segunda-feira, 30 de março de 2009

História do Capitalismo - De especulação também se vive

RELAÇÕES EXTERIORES
A história do capitalismo mostra que o sistema econômico enfrenta abalos financeiros desde o século XVII e que as crises estão ligadas ao eterno processo de empréstimos, investimentos e inadimplências

POR MARCOS LOBATO MARTINS

Multidão de investidores reunidos do lado de fora do Banco dos Estados Unidos, após anunciar falência, em 1931

Em setembro de 2008, o estouro da "bolha imobiliária" americana deu início a uma crise financeira de enormes proporções. Há quem chame essa crise de "o primeiro crash da globalização". Outros a vêem como o início do fim do "império norte-americano" e a certidão de óbito do neoliberalismo. Para os historiadores econômicos, a assombrosa perda de riqueza que está ocorrendo agora, graças ao derretimento do sofisticado mercado financeiro construído nos países centrais, evidencia algo mais prosaico, embora terrível: o capitalismo é inseparável de crises financeiras agudas. A história do capitalismo pode ser contada, portanto, por meio dos dramáticos enredos das numerosas crises financeiras que ele engendra. É o que se propõe neste artigo, com a devida brevidade.

LUCRO, COMPETITIVIDADE E INSTABILIDADE

Considerado o criador da moderna economia, o escocês Adam Smith (1723-1790), no livro A Riqueza das Nações, apreendeu o princípio motor do capitalismo: "Não é da benevolência do padeiro, do açougueiro ou do cervejeiro que eu espero que saia o meu jantar, mas sim do empenho deles em promover seu próprio auto-interesse". É a vontade de obter dinheiro e lucro que anima os agentes econômicos, que faz os mercados funcionarem e, segundo Smith, promoverem, de lambuja, o bem-estar dos indivíduos e da coletividade. O mercado capitalista, sob o regime do laissez-faire (deixai estar), produziria a marcha inelutável para o progresso. Ao Estado, caberia apenas garantir a ordem e a segurança contra os inimigos externos.

O alemão Karl Marx, fundador da teoria marxista, que influenciou as grandes revoluções do século XX

As crises econômicas e as revoluções sociais do século XIX colocaram em xeque a visão idealizada do liberalismo de Adam Smith. Karl Marx (1818- 1883), o mais eminente crítico do capitalismo, construiu uma poderosa e influente interpretação da economia capitalista, na qual ganharam relevo as falhas - e, portanto, as crises - inerentes à dinâmica das forças de mercado. O ponto de partida do marxismo é o mesmo: o mercado é o princípio organizador da sociedade capitalista, de maneira que essa sociedade está presa a forças subterrâneas que têm vida própria. No interior do mercado, movem-se indivíduos impulsionados pelo desejo de ganhar dinheiro, de acumular capital.

O mecanismo da competição econômica, segundo Marx, gerava simultaneamente tanto a riqueza quanto a pobreza, bem como a tendência à concentração dos capitais. Mas a trajetória da economia capitalista não é suave, tampouco apenas ascendente. Marx dedicou bastante atenção aos solavancos da roda da fortuna capitalista. Assinalou a tendência recorrente da economia de perder impulso e até mesmo de ir para trás, vivendo em "ciclos", passando de períodos de expansão para períodos de contração.

A explicação para os ciclos pode ser encontrada nos excessos e desajustes de oferta e demanda, nas retrações de crédito, nas variações de otimismo e pessimismo entre os agentes econômicos, no aparecimento de rupturas tecnológicas ou institucionais e alterações nas relações de força entre trabalho e capital (embates entre sindicatos, empresas, governos e opinião pública).Enfim, a interpretação de Marx põe em relevo três características do capitalismo histórico: a) aguda instabilidade; b) baixa previsibilidade; e c) difícil governabilidade.

Para se ter uma idéia da montanha-russa que é a economia capitalista, basta lembrar que, desde 1790, há registros confi- áveis de pelos menos 46 ciclos econômicos irregulares. Entre 1854 e 1919, a duração média de uma recessão era de 22 meses; nos Estados Unidos, a economia se retraía em média a cada 49 meses. Mesmo nos tempos atuais, as crises econômicas continuam freqüentes. Segundo o FMI (Fundo Monetário Internacional), desde 1970 ocorreram 124 crises financeiras pelo mundo afora.

"Irei até o Paraíso (...) onde se vendeu a primeira ação do mundo. EVA COMPROU-A À SERPENTE, COM ÁGIO, VENDEU-A A ADÃO, também com ágio, até que ambos faliram. Machado de Assis, crônica de 23/10/1892"

Mais de mil homens desempregados marcham em direção à Tesouraria de Perth, na Autrália ocidental, para ver o Premier Sir James Mitchell, em 1931

Tendo em vista essas características do capitalismo, o economista Hyman Minsky (1919-1996), um dos pioneiros no estudo de crises financeiras, observou ironicamente, em 1982, que o mais significativo evento econômico desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) "é algo que não aconteceu: não houve uma depressão profunda e duradoura" na economia internacional.

CRESCIMENTO, CRÉDITO E MERCADO FINANCEIRO

O capitalismo depende da propensão para o consumo, fato que Henry Ford (1863-1947) expressou muito bem quando afirmou: "Quem faz o emprego do trabalhador é o consumidor, que é o próprio trabalhador". Para manter a pleno gás o reator da demanda, as empresas começaram a criar, elas próprias, as necessidades de novos bens e serviços, incrementando a pesquisa, o projeto e o marketing. Seduzidos, os consumidores precisam de crédito para comprar os bens e serviços que anseiam. As empresas também precisam de crédito para expansão de seus negócios, capital de giro, financiamento de inovações e da comercialização e de quem lhes ajudasse a lançar títulos nos mercados de capitais. Por isso.mesmo, os bancos são peças vitais da engrenagem capitalista contemporânea. Sem eles, a economia pára de funcionar.Os bancos operam, por natureza, alavancados.

No sistema bancário, o crédito de um é o débito do outro. Essa cadeia liga os bancos entre si e aos clientes

Eles criam dinheiro, na medida em que possuem capacidade de gerar meios de pagamento. Os depósitos à vista que os bancos captam de indivíduos e empresas são multiplicados por meio de empréstimos para terceiros, inclusive outros bancos. Assim, o sistema bancário cria crédito e possibilita negócios que não seriam viáveis sem ele. O decisivo, porém, é o fato de que, no sistema bancário, o crédito de um é o débito do outro. Uma cadeia intricada de créditos e débitos liga invisivelmente os bancos entre si e com seus clientes. De modo que a falência de um banco pode ser vista como a derrocada do sistema bancário, causando prejuízos generalizados.

O empresário Henry Ford, o inventor Thomas Edison, e o empreendedor Harvey Firestone, em 1929 - eles colaboraram para a formação das grandes indústrias

A posição estratégica dos bancos na economia é algo relativamente recente. Nos primórdios do capitalismo, o período mercantilista dos séculos XV a XVIII, a atividade principal dos bancos concentrou-se no financiamento da dívida pública dos Estados europeus (garantida por impostos) e do comércio a longa distância (monopolizado por companhias privilegiadas). Na Inglaterra da Revolução Industrial (1760-1830), os bancos mantiveram sua atuação tradicional, participando marginalmente do financiamento dos novos empreendimentos fabris.

As atividades industriais lançaram mão de economias familiares e do reinvestimento de lucros gerados pelas próprias indústrias, algo possível naqueles tempos pioneiros, uma vez que os capitais exigidos pelas fábricas eram relativamente modestos. Na segunda metade do século XIX, o papel dos bancos, principalmente nos Estados Unidos e na Alemanha, sofreu transformações de monta. Enquanto os bancos ingleses aumentaram suas operações de desconto mercantil e reforçaram sua função de sistema de crédito internacional, as instituições financeiras americanas e alemãs assumiram a função de antecipação de capitaldinheiro para as empresas, colocando o crédito a serviço da formação de corporações econômicas gigantescas.

A "bolha das tulipas", que arruinou a economia holandesa no século XVII pode ser comparada à crise da Nasdaq, em 2000; abaixo, panfleto holandês da "tulipomania", datado de 1637

Na Holanda, no século XVII, as tulipas viraram uma febre: elas eram trocadas por terras, animais e casas

O capital a juros dos bancos, sob forma "livre" e líquida, possibilitou a fusão dos interesses entre os bancos e a indústria, concretizada na forma das "sociedades anônimas" no final do século XIX. A propósito, escreveu o economista inglês John Hobson (1858-1940), autor do livro Th e Evolution of Modern Capitalism: "Quando nos damos conta do duplo papel desempenhado pelos bancos no financiamento das grandes companhias, primeiramente como promotores e subscritores (e freqüentemente como possuidores de grandes lotes de ações não absorvidas pelo mercado) e, em segundo lugar, como comerciantes de dinheiro - descontando títulos e adiantando dinheiro - torna-se evidente que o negócio do banqueiro moderno é a gestão financeira geral e que a dominação financeira da indústria capitalista é exercida fundamentalmente pelos bancos".

Esse processo deu origem a uma "classe fi- nanceira", que torna a gestão empresarial intrinsecamente especulativa, repleta de práticas destinadas a ampliar "ficticiamente" o valor do capital existente. Essas práticas só podem ter livre curso com o alargamento do crédito, exigindo a constituição de enorme e complexo aparato financeiro. O "financista" utiliza sua função de direção dos fluxos de capital, que é legítima e profícua, para desenvolver abusivamente métodos de ganho privado, manipulando, como feiticeiro, pilhas de papéis e estimativas de retornos e riscos para atrair a confiança de poupadores que lhes destinam suas economias.

PRIMÓRDIO DAS CRISES: A BOLHA DAS TULIPAS

Desde o surgimento dos bancos na Idade Média, a história das finanças é repleta da imagem de investidores arruinados com os resultados da própria cupidez. O capitalismo, por assim dizer, banalizou essa imagem. Entre os séculos XV e XVIII, encontram-se antepassados dos grandes crashes dos séculos XX e XXI.

Um desses antepassados é a curiosa "bolha das tulipas", que produziu estragos na Holanda do século XVII. A "bolha das tulipas" é vista por muitos como a primeira bolha de mercado, e comparada à crise da Nasdaq, a bolsa das empresas pontocom nos Estados Unidos.

As tulipas chegaram à Europa, provavelmente vindas da Turquia, em meados dos anos 1500. Na Holanda, os portos encheram-se de flores, especiarias e plantas exóticas, destacando- se as tulipas, cujo cultivo teve início ali em 1593. No alvorecer do século XVII, a flor já era muito usada por jardineiros e apreciada por colecionadores, em decorrência de sua beleza. Rapidamente, a popularidade da tulipa cresceu. Mudas especiais receberam nomes extravagantes ou de almirantes da marinha holandesa. As mais desejadas tinham cores vívidas, linhas e pétalas flamejantes. A tulipa tornou-se artigo de luxo e símbolo de status, estabelecendo-se a competição entre indivíduos das classes altas, mercadores e artesãos, pela posse das variedades mais raras. Os preços começaram a disparar. Em 1623, um simples bulbo da variedade Semper Augustus custava 1.000 florins. As tulipas eram trocadas por terras, animais e casas. Um bom negociante de tulipas conseguia ganhar 6.000 florins por mês, quando a renda média anual, à época, era de 150 florins.

O movimento ascendente dos preços das tulipas não cessou até 1636. As tulipas eram negociadas nas bolsas de valores das ricas cidades holandesas. Muitas pessoas venderam ou negociaram suas posses no intuito de especular no mercado de tulipas.

Quadro do inglês Edward Matthew Ward (1816-1879), representando o colapso da South Sea Company; abaixo, ilustração ironizando a queda das ações da companhia


Negociantes passaram a vender bulbos de tulipas que tinham acabado de plantar ou que tencionavam plantar - os chamados contratos futuros de tulipas -, em transações conhecidas como weindhandel ("negócio de vento"). Na base das expectativas exageradas a respeito da evolução dos preços das tulipas, estava o Banco de Amsterdã, com sua capacidade de estender o crédito e suportar o avanço da especulação.

Porém, no início de 1637, a "bolha das tulipas" estourou. Surgiu a suspeita de que a procura por tulipas não duraria. O movimento de subida dos preços dos bulbos terminou, induzindo os comerciantes a vendê-los. Os preços, então, subitamente caíram 90%. Alastrou-se o pânico no mercado. Muitos compradores deixaram de honrar os contratos de compra de tulipas. Outros se acharam na posse de bulbos cujo preço era, agora, muito inferior ao que haviam pagado. Os severos juízes holandeses consideraram as dívidas sem valor legal, porque resultantes de negócios especulativos, o que deixou os vendedores de tulipas sem o poder de executar o pagamento dos contratos. Por conseguinte, milhares de holandeses, incluindo membros da alta sociedade, tiveram prejuízos enormes.

O COLAPSO DOS MARES DO SUL

No início do século XVIII, a poderosa Inglaterra ficou às voltas com a "bolha dos Mares do Sul", episódio de especulação desenfreada envolvendo as ações da South Sea Company. Endividado por gastos de guerra, em 1711, o governo inglês obteve dessa companhia um empréstimo de 11 milhões de libras, a ser fi- nanciado a juros de 6%. A companhia recebeu, ainda, garantia do monopólio das trocas nos Mares do Sul. A empresa aceitou o negócio, de olho nas oportunidades de ganho com o comércio de escravos e as trocas nos portos das colônias espanholas.

Para financiar as operações, a South Sea Company começou a emitir ações. Os investidores foram atraídos pelos lucros potenciais associados ao monopólio em poder da companhia. Várias emissões de ações foram realizadas com sucesso, enquanto os diretores cuidavam de alimentar a imagem de prosperidade da empresa, abrindo diversos escritórios e espalhando boatos de que a Espanha garantira o uso total dos portos coloniais pelos navios da companhia. Virou mania possuir ações da South Sea Company, o que estimulou banoutras empresas a entrarem no mercado de ações. Os investidores responderam com avidez. Fortunas formaram-se do dia para a noite. A euforia cresceu - até mesmo Sir Isaac Newton (1643-1726) adquiriu ações da South Sea Company - e alcançou a Europa continental, onde muitos investidores compraram ações negociadas em Londres.

Mas, em 1718, o início da beligerância entre Inglaterra e Espanha inviabilizou os planos da South Sea Company. Os seus diretores, então, inescrupulosamente emitiram mais ações. Em seguida, venderam seus papéis, obtendo lucros elevados. Quando os investidores se aperceberam da realidade da companhia, as ações despencaram. Os diretores da South Sea Company fugiram para outros países. Isaac Newton perdeu 20 mil libras. Milhares de pessoas perderam muito dinheiro. O governo inglês reagiu proibindo a emissão de ações, medida que foi relaxada somente um século depois, em 1825. A economia da velha Albion, portanto, ressentiu- se com o episódio.

Há quem veja analogias entre a "bolha dos Mares do Sul" e a crise da falência da Enron, gigante americana da energia, ocorrida nos anos 1990. Corrupção, gestão fraudulenta, ganância de executivos, expectativas irreais, fiscalização leniente. Ingredientes que fomentam crises.
A FALÊNCIA DO INGLÊS OVEREND & GURNEY

A quebra do banco inglês Overend & Gurney ilustra o tipo de crise bancária decorrente de dificuldades de liquidez (dinheiro) que contagiam instituições financeiras menores. Antigo e respeitado banco da City, o Overend & Gurney era, conforme o jornal Th e Times of London, o maior instrumento de crédito do Reino, recebedor dos fundos excedentes dos pequenos bancos espalhados pela Inglaterra. Quando, em 1856, morreu Samuel Gurney (1786-1856), o fundador do banco, uma nova geração de sócios assumiu o comando da instituição e abandonou dois séculos de austera administração quaker.

Eles começaram a emprestar os fundos de curto prazo depositados no Overend & Gurney para financiar empreendimentos de retorno a longo prazo: navios, portos e, principalmente, estradas de ferro. Quando os resultados esperados não ocorreram (no caso das ferrovias, após a febre de construção em meados do século, a concorrência excessiva entre as empresas causou extraordinária queda dos lucros), boatos espalharam-se e os depositantes do banco Overend & Gurney começaram a exigir seu dinheiro de volta. Nas palavras de Walter Bagehot (1826-1877), à época editor do Th e Economist, os sócios geriram os negócios do banco "de maneira tão inescrupulosa e tola a ponto de qualquer criança que tivesse aplicado dinheiro na City teria se saído melhor". Em maio de 1866, a corrida bancária teve início.

A morte de Samuel Gurney (1786-1856), à esqueda, fundador do Overend & Gurney, desencadeou a crise que atingiu o banco inglês

Os controladores do Overend & Gurney acreditaram que viria socorro do Banco da Inglaterra. Este, por sua vez, decidiu deixar a casa falir, julgando que o pânico seria curto. A multidão furiosa rumou para Lombard Street, rua de Londres onde ficavam as sedes de muitos bancos. A polícia interveio. Muita gente teve perdas pesadas. Uns poucos depositantes do Overend & Gurney recuperaram seu dinheiro, após longos litígios judiciais. Os sócios desse banco perderam seus bens, obras de arte e dinheiro, foram processados criminalmente, mas terminaram absolvidos.

Em 1873 surgiu o livro de Walter Bagehot (1826-1877), Lombard Street, propondo que deveria existir um "emprestador de última instância" capaz de injetar liquidez temporária nas instituições que enfrentassem problemas de acesso a dinheiro, mas não eram insolventes. Para o jornalista e economista inglês, o "emprestador de última instância" deveria, diante da crise bancária, anunciar sua prontidão de emprestar sem limites para estabilizar o mercado e deter, no estado inicial, o "contágio" do sistema financeiro. Bagehot escreveu, ainda, que uma crise financeira possui três fases: o alarme, quando o público percebe que uma ou outra instituição está fragilizada e pode quebrar; o pânico, quando se desconfia que todo, ou quase todo, o sistema fi- nanceiro pode estar abalado; a loucura, quando cada um se convence de que não há mais salvação e é o "salve-se quem puder".

Obra do pintor holandês Marinus van Reymerswaele (1490- 1546), O banqueiro e sua mulher, retrata o surgimento dos bancos durante a Idade Média

A crise do Barings Brothers é comparável à "crise da dívida externa" dos países emergentes, nos anos 1980

A revista norte-americana Puck Magazine, mostra o Tio Sam ao lado de Pierpont Morgan, fundador do banco Morgan, mostrando a disparidade entre a importância de cada um

APLICANDO A PROPOSTA

A proposta de Bagehot foi empregada pela primeira vez na crise do Barings Brothers, em 1890-1891, situação que guarda semelhanças com a chamada "crise da dívida externa" dos países emergentes na década de 1980, que perturbou os mercados financeiros americano e europeu.

Na década de 1880, havia grande massa de recursos financeiros no mercado inglês, à procura de oportunidades de investimentos de alta lucratividade. Esses capitais fluíram principalmente para os Estados Unidos, Argentina, Austrália e Rússia. Na Argentina, esse dinheiro aportou em obras de infra-estrutura, ferrovias e sob a forma de empréstimos públicos. A entrada maciça de libras no país provocou o aumento das importações, forte expansão do crédito bancário interno, emissão excessiva de moeda, gasto público elevado e especulação de todo tipo, tudo lastreado no endividamento externo.

Por conseguinte, a balança de pagamentos argentina ficou bastante deficitária, mas a entrada de investimentos externos possibilitava o fechamento das contas. Porém, na década de 1890, a recessão na Europa provocou a diminuição da inversão externa na Argentina e a queda dos preços das exportações do país (lã, carnes e cereais). Por conseguinte, os argentinos começaram a ter dificuldades cada vez maiores para cumprir os compromissos externos. A desconfiança dos investidores europeus na capacidade de pagamento da Argentina levou o país à moratória, no ano de 1891.

Havia anos que a casa Barings canalizava para a Argentina vastas somas e garantia os rendimentos dos aplicadores. Quando a crise surgiu, em 1890, bancos argentinos faliram e as cotações das ações de empresas platinas e dos títulos da dívida pública desabaram. O Barings Brothers teve prejuízos enormes, fechando as portas provisoriamente. Dessa vez, porém, o governo britânico socorreu a instituição.

Em novembro de 1890, negociações secretas entre o Banco da Inglaterra e financistas de Londres, liderados pelo banco Rothschild, levaram à criação de um fundo de resgate de 18 milhões de libras esterlinas, antes que a extensão do prejuízo do Barings fosse conhecida publicamente. Esta intervenção, que contou com participação do Banco da França, do Banco da Rússia e do americano Morgan, evitou uma crise financeira de grandes proporções.

Multidão em frente ao American Union Bank, em Nova York, durante a Grande Depressão - o banco começou a funcionar em 1917 e fechou as portas em 1931

Imagem de 1907; aglomeração de pessoas em Wall Street, durante o "pânico dos banqueiros"

TENSÃO EM NOVA YORK NA BELLE ÉPOQUE

A quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1907, representou forte choque em um ambiente de grande liberdade de fluxo de capitais e bens, característico da "globalização", sob hegemonia britânica na belle époque. Desde a segunda metade da década de 1890, a economia norteamericana entrara numa fase de crescimento expressivo, com saldos positivos na balança de pagamentos e aumento da poupança interna, o que tornava o país muito atrativo para investimentos estrangeiros. O mercado de ações americano estava inflado e os bancos tinham emprestado dinheiro demais para corretores que não tinham condições de honrar suas obrigações. Mas tudo ia bem enquanto o crescimento prosseguia e o crédito era farto. Porém, o Banco da Inglaterra, visando reverter saídas de ouro rumo aos Estados Unidos, elevou a taxa de redesconto de 3,5% para 6%, em 1906. Essa medida enxugou a liquidez (quantidade disponível de dinheiro/crédito) nos Estados Unidos, provocando o crash de Wall Street no princípio de 1907 e o declínio da atividade econômica. Em outubro, teve início uma corrida contra os bancos, que foram forçados a suspender os pagamentos em dinheiro. Muitas instituições financeiras faliram. O país entrou em uma severa recessão. Pierpont Morgan (1837- 1913), fundador do banco Morgan, foi chamado para assumir o leme e restaurar a ordem financeira, liderando comissão de banqueiros.

Para boa parte desses diplomatas latino-americanos, o regime nazista simbolizava o autoritarismo bem-sucedido

O RESULTADO DO NEW DEAL
O acordo foi adotado pelo governo dos Estados Unidos logo após a posse de Franklin Roosevelt, em 1937. Com o plano, o Estado norte-americano interveio diretamente na economia e controlou a situação financeira do país

Na política monetária, o New Deal abandonou o padrãoouro e realizou emissão de dólares, desvalorizados em 41%. Com isso, a economia americana recuperou sua competitividade internacional e os preços internos subiram, fatores de estímulo para as empresas. Para reativar as atividades agrícolas, o governo lançou o Agricultural Adjustment Act - pagando indenizações aos fazendeiros, reduziu-se a quantidade de terras cultivadas e o tamanho dos rebanhos. Analogamente, o Nacional Industrial Recovery Act procurou evitar a superprodução e os excessos da concorrência: foram fixados preços mínimos e quotas de produção. Os salários dos trabalhadores fabris foram elevados e as suas jornadas diminuídas.

Sem dúvida, a face mais visível do New Deal foi a política de grandes obras públicas. Entre 1933 e 1942, o governo investiu US$ 13 bilhões na construção de infra-estrutura. A recuperação da economia americana, impulsionada pelo New Deal, ocorreu com certa lentidão. Nas vésperas da Segunda Guerra, o país recuperara os índices de atividade do ano de 1929.


Vale ressaltar um aspecto importante. A comissão chefiada por Morgan impôs ao presidente Th eodore Roosevelt (1858-1919) medidas que contrariaram sua bandeira política de caça aos trustes. Ele teve de concordar com a compra da Tennessee Coal and Iron Co. (uma empresa siderúrgica) pela poderosa U. S. Steel. A razão era simples: a corretora a que pertencia a TC&I estava insolvente, mas precisava ser salva. O pragmatismo suplantou os discursos inflamados e até certo ponto eleitoreiros do ocupante da Casa Branca.

Clientes sinalizam para os escritórios da Associação de Mercados de Nova York, em 1916

Os efeitos negativos logo alcançaram Inglaterra, França, Itália e América Latina também. A crise de 1907 foi fator importante para avançar o consenso político nos Estados Unidos sobre a necessidade de criação de um banco central. Em 1913, surgiu o sistema do Federal Reserve. Há certos paralelismos da crise de 1907 com a crise atual que devem ser ressaltados: a ampla liberdade de movimentação de capitais, a falta de boas regras financeiras, a farra de crédito que conduziu a ativos inflados e especulação desenfreada.

O GRANDE CRASH DE 1929

A quebra da Bolsa de Nova York, em outubro de 1929, é considerada a maior crise econômica de todos os tempos. No fim da década de 1920, os Estados Unidos eram os maiores fornecedores mundiais de crédito, os maiores exportadores e importadores. A roda da economia girava em torno dos humores do mercado americano. Mas o crescimento dos Estados Unidos apresentava sérias fragilidades.

A onda de inovação tecnológica provocara grande aumento da produtividade, cujos efeitos colaterais foram o aumento da taxa de desemprego e a queda do valor real dos salários. No campo, a superprodução agrícola provocou a baixa dos preços dos produtos, fazendo declinar a renda dos fazendeiros. Assim, no fim dos anos 1920, mais de 60% das famílias norte-americanas tinham renda anual menor que US$ 2 mil. O que quer dizer que o tamanho do mercado consumidor era limitado, justamente quando as fábricas de bens de consumo duráveis e semiduráveis produziam a todo vapor. Porém, desde 1926, havia euforia, consumismo e especulação no mercado acionário.

No ano de 1929, surgiram sinais de que a expansão terminara. A acumulação de estoques nas fábricas e os cortes de encomendas feitas pelas grandes empresas comerciais geraram os primeiros balanços ruins. O pânico caiu sobre a Bolsa de Nova York. As ações despencaram. As corridas bancárias tiveram vez. As bancarrotas começaram. Enquanto isso, apegado à ortodoxia liberal, o presidente Herbert Hoover (1874-1964) limitou- se a assistir a quebradeira, a redução drástica do comércio internacional e o derretimento dos preços dos ativos. A repatriação de capitais norteamericanos aplicados na Europa, para fazer face às necessidades de dinheiro que cresciam nos Estados Unidos, provocou a desvalorização das moedas européias. Um a um, os países abandonaram o padrão-ouro, iniciaram desvalorizações competitivas e adotaram medidas protecionistas, o que teve o efeito de "travar" o comércio internacional. A inércia de Hoover transformou o crash da Bolsa de Nova York na Grande Depressão.

Entre 1929 e 1933, nos Estados Unidos, 110 mil empresas faliram e 8.812 bancos desapareceram. O desemprego atingiu 25% em 1933. A produção industrial reduziu-se à metade e o PIB caiu 46%. Os salários tiveram queda de 60%. Os preços agrícolas reduziram-se 55% e os dos bens de produção 26%.

As palavras de Winston Churchill (1874-1965) ilustram o quadro da maior déblâcle do capitalismo: "Toda a riqueza tão velozmente acumulada nas carteiras de títulos dos anos anteriores desfez-se em fumaça. A prosperidade de milhões de lares norteamericanos havia crescido sobre uma estrutura gigantesca de crédito inflado, que subitamente se revelou um fantasma. Afora a especulação com ações em âmbito nacional, que até os mais famosos bancos haviam incentivado por meio de empréstimos fáceis, um vasto sistema de crediários na compra de casas, móveis, automóveis e inúmeros tipos de utensílios e artigos domésticos de luxo havia crescido. Ruíram juntos.As poderosas linhas de produção foram lançadas na tormenta e na paralisia. (...) Agora, as dores atrozes dos salários em declínio e do crescente desemprego afligiam a comunidade inteira" (Memórias da 2a Guerra Mundial).

Movimentação na Bolsa de Valores de Nova York, logo após o crash de 1929

Pessoas protestam nas ruas de Nova York durante a crise de 1929

Com a eleição de Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), em 1933, os Estados Unidos organizaram sua reação à Grande Depressão. Foi posto em prática o plano conhecido como New Deal. No campo financeiro, o governo passou a exigir das instituições maior rigor na concessão de créditos, para os quais foram aumentadas as reservas mínimas que os bancos deveriam manter no Fed. O Glass-Steagall Act proibiu o envolvimento direto dos bancos comerciais em operações nos mercados de capitais e nos mercados imobiliários. Por meio da criação do FDIC (Federal Deposit Insurance Corporation), o governo garantiu depósitos de até US$ 2.500. Também foi criada a SEC (Securities and Exchange Commission), entidade federal encarregada de supervisionar e fiscalizar as operações de bolsa.

As crises originam-se nos países avançados e espalhamse, em seguida, para as regiões periféricas do globo

No decurso da administração Roosevelt, os Estados Unidos passaram a contar com os seguintes meios de intervenção e controle para remediar fragilidades bancárias: a) o emprestador de última instância (o banco central); b) exigências de solvência que os bancos comerciais têm que obedecer; c) sistema de supervisão para monitorar as atividades de bolsa e bancárias; e d) esquemas de seguro de depósitos bancários. O Acordo de Bretton Woods (1944) produziu o efeito de generalizar gradualmente esses elementos pelas economias capitalistas. Há quem sustente que a escassez de crises financeiras nas três décadas que se seguiram ao acordo deve ser atribuída, em boa medida, à "repressão financeira" resultante do acordo.

Retrospectivamente, o crash de 1929 guarda algumas semelhanças com a crise que se vive hoje. Ambas estão associadas a explosões de bolhas de crédito que produzem contração violenta de patrimônios, receitas, atividades e empregos. Tanto em 1929 quanto em 2008, assiste-se a uma deflação pela dívida. Porém, há duas diferenças importantes. A primeira diz respeito à ação das autoridades. Em 1929, como assinalou o economista Milton Friedman (1912-2006), luminar do chamado neoliberalismo, houve falha das autoridades monetárias e do governo.

Hoje, as autoridades mundiais compreenderam a escala da ameaça e estão agindo com maior presteza e medidas drásticas. A segunda diferença é que, em 1930, os Estados Unidos estavam sozinhos - todas as reservas do mundo estavam com eles, e o país era o motor solitário do crescimento internacional. Mas agora os americanos têm a China e outros países emergentes como parceiros.

AS CORRIDAS BANCÁRIAS NO SÉCULO XIX
O século XIX foi marcado por grande número de crises financeiras, que tiveram como protagonistas bancos e corretoras de valores. Desde 1825 até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ocorreram tensões no mundo inteiro, em todas as décadas. O quadro abaixo, que recolhe apenas casos mais famosos, evidencia esse fato:

Crises financeiras na Europa e nos Estados Unidos (1772 a 1907)

Evento Páis de Origem Ano
Quebra do Ayr Bank Escócia Junho 1772
Quebra do Pole, Thornton & Co. Inglaterra Dezembro 1825
Quebra da Bolsa de Valores Inglaterra Dezembro 1836
Bolha das Ferrovias Inglaterra 1847
Bolha das Ferrovias Estados Unidos Agosto 1857
Quebra do Overend & Gurney Inglaterra Maio 1866
Quebra do Crédit Mobilier França 1867-1871
Quebra da Bolsa de Valores Áustria/Alemanha 1873
Quebra do Jay Cooke & Co. Estados Unidos Setembro 1873
Quebra do Union Générale França 1882
Quebra do Barings Brothers Inglaterra Novembro 1890
Quebra da Bolsa de Valores Estados Unidos 1893
Quebra da Bolsa de Valores Estados Unidos 1907

AS LIÇÕES DAS CRISES FINANCEIRAS

Em uma perspectiva histórica, as crises bancárias e de bolsas de valores não são novidades. As "bolhas de crédito" são muitas e recorrentes. Os custos dessas crises, em termos de riquezas dilapidadas e sofrimentos humanos, são enormes. O mercado financeiro capitalista não aprende. As pessoas não aprendem. Os investidores muito menos. Sempre há quem fique alavancado em demasia, quem assuma riscos excessivos ou mal conhecidos ao lidar com inovações financeiras cada vez mais complexas.

Na base das crises financeiras modernas, há sempre o mesmo erro de avaliação dos agentes econômicos: as pessoas acreditam que, dessa vez, realmente o mundo mudou e a economia funciona sobre bases sólidas e definitivas. Alimentam expectativas de retorno desmedidas, lançam mão do crédito abundante para fazer negócios, produzindo uma espiral de ativos intangíveis. As crises têm início quando há rápida deterioração dos indicadores econômicos e surgem boatos ou notícias da dificuldade financeira de uma empresa ou de um banco para cumprir seus compromissos.

A evidência histórica também permite pensar que as crises financeiras são transmitidas pelos canais do comércio internacional, dos empréstimos entre países ricos e pobres, dos mercados de commodities e bolsas de valores e das arbitragens em mercados de títulos de curto prazo. Do século XVII a meados do século XX, as crises originaram- se, predominantemente, nos países avançados da Europa (com destaque para a Grã-Bretanha) e nos Estados Unidos, espalhando-se, em seguida, para as regiões periféricas do mundo.

Quanto ao problema de abreviar as crises fi- nanceiras, de modo a diminuir os impactos negativos que elas causam nos setores produtivos da economia, a história ensina que os Estados têm de agir rapidamente para salvar o sistema financeiro. Os Estados devem ser pragmáticos. Os governos precisam se lembrar de que eles criam mercados, e que mercados só podem existir com regulamento. Que não se alimente o falso debate governo versus mercado.

Outra lição é a de que existem limites para a expansão econômica baseada no crédito. O endividamento excessivo de famílias, empresas e países gera catástrofes enormes. Quando o emprego e a renda não acompanham a oferta de crédito, os negócios das famílias, empresas e instituições financeiras logo se chocam com a realidade da inadimplência. O trabalho e a produção devem ter prioridade sobre a compra e venda de papéis.

A fotografia tirada na Califórnia pela fotógrafa Dorothea Lange (1895-1965), em 1936, foi intitulada de "Mãe Migrante". A imagem virou ícone da Grande Depressão

REFERÊNCIAS

CHANCELLOR, Edward. Salve-se quem puder: uma história da especulação financeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. FIORI, José Luís (org.). Estados e moedas no desenvolvimento das nações. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. FRIEDMAN, Milton; SCHWARTZ, Anna J. A monetary history of the United States, 1867-1960. Princeton: Princeton University Press, 1963. KINDLEBERGER, Charles P. Manias, panics, and crashes: a history of financial crises. 3. ed. New York: John Wiley and Sons, 1986. MAURO, Frédéric. História econômica mundial, 1790-1970. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. MORRIS, Charles R. Os magnatas: como Andrew Carnegie, John D. Rockefeller, Jay Gould e J. P. Morgan inventaram a supereconomia americana. 3. ed. Porto Alegre: L&PM, 2007.

MARCOS LOBATO MARTINS é Doutor em História Econômica pela USP. Professor dos Cursos de História e Direito das Faculdades Pedro Leopoldo, MG (FPL).

Revista Leituras da Historia

domingo, 29 de março de 2009

rock´n´roll - As Lendas de um ritmo cinqüentão

O bom e velho rock´n´roll, já com cinco décadas de existência, tem muita história para contar. Mas, além dos casos verídicos, a música que revolucionou a juventude do século XX serviu de inspiração para a criação dos mais estranhos mitos

POR SÉRGIO PEREIRA COUTO


Muito mais do que um ritmo que encantou gerações, o rock’n’roll tornouse uma espécie de fonte inesgotável para a criação de lendas. Praticamente todos os grandes nomes do rock, de todas as épocas, já foram protagonistas de uma ou outra história escabrosa. Algumas delas, o leitor já deve ter ouvido falar. Seja em tom de piada ou de assunto sério, esses mitos, que muitas vezes são estimulados pelos próprios artistas, espalham- se em conversas de bar, fã-clubes dos ídolos, e biografias (autorizadas ou não) das bandas.

O curioso é que a análise dessas histórias leva à conclusão que elas possuem uma tendência a se repetir. Isso porque se trata de um fator que tende a voltar à baila de uma maneira ou de outra, muitas vezes pela própria aproximação de estilos, como no caso dos cantores Alice Cooper e Marilyn Mason - guardadas as devidas proporções entre eles, claro.

Se analisarmos bem, muitas dessas lendas partem do princípio de que os fãs acreditam em qualquer coisa, mesmo que remotamente condizente com a maneira como seu ídolo se apresenta. Assim, é fácil inventar explicações bizarras para o comportamento de Ozzy Osbourne, ex-vocalista da banda Black Sabbath, ou de Gene Simmons, vocalista do Kiss. Embora esses dois cantores já tenham mostrado em seus programas de televisão The Osbournes e Gene Simmons: Family Jewels (ambos já transmitidos no Brasil) que estão mais para patriarcas bem comportados do que para os demônios do palco, que mordem cabeças de morcego ou colocam línguas de vaca implantadas na própria boca.


As lendas dos astros de rock comprovam que os fãs são capazes de acreditar em qualquer coisa

Gene Simons (à esq.), vocalista da banda Kiss, habita umas das lendas mais bizarras do rock: sua língua seria um implante

Mas, acreditar nessas histórias é uma vontade incontida dos fãs desses artistas que quebram barreiras e que ninguém diz a eles como devem se comportar. As lendas do rock continuam a proliferar nos dias de hoje, apesar de os astros atuais não darem tanto motivo para criá-las como os dos anos 60, 70 e 80. Porém, engana-se quem pensa que anedotas estranhas que envolvem os astros da música são exclusivas do rock. Se olharmos, por exemplo, para o blues, apontado como a principal influência para a criação do rock, veremos que histórias mais estranhas já foram veiculadas.

A ALMA PELO SUCESSO

A lenda mais famosa do blues envolve o cantor americano Robert Johnson (1911-1938), admirado e cultuado por grandes nomes do rock, como Robert Plant, Jimmy Page, Eric Clapton, Keith Richards, Brian Jones, Rory Gallagher e Jimi Hendrix. Robert Johnson influenciou grupos como Phish, ZZ Top, Lynyrd Skynyrd, Rolling Stones, Allman Brothers Band, Grateful Dead e Red Hot Chili Peppers. Dizem que a morte de Johnson, que ocorreu em circunstâncias misteriosas, em 16 de agosto de 1938, foi um dos primeiros casos de um cantor que teria feito um pacto com o demônio em troca de sucesso. Esse mito de vender a alma para receber em troca o sucesso se repetiu com as principais bandas do rock, de Beatles a Led Zeppelin, de Black Sabbath a Red Hot Chili Peppers, de Echo and the Bunnymen a Soundgarden.

ALMA CHEIA DE ROCK Acredita-se que a banda Black Sabbath (foto abaixo) teria vendido a alma ao diabo em troca de sucesso. Para piorar, durante um show um de seus vocalistas, Ozzy Ousbourne, arrancou a cabeça de um morcego com a boca


CONTRATO COM O DIABO
Dizem que o bluesman Robert Johnson vendeu sua alma ao diabo
Toda a vida de Johnson está envolta em mistério. Como não existe nada muito bem documentado sobre o cantor, a grande quantidade de lendas que o cercam tornam qualquer pesquisa difícil. Estudiosos sérios sobre sua obra e biógrafos confiáveis não apareceram antes do final da década de 1960, sendo os principais Mack McCormack e Stephen LaVere. A maior parte das informações sobre a vida de Johnson veio de lembranças de familiares e amigos. Até mesmo as imagens mais difundidas do cantor só foram encontradas em 1973, em fotos que estavam em poder da meia-irmã dele, Carrie Th ompson, e só foram divulgadas no final de década de 1980.

O nome completo do artista era Robert Leroy Johnson. Ele nasceu em 8 de maio de 1911, em Hazlehurst, no Mississipi. Johnson era o 11o filho de Julia Major Dodds, que tivera dez outros filhos com seu marido, Charles Dodds. Como Johnson era um filho de relação extraconjugal, não recebeu o nome dos demais. Sua mãe tentou reunir a família, já que se viu obrigada a abandonar o lar de seu marido por causa da infidelidade, mas nunca conseguiu seu intento. O bebê ficou com o pai postiço, que chegou a aceitá-lo para que convivesse com seus demais fi- lhos, mas jamais perdoou completamente a mãe do menino. Foi apenas na adolescência que o garoto soube quem era seu pai verdadeiro, um trabalhador do campo chamado Noah Johnson.

Em 1914, com apenas 3 anos, Robert Johnson se mudou com os Dodds para Memphis, onde começou a tocar violão sob a proteção de um meioirmão mais velho. Anos mais tarde, ele caiu na estrada e se juntou a alguns amigos que já eram do meio musical, que viajavam por todo o território do delta do rio Mississipi.

De acordo com o folclore do blues, Robert, tomando pelo desejo de se tornar um grande músico, seguiu alguns conselhos para que pegasse sua guitarra (ou violão) e que a levasse para uma encruzilhada próxima a uma plantação por volta da meia-noite. Lá ele se encontrou com um enorme negro (que seria o demônio), que tomou o instrumento de Robert, afinou-o para que pudesse tocar o que quisesse, e a devolveu ao cantor. O preço: a alma do músico. Em menos de um ano ele teria a fama que tanto almejava.

A CONSPIRAÇÃO DOS JOTAS


Um prato cheio para teorias da conspiração: Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison morreram quase na mesma época, todos em circunstâncias misteriosas e aos 27 anos de idade

Mortes misteriosas costumam ser ponto de partida para as lendas que envolvem os astros do rock. A partir de uma morte que tenha acontecido em circunstâncias obscuras, os fãs aproveitam para imaginar que o ídolo possa ter sido calado de propósito por motivos políticos ou coisa parecida.

Certamente, a mais fantasiosa dessas histórias é a chamada “conspiração dos J’s”. Isso tudo começou, infelizmente, com uma fatalidade que levou três dos maiores nomes do rock dos anos 1960: Jimi Hendrix, em setembro de 1970, Janis Joplin, em outubro do mesmo ano, e Jim Morrison, em julho de 1971. De alguma maneira, todos eles estavam ligados ao blues, que dizem ser a música do diabo.


Além do blues, Jimi, Janis e Jim se envolveram com barbitúricos e outros tipos de drogas que eram muito comuns na década de 1960. Mas o fato de que os cantores tiveram carreiras meteóricas e mortes súbitas lançou as mentes dos fãs às alturas. Diz a lenda que nenhum dos três artistas teria escapado da morte porque eles teriam sido assassinados por agentes secretos ligados ao FBI, que estariam interessados em calar as vozes mais destacadas da juventude da época. O movimento “paz e amor” que esses músicos defendiam era radicalmente contra conflitos como a Guerra do Vietnã. Dessa maneira, segundo os boatos, “as forças ocultas” estariam tentando controlar as opiniões dos jovens e forçando-os a pensarem como o governo norte-americano queria. O fato de que a morte dos três até hoje não foram bem explicadas (embora todas envolveram o abuso de drogas), e aconteceram em um período curto de tempo, reforça a tese de que os “J’s” foram vítimas de alguma conspiração. Um outro detalhe: todos eles possuíam 27 anos quando morreram.

Mais um “J” faz parte do grupo de roqueiros que tiveram fins trágicos aos 27 anos de idade: Brian Jones, o guitarrista dos Rolling Stones. Jones foi encontrado afogado em uma piscina, em 3 de julho de 1969. Outros “J’s” da lista são John Bonham, baterista do Led Zeppelin, que morreu por intoxicação alcoólica, em setembro de 1980, e John Lennon, dos Beatles, que foi assassinado em dezembro de 1980. Mas nenhum dos dois tinha 27 anos ao morrer.

Até hoje, ninguém sabe se essa história foi inspirada em algum fato verídico. O fato é que Johnson, um músico de talento, tornou-se da noite para o dia o rei dos cantores do delta, capaz de tocar, cantar e criar algumas das maiores canções que o blues já conheceu.

Johnson gravou alguns títulos como Me and the Devil (Eu e o Demônio), em que diz: “No começo desta manhã, você bateu na minha porta/ E eu disse ‘Olá, Satanás, acho que é hora de ir’/ Você pode enterrar meu corpo ao longo da rodovia/ Para que meu velho espírito maligno possa entrar num ônibus e passear”.

A SINA DOS 27 ANOS

Johnson morreu aos 27 anos, um número cabalístico para os artistas do rock, já que foi com essa mesma idade que se foram outros ídolos da música: Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Brian Jones (guitarrista dos Rolling Stones), Alan Wilson (vocalista do Canned Heat), Brian Cole (baixista do Associations), Ron Pigpen McKernan (vocalista do Grateful Dead), Gary Th ain (baixista do Uriah Heep), Kurt Cobain (vocalista do Nirvana), entre outros.

BEATLES ETERNAMENTE Conta-se que Paul McCartney (seguindo da esquerda para a direita) morreu em 1966 e foi substituído por um sósia

A morte de Johnson, em 16 de agosto de 1938, aconteceu em uma encruzilhada (meio irônico, não?) próxima à cidade de Greenwood, no Mississippi. Dizem que, algumas semanas antes de morrer, ele começou a paquerar uma mulher de um clube onde tocava. Só que ela era casada e, por influência do marido ciumento, teria oferecido uma garrafa de uísque envenenado ao músico. De acordo com testemunhas, ele morreu dias depois, em estado convulsivo por causa da bebida. Relatos exagerados falam que, antes de morrer, Johnson teria começado a uivar como um cão, pois havia chegado a hora de pagar pelo pacto com o diabo.

A morte de Johnson também é contestada, como acontece com outros ídolos do rock. Assim como falam de Elvis Presley e Jim Morrison (vocalista do The Doors), há quem diga que Robert Johnson não morreu. Em contrapartida, tem gente que “quer matar” aqueles que estão vivos. A morte do cantor Lou Reed já foi anunciada pela internet, com direito até a papel de carta timbrado. Mais mirabolante ainda é o boato a respeito da morte de Paul McCartney, baixista dos Beatles. Dizem que o verdadeiro Paul morreu em 1966, em um acidente de carro, e foi substituído por um sósia.

O LADO ESCURO DE OZ

Um dos mitos mais famosos que envolve um álbum de rock fala a respeito de um suposto fenômeno de sincronia entre The Dark Side of Th e Moon (1973), trabalho da banda psicodélica inglesa Pink Floyd, e o filme O Mágico de Oz, de 1939. O disco levou a popularidade da banda para as alturas: a faixa Money invadiu as rádios norte-americanas ficou entre o Top 20; nas paradas britânicas, ficou entre as mais tocadas por 301 semanas. Dark Side possui efeitos sonoros incidentais e apresenta uma idéia completamente nova: coloca partes de entrevistas ao longo das músicas, a maioria gravada em estúdio. As letras desse álbum falam sobre as diferentes pressões no dia-a-dia do ser humano. O disco foi gravado no estúdio Abbey Road, em Londres, o mesmo em que os Beatles fizeram vários de seus álbuns. Segundo alguns conspirólogos (nome que se dá àqueles que estudam conspirações e que, muitas vezes, são os principais responsáveis por espalhar os boatos), só por ter sido gravada no mesmo estúdio dos Beatles, a obra mais famosa do Pink Floyd já seria uma espécie de “influência psíquica indireta” sobre os ouvintes.

MÚSICA PROFANA O Led Zeppelin (abaixo) se inspirou na música de Robert Johnson, cantor de blues que teria vendido a alma ao diabo

Quando a história da sincronia de Dark Side com o filme O Mágico de Oz foi divulgada, na década de 1990, muitos fãs se mostraram um pouco céticos sobre o assunto. Tal fato foi negado diversas vezes tanto por Roger Waters, compositor e vocalista da banda, quanto por David Gilmour, também vocalista e guitarrista do Pink Floyd. No entanto, os conspirólogos continuam insistindo no assunto.

DARK SIDE INFANTIL Cena do filme O Mágico de Oz, fonte de inspiração para Pink Floyd

DESENHO PSICODÉLICO

Com uma cópia do disco The Dark Side of the Moon e um exemplar do DVD do filme O Mágico de Oz é possível conferir a simultaneidade entre as obras na sua casa

A sincronia do álbum The Dark Side of The Moon, do Pink Floyd, com o filme O Mágico de Oz pode ser facilmente reproduzida em casa. Basta uma cópia do filme em DVD e o CD da banda inglesa psicodélica (as fitas VHS e os discos em vinil são mais difíceis de serem sincronizados).

Primeiro, coloque o CD para tocar e aperte o Pause. Em seguida, ponha o DVD no aparelho e aguarde ser carregado. Pressione a tecla Play de seu controle remoto para dar inicio ao filme. Quando as imagens começarem a aparecer na televisão, aguarde o leão símbolo do estúdio Metro- Goldwyn-Mayer rugir. Detalhe importante: a simultaneidade das obras só pode ser conferida com a versão original do Mágico de Oz, em que o começo do filme é em preto e branco. Se a versão for colorida, o resultado pode ter ligeiras diferenças.

Depois do terceiro rugido do leão, aperte o Play de seu CD e imediatamente acione a tecla mudo da sua TV. Há quem diga que uma sincronia maior entre as obras é obtida quando o CD é acionado após o primeiro rugido do leão. Depois, basta acompanhar o desenrolar do filme e prestar atenção na música. Importante: não se esqueça de programar o CD para tocar de novo quando acabar sua primeira execução.

Se você consegue entender bem a língua inglesa e as letras das músicas, a possibilidade de apreciar o efeito é maior, pois muito do que é cantado aparece na tela. Por exemplo:

• A tia de Dorothy parece dizer leave (parta, em português) ao mesmo tempo em que é dito o verso leave, but don’t leave me (parta, mas não me abandone) na música Breathe
• Look around (olhe ao redor), e Dorothy olha ao redor
• Dig that hole (cave aquele buraco) e o fazendeiro do filme aponta para o chão
• Moved from side to side (moveram- se de um lado para o outro), e os Munchkins correm de um lado para outro quando surge a Bruxa Má do Oeste.
• Black and blue (preto e azul), quando é dito black, a bruxa é vista, quando é dito blue, aparece o rosto azul dela
• Os sons de relógios na introdução da música Time começam a tocar assim que a personagem Elvira Gulch aparece na bicicleta, e cessam assim que ela pára de pedalar
• A canção The Great Gig in the Sky se inicia assim que o tornado se aproxima no filme, e suas mudanças de ritmo combinam com o clima
• A música Money começa quando Dorothy abre a porta para o mundo de Oz e o filme deixa de ser preto-e-branco e torna-se colorido
• As bailarinas do desenho dançam ao ritmo de Us and Them

Ninguém sabe ao certo como surgiu a idéia de simultaneidade entre o trabalho da banda inglesa e o filme baseado no livro do escritor norte-americano Lyman Frank Baum. Sabe-se apenas que em 1994 os fãs da banda já discutiam o assunto abertamente no grupo de discussão do site Usenet (alt.music.pinkfloyd). Desde então, o assunto foi estudado exaustivamente por músicos, pesquisadores da história do rock e até por profissionais de vídeo. Passou a ser uma referência de cultura popular já no ano seguinte, quando, em agosto de 1995, um jornal de Fort Wayne, no Estado norte-americano de Indiana, publicou o primeiro artigo na grande mídia sobre a sincronia.

Não demorou muito para que os fãs começassem a criar sites na internet, onde pudessem descrever suas experiências enquanto viam as coincidências entre as duas obras. A legião de interessados cresceu quase exponencialmente em 1997, quando um locutor de uma rádio de Boston discutiu o fenômeno no ar. Isso levou a mais uma chuva de artigos de revistas especializadas em rock e um segmento inteiro dedicado ao assunto no informativo da emissora de televisão MTV norte-americana.

MITOS CLÁSSICOS

São muitas as lendas excêntricas sobre os músicos e as bandas, mas algumas delas já foram tão difundidas que viraram histórias tradicionais do rock


- As maquiagens do Kiss foram criadas para esconder as feições do guitarrista Ace Frehley que, na verdade, é Jim Morrison

A insistência da banda em usar máscaras surgiu na década de 1970 e terminou em 1983, com o lançamento do álbum Lick It Up. O mistério sobre as circunstâncias que levaram à morte de Jim Morrison, o célebre vocalista do The Doors, em 1971, fez com que os conspirólogos afirmassem que o líder do Doors poderia estar por trás de um dos rostos da banda. Para reforças ainda mais a lenda, Frehley sempre teve fama de beberrão, como Morrison, e nunca se arriscou a cantar, pelo menos não nos primeiros discos. E como o guitarrista mascarado quase não falava nada, começaram a dizer que ele era o cantor-poeta, que não abria a boca para não ser reconhecido. O fato de Frehley não se parecer fisicamente com Morrison nem foi levado em consideração, muito menos o fato de que Jim não tocava guitarra, enquanto que o membro do Kiss é considerado um dos melhores guitarristas dos anos 1970


- Ozzy Osbourne mordeu a cabeça de um morcego durante uma aparição promocional, seguindo ordens de sua empresária e futura esposa, Sharon

Em 20 de janeiro de 1982, durante um concerto em Iowa, nos Estados Unidos, Ozzy de fato mordeu um morcego. Durante a apresentação, ele atirou carne crua para a platéia, que por sua vez atirou várias coisas no palco, inclusive o tal morcego. Não se sabe se o animal estava vivo ou morto, mas para ser atirado, é de se supor que estivesse morto. Ozzy afirma até hoje que fez isso porque acreditava ser um brinquedo. Por causa da brincadeira, ele acabou tendo que tomar vacinas antirrábicas, e jurou em seu programa na MTV que jamais quer ver um morcego de novo na vida. Quanto à Sharon, dizem que ela sempre controlou a carreira do marido, a ponto de estabelecer limites em suas bebedeiras e controlar seus acessos de ansiedade. Mas, com certeza, ela não foi responsável pela mordida de Ozzy


Stairway to Heaven, música da banda britânica Led Zeppelin, é de cunho satânico e possui uma mensagem subliminar que comprova esse fato

Mensagens ocultas são encontradas em quase todos os clássicos do rock. No caso de Stairway to Heaven, a canção já foi usada por grupos religiosos como exemplo da prática do backmasking, a ocultação de uma mensagem, colocada de trás para frente em uma gravação, para que o inconsciente do ouvinte memorize. O verso “cause you know sometimes words have two meanings” (porque você sabe que às vezes as palavras têm dois significados) seria a prova dessa teoria. Ainda por cima, dizem que a frase significa algo como “here´s to my sweet satan” (aqui para o meu doce satã), ou ainda “I will sing because I live with Satan” (eu vou cantar porque vivo com satã). No começo dos anos 90, o vocalista da banda, Robert Plant, desmentiu esse boato em uma entrevista à revista Rolling Stone e indagou: “Quem iria perder tempo com algo tão inútil?”

Interessado em atrair a atenção para o fenômeno, o canal por assinatura norte-americano Turner Classic Movies (TCM) exibiu O Mágico de Oz junto com Dark Side, como trilha sonora opcional. Os fãs que se interessam pelo sincronismo falam que já juntaram mais de 100 momentos de conexão entre o filme e o disco. É claro que o álbum em si é de menor duração que o filme, por isso o correto é fazer com que o disco recomece depois que termine sua primeira execução. E os fãs afirmam que o fenômeno chega a se repetir.

Dizem que os exemplos de sincronismo podem ser percebidos nas seguintes passagens: o verso balanced on the biggest wave (balançado na maior das ondas), da música Breathe, é cantando enquanto a personagem Dorothy se balança em cima de um muro; quando Roger Waters canta “who knows which is which” (quem sabe quem é quem), na balada Us and Them, as bruxas boa e má do Mágico de OZ se confrontam no filme; e o verso the lunatic is on the grass (o lunático está na grama), da faixa Brain Damage, é cantado enquanto o Espantalho, cujo corpo é preenchido com grama seca, age freneticamente como um louco.

COINCIDÊNCIA OU INSPIRAÇÃO?


Há quem jure que há uma sincronia perfeita entre os temas de certos discos e filmes

Paul’s Boutique (1989), dos Beastie Boys / Curtindo a Vida Adoidado (1982)
Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), dos Beatles / Fantasia (1940), da Disney
Post (1995), de Björk / Star Wars – Episódio IV: Uma Nova Esperança (1977)
About Face (1984), de David Gilmour / Blade Runner, o Caçador de Andróides (1982)
Waiting For The Sun (1968), do The Doors / Evil Dead II - Uma Noite Alucinante (1987)
Fire on High (1975), da Eletric Light Orchestra / 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968)
The Lamb Lies Down on Broadway (1974), do Genesis / Tron, Uma Odisséia Eletrônica (1982)
Three Friends (1972), do Gentle Giant / As Bicicletas de Belleville (2003)
Ritual de lo Habitual (1989), do Jane´s Addiction / Trainspotting (1996)
Electric Ladyland (1968), do Jimi Hendrix / O Massacre da Serra Elétrica (1974)
The Black Album (1991), do Metallica / Star Wars – Episódio V: O Império Contra-Ataca (1980)
Dummy (1994), do Portshead / Psicose (1960)
A Night At The Opera (1975), do Queen / abaret (1972)
Rage Against The Machine (1992), do Rage Against The Machine / Faça a Coisa Certa (1989)
2112 (1976), do Rush / Contato (1997)


CONEXÃO BEM SUCEDIDA
Apesar de desmentida diversas vezes pelo próprio Pink Floyd, a relação entre Dark Side e O Mágico de Oz ainda é cultuada pelos fãs


Alguns especialistas em psicologia arriscam um palpite sobre o fenômeno. Para eles, tudo não passa de uma coincidência que pode ser explicada pela psicanálise de Carl Jung. Dizem os junguianos que o sincronismo entre o filme e o disco não passa de um evento onde fatores coincidentes parecem relacionados, mas não podem ser explicados pelos mecanismos convencionais de casualidade. Em outras palavras, a tal sincronia seria resultado de “uma tendência da mente de pensar que reconhece padrões desordenados por descartar informações que não se encaixam”. Essa tendência, segundo eles, teria o nome técnico de “confirmation bias”.

O guitarrista David Gilmour chegou a falar sobre o assunto durante uma entrevista realizada no 25o aniversário de Dark Side, em 1998. Para ele, o tal fenômeno de sincronismo foi obra de “algum cara com muito tempo livre” que “teve essa idéia de combinar O Mágico de Oz com The Dark Side of the Moon”. Em 2002, mesmo separados, os membros do grupo afirmaram em um especial para a MTV americana que a coincidência não seria possível, simplesmente porque entre 1972-1973, época em que o álbum foi gravado, não havia tecnologia disponível para que o efeito fosse produzido. Porém, a afirmação pouco interessa para os fãs que, não satisfeitos com o disco do Pink Floyd, foram buscar outros casos de sincronia. A tabela (abaixo) mostra outros exemplos de supostos casos de simultaneidade que, segundo algumas pessoas que se atreveram a observá-los, funcionam tanto quanto o caso do filme O Mágico de Oz e o disco do Pink Floyd.

REFERÊNCIAS:

Brunvand, Jan Harold. Encyclopedia Of Urban Legends. WW Norton, 2002 Sherman, Dale. Urban Legends Of Rock & Roll (You Never Can Tell). Collector´S Guide Publishing, 2003 Flynn, Mike & Brown, Yorick.
The 500 Best Urban Legends Ever! Ibooks, 2003 Fleming, Robert Loren & Boyd Jr., Robert F. The Big Book Of Urban Legends. Paradoxx Press, 1998

SÉRGIO PEREIRA COUTO é jornalista formado com passagem por revistas como Discovery Magazine e Ciência Criminal. É autor de mais de vinte títulos, todos enfocando aspectos curiosos da história universal, entre eles os romances Sociedades Secretas, Investigação Criminal, Renascimento e os livros de pesquisa A Extraordinária História da China e Segredos e Lendas do Rock.

Revista Leituras da Historia

sexta-feira, 27 de março de 2009

A caixa liberou todos os males. Mas guardou a esperança



Eduardo Martins
A palavra deu nome a mais de uma personagem do cinema, a uma distribuidora brasileira de filmes, a um dos satélites de Saturno e a um site do qual se podem baixar músicas na internet. Como lenda, foi tema de filme com Angelina Jolie. Alguma razão, haveria para que Pandora tivesse tão amplo número de referências.

Segundo a mitologia grega, Pandora foi a primeira mulher na Terra. Para castigar o titã Prometeu, Júpiter ordenou a seu filho Vulcano que criasse, do barro, uma mulher tão bela e encantadora que provocasse a infelicidade dos homens. Na origem, Pandora significa “todos os dons”, “todas as dádivas”, tamanhos foram os predicados que as divindades do Olimpo puseram nessa mulher.

Pandora foi dada como mulher a Epimeteu, irmão de Prometeu, o titã que havia roubado o fogo do céu. A primeira mulher na Terra levou do Olimpo uma caixa cujo conteúdo não conhecia. Recebeu a recomendação de não abri-la, mas ela ou o marido, Epimeteu, abriu a caixa, que continha todos os males do mundo. Até aí a humanidade não conhecia doenças nem dores. Por isso se fala hoje em caixa de Pandora como algo que desencadeia problemas ou aflições. Ficou, porém, um consolo: no fundo da caixa restou a esperança.

Vulcano, o filho que cumpriu a ordem de Júpiter para criar Pandora, emprestou o nome a um dos maiores perigos para a humanidade, o vulcão. Vulcano, identificado ao deus grego Hefesto, nasceu tão disforme que Júpiter o lançou do alto do Olimpo ao mar.

Recolhido por Tétis, filha de Oceano, foi por ela criado numa gruta, na qual desenvolveu a habilidade de fabricar brincos, broches, anéis e braceletes. Também criou duas forjas onde foram polidos pela primeira vez o ouro, o ferro, o cobre e o aço.

Sua oficina ficava sob o monte Etna, na Itália, que encerra um dos vulcões mais ativos do mundo moderno. Transformado em deus do fogo, Vulcano é representado habitualmente ao lado de uma forja, tendo numa das mãos um martelo e na outra um raio.

Eduardo Martins é editor de O Estado de S. Paulo e autor do Manual de Redação e Estilo do jornal.

Revista Historia Viva

O tráfico de seres humanos hoje

Ação de libertação de escravos em fazenda no município de Goianésia do Norte, no Pará, em novembro de 2003


Mais de 200 anos após a proibição do comércio negreiro, milhões de pessoas ainda são compradas e vendidas todos os anos no mundo inteiro
por Leonardo Sakamoto
LEONARDO SAKAMOTO

Migrar e trabalhar. Quando esses verbos se conjugam da pior forma possível, acontece, ainda hoje, o chamado tráfico de seres humanos. Um relatório da Organização Internacional do Trabalho, publicado em 2005, estima em cerca de 2,5 milhões o número de pessoas traficadas em todo o mundo, 43% para exploração sexual, 32% para exploração econômica e 25% para os dois ao mesmo tempo. No caso do tráfico para exploração econômica, a negociação de trabalhadores rende por ano cerca de US$ 32 bilhões no mundo.

O tráfico de pessoas para exploração econômica e sexual está relacionado ao modelo de desenvolvimento que o mundo adota. Esse modelo é baseado em um entendimento de competitividade que pressiona por uma redução constante nos custos do trabalho. Empregadores “flexibilizam” as leis e relações trabalhistas para lucrar e, ao mesmo tempo, atender aos consumidores, que exigem produtos mais e mais baratos. No passado, os escravos eram capturados por grupos inimigos e vendidos como mercadoria. Hoje, a pobreza que torna populações socialmente vulneráveis garante oferta de mão-de-obra para o tráfico – ao passo que a demanda por essa força de trabalho sustenta o comércio de pessoas. Esse ciclo atrai intermediários, como os “gatos” (contratadores que aliciam pessoas para ser exploradas em fazendas e carvoarias); os “coyotes” (especializados em transportar pessoas pela fronteira entre o México e os Estados Unidos) e outros “animais”, que lucram sobre os que buscam uma vida mais digna.

Muitas vezes é a iniciativa privada uma das principais geradoras do tráfico de pessoas e do trabalho escravo, ao forçar o deslocamento de homens, mulheres e crianças para reduzir custos e lucrar. Direta ou indiretamente. Na pecuária brasileira, na produção de cacau de Gana, nas tecelagens ou fábricas de tijolos do Paquistão, em olarias na China. Vale lembrar que a sistemática desregulamentação do mercado de trabalho facilita a ocorrência desses crimes.

O tráfico de pessoas e as formas contemporâneas de trabalho escravo não são uma doença, e sim uma febre que indica que o corpo está doente. Por isso, sua erradicação não virá apenas com a libertação de trabalhadores, equivalente a um antitérmico – necessário, mas paliativo. O fim do tráfico passa por uma mudança profunda, que altere o modelo de desenvolvimento predatório do meio ambiente e dos trabalhadores. A escravidão contemporânea não é um resquício de antigas práticas que vão desaparecer com o avanço do capital, mas um importante instrumento utilizado pelo capitalismo para se expandir.

Em 2008, 120 anos após a abolição, de acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego, mais de 5 mil escravos foram libertados no Brasil. Desde 1995, quase 34 mil pessoas ganharam a liberdade, em centenas de fiscalizações realizadas pelo governo federal. Boa parte desses trabalhadores foi vítima de promessas fraudulentas e tráfico humano.

Lutar contra as regras do jogo, de um jogo sem regras, para garantir um mínimo de dignidade a milhões de seres humanos é uma tarefa árdua. Mas segue sendo tão necessária quanto no tempo dos abolicionistas, que lutaram contra o tráfico transatlântico e a sociedade escravagista.

Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo. Membro da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, é autor do livro Trabalho escravo no Brasil do século XXI (OIT, 2006)

Revista Historia Viva

terça-feira, 24 de março de 2009

O resgate de Napoleão

Animados pela Revolução Pernambucana de 1817, um grupo de emigrados franceses nos Estados Unidos elaborou um plano para resgatar o imperador em Santa Helena e trazê-lo para a América usando o Brasil como base de operações
por Vasco Mariz

Museu Nacional do Palácio de Bois-Preau

Napoleão em Santa Helena: o imperador francês terminou seus dias lentamente envenenado pelos ingleses

A fama e o fascínio por Napoleão estiveram bem presentes no Brasil nos primeiros 20 anos do século XIX. Em 1801 o futuro imperador francês poderia ter sido o patrono do primeiro movimento pernambucano para fundar uma república no país, a frustrada conspiração dos Suassunas. A influência de sua figura e das idéias liberais da Revolução Francesa e da independência dos Estados Unidos da América esteve muito presente entre os revolucionários pernambucanos do século XIX, desde a conspiração de 1801 até o triunfo da Revolução de 6 de março de 1817 no Recife, que proclamou a República no Nordeste. Tais ligações se tornariam ainda mais estreitas quando militares bonapartistas exilados nos Estados Unidos, animados com o sucesso da Revolução Pernambucana, elaboraram um plano para resgatar Napoleão de seu cativeiro em Santa Helena, levá-lo a Pernambuco e depois a Nova Orleans.

O elo entre os franceses e o Brasil era Antonio Gonçalves da Cruz, o Cabugá, homem enviado pelos revolucionários nordestinos como seu representante junto ao governo dos Estados Unidos no intuito de obter o reconhecimento formal da independência de Pernambuco. Os bonapartistas estiveram em contato permanente com Cabugá, que era um entusiasta do plano dos exilados franceses.

A queda do império napoleônico, em 1815, significou para a quase totalidade dos oficiais dos exércitos franceses uma verdadeira catástrofe. Com o imperador nas mãos dos ingleses, os generais e coronéis que haviam combatido em Iena, Marengo, Leipzig, na Rússia e em Waterloo encontravam-se em situação muito difícil, pois ou prestavam juramento de fidelidade a Luís XVIII, ou se contentavam em receber meio soldo apenas. Por isso, numerosos oficiais preferiram o exílio nos Estados Unidos, onde havia oportunidades para “soldados de fortuna”. Assim, poucos meses depois da queda do império, já estavam nos EUA cerca de mil oficiais franceses de várias patentes, cujo único pensamento era libertar o imperador que definhava no clima severo da ilha de Santa Helena, em pleno oceano Atlântico, na altura de Pernambuco.

O chefe da conspiração francesa nos EUA era o irmão do imperador, José Bonaparte, que fora rei da Espanha. Por meio do contato com Cabugá viram no Brasil uma possibilidade de colocar em prática seus planos, e numerosos militares franceses começaram a se deslocar para Pernambuco a fim de preparar a cabeça-de-ponte da operação. Durante os três meses de vida da República de Pernambuco, Cabugá adquiriu armamentos e munições e os enviou ao Brasil. Mesmo após a derrota da revolução, ele continuou ajudando os franceses exilados que planejavam o rapto de Napoleão e conseguiu articular a vinda para o Brasil de dois navios corsários, o Parangon e o Penguin.


Museu Wellington, Londres

A Batalha de Waterloo marcou a derrota final de Napoleão Cuirassiers atacando os Highlanders durante a Batalha de Waterloo em 18 de junho de 1815, Felix Philippoteaux, óleo sobre tela, 1874

Outro fator que contribuiu para os planos dos franceses foi a decisão do Departamento de Estado americano de designar um representante permanente em Recife, o cônsul Joseph Ray, que desempenharia papel significativo no decorrer da Revolução de 1817, abrigando em sua casa cidadãos franceses que chegavam para incorporar-se à expedição que iria seqüestrar Napoleão.

A oportunidade era esplêndida para os emigrados franceses nos EUA, que se aproveitaram dos bons ofícios de Cabugá em Washington e da estratégica posição de Ray em Recife. Correspondência citada por Donatello Grieco em seu excelente livro Napoleão e o Brasil informa que os oficiais franceses convergiram para o porto de Baltimore e um grupo avançado de 32 homens chefiado pelo coronel Latapie viajou para Pernambuco. Foram adquiridas duas escunas que estavam em Baltimore e Anápolis. O ponto de reunião de toda a expedição era a ilha de Fernando de Noronha, onde Portugal mantinha uma prisão especial. Lá deveriam reunir-se 80 oficiais franceses, cerca de 700 americanos e outro navio com 800 marinheiros. Essas forças deveriam atacar Santa Helena visando a capital Jamestown, mas isso seria apenas uma manobra para atrair os defensores ingleses, deixando livres a Sandy Bay e a Prosperous Bay, onde desembarcaria a maioria das tropas da expedição. Um grupo se dirigiria à residência de Napoleão e o levaria para a Prosperous Bay. Seguiriam para Recife e viajariam depois para Nova Orleans.

A bordo do navio Parangon chegaram ao Rio Grande do Norte em agosto de 1817 alguns dos principais personagens da expedição francesa. O mais importante deles era o conde de Pontécoulant, pitoresco personagem de vida aventureira, apesar de sua alta linhagem gaulesa. Ao desembarcar teve a má notícia de que a Revolução de 1817 fora afogada, mas o fato não era tão grave assim porque Joseph Ray, o cônsul americano em Recife, continuaria a dar-lhes plena cobertura. Em Natal não encontrou maiores dificuldades, pois conseguiu fazer boas relações de amizade com o secretário do governador. Decidiu passar-se por médico e botânico e partiu para a Paraíba, onde o Parangon havia desembarcado o general Raulet, o coronel Latapie e outros personagens franceses de patente mais baixa.

Na Paraíba, o conde não teria a mesma boa recepção, pois o governador local mandou prender todos os franceses encontrados, enviando-os depois para Pernambuco. Em Recife tiveram melhor sorte, pois o governador Luiz do Rego não encontrou em seus papéis nada de suspeito e os liberou. Foram hospedar-se na casa do cônsul Ray, que se tornaria o centro de todas as medidas para o êxito da expedição francesa a Santa Helena. Nesse momento aportou em Recife outra escuna americana carregada de armamentos, o que alarmou o governador pernambucano, que não sabia como controlar o cônsul Joseph Ray.


Arquivo Público do Recife

Nos traços de Antonio Parreiras, imagem da breve República de Pernambuco. Bênção das bandeiras da Revolução de 1817, óleo sobre tela, início do século XIX

Sucedeu então o imprevisto: o coronel Latapie solicitou audiência ao governador Luiz do Rego e resolveu relatar-lhe tudo sobre a expedição que estava sendo preparada. Contou-lhe o papel do ex-rei da Espanha, José Bonaparte, irmão de Napoleão, que deveria chegar a Pernambuco nos próximos dias e todas as implicações de uma delicada questão internacional. O governador afinal deu-se conta da importância dos fatos e decidiu encaminhar os franceses às autoridades portuguesas da capital.

No Rio de Janeiro ocorreu outra surpresa: um cidadão americano declarou ao presidente da Alçada que o cônsul Ray estava em contato direto com Cabugá e os líderes da expedição francesa. O cônsul acusava o governador de Pernambuco de prejudicar os interesses comerciais dos EUA. Afirmava Ray abertamente que seria muito fácil obter a independência do Brasil, porque o governo português do Rio de Janeiro ficaria reduzido à impotência pela intervenção armada dos Estados Unidos e a neutralidade da Inglaterra. O interrogatório de tripulantes do navio americano confirmou essas declarações alarmantes do diplomata.

Segundo o relato de Ferreira da Costa em seu A intervenção napoleônica no Brasil, o conde de Pontécoulant, assustado, preferiu regressar ao Rio Grande do Norte para obter proteção de seu amigo, o secretário do governador, mas nova complicação ocorreu com o aparecimento de outro navio americano, o Penguin. Procedente de Nova York, a embarcação trazia mais armamentos enviados por Cabugá, e seus tripulantes transmitiram notícias alarmantes, assegurando até que Napoleão já se evadira de Santa Helena. Em Recife, no início de 1818, o governador Luiz do Rego, convencido da cumplicidade do cônsul americano, pediu ao Rio de Janeiro autorização para efetuar uma busca na casa dele e lá encontrou três pernambucanos implicados na Revolução de 1817, além de alguns franceses, prova cabal de sua conivência.

A imunidade consular salvou Ray, mas seu secretário dinamarquês foi preso e relatou todos os pormenores da associação dos franceses com os revolucionários de 1817, do que resultou a prisão do general Raulet. Nesse ínterim, chegavam ao Ceará mais franceses ilustres a bordo da fragata Les Trois Frères. Os bonapartistas contavam que na França se falava com entusiasmo do sucesso da Revolução Pernambucana e vários franceses decidiram embarcar para o Brasil a fim de juntar-se à expedição destinada a Santa Helena.

As autoridades portuguesas começaram a preocupar-se seriamente com a chegada de dezenas de franceses de alta estirpe que não podiam trancafiar impunemente sem protesto do governo francês, com o qual Portugal mantinha agora excelentes relações. Por outro lado, o governo português não podia deixar de reagir ao imbróglio que aumentava com os protestos do governo inglês, seu aliado, interessado em manter Napoleão em segurança na sua ilha. Os juristas estavam confusos e afinal a corte portuguesa ordenou à polícia carioca “transportar para a Europa todos os emigrados franceses que se encontravam no Brasil”.

Em Santa Helena o comandante inglês sir Hudson Lowe estava ao corrente de tudo o que acontecia no Brasil pelo ministro inglês no Rio de Janeiro e tomou diversas medidas para reforçar a defesa da ilha. Instalou telégrafos e novas baterias em Sandy Bay, em Prosperous Bay e na capital Jamestown, os três pontos mais vulneráveis.

Os planos dos bonapartistas nunca se concretizaram, mas os franceses dificilmente teriam tido sorte em sua iniciativa de raptar o imperador da ilha solitária. Não seria nada fácil, pois os ingleses sabiam dos planos dos franceses e tomaram precauções eficazes para resistir. Se ele tivesse aportado em Recife a caminho de Nova Orleans, durante a Revolução de 1817, certamente seus próceres tentariam retê-lo por algum tempo para homenageá-lo, mas isso dificilmente se realizaria.

É claro que se d. João VI tivesse conhecimento de que Napoleão estava em Recife, mandaria apresá-lo imediatamente para vingar-se de sua ignominiosa fuga de Lisboa em 1808, escapando às tropas do general Junot. Que magnifico refém seria Napoleão para d. João VI! Na época o monarca estava negociando com Luis XVIII a devolução da Guiana francesa, ocupada em 1809 por tropas da Amazônia. Por isso é natural que, se os exilados Franceses tivessem obtido sucesso no seqüestro de Napoleão, eles o teriam levado diretamente para os EUA, sem escala em Recife, que serviria apenas de cabeça-de-ponte inicial para a planejada operação de resgate.

SAIBA MAIS
Napoleão e o Brasil. Donatello Grieco. Bibliex, 1995.

História da Revolução de Pernambuco em 1817. Francisco Muniz Tavares. Imprensa Industrial, 1917.

Vasco Mariz É historiador e diplomata aposentado. Ex-embaixador do Brasil no Equador, Israel, Chipre, Peru e Alemanha, é autor de Villegagnon e a França Antártica (Nova Fronteira, 2000), entre outros livros

Revista Historia Viva