélicos que se supõem fundamentais para compreender a dimensão filosófico-educativa da tragédia sofocliana e, neste sentido, tentar observar elementos éticos nas ações de Édipo, a partir da tragédia “Édipo Rei”.

Abstract
This article tries to understand the Sophocle's production questioning the traditional temporary demarcation of the Greek history in the Archaic Period (XII - VI B.C.) and in the Classic Period (V - IV B.C.), proposing the century V B.C. as transition among these periods. They are also analyzed some Aristotelian concepts that are supposed fundamental to understand the philosophical-educational dimension of the Sophocle's tragedy and, in this sense, to try to observe ethical elements in the actions of Oiedipus, starting from the tragedy King Oiedipus.

Notas introdutórias
O trabalho se propõe a analisar, a partir da ética aristotélica, as ações de Édipo na tragédia Édipo Rei de Sófocles. Para tanto se crê necessária, a fim de melhor situar o leitor na pesquisa, algumas considerações teórico-metodológicas.

Partindo do pressuposto de que as tragédias contribuíram para a construção de uma moral do homem grego, estas podem ser consideradas como elementos marcantes de um período de transição em que o homem oscila entre o sagrado e o profano, as leis divinas e as leis dos homens (nomos).

Neste sentido, a clássica divisão entre Período Arcaico e Período Clássico na história da Grécia antiga, será redimensionada — pelo menos na perspectiva deste trabalho — compreendendo-se o século V não como o primeiro do último período mencionado, mas como transição entre os dois universos simbólico-culturais que se confrontavam e se (re)configuravam.

Século V a. C. como período de transição

Jean-Peirre Vernant sublinha que o texto trágico está permeado pelas tensões e ambigüidades (VERNANT, 1977) subjacentes ao período de transição proposto neste estudo.

A polis grega, surgida ainda no período arcaico, abriu novas e fecundas possibilidades para os helenos. Foi a partir do desenvolvimento dessa nova forma de organização social que se implantou radicalmente no cotidiano do grego a filosofia e, com ela, as discussões sobre política e justiça.

Assim sendo, o surgimento das cidades-Estado no mundo grego contribuiu com o surgimento de uma situação histórica característica: o choque entre duas mentalidades. De um lado a mentalidade própria do mundo arcaico, marcada pelo misticismo e pelas limitações do homem frente ao divino; do outro a nova mentalidade, a clássica, ainda em formação, uma espécie de poder-ser-algo-novo, que punha em xeque o misticismo apresentando como “remédio” às limitações humanas da razão.

O homem inicia um caminhar petulante, desafia os deuses, foge do seu destino, tenta construir um caminho alternativo para sua vida baseado nas suas ponderações racionais, na filosofia e na política.

Esta transição, porém, não foi fácil. Os personagens trágicos, representantes por excelência deste momento de transformação psico-social do mundo grego, que quase sempre pagam alto preço por suas escolhas. A estes resta, muitas vezes, a bem da verdade, a simples certeza de terem podido praticar a escolha, “desobedecer” o destino, “rebelar-se” contra as vontades divinas em benefício das vontades humanas. Neste sentido, a tragédia marca o momento da ação humana.

Jean-Pierre Vernant e Vidal-Naquet, a propósito, escreveram:

Assim, também com a cidade, desenvolve-se um sistema de instituições e de comportamento propriamente político. (...) é nítido o contraste social que a polis substituiu juntamente com as práticas e a mentalidade que lhes eram solidárias. Não é diferente com a tragédia. Ela não poderia refletir uma realidade que, de alguma forma, lhe fosse estranha. (VERNANT, 1977: 8-9)

Percebe-se assim, portanto, que a tragédia é um espelho refletindo as transformações sociais próprias do período de transição entre a mentalidade social arcaica e a mentalidade social clássica. Segundo Arnold Hauser o texto trágico explicita nas suas entrelinhas “os conflitos internos da estrutura social de Atenas”. (HAUSER, 1953: 84)

É, pois, o texto trágico permeado de ambigüidades: democrático, quanto aos aspectos externos de suas apresentações às massas e, ao mesmo tempo aristocrático, quanto aos conteúdos de suas narrativas (a perspectiva trágico-heróica da vida) (HAUSER, 1953: 84); individualista, haja vista as ações dos protagonistas das peças e, ao mesmo tempo coletivo, posto a kátharsis que as apresentações deveriam produzir no público (HAUSER, 1953: 85).

A deliberação, ou a escolha

A psicologia social grega do período de transição está fortemente marcada por uma indagação constante sobre a ética. Essa nova problemática, introduzida de forma definitiva no cotidiano da polis desde o pensamento socrático, configurou-se numa questão central do novo modos vivendi que surgiria no período clássico.

Ora, a produção trágica no mundo heleno se dá de forma marcante do final do século VI e por todo o século V a. C., portanto, enquadra-se no período de transição entre a Grécia Arcaica e a Grécia Clássica como se vem defendendo neste artigo.

De fato, as preocupações relacionadas às questões éticas (ou mesmo a uma possibilidade de moral) estão presentes em todos os textos de Sófocles, ainda que nem sempre tenham sido trabalhadas de forma mais detalhada e evidente. Compreende-se tal fato a partir da seguinte consideração: o primeiro grande tratado de Ética, Ética a Nicômaco, de Aristóteles, surge na Grécia no século IV a. C., sendo posterior ao período da produção sofocliana.

Inserido num contexto intelectual que engatinhava no tema em questão, Sófocles desenvolveu obras onde os problemas éticos aparecem no centro das discussões. Realmente, a afirmação ora registrada pode parecer conflituosa com as várias teses e críticas literárias produzidas sobre as tragédias sofoclianas, e assim o é, ao menos em parte. Isto explica-se.

As análises de cunho literário apontam Sófocles como o mais humanista dos tragediógrafos gregos; os problemas apresentados por Sófocles em suas peças são sempre relacionados a questões humanas. Pouco se estuda, porém, a presença de elementos de uma proto-ética em seus escritos.

Temos, porém, que a questão ética é uma dos pontos centrais da Filosofia que tenta compreender o homem como ser social. Ora, a tragédia narra os problemas da sociedade ateniense, e, segundo Hauser, “em nenhuma outra forma de arte são apreciados tão direta e claramente quanto nela os conflitos internos da estrutura social de Atenas” (HAUSER, 1953: 84); portanto, narra problemas de dimensões éticas.

Ademais, um dos problemas principais circunscrito à Ética é o das escolhas — o escolher bem. Sófocles (e estende-se essa afirmação aos demais tragediógrafos) traz em suas obras uma reflexão concernente à escolha, ou seja, sobre a ação humana, escolha essa que é permeada por variantes e condicionantes sociais.

Na Ética a Nicômaco (LIVRO III, Cap. 02), Aristóteles apresenta uma reflexão sobre a escolha. Segundo o filosófo, ela parece ser algo voluntário, porém não é pela involuntariedade que o estagirita a define. A escolha não é comum à irracionalidade; segundo o autor ela se faz contrária ao apetite e não se relacionando com o agradável e o doloroso. Ela não visa as coisas impossíveis, relaciona-se com os meios e não com os fins e não se identifica com a opinião. Para Aristóteles, a escolha somente pode ser caracterizada a partir do binômio bondade-maldade.

T. G. Rosenmeyer observa que nas tragédias “o mal é endêmico entre os bons, num vínculo político que desafia uma separação entre dignos e indignos” (FINLEY, 1998: 168); afirma ainda que na concepção sofocliana “herói e vilão são um só, ou melhor, (...) nenhuma das duas condições é apropriada para a compreensão do mau procedimento humano” (FINLEY, 1998: 168).

Desta forma, Bem-Mal, certo-errado, felicidade-infelicidade, tradição-inovação, etc, se completam. Notadamente, é a partir desta oscilação entre extremos que Sófocles constrói seus heróis. São essas ambigüidades que, introduzidas visceralmente em suas personagens lhes confere o caráter humano — demasiadamente humano.

São as escolhas das personagens que movem as tragédias de Sófocles — e assim o é nas suas sete obras.

Para Aristóteles, a melhor escolha necessita sobremaneira do uso da razão (logos) e da reflexão. A escolha é, pois, aquilo que, racionalmente, colocamos diante das situações conflituosas.

Toda escolha depende de uma deliberação e esta se dá “sobre as coisas que estão ao nosso alcance e podem ser realizadas” (ARISTÓTELES, 1973: 285). Nas obras de Sófocles suas personagens sempre aparecem em processo de deliberação; noutras palavras, em vias de decidir.

Na Poética, Aristóteles escreve a seguinte passagem:

É pois a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão (...) que se efetua e não por narrativa mas mediante atores, e que, suscitando o “terror e a piedade, tem por efeito a purificação [catarse] dessas emoções.” (...) E como a tragédia é imitação de uma ação e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio caráter e pensamento (...) daí vem por conseqüência o serem duas as causas naturais que determinam as ações: pensamento e caráter; e, nas ações (...), tem origem a boa ou a má fortuna dos homens. (ARISTÓTELES, 1973: 447-8)

Vê-se que, ao definir a tragédia, Aristóteles afirma que esta é um tipo de representação que “imita ações de caráter elevado” e o que determina essas ações são o “pensamento” e o “caráter” [ethos] das personagens. Desta forma, as ações às quais Aristóteles se refere são as deliberativas. Como anteriormente afirmado, as personagens sofoclianas estão sempre analisando uma situação para posicionar-se ante um problema.

Razão X Paixão

Até aqui foram tratadas as questões ligadas à razão humana presentes na construção das personagens sofoclianas; pouco se falou, no entanto, acerca das paixões que, de forma não menos patente, nelas se manifestam. Utilizamos o termo paixão fazendo referencia à terminologia utilizada por Aristóteles (e por praticamente toda a cultura grega). Neste sentido paixão se identifica a uma disposição contrária ou favorável a alguma coisa, e que ultrapassa os limites da razão.

Jean-Pierre Vernant e Vidal-Naquet são os que melhor falam dessa tensão entre razão e paixão no herói trágico:

Os sentimentos, as falas, os atos do herói trágico dependem de seu caráter, de seu ethos (...). Mas esses sentimentos, falas e ações aparecem, ao mesmo tempo, como expressão de uma potência religiosa de um daímon que age através deles (VERNANT, 1977: 15).

A citação acima aponta para a relação entre cultura arcaica e os princípios da cultura clássica: a primeira marcada na religiosidade que impele o herói a agir — comumente, em dissonância com a razão e em sintonia com a paixão —; a segunda marcada pela atitude característica do herói-trágico que, constantemente põe-se a questionar seus problemas, sua sorte, seu destino, sua vida e, assim procedem, mesmo que isto lhes seja — como muitas vezes é — muito caro.

Continuando, afirmam os autores:

A todo momento, a vida do herói se desenrola como que sobre dois planos, cada um dos quais, tomado em si mesmo, seria suficiente para explicar as peripécias do drama, mas que a tragédia precisamente visa a apresentar como inseparáveis um do outro: cada ação aparece na linha e na lógica de um caráter, de um ethos, no próprio momento em que ela se revela como a manifestação de uma potência do além de um daímon. Ethos-daímon, é nessa distância que o herói trágico se constitui. (VERNANT, 1977: 15)

Dessa forma, podemos nos perguntar que homem é esse que oscila entre o ethos e o daímon com tanta facilidade. Aristóteles, no capítulo XIII da Poética nos dá a resposta:

É [o] homem que não se distingue muito pela virtude da justiça; se cai no infortúnio, tal acontece não porque seja vil e malvado, mas por força de um erro; e esse homem há de ser algum daqueles que gozam de grande reputação e fortuna, como Édipo e Tiestes ou insignes representantes de famílias ilustres (ARISTÓTELES, 1973: 454).

Este homem trágico ao qual Aristóteles se refere padece de problemas de excelência pessoal (arete). Sempre procurando acertar e em constante busca pela justiça, segue seu caminho, porém, constantemente afasta-se da vida contemplativa (theoretikos) aproximando-se da do prazer (hedonen) e da das paixões (ARISTÓTELES, 1973: 252). Numa perspectiva aristotélica, afastando-se da razão esse homem afasta-se da arete.

***

Após estas considerações, crê-se ser tempo de passar à análise da obra em questão. Os pontos até aqui analisados serão agora situados no texto de Sófocles.

Vale ressaltar que foi dada preferência ao estudo de Édipo, sendo ele, pois, o cerne do estudo. Não cabe neste artigo uma pormenorização das demais personagens da tragédia — pois hercúleo trabalho seria!

Porém, se alguma referência surgir ao longo do texto ora escrito concernente às demais personagens da tragédia em questão, isso se dará na forma de apontamentos coadjuvantes visando melhor compreensão da personagem em foco.

As ações de Édipo em “Édipo Rei”

Far-se-á, desde já, a análise das ações de Édipo na tragédia. Abre-se o texto com Édipo proferindo as seguintes palavras:

Meus filhos, nova geração de Cadmo, / porque permaneceis aí ajoelhados / portando ramos suplicante? / Ao mesmo tempo enche-se Tebas da fumaça / de incenso e enche-se também de hinos tristes / e de gemidos. Não reputo justo ouvir / de estranhas bocas, filhos meus, as ocorrências, / e aqui estou, eu mesmo, o renomado Édipo. (SÓFOCLES, 2002: 19 V. 1-8)

Por essa passagem, vemos que Édipo apresenta-se à cidade como a solução para a peste que a estava assolando. Isso se deve a duas questões principais:

1) Édipo já havia livrado Tebas de uma primeira desventura, a Esfinge;

2) De fato, somente ele poderia livrar a cidade de seu infortúnio atual, pois ele era o problema que afligia a cidade.

Neste sentido, ao apresentar-se como um rei preocupado com os problemas da cidade e disposto a solucioná-los, Édipo antecipa o governante do período Clássico. Isso fica bastante patente quando ele afirma:

Sei bem que todos vós sofreis, mas vos afirmo / que o sofrimento vosso não supera a o meu / Sofre cada um de vós somente a própria dor; / minha alma todavia chora ao mesmo tempo / pela cidade, por mim mesmo e por todos vós. (SÓFOCLES, 2002: 19 V. 77-81)

Em sua Ética Aristóteles nos afirma que a política (politiké) abrange as outras ciências em função do Bem (agathon) humano e que o Bem do Estado é maior, mais complexo, belo e divino que o do indivíduo (ARISTÓTELES, 1973: 249-50). A Ética busca o Bem da ciência política. Ora, vê-se nesta cena um Édipo político, muito mais preocupado com seu povo que consigo, muito próximo do ideal político proposto por Aristóteles.

O rei tebano, contudo, na sua busca para solucionar o problema que maltratava a cidade, envereda por um caminho não tão próprio ao homem do período clássico: pede auxílio ao divino. Neste momento, Édipo, o político do futuro século IV, retorna o seu tempo.

Recebe, por Creonte, o oráculo de Apolo, porém não consegue compreendê-lo. Fica a interrogar-se sobre o significado das palavras oraculares, busca compreendê-las a todo custo e, é nesse momento que Édipo inicia um duplo caminho, em tudo conflitante. Se por um lado o rei de Tebas busca solucionar o enigma por meio da ação racional, empreendendo quase que uma análise policial sobre o caso, por outro, arrebatado pelas paixões se perde nas buscas.

Édipo está perdido. Não sabe por onde começar. Quer solucionar o problema, mas não sabe como. O que fazer? Percebe-se então o desvio do racional; Édipo entrega-se às paixões.

Sem saber muito bem o que fazer, Édipo afirma:

não apagarei a mácula por outrem, / mas por mim mesmo: quem matou antes um rei / bem poderá querer com suas próprias mãos / matar-me a mim também; presto um serviço a Laio / e simultaneamente sirvo à minha causa. (SÓFOCLES, 2002: 19 V.169-173)

Pode-se perceber nesta passagem a anfibologia das ações de Édipo. Apesar de afirmar que se “prestará um serviço”, procurando o assassino de Laio, ele mesmo, na medida em que empreende a procura, se vai tornando procurado. A busca pelo assassino de Laio o levaria a ele mesmo: eis a tragicidade da tragédia.

A peça continua e uma outra importante ação de Édipo vem a público. Ele atribui a sentença ao assassino de Laio:

O criminosos ignoto seja ele um só / ou acumpliciado, peço agora aos deuses que viva na desgraça e miseravelmente! / E se ele convive comigo sem que eu saiba, invoco também para mim os mesmos males / que minhas maldições acabam de atrair inapelavelmente para o celerado! (SÓFOCLES, 2002: 19 V.289-295)

Porém, até aquele momento Édipo sequer havia compreendido com clareza as palavras do oráculo de Febo. Deliberou, pois às escuras. Não teve a temperança de analisar e compreender o problema com todos os seus pormenores. Como já foi apresentado, para Aristóteles a deliberação deve ser exercida com prudência e não concluída com base numa mera opinião. Édipo agora, auto-amaldiçoado, segue seu destino.

Charles Segal afirma que:

La pièce [Œdipe Roi] met em corrélation l'identité perssonnelle, le langage et l'ordre du monde em tant que réflexions multiples de l'échec du héros à trouver les termes médiatisans et ordonnateurs de l'avie civilisée. (SEGAL, 1998: 108)

É exatamente isso que se pode perceber nesta obra de Sófocles, um herói perdido, um rei em busca de salvar a sua cidade, porém incapaz de compreender um presságio, oscilando entre o mundo sagrado e o mundo humano, um Édipo manco (VERNANT, 2000), um homem que cambaleia.

Porém o que de mais grave se percebe nas ações de Édipo é sua presunção, a idéia que alimenta sobre si mesmo, que o cega ante a verdade, que o prende numa jaula de inviolável hermetismo psíquico. Édipo se vê como salvador, se entende como a resposta de um problema que não entende. E, na verdade ele assim é.

Quando Édipo se viu diante da Esfinge, logo de sua chegada a Tebas, pôde resolver o enigma que lhe foi apresentado pelo fabuloso monstro. Isto porque Édipo percebeu ali uma espécie de redenção. O Enigma da Esfinge só poderia ser respondido por Édipo, pois ele próprio era a resposta. Veja-se o que Jean Pierre Vernant escreve sobre o tema:

O monstro está em seu montículo, vê Édipo chegar e pensa que ele é uma bela presa. A Esfinge formula o seguinte enigma: ‘Quem, entre os que vivem na terra, nas águas, nos ares, tem uma só voz, um só modo de falar, uma só natureza, mas tem dois pés, três pés e quatro pés, dípous, trípous, tetrápous?' Édipo reflete. Essa reflexão talvez seja mais fácil para um homem que se chama Édipo, Oi-dípous ‘bípede'. Responde: ‘É o homem.' (VERNANT, 2000: 168)

A situação agora é diferente. Édipo também é a resposta para o assassinato de Laio; não sabe, mas é. Sua capacidade de análise do fato lhe é dificultada por dois motivos:

1) Ele está fugindo do seu destino (“Matarás o pai e casará com a mãe”, lhe diz o Oráculo de Delfos quando Édipo o foi consultar.);

2) Compreender em si a resposta seria impossível para um homem acometido pela confiança.

Édipo é por demais confiante! Segundo Aristóteles a confiança é uma paixão e, assim sendo, desvia o homem do caminho da razão. Na “Retórica das Paixões” o filósofo afirma:

São confiantes os que se acham nas seguintes disposições: se crêem que tiveram muitos resultados felizes e nada sofreram, ou se muitas vezes chegaram a situações perigosas e escaparam, porquanto os homens são insensíveis, ou por não terem experiência, ou por não disporem de proteção. (...) ora, cremos ter superioridade (...) pelas mais importantes vantagens pelas quais somos temíveis por sermos superiores (...) e se não cometemos injustiça contra ninguém. (ARISTÓTELES, 2000: 37)

Até esta altura, Édipo só havia tido glórias na vida. Em sua consciência havia conseguido fugir do destino ao sair de Corinto, evitando assim assassinar seus pais adotivos que ele ignorava. Havia conseguido vencer a Esfinge e, assim, livrado uma cidade de seus males. Por conta disto, conquistara o direito ao trono tebano que era seu por direito, mas ele não sabia.

Édipo via a si mesmo como um afortunado sem poder aceitar, portanto, a resposta que recebera de Tirésias, o cego adivinho, que pôde “enxergar” o que o rei não conseguiu — ou não se esforçava para conseguir.

Ao ouvir da boca do haríolo a verdade sobre si, Édipo toma-se de cólera, perde por completo o senso da razão, absorve-se numa busca desesperada pela verdade, a qual ele mesmo teima em não perceber.

As palavras que Édipo direciona a Tirésias após a revelação dos fatos, transparecem um misto de ironia e sarcasmo de Sófocles. O autor faz com que o rei fale aquilo dele mesmo sem que tenha consciência: “Em tua boca / torna-se débil a verdade; tens fechados / teus olhos, teus ouvidos e até mesmo teu espírito” (SÓFOCLES, 2002: 19 V.442-443).

Mas “Édipo é um homem de busca, um indagador, um questionador. (...) Homem para quem a aventura da reflexão e do questionamento deve sempre ser tentada” (VERNANT, 2000, 1970).

Desnorteado, segue sua investigação. Agora Édipo está sozinho, desamparado. Caminha só em busca da verdade, mas que verdade ele busca? Não se vê nele apego à sabedoria do passado, representada por Tirésias, que o próprio Édipo desprezou abruptamente; tampouco se percebe o bom uso da razão, característica que lhe era tão peculiar.

Édipo, o justo, transforma-se em Édipo, o tirano, o injusto, o arrogante. E assim permanecerá, até o momento da peripécia, ou seja, da segunda e definitiva transformação sofrida pelo herói, o reconhecimento dos seus erros.

Referido reconhecimento se dará de forma gradual na obra, iniciando-se quando Édipo profere essas palavras: “Ah! Deuses! Tudo agora é Claro! (SÓFOCLES, 2002: 19 V.902). Deste ponto em diante Édipo volta a se acalmar. Tenta se encontrar uma vez mais com a razão, apega-se ainda às sabedorias divinas, vale-se de todos os meios para solucionar o problema.

A justiça somente voltará ao palácio de Édipo no momento exato do reconhecimento do seu crime. Édipo é arrebatado por uma dor insuportável, posto que não teve oportunidade de escolher seu destino; seus atos foram, de acordo com as categorias aristotélicas, atos mistos, voluntários, pois que os princípios estavam no agente; e involuntários, uma vez que nenhum homem escolheria por eles. (ARISTÓTELES, 1973: 282)

E jamais eu seria assassino / de meu pai e não desposaria / a mulher que me pôs neste mundo. / Mas os deuses desprezam-me agora / por ser filho de seres impuros / e por que fecundei — miserável! — / as entranhas de onde saí! / Se há desgraça pior que a desgraça, / ela veio atingir-me, a mim, Édipo! (SÓFOCLES, 2002: 19 V.89)

Furando os seus próprios olhos, numa passagem onde a dor e a agonia imperam, Édipo reencontra a luz da razão. Essa situação paradoxal, expressa nas entrelinhas da peça, leva o público-leitor a pensar na trajetória humana. As ações de Édipo analisadas neste artigo podem e devem ser lidas a partir da idéia que Charles Segal tão bem sintetiza: ”Œdipe le roi devient Œdipe l'homme” (SEGAL, 1998: 122).

Édipo é uma alegoria sobre a humanidade. Sua jornada simboliza os caminhos que o homem percorre através da históira; uma jornada cambaleante. Por isso mesmo o símbolo dessa humanidade é Édipo, o de pés inchados, conforme a etimologia de seu nome. Por isso é que ele seguiu um caminho marcado pelas paixões, pelas falhas, pelos excessos, tão caros à vida do homem. Segundo Segal :

Œdipe résout et vit, dans sa propre vie, en connaissance de cause, l'énigme du Sphinx qui est en même temps l'énigme de l'homme qui existe dans le temps, et de son union paradoxale de l'un et multiple, simultanément. (SEGAL, 1998: 123))

Escrita num período de transição, no qual as mentalidades sociais estão se reconfigurando, se transformando, Édipo Rei, de Sófocles, transmite um ensinamento ético valioso que será mais bem detalhado em Aristóteles. Édipo Rei ensina o caminho para a virtude (virtus), ou seja, o caminho para encontrar a disposição de caráter que torna o homem bom e que o faz desempenhar bem sua função social. (ARISTÓTELES, 1973: 272)

Édipo desempenha sua função de rei: descobre(-se) o assassino de Laio, aplica(-se) a pena merecida (o exílio) e salva sua cidade. O meio-termo (meson), aquilo que é eqüidistante aos extremos foi alcançado.

O Rei se reconcilia com a razão e, munido da prudência (phronesis) advinda do reconhecimento das suas ações, passa a transitar pelos dois universos mentais. Isso fica bastante evidente em “Édipo em Colono”, também de Sófocles. As ações edípicas servem, neste sentido, como metáfora das ações humanas. Sófocles, desprezando o platonismo de sua época antecipa o aristotelismo, fazendo da obra de arte um veículo educativo.



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Revista Mirabilia

Modo de Produção Escravista e a Sua Influência na Percepção da Sociedade Judaica no Pós-Exílio

Dr. Luiz Alexandre Solano Rossi (UNICAMP/CNPq)*
Deve-se levar em conta na análise do mundo bíblico que sua literatura foi construída a partir de relações de ordem social, econômica, política e cultural (GOTTWALD, 1988). Assim sendo, a fim de circunscrever o presente texto, é possível dizer que nos tempos bíblicos houve fundamentalmente três tipos de economia, ou seja, três modos de produção, denominados de tribal, tributário e escravista (PIXLEY, 1989;BRIGHT, 1980) . Em ordem linear é necessária uma descrição objetiva dos primeiros a fim de observarmos sinóticamente as diferenças entre eles e posteriormente uma análise mais detalhada do modo de produção escravista. Isso implica em dizer que a construção da literatura bíblica está indelevelmente marcada pelo tipo de economia e de sociedade em que as pessoas viviam.
O modo de produção tribal pode ser entendido como uma economia de partilha. Há troca de serviços e não há comercialização de produtos (DREHER:1992). Tudo é visto em função do bem comum. Valoriza-se o coletivo. A terra é percebida como de propriedade comum, impedindo assim o título de propriedade privada. A apropriação do produto se dá em base igualitária. Intercâmbios comerciais são quase inexistentes. Não se apresenta ainda uma estrutura de classe (HOUTART:1982). Na produção do campo quando há excedentes, são revertidos em favor do povo. É um modo de produção próprio ao campo. A terra na sociedade camponesa, as pastagens e os rebanhos na sociedade pastoril, são propriedades do clã ou da tribo. A única condição para o uso dos meios de produção e para o acesso ao produção social é que se pertença à comunidade.

O modo de produção tributário é baseado fundamentalmente em impostos e tributos (HOUTART:1982). Nesse sentido a sociedade passava a apresentar contradições cada vez mais intensas. Uma sociedade dividida que estava sob o controle de uma elite dominante. A economia, nesse tipo de sociedade, era dominada pelos reis, pelos dignatários da corte, pelos chefes do exército, os chefes-sacerdotes do templo, os grandes comerciantes e ainda os grandes proprietários de terra. O exercício da política e da economia acontecia a partir da cidade com o apoio irrestrito de duas instituições fundamentais: o exército e o templo. Numa sociedade de economia tributária o imposto poderia ser pago de várias maneiras, a saber: em produtos, em moeda ou ainda em dias de trabalhos forçados.

No tributarismo a organização do trabalho continua em sua forma coletiva, como também é coletiva a propriedade real dos meios de produção (DREHER:2002). A diferença essencial está no fato de existir uma minoria dominante que se apropria do excedente de produção. Originalmente, esta minoria pertencia a um grupo de pessoas destacadas na sociedade para a realização de trabalhos de ordem econômico, religioso ou militar. Como essas atividades ultrapassam as atividades precípuas do clã ou da tribo, cria-se uma relação de contrato, no qual o clã ou a tribo se dispõe a garantir o sustento desta minoria, fornecendo-lhe parte de seu excedente de produção.

Segundo Maurice Godelier

as vantagens particulares de que se beneficia esta minoria, a título dos serviços prestados às comunidades, transformam-se em obrigações sem oposição, ou seja, exploração. Constantemente, as comunidades sofrem a expropriação do solo, que se converte em propriedade do rei, personificação da comunidade superior. Há, pois, a exploração do homem, o aparecimento de uma classe exploradora, sem que exista propriedade privada da terra.

A expropriação do excedente da maioria produtora pela minoria dominante acontece sob a forma do tributo. Contudo, essa relação somente adquire ares de legitimidade pela relação de contrato existente entre os dois grupos e pode perfeitamente ser considerado ilegítimo pela classe produtora, quando o poder exercido pela minoria não lhe parece mais preencher sua função e/ou cobrança do tributo passa a ser vista como arbitrária.

Trata-se, portanto, de uma relação entre uma entidade superior, que exerce o controle econômico do conjunto por meio da arrecadação de um tributo, e unidades locais, que conservam uma ampla autonomia em virtude da posse do meio de produção e do controle sobre a organização do trabalho.

Nesse modo de produção os camponeses continuam organizando livremente a produção. A cidade não controla a força de trabalho nem os meios de produção de modo direto. O controle da economia acontece através da arrecadação do tributo (DREHER: 2002).

Deve-se salientar que o não pagamento dos impostos aumentava o endividamento dos camponeses, chegando às vezes até a escravidão (PIXLEY:1989). Se o interesse primeiro era a arrecadação de impostos, essa situação se intensificou a partir do domínio de potências estrangeiras (assírios, babilônios, persas, gregos e romanos) na região do mundo bíblico, multiplicando os impostos. A bi-tributação esgarçava ainda mais o já corroído tecido social da sociedade camponesa.

A questão do Modo de Produção Escravista só transparece em alguns escritos tardios da literatura do Antigo Testamento (DONNER:1997). A razão pode ser creditada ao fato de que apenas a partir das dominações grega e romana o mundo bíblico teve contato com o escravismo propriamente dito. Mas devemos tomar cuidado para não afirmar que o mundo bíblico não tenha conhecido a escravidão. Pode-se dizer que a conheceu e até em grande escala. Porém, não a conheceu como Modo de Produção.

Modo de Produção é um conceito teórico, assim definido por HOUTART (1982): uma representação simplificada, ideal, de diversas formas de organização social, ou seja, da natureza dos elementos que as compõem, de suas relações e das bases estruturais de sua própria transformação. É um modelo que serve de instrumento de análise e de interpretação de uma determinada realidade social (GEBRAN, 1978). Este modelo parte do pressuposto de que a forma assumida por uma determinada sociedade sempre depende da maneira pela qual é organizada a sua vida material. Como diz o nome, um determinado modo de organizar a produção da vida material vai levar esta sociedade a assumir uma determinada forma de organização social, político-jurídica, além de uma ideologia que explica, às vezes questiona e representa a realidade que se vive. As estruturas político-jurídica e ideológica sempre serão determinadas pela estrutura econômica, isto é, pelo modo de organizar a produção da vida material. Nem sempre a base econômica tem o papel dominante num determinado Modo de Produção. Muitas vezes as outras estruturas terão esse papel. Mas será sempre a economia que determinará o Modo de produção. Só teremos um novo Modo de Produção à medida que a maneira de organizar a produção da vida material se alterar (FIORAVANTE:1978).

Em função disso, para perceber um Modo de Produção é preciso estar atento para os três elementos-fatores da base econômica (HOUTART:1982): 1) o trabalhador, que é o produtor direto ou força de trabalho; 2) os meios de produção, que são os objetos e meios de trabalho; 3) o não-trabalhador, que não intervém na produção direta, mas que se apropria do produto. Destes três fatores e de sua articulação irá depender toda a organização social, política e ideológica de uma determinada sociedade.

É importante salientar que Modo de Produção é um conceito hipotético. Não existe em seu estado puro. Diferente é o que chamamos de Formação Social. Este conceito indica uma sociedade historicamente determinada. Numa Formação Social podem existir, de maneira combinada, diferentes modos de produção. Um deles, porém, será determinante. Em outras palavras: numa Formação Social sempre haverá um Modo de Produção que se imporá ao conjunto, caracterizando o todo social (ANDERSON:1988; GEBRAN:1978).

A simples existência de escravos numa sociedade ainda não significa que possamos falar de um Modo de Produção Escravista. Também as sociedades tribais e tributárias conheceram a escravatura. Porém com um diferencial: a prática da escravidão nessas sociedades não alterava a sua estrutura econômica. O modo de organizar a sua produção da vida material não dependia da existência de escravos. O modo de produção dominante na Grécia clássica, que regia a complexa articulação de cada economia local e dava o seu cunho a toda a civilização da cidade-estado, era o escravista. O conjunto do mundo antigo nunca foi marcado pelo predomínio de trabalho escravo.

Quando, porém, escravos – ou seja, pessoas transformadas em propriedade jurídica de alguém – passam a ser utilizados sistematicamente na produção, permitindo que surja uma classe de homens livres que não trabalham e têm sua subsistência garantida pelo trabalho daquelas pessoas reduzidas a instrumentos e meio de produção, então podemos falar de escravismo ou de um Modo de Produção Escravista (HINDESS & HIRST:1976). Decisivo é que a sociedade escravista não subsiste sem a existência de escravos. Toda a economia, a organização do trabalho, e a própria existência daquela classe de homens livres dependem de sua base, ou seja, do trabalho escravo.

Contudo, para que a economia possa ser organizada sobre o trabalho escravo, há que contar com outros dois fatores anteriores. O primeiro deles é o surgimento da propriedade privada da terra (DREHER:2002). É desta propriedade privada que os cidadãos livres irão extrair o excedente que lhes permitirá concentrar terras além do que lhes seja possível cultivar em regime familiar. Esta concentração exigirá, então, a existência de uma mão de obra permanente e extrafamiliar que permita aos cidadãos livres usufruir do produto, sem participar da produção. Esta mão de obra será encontrada no escravo.

Ao mesmo tempo deve haver uma economia mercantil suficientemente desenvolvida. Escravos são mercadoria que se pode adquirir. Mesmo que isso ainda não ocorra em bases monetárias, há que contar com outra mercadoria que permita comprar escravos, ou seja, a produção do campo, basicamente.

Estes dois fatores fazem com que, em decorrência da inexistência de um suprimento interno de mão de obra dependente, se passe a buscar escravos fora. A guerra e a caça de pessoas irão propiciar, então, uma maior oferta dessa mercadoria tão ambicionada, em vista das novas necessidades na produção. De acordo com VENDRAME (1981) “o prisioneiro de guerra, uma vez caído na mão do inimigo, tornava-se coisa dele e podia ser utilizado da maneira que o vencedor achasse mais conveniente para si”. Seria, pois correto afirmar que em etimologias do antigo Oriente Médio, o termo que designa o escravo deriva da mesma raiz do termo que designa o estrangeiro. O que leva a concluir num primeiro momento que os primeiros escravos não pertenciam ao mesmo país de seus donos, mas eram estrangeiros capturados no calor da guerra. Quanto maior for o número de escravos, tanto maior será a produção, a concentração de terras devolutas e a própria atividade mercantil.

Como Modo de Produção dominante, escravismo existiu, no mundo antigo, apenas na Grécia, a partir do final do século V aC e início do século IV dC. Na antiguidade grega a escravidão era praticada primariamente pelo Estado, freqüentemente em atos de conquista e reconquista imperial. Depois das conquistas de Alexandre, juntamente com o luxo aumentaram as prestações dos escravos, exigindo um número sempre maior deles. É sobretudo a partir do IV século que o número de escravos aumentou enormemente. Segundo dados recolhidos em VENDRAME (1981), calcula-se que “em Atenas, para 20.000 cidadãos, houvesse 10.000 metecos e 400.000 escravos. Em Corinto, os escravos eram cerca de 460.000”. O seu ponto alto foi atingido em Roma, entre os séculos III aC e III dC. Nesse o escravo está totalmente incorporado aos meios de produção, sendo compreendido como um tipo de instrumento que fala.

Os gregos introduzem uma nova economia, que precisava de escravos. Essa nova economia grega tem seu eixo fundamental no comércio. Para VENDRAME (1981), a maior fonte de escravos para a Grécia era o comércio regular, sobretudo com os países onde existiam colônias gregas. A primeira coisa que o comércio precisa é da mercadoria, isto é, de produtos que não são produzidos para consumo próprio, mas que servem para a exportação. A promoção do comércio seria, portanto, um incremento à produção.

Se pensarmos numa flecha do tempo guiando os modos de produção relativos ao mundo bíblico, poderíamos perceber uma onda de progresso linear ao longo do tribal – tributário – escravista. Esclarecendo: pode-se dizer que somente no período da sedentarização que a escravidão assumiu proporções relevantes. As tribos nômades não podiam evidentemente levar consigo uma quantidade expressiva de escravos. Era muito mais fácil eliminá-los. Nos tempos antigos o crescimento do fenômeno da escravatura andava paralelo ao progresso dos países. Com o advento do comércio, com a criação de cidades, a construção de palácios, a abertura de estradas e a fabricação de navios, os escravos aumentam aos milhares e vêem sua sorte comprometida pelo progresso inexorável da flecha do tempo.

O modo de produção escravista pode ser considerado um tipo de economia que reduz tudo a mercadoria. Tudo passa a ser visto sob a ótica do que pode ser comercializado. Assim, as pessoas são reduzidas a objetos de mercado. São compradas e vendidas como qualquer outra mercadoria. Pode-se dizer que os escravos valem pelo corpo que têm e pela capacidade de produção. A escravidão se torna a base da economia. De acordo com ANDERSON (1988) o trabalho escravo da antiguidade clássica incorporava dois atributos contraditórios, que poderiam ser assim descritos: 1) a escravatura representava a mais radical degradação do trabalho rural imaginável. Essa situação indicaria a conversão dos próprios homens em meios de produção inertes através de sua privação de todos os direitos sociais e da sua assimilação jurídica a besta de carga; 2) a escravatura era simultaneamente a mais drástica comercialização urbana do trabalho que se possa conceber, ou seja, a redução da pessoa total do trabalhador a um objeto padronizado de compra e venda nos mercados metropolitanos de troca de mercadorias.

Comparativamente a exploração é mais forte no modo de produção escravista do que no modo de produção tributário. Afinal, não se exploram apenas os produtos, mas também os que trabalham, transformando-os em meras mercadorias. Conseqüentemente, as pessoas perdem o seu valor, sua subjetividade e sua identidade própria. Vivem numa crescente instabilidade e insegurança não sendo mais sujeitos de si mesmos. Um modo de produção onde as relações sociais encontram-se pervertidas. Segundo HORSLEY (1998) os escravos eram pessoal socialmente mortas e isoladas da herança social de seus antepassados.

O aumento da produção, por sua vez, exige o aumento do trabalho. Na cultura grega o trabalho é coisa dos escravos. O homem livre não trabalha ou então trabalha o mínimo possível. Cabem-lhes ações mais nobres como o cultivo do saber (filosofia), da beleza (arte), do lazer (esporte), etc. Temos a impressão de que a nova economia introduzida pelos gregos precisava de escravos e a guerra seria um dos instrumentos privilegiados para aumentar o número deles.

Neste Modo de Produção, ser escravo significa ser propriedade jurídica de outra pessoa. O escravo é mercadoria e, como tal, objeto. É obrigado a trabalhar para seu dono, produzindo riqueza e prestando serviços gerais. Trabalha tanto no campo, nas minas (onde se movimentavam legiões de escravos – VENDRAME, 29) - e no artesanato quanto nas atividades domésticas. Economicamente o escravo é, ao mesmo tempo, produtor direto e meio de produção, uma vez que, como propriedade de outro, passa a ser visto como instrumento de trabalho. Do trabalho que realiza, cabe-lhe como parte apenas o mínimo necessário para reproduzir a sua força de trabalho. Para HINDESS & HIRST (1976) a posse efetiva do escravo como propriedade, onde o processo de trabalho se baseia na escravidão, a posse efetiva dos escravos pressupõe a possibilidade de aplicação de sua força de trabalho a alguma atividade definida.

O impacto desse modo de produção sobre o mundo bíblico é inigualável. Não há como negar que sempre houve escravos ao longo da história da humanidade, mas a escravidão como base da economia e da sociedade é produto da cultura greco-romana (ANDERSON:1988). Desenvolveu-se a partir do domínio grego à época de Alexandre. O avanço da cultura escravista da sociedade abalou sensivelmente a vida do povo da Bíblia, tão ligado às tradições clânico-familiares, deixando-o como estrangeiro em sua própria terra. O abalo na sociedade é tão sensível que entre 167-142 aC encontramos aquilo que é denominado de insurreição macabaica, uma ousada tentativa de impedir o avanço da cultura grega e do escravismo, em detrimento das tradições clânicas (cfe 1 Macabeus 2.19-28). A linguagem religiosa do texto bíblico julga negativamente a dominação grega, afirmando: “Eles multiplicaram os males sobre a terra” (1 Macabeus 1.9).

A insurreição macabaica irrompeu na zona rural, conduzida pelo sacerdote Matatias e seus filhos (GOTTWALD:1988). Pode-se dizer que em Matatias está representada a consciência nacional, que não se conforma com a opressão e anseia pela liberdade (GALAZZI:s/d). A guerra civil e religiosa dividia o país. Judas, terceiro filho de Matatias – morto em 166 a.C., - foi o sucessor natural de seu pai como líder do movimento revolucionário. Ele é descrito como um “valente guerreiro desde a sua juventude” (1 Macabeus 2.66) e semelhante a um “leão em seus objetivos” (3.4). A ele foi dado o apelido de Macabeu, cujo significado é “martelo” ou ainda “cabeça de martelo”, tomado, sem dúvida, de sua bravura militar. Embora este nome se aplique estritamente ao próprio Judas, ele é geralmente usado também como referência aos seus irmãos que continuaram a revolta macabaica.

Têm-se colocado as razões religiosa e cultural como motivo para a helenização da Judéia e a conseqüente resistência macabéia. Contudo, a lógica que parecia estar imperando naquela época era a da economia. Afinal, parece que os conflitos com os macabeus não têm objetivos tão somente religiosos. Contudo, esse conflito será transmitido a partir da simbologia religiosa que tentará exprimir os interesses igualitários dos camponeses (KIPPENBERG:1988). Os macabeus, líderes da resistência judaica, saem em defesa da manutenção dos laços de parentesco e da solidariedade étnica contra a instalação do regime da pólis em Jerusalém. Essas relações de parentesco podem ser assim descritas (KIPPENBERG: 1988): a) a estrutura de parentesco determina a reprodução das famílias e as relações sociais dentro da família; b) a estrutura de parentesco une as famílias em uma hierarquia baseada nas prerrogativas dos irmãos mais velhos sobre os mais novos, mas cria laços de solidariedade entre eles; c) a terra pode ser negociada entre parentes, mas não com estranhos ao círculo de parentesco.

Pode-se dizer, então, que há motivos econômicos para o conflito que o processo desencadeia (KIPPENBERG, 1988). O texto de 1 Macabeus 10.29-31, que trata de uma isenção de impostos concedida aos judeus mais tarde, em 152 a.C., por Demétrio I, dá-nos uma idéia dos tributos recolhidos pelos selêucidas na Judéia: “Desde agora desobrigo-vos, e declaro isentos todos os judeus, dos tributos, do imposto sobre o sal e do ouro das coroas. Igualmente renuncio à terça parte da semeadura e á metade dos frutos das árvores, que me cabiam de direito: de hoje em diante deixo de arrecadá-lo à terra de Judá e aos três distritos que lhe foram anexos, bem como à Samaria e à Galiléia. Isto a partir do dia de hoje e para todo o tempo. Jerusalém será considerada santa e isenta, assim como seu território, sem dízimos e sem tributos”.

É também significativo que a primeira notícia a respeito da gênese do conflito com o helenismo aponte uma razão de ordem econômica. É o que lemos em 2 Macabeus 3.4: “Ora, certo Simão, da estirpe de Belga, investido no cargo de superintendente do Templo, entrou em desacordo com o sumo sacerdote a respeito da administração dos mercados da cidade”. Nesse sentido, pode-se adiantar, que a pressão que a aristocracia exercia sempre mais em direção à helenização total da Judéia, tinha como objetivo claro quebrar as barreiras da tradição de solidariedade baseada na aliança com Deus.

Economia e comércio caminhavam pari passu. No começo de 167 a.C., Antíoco IV envia a Jerusalém um determinado Apolônio, comandante das tropas mísias, com forte contingente militar. A ação é devastadora: assassinatos em massa e escravidão. As muralhas da cidade são destruída e edifica-se uma poderosa fortaleza militar em Jerusalém, conhecida, em grego, como Acra = cidadela. Esta cidadela funcionava como sede de uma guarnição e estava encostada no Templo. Durante aproximadamente 25 anos a Acra será o braço armado selêucida em Jerusalém, verdadeiro espinho atravessado na garganta dos judeus,

Dois textos bíblicos ajudam a compreender essa situação. 2 Macabeus 5.23b-24 retrata a intervenção de Apolônio como segue: “Nutrindo para com os súditos judeus uma disposição de ânimo profundamente hostil, o rei enviou o misarca Apolônio á frente de um exército de vinte e dois mil homens, com a ordem de trucidar todos os que estavam na força da idade e de vender as mulheres e os mais jovens”. A pilhagem, o tributo e os escravos seriam, na opinião de ANDERSON (1988), os objetos centrais de engrandecimento da expansão colonial. Nesse sentido, o poder militar estava mais estreitamente ligado ao crescimento econômico do que talvez qualquer outro modo de produção. E ainda em 1 Macabeus 1.33-35 encontramos a descrição da construção da Acra: “Então reconstruíram a cidade de Davi, dotando-a de grande e sólida muralha e torres fortificadas, e dela fizeram a sua Cidadela. Povoaram-na de gente ímpia, homens perversos, e nela se fortificaram. Abasteceram-na de armas e víveres e nela depositaram os despojos tomados em Jerusalém, tornando-se eles assim uma armadilha enorme”.

Definido desta maneira, o escravismo, enquanto Modo de Produção, a partir do domínio grego sobre a Palestina (333 aC em diante), irradiará sua influência nas relações de ordem social, econômica, política e cultural.



Referência Bibliográfica

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* O professor Luiz Alexandre Solano Rossi, bolsista de Pós-Doutoramento do CNPq, atua em programa de Pós-Doutoramento, sob supervisão do Prof. Dr. Pedro Paulo A. Funari, no Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP, com apoio, também, do Centro de Pensamento Antigo da UNICAMP.

Revista Mirabilia